Trabalho apresentado no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, sendo de total
responsabilidade de seu(s) autor(es).
Oficinas Autobiográficas “Conversando a gente se entende”
Uma proposta de atendimento integral ao idoso vestibulopata
Patricia Unger Raphael Bataglia
Maria Helena Palma de Oliveira
Flavia Lana Arcanjo Teixeira
Universidade Bandeirante de São Paulo
Introdução: Desde o início das atividades no Laboratório de Reabilitação do
Equilíbrio Corporal a preocupação da equipe sempre foi a de unir o tratamento do
distúrbio à atenção psicossocial. Por isso, foram estruturados os grupos de inclusão
social que reúnem os pacientes interessados em participar de oficinas de produção
autobiográfica. A proposta é embasada na idéia de que a autobiografia, entendida
como um ato de textualização da própria vida, é um ato reflexivo inerente à
autoconsciência e por isso considerada a teoria do próprio ser, portanto a mais
importante de todas (BRUNER e WEISSER, 1995). Metodologia: Sem a pretensão de
constituir-se em um grupo terapêutico, as oficinas reúnem por 8 semanas um mesmo
grupo de pacientes. A proposta é de não exceder 15 participantes por grupo para
permitir que todos tenham oportunidade de se expressar. São propostas atividades e
dinâmicas que permitem a troca de idéias, a expressão de seus pensamentos,
sentimentos, o surgimento de lembranças e de planos para o futuro. Resultados: O
retorno dos participantes tem sido muito positivo. Falando sobre sua participação no
grupo (N. 65 anos): “Eu sinto que desde que começou as reuniões eu tô indo mais prá
dentro de mim, pelo menos estou tentando entender um pouco mais, ou melhor, e
vendo que eu posso trabalhar certas coisas”. Conclusão: Na medida em que as
pessoas falam de si e ouvem uns aos outros, reconstroem e reinterpretam suas
experiências. Isso contribui para os resultados alcançados no processo de reabilitação
e também para a ressignificação desse momento de suas vidas, concorrendo para sua
inclusão social.
Palavras-chave: inclusão social; relato autobiográfico; idosos
A humanização da assistência à saúde implica em um trabalho voltado ao
atendimento do paciente levando-se em conta o ser integral que ali está. Este assunto
tem sido motivo de pesquisas e gerado muita preocupação em instituições bem como
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dentre os assistidos. A prática do profissional pode facilitar a compreensão do
paciente em relação às suas possibilidades de reintegração social e profissional ou,
deixá-lo à mercê de si mesmo, o que dificulta muito sua vida do dia-a-dia para além
das limitações inerentes à condição imposta pela vestibulopatia (já que aqui
concentraremos nossa atenção nesse quadro). A prática humanizada pressupõe a
compreensão do outro como fim em si mesmo.
O Laboratório de Reabilitação do Equilíbrio Corporal e Inclusão Social que
nasceu do Programa de Mestrado Profissional da Universidade Bandeirante de São
Paulo desde o início das atividades, no ano de 2007, tem abordado o tema saúde de
um ponto de vista interdisciplinar. Os pacientes lá acompanhados com o objetivo de
tratamento do distúrbio do equilíbrio recebem o convite para participarem das oficinas
de relato autobiográfico. O objetivo principal do projeto que deu origem as oficinas de
produção autobiográfica é identificar qual a representação de si mesmo presente nas
diversas narrativas autobiográficas produzidas pelo sujeito entendidas como
possibilidades de estruturação da vida futura em termos de sociabilidade
afetiva/familiar e/ou profissional e de capacitação para o trabalho. Esse objetivo
evidência o foco nos processos de inclusão social como um dos elementos
estruturante das atividades do laboratório.
Atualmente, estamos realizando o quinto grupo de idosos e, desde o primeiro
semestre, esse grupo ganhou o nome de “Conversando a gente se entende”. Esse nome
foi dado por uma das participantes. Consideramos que o mesmo resume perfeitamente
os objetivos do trabalho realizado e passamos a adotá-lo nas divulgações do trabalho.
Nas próximas linhas descreveremos a base teórico-metodológica e
praticamente o trabalho das oficinas de produção autobiográfica.
Os relatos autobiográficos constituem-se em processos metacognitivos que
ganham crescente interesse na área da Psicologia, Educação e Sociologia. Destacamse os estudos sociohistóricos de Bruner (1997); Bruner e Weisser (1995), Bakhtin
(1992, 1993) e Oliveira (2001a, 2001b, 2002, 2003, 2007).
Buscou-se a autobiografia por ser a forma de expressão da
escrita do “eu” mais diretamente referenciada à historicidade do
indivíduo. A autobiografia é considerada como forma de expressão que
se situa no limite estabelecido entre a expressão do “eu”, o autor, e a do
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personagem, o herói. Além disso, como narrativa da própria vida, vem
sendo cada vez mais valorizada como forma de construção da
consciência de se estar no mundo. (OLIVEIRA, 2001a, p. 7).
Bruner & Weisser (1995) consideram o processo de autodescrição presente na
autobiografia, como um processo de textualização, tido como um ato reflexivo
inerente à autoconsciência. Afirmam também que “os pontos decisivos de uma vida
não são provocados por fatos, mas por revisões na história que se usa para falar da
própria vida e de si mesmo” (Idem, ibidem, p.142). No estudo das funções e das
formas narrativas autobiográficas, propõem a autobiografia como a teoria do próprio
ser, por isso, segundo eles, a mais importante de todas. O autorrelato, chamado
posteriormente de autodescrição, não é necessariamente a vida armazenada na
memória, é o ato de construção do relato de uma vida. “A autobiografia, em poucas
palavras, transforma a vida em texto, por mais implícito ou explícito que seja. É só
pela textualização que podemos conhecer a vida de alguém” (Bruner & Weisser,
1995, p.149).
Ainda para Bruner (1997), falar de si por meio da narrativa autobiográfica
consiste em produzir um texto literário, pois a narrativa de vida é o reflexo de uma
realidade que se sustenta em uma visão pessoal do autor, estruturada pelas vicissitudes
e contingências do universo subjetivo de quem a criou. Portanto, não se trata de uma
cópia fiel da realidade, mas sim de uma percepção que retrata o momento vivido sob o
crivo do eu atual.
Dessa forma, o ato de autobiografar-se caracteriza-se como um processo de
invenção do ser e de invenção da vida textualizada e sujeita a constantes
interpretações e reinterpretações. O texto sobre a própria vida atende à necessidade
que o indivíduo tem de situar-se novamente no espaço e também no tempo. A
autobiografia tem por função essencial servir para a autolocalização do sujeito dentro
do espaço sociocultural. Narrar a própria vida é mais do que antecipar para os outros a
memória que esta vida deixará. Constitui-se em um processo de construção de simesmo. Em conseqüência, os relatos autobiográficos tornam-se memória do futuro e
para o futuro.
Hauser (1972, p.1112), afirma que no processo de recordar o passado, o tempo
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assume um caráter verdadeiramente criador, pois passa a ser o elemento transcendente
que possibilita a visão estética do decorrer de uma vida.
A existência adquire verdadeira vida, movimento e cor, uma
transparência ideal e um conteúdo espiritual à custa da perspectiva
de um presente que é o resultado do nosso passado. Não há outra
felicidade senão a da recordação e do reviver, da ressurreição e
conquista do tempo que passou e se perdeu, porque, como diz
Proust, os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos. (HAUSER,
1972, p.1112)
Sobre isso, citamos também Ricoeur (1997, p.425) que reafirma o caráter
reconstrutivo da narrativa autobiográfica:
O sujeito mostra-se então, constituído ao mesmo tempo como leitor e
escritor de sua própria vida. Como a análise literária sobre a autobiografia
verifica, a história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as
histórias verídicas ou fictícias que um sujeito conta sobre si mesmo. Essa
refiguração faz da própria vida um tecido de histórias narradas.
Os grupos têm sido formados por 30 idosos de ambos os sexos, com idade
acima de 60, encaminhados por centros de atendimento à terceira idade (núcleos de
convivência e centros de referência de idosos) das regiões Vila Maria/Guilherme,
Santana e Mooca, vinculados à Secretaria da Assistência Social da Prefeitura do
Município de São Paulo. Além dessas regiões, também participaram das oficinas
idosos encaminhados pelo Centro de Referência do Idoso - Anhangabaú e alguns
pacientes indicados por terceiros.
Nas oficinas, trabalhamos com dinâmicas que funcionam como disparadores
para o falar de si. Essas dinâmicas normalmente organizam-se em torno de um
artefato mnemônico que pode ser um curta metragem, ou uma poesia, ou ainda a
escolha de um objeto em um cesto. Esse estímulo faz emergir uma lembrança, uma
imagem ou um relato completo a respeito de si. O emergente textualizado é
compartilhado no grupo e registrado de alguma forma. As produções constituem ao
mesmo tempo a narrativa individual e a estória daquele grupo. As reuniões estão
atualmente distribuídas semanalmente ao longo do semestre. Cada encontro tem
duração aproximada de duas horas contando um total de oito encontros. Ao final do
semestre, reunimos as histórias contadas e registradas e tais histórias são lidas no
grupo. A seguir um desses autorretatos:
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Sou muito atrevida, gosto de disputar. Eu inventei que ia pintar quadros, já
pintei 6 ou 7. Faço artesanato, crochê, tricô, faço poesias no ônibus, yoga,
capoeira, alongamento...
Adoro fazer cruzadinha.
Em casa tenho três cachorros que me ocupam o tempo.
Moro com meu filho.
Trouxe uma foto de Trancoso, na Bahia. Morram de inveja! Isso aqui é
liberdade! Um lugar que a gente esquece dos problemas. Essa viagem foi
quando eu trabalhava, porque agora aposentada já não dá mais. Já fui para
Bahia, Recife, Maceió, Porto Seguro, nossa...
Eu acho que a gente chegou em uma fase que tudo podemos e devemos,
não temos nada a perder mesmo. Então é dançar, é pintar, é bordar... Eu
acho assim já fiz tudo que devia, tudo que precisava, agora é só curtir, só
aproveitar.
Esquecer o passado não dá, não! Não adianta querer esquecer o passado.
Amizade é tudo que eu preciso no momento, é o que me faz bem, amizade
sincera. E a paz eu preciso para esquecer as dores, mágoas, o resto a gente
sai atrás.
(MAR – 66 anos)
Carvalho (2003) define o autorrelato como um “locus privilegiado do encontro
entre a vida íntima do indivíduo e sua inscrição numa história social e cultural (p.
284)”. É exatamente dessa forma que os autores participantes das oficinas refletem a
respeito da experiência. Eles reportam que falar sobre si é uma “experiência até certo
ponto inédita” que lhes permite “olhar para o que já foi de outra forma”. Essa outra
forma é a contextualização e a atualização do vivido com base nas construções
posteriores. Considerando o espaço coletivo onde se realizam as oficinas, o falar de simesmo cria a atmosfera necessária para que, por alguns momentos, cada um dos
idosos possa se transformar no herói de sua própria história e, dentro desse processo,
assumir-se como o centro das atenções ao ser ouvido pelo grupo e viver a
possibilidade de expressar a própria voz e a perspectiva de quem viveu o fato narrado.
O grupo não tem em absoluto caráter psicoterapêutico e, sempre que solicitado
por um dos integrantes, realizamos o encaminhamento para o setor de psicologia da
universidade; mas inevitavelmente, o falar de si é transformador e, em alguns
momentos, surgem devolutivas dos participantes autores que evidenciam a reinvenção
identitária proporcionada pela construção dos relatos: “Eu sinto que desde que
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começou as reuniões, eu estou entendendo melhor e vendo que eu posso trabalhar
certas coisas” (NEL, 60 anos).
Ricoeur (1997) entende por reinvenção identitária, justamente a construção de
um si mesmo relacional e não estanque e cindido do contexto.
O trabalho realizado pela equipe nas oficinas de produção autobiográfica do
Laboratório de Reabilitação do Equilíbrio Corporal mostrou que à medida em que os
idosos falam de si e ouvem uns aos outros, reconstroem e reinterpretam suas
experiências e ampliam suas possibilidades de construção da consciência de se estar
no mundo. Nesse processo, destaca-se a possibilidade que os idosos têm de se
perceber nas histórias narradas pelos colegas de oficina em que fica evidente que
muito do que vivem e sentem também está presente nas histórias relatadas no grupo.
Isso contribui para os resultados alcançados no processo de reabilitação e também
para a ressignificação desse momento de suas vidas, concorrendo para sua inclusão
social.
Referências
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo:
UNESP/Hucitec, 1993.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BRUNER, Jerome. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
BRUNER, Jerome; WEISSER, S. A invenção do ser: a autobiografia e suas formas.
In: OLSON, D.R. & TORRANCE, N. Cultura escrita e oralidade. Trad. Valter
L.Siqueira. São Paulo, Ática, 1995.
CARVALHO, Isabel Cristina Moura. Biografia, identidade e narrativa: elementos
para - uma análise hermenêutica. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 9,
n. 19, p. 283-302, julho de 2003.
HAUSER, A. História social da literatura e da arte. v. 3. São Paulo: Mestre Jou,
1972.
OLIVEIRA, Maria Helena Palma de. A violência psicológica na educação de
escritores brasileiros. ETD –Educação Temática Digital v.2, n.3, jun.2001(b). p.5567 Disponível em (www.bibli.fae.unicamp.br/revbfe/index.html).
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204p.
OLIVEIRA, Maria Helena Palma de. O processo de construção de si-mesmo na
infância e/ou adolescência em narrativas autobiográficas. In: I Congresso
Internacional de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, 2003, Maringá.
Anais I CIPSI. Maringá, 2003.
OLIVEIRA, M.H.P. Discurso autobiográfico de escritores brasileiros na construção
social da infância. XIV Encontro Nacional da ABRAPSO. Trabalho completo. Rio de
Janeiro/UERJ, out.2007.
OLIVEIRA, Maria Helena Palma de. A violência física doméstica na educação de
escritores brasileiros. 25a. Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, MG , 2002.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (tomo III). São Paulo: Papirus, 1997.
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