Maria Ines GHll.ARDI
(PUCCAMP)
ABSTRACT: We have studied the newspaper charge characterized by the drawing
connected to the word. We caught the image of the woman revealed by the drawing
marks and by implicit ideas in dialogues or in context created by the picture. Its
reading shows the critic to facts, and the underlying ideology.
KEY WORDS: discourse, charge, woman, critic, ideology.
Ha apenas trinta anos eramos 85 milhoes de brasileiros, nao conheciamos a
INlERNET, nem possuiamos computadores efacsimile em abundancia ao nosso redor.
Entre as mulheres, apenas 21 % trabalhavam fora de casa, uma em cada quatro fumava e
nao mais do que 6% tinham instrueao superior. Hoje, somos aproximadamente 160
milhoes e 40% das mulheres brasileiras fazem parte da populacao economicamente
ativa1• a pais mudou muito e as mulheres, muito mais.
Apesar das grandes conquistas dos Ultimos anos, as desigualdades entre homens e
mulheres ainda permeiam diferentes setores da vida em sociedade, sobretudo em paises
subdesenvolvidos. No Brasil, 0 "sexo fragil" tem mostrado sua fore a no que se ref ere ao
trabalho, a politica, a economia, as artes, enfim, vem demonstrando que avancou mais
do que 0 conjunto da sociedade.
Desde 0 direito ao voto, em 1932, a mulher brasileira conquistou espacos cada vez
mais marcantes, entretanto 0 caminho a percorrer ainda e longo. Para muitas mulheres,
a vida sofreu poucas alteraeoes; 0 que tem mudado e apenas 0 discurso ... au sera 0
contrario?
Neste estudo, em andamento, estamos investigando a imagem da mulher em
alguns discursos veiculados pela midia, buscando observar vestigios do perfil feminino
tracado anos atras por uma sociedade dominada pelos homens, em que a mulher cabia
apenas 0 papel de dona-de-casa,para
cuidar dos filhos, do marido e dos afazeres
domesticos. Buscamos, tambem, 0 perfil da nova mulher, aquela que rompeu barreiras e
derrubou tabus.
I
Dados estatlSticos obtidos no Anudrio Estatfstico do Brasil, de 1987, 88. 89 e 92. na revista Veja
de agost~selembro de 1994 e naFolhade SiioPaulo. em 21/03/96, p.1-4.
Especial-Mulher.
Com esse objetivo, examinamos a charge jornaJ{stica caracterizada pelo desenho
caricaturesco ligado a palavra. A "leitura" da charge deixa entrever a critica aos fatos
noticiados, com grande dose de humor, e, como nos demais tipos de discursos que nos
circundam, a cultura e a ideologia da sociedade na qual se insere. Assim, delineamos a
imagem da muther incrita no discurso verbal associado ao nao-verbal, apontada pelas
marcas formais do desenho e pelas ideias implicitas nos diaJ.ogosou no contexto criado
pelo quadro.
Para se compreender melbor 0 fenomeno da produ~ao - e, talvez, da recep~ao - da
charge jornalfstica torna-se essencial 0 conhecimento de seu funcionamento e a
compreensao dos efeitos de sua utiliza~ao pelos sujeitos envolvidos. No processo
discursivo, M uma sene de forma~oes imaginarias que designam os lugares que os
sujeitos atribuem a si e aos outros; SaDas imagens "que eles fazem de seu pr6prio lugar
e do lugar do outro" (Gadet e Hale, 1990:82), que determinam 0 modo como 0 discurso
construfdo.
Os estudos semi6ticos ressaltam a impormncia de tudo que produz significa~ao e
que, assim, projeta a imagem de algo ou alguem. Na charge, alem da palavra, colocada
nos dialogos, M a imagem visual, reproduzida num simples tr~o, numa linha reta ou
curva, num ponto no espa~o, na luminosidade e nas formas do desenho. A
caracterizacao do ambiente, dos personagens e as marcas simbolizando 0 assunto
abordado SaDsuportes necesslirios a interpretacao adequada. Sao os dados explfcitos
que vao possibilitar a leitura dos implfcitos.
Nas charges que examinamos, em que aparecem mulheres2, algumas sao
conhecidas publicamente e outras representam urn perfil de mulher tracado pelo senso
comum. 0 chargista, com poucos tracos, deve dar conta das principais caracteristicas
das personagens ou das pessoas retratadas, por meio do exagero de seus principais
pontos de identific~ao, para que 0 leitor as reconh~a.
A par da critica aos fatos noticiados - caracterfstica principal da charge jornalfstica
., e do humor gerado pelo traco caricaturesco, surge, entao, a imagem da mulher
brasileira que 0 leitor facilmente pode identificar. Para isso, leva em conta alguns
sfmbolos que aprendeu a associar ao perfil feminino ou reconhece tracos dominantes
das mulheres, em geral, exagerados como uma hiperbole pict6rica. Muitas vezes, esse
perfil e 0 reflexo do pensamento que 0 leitor gostaria de exprimir ou, pelo menos, esta
acostumado aver. 0 exagero das caracterfsticas pode leva-Io a refletir sobre 0 assunto,
ou, simplesmente, propiciar 0 reconhecimento da figura feminina.
Ao leitor nao resta urn mero trabalho de decodific~ao da mensagem, pois ele e
levado a formar sua pr6pria opiniao a respeito do assunto. Ocorre, entretanto, que,
geralmente, 0 tema do quadro nao e a mulber ou 0 papel atribufdo a ela. Entiio, a
atencao de quem Ie recai sobre 0 assunto principal e a pessoa nem se dli conta de que ha
ideias implfcitas veiculadas pela caricatura ou subentendidas no modo de construcao
dos dialogos. Alguns conceitos e comportamentos cristalizados na sociedade passam a
e
, Nlio foi dado tratarnento estatfstico ao numero vezes em que aparecem rnulheres nas charges
jomalfsticas, mas etas aparecern poucas vezes e tern vindo acompanhadas de hornens.
234
fazer parte dos pressupostos das charges e, muitas vezes, nao SaD alvo de
questionamentos para 0 leitor apressado.
Para ilustrar, selecionamos algumas charges jornalfsticas publicadas na Folha de
Slio Paulo, no Estado de Slio Paulo e no Correio Popular, de Campinas. As
mulheres3 nelas reproduzidas SaD a primeira-dama do governo federal - a soci610ga
Ruth Cardoso, esposa do presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso (F.H.C.) - e
uma mulher de classe social mooia-baixa, representando grande parcela das brasileiras.
A mulher brasileira esta presente nas quatro primeiras charges da sequencia (Fig.t,
2, 3 e 4). Como SaDdo mesmo autor, facilmente identificamos a dona-de-casa, usando
sempre 0 mesmo vestido simples, de bolas grandes e escuras, as vezes com avental
claro de cozinheira, chinelos ou sapatos que nao chamam a atenCao. Seus cabelos lisos,
ralos, mal cuidados e despenteados, contornam a fisionomia cansada, ressaltando os
olhos esbugalhados e 0 nariz grande. A beleza feminina passa longe de seu corpo
"quadrado" e sem cintura.
Fora a aparencia fisica, seus afazeres SaD: cozinhar, quando 0 marido Ie jornal;
espera-Io para 0 almoco, enquanto ele informa-se sobre as UItimas notfcias; levar 0 bebe
ao posto de vacinaCao e, e claro, cuidar dos filhos em casa. Essa tarefas nao se
confundem com as dos homens.
Verifica-se, nessas charges, que 0 principal Iugar da mulher e 0 lar, sua vida nao
!he traz satisfaCao (Fig. 4: -"Pesquisa! No dia das miles, qual seria 0 seu maior desejo?
-Voltar pra casa da minha! Buaaa!!") e 0 seu papel nao e ler jomal para manter-se
informada. Com a barriga no fogao ou com os fi!hos na barra de sua saia, ela aguenta 0
dia-a-dia com certa resignaCao, pois se limita a comentar ou completar 0 discurso do
homem, sem iniciativa pr6pria ou manifestacoes de desacordo. Percebe os problemas,
mas nao se rebela contra eles. Seria devido a classe social a qual pertence ou ao baixo
nivel de instrucao?
Talvez nao, pois, ao observarmos as charges seguintes (Fig.5, 6, 7 e 8), publicadas
em tres diferentes jornais, onde a mulher presente e Ruth Cardoso - que, como sabemos,
e 0 oposto dessa primeira citada e dispensa nossos comentarios -, percebemos marcas,
tanto nos desenhos, como nos diaIogos, que nos levam bem pr6ximos daquela imagem
de mulher tracada ha pouco.Vejamos urna a uma.
Na viagem do presidente ao Japao, em marco de 1996, a primeira-dama
acompanhou-o. U, ao descer a escada do aviao, na charge (Fig.5), ele vai a frente vestido de Nacional Kid, 0 antigo her6i japones de hist6rias em quadrinhos - eela,
atras. Contrapondo 0 desenho com a foto da primeira pagina da Folha de Sio Paulo,
em 13103/96, a cena e quase a mesma: 0 casal desce da aeronave, sob a temperatura de
4 C, lado a lado. Aqui esta a grande diferenca: 0 perfil de mulher delineado na charge
nao corresponde a realidade atual, mas as imagens simb61icas cristalizadas na mente
dos indivfduos a respeito do papel e do comportamento femininos. Ao que parece, nao
por ser 0 presidente, e sim por ser homem, ele ganha, na charge, lugar de destaque em
relacao a esposa.
0
Na Fig.6, cujo tema e ainda a viagem do presidente, a primeira-dama tece
comentarios "tipicamente femininos" sobre a preocupa~ao do marido para com os
problemas que vinham, na ocasiao, afligindo-o: Comissao Pariamentar de Inqueritos
sobre irregularidades nos Bancos, Congresso Nacional, senador Jose Sarney e
governador Antonio Carlos Magalhaes. a desenho mostra F.H.C., que acabara de
receber um telefonema - provavelmente do Brasil, com mas noticias, comprometedoras
para 0 governo federal ., na iminencia de cometer urn "Hara-Kiri", ou seja, a situacao
estava tao grave que a solu~ao, para ele, seria suicidar-se.
a cenario caracteriza 0 Japao e D. Ruth, penteando os cabelos em frente ao
espelho do banheiro, ao lado do quarto onde estava 0 nosso governante, demonstra nao
ter nenhurna preocupacao com as questoes relativas ao pais, ao governo ou ao
presidente. Manifesta-se, apenas, com urn "Ora, Fernando, pare de fazer drama e vd
dormir!!" Pelo que conhecemos de Ruth Cardoso, essa nao seria sua atitude. Aqui,
novamente, a imagem da mulher e marcada por ela nao se importar com assuntos como
politica ou governo, para cuidar de sua aparencia ffsica.
A charge seguinte (Fig.7) aponta 0 mesmo casal, it mesa de refei~oes, numa tipica
atitude de c1asse-media. 0 presidente pede a esposa: "Ruth! Passa 0 bile!" (a mulher
deve servir 0 homem) e ela faz mencao ao fisiologismo politico, tao comentado na
epoca, sobre os possiveis favores que 0 dirigente do pais estava precisando fazer a
muitas pessoas, e diz: "S6 se voce liberar uma verba!" E a famosa lei do "toma lei,dei
cf'. Quando ele chora, ela 0 consola dizendo: "6 amar ... desculpa! Foi so uma
piadinha!" Apesar da linguagem feminina, a mulher teve urn ponco mais de iniciativa
ao referir-se it situa~ao atual do pais.
Na outra charge (Fig.S), Fernando Henrique Cardoso chega da viagem
Argentina, onde foi sem a primeira-dama. Ele abre a porta de casa, com a mala na mao,
sorridente, e ela 0 espera em pe, de bra~os cruzados, com urn dos pes a frente e a
expressao fisionomica carrancuda, brava, simbolizando a mulher que espera 0 marido
em casa, quando ele chega atrasado. Nao ha palavras, contudo 0 olhar da esposa deixa
implicito urn cliche do tipo: Bonito, hein? 1sso silo horas?
Somente uma das charges (Fig.9) trata do papel da mulher. a desenho remete a
urn fato amplamente divulgado pelos jornais em setembro de 1995: a Quarta
Conferencia Mundial da Mulher, em Pequim, na China. Na Conferencia, as mulheres
debateram sobre temas como saMe, violencia, educacao, direitos humanos, polftica e
meio ambiente.
Enquanto 0 grande projeto politico do final do seculo XX, discutido no evento em
Pequim, foi a busca da igualdade entre os sexos, 0 chargista mostrou, com muito
humor, a inversao de valores com a "troca de papeis" entre homens e mulheres. A
charge, composta de dois quadros, retrata, no primeiro, 0 local da Conferencia "Cupula da Mulher em Pequim" -, onde as mulheres clamampor seus direilos, vigiadas
por soldados - do sexo masculino - numa grande luta. No segundo, "enquanto isso ... "
os homens do governo (0 presidente do Brasil e alguns de seus ministros) reunem-se
para conversar 'sobre trivialidades como dieta, operacao plastica, moda e receitas
culinanas.
a
-
"
"
"
"
voce junta uma xlcara de aplcar, dois ovos ... "
amanhi1 vou come~ar uma dieta ... "
acho que vou fazer uma pldstica aqui..."
s6 cinco Reais. Ni10 e uma gra~a?"
Esta em discussao 0 fato de as rnuIheres almejarem urn Iugar ao Iado dos hornens,
com 0 pressuposto de que atualmente elas nao ocupam esse espa~o. Ha, na fala dos
personagens, uma mostra da imagem que as pessoas fazem da rnulher; seu discurso esta
projetado na voz dos hornens, no segundo quadro. Poder-se-ia pensar, tambem, que,
enquanto elas lutam por gran des causas, eles se acomodam por acreditar que nao
precisam mais galgar posi~oes na sociedade, pressupondo que ja as tern. A charge
coloca, implicitamente, que 0 papel atribuido a mulher ainda 6 0 de dona-de-casa
preocupada com os afazeres domestic os e capaz apenas de se pronunciar por rneio de
comenwios superficiais.
Ha, nesse desenho critico, a voz da mulher atuaI, que luta por igualdade de
direitos, da mulher de antigamente, que nao teve tantas oportunidades, do hornem, que
se ve como 0 dona natural de certos "lug ares sociais", e da sociedade em geral, que
demora a considerar certas rnudan~as, alem, 6 claro, da voz do chargista, urn critico por
excelencia.
E interessante salientar que, se algu6m nao lesse as reportagens, porem se
inteirasse do assunto ou "passasse os olhos" nos titulos e nas manchetes, certamente
encontraria, na charge, informa~oes motivadoras de uma leitura mais atenta (Ghilardi,
1995). Ela pode ser considerada, entao, urn ponto de partida para a leitura das noticias e
para despertar 0 interesse pelo assunto.
Se a noticia pretende uma certa neutralidade, a charge, pelo contrlirio, e parcial,
pois mostra a opiniao do chargista, ou dos Ieitores e vem, ainda, confirmar a ideia de
que urn texto possibilita varias leituras. Alem disso, provoca 0 riso, motivo pelo qual ela
tao bem se encaixa no ambito do discurso humorfstico. Por meio do humor, podemos
perceber a visao de mundo do homern social e observar a realidade que nos cerca.
A charge e "parte do discurso hurnoristico que valoriza a ilustra~ao, a caricatura e
coloca em dl1vida questoes de ideologia, poder, sentimentos, personalidade, enquanto ri
da pr6pria duvida. E, outrossim, uma proposta de reflexao e conrem, inerente a si, todo
urn complexo ideo16gico, nao s6 de seu autor ou do veiculo que a publica, mas tambem
da sociedade na qual se insere" (Ghilardi, 1996).
E condi~ao blisica para a interpreta~ao da charge 0 conhecimento partilhado de
mundo, 0 que faz com que Pereira (apud Travaglia, 1990) afirme que "6 preciso haver
uma adequa~ao entrl> ,hurnorista e consumidor do humor", ou, neste caso, entre
chargista e Ieitor da charge. Vemos, assim, que a imagem da mulher reproduzida nessas
charges origina-se na propria sociedade, que ainda nao assimilou por completo 0 novo
papel feminino.
RESUMO: Examinamos a charge joma/{stica caracterizada pelo desenho
caricaturesco ligado palavra. Estudamos a imagem da mulher revelada pelas marcas
/ormais do desenho e pelas idiias imp/{citas nos didlogos ou no contexto criado pelo
quadro. Sua "leitura" deixa entrever a erftica aos/atos noticiados, com muito humor, e
a ideologia subjacente.
PALAVRAS-CHA VB: discurso, charge, mulher, critic a, ideologia.
a
GADET, F. e HAK, T. (OI'gs.) (1990) POTuma anDlise automatica do discurso. Uma introduflw
a ohm
de
Michel Plcheux. Campinas, SP: UNICAMP.
GIDLARDI, M.I. (1995) A charge jomalistica e a leitura do nao-verbal. Perspecti,a. Erechim (RS): URI,
&nO 19, n.67, p.19-2S.
__
. (1996) 0 humor na charge jomatfstica. Conwnicarte. Carnpinas (SP): IACTIPUCCAMP, n.ZO. No
prel0.
TRAVAGLIA,
p.55-8Z.
L.C. (1990) Uma introduflio ao estudo do humor pew Lingii£Stica. D.E.L.T.A.,
v.6, n.1,
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Maria Ines GHll.ARDI (PUCCAMP) ABSTRACT: We have