ALMEIDA, Maria Inês de. A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil
Maria Inês de Almeida
Resumo: Introdução à análise da recente produção literária de diversos povos indígenas do Brasil,
que, em nome do resgate e do desenvolvimento de suas culturas tradicionais, estão escrevendo e
publicando as histórias e os pensamentos de suas comunidades. A partir da constatação de que
existem cerca de 180 línguas faladas hoje no Brasil, além da portuguesa, pretende-se, com este
ensaio, demonstrar que a literatura brasileira deverá compreender doravante novas formas
representativas dessa diversidade lingüística.
Palavras-chave: estilo, literatura, índios ou diversidade cultural, literatura indígena, literatura
brasileira contemporânea.
Gostaria de pensar um pouco sobre o fato de uma nova prática de escrita se tornar literatura. Essa prática,
nomeadamente a produção dos livros de autoria indígena, nas últimas décadas, no Brasil, tem adquirido, com a
conjugação de vários elementos, tal visibilidade, que chega a iluminar o passado e o futuro dos usos da linguagem
escrita, no meio em que ela acontece. Mesmo a poesia oral dos índios (seus cantos rituais, por exemplo) só se torna
evidente, para nosso olhar, no momento em que está sendo lida. Nós não pudemos ouvi-la. E, historicamente, a poesia
só passa a fazer parte do acervo literário de determinados povos, quando se torna escrita em suas mãos. Basta lembrar
o papel de Homero na história literária da Grécia.
Essas afirmações iniciais, espero que tenham a função de despertar uma questão cultural importante: a escrita
praticada atualmente por representantes das comunidades indígenas está produzindo uma espécie de exceção, um
desvio, nas margens do sistema literário brasileiro, onde se podem vislumbrar marcas de um estilo que surge. Quero
com isso dizer da necessidade de se incluir a produção literária dos índios brasileiros na retomada da discussão sobre o
sujeito, a representação e o estilo, no âmbito da literatura brasileira, em função do desenvolvimento de uma crítica
literária que nos ajude a abolir certos recalques.
Os textos dos índios, e seus livros publicados, nos fazem enxergar mais uma vez o fenômeno da destituição do
sujeito clássico, dono de um suposto saber sobre o literário, em nome da presença do objeto/livro, sendo que esse
objeto se dá a perceber a partir da subsistência de uma forma-sujeito, uma entidade representativa, muitas vezes plural,
que talvez cumpra o papel do autor (ORLANDI, 1990)1. Esse termo serve, no âmbito da pragmática do discurso literário,
para substituir o sujeito aparentemente autônomo das sociedades ocidentais, mas que, na verdade, sempre foi fruto de
coerções e acordos institucionais. Assim substitui-se, operacionalmente, a idéia de obra literária pela de discurso,
porque este conceito “despossui o sujeito falante de seu papel central para integrá-lo nos funcionamentos de
enunciados, de textos, cujas condições de possibilidade são sistematicamente articuladas sobre formações
ideológicas.” (MAINGUENEAU 1976, p.178)
Como afirmou Lacan, ao inverter a fórmula neoclássica de Buffon: o estilo é o objeto e não o homem.
Curiosamente, a psicanálise, assim como Freud um dia trouxe a Oswald o totem fundante do Matriarcado de
Pindorama, sutilmente nos auxilia a colocar em pauta, na literatura brasileira, o estilo indígena, através da idéia da
dessubjetivação: o sujeito se perde no estilo e se reencontra por algum traço, quando a cultura torna-se realmente
importante.2 Perseguir esse traço cultural contribui para que as organizações indígenas definam seus perfis, ainda que
sempre moventes: mistura indefinida.
Os índios, através de suas publicações, transitam entre as diferenças culturais. O traço que estamos trabalhando
para configurar, junto com os índios, é antes um simulacro, uma imagem rebelde sem semelhança interna. Existem
tradições culturais diferenciadas, línguas diversas, visões de mundo complexas, que a formação literária contribui para
mostrar, às custas, paradoxalmente, de uma certa anulação destas mesmas diferenças. O objeto livro é, portanto, o
lugar da reconstrução da memória indígena no Brasil, embora também se construa sobre os escombros da sua história,
sobre o esquecimento do seu passado.
Forma-sujeito: forma material, lingüística e histórica, do sujeito e do sentido. Relação da forma com a materialidade do discurso.
Essas idéias sobre as concepções lacanianas do estilo me foram transmitidas em conferência por Eduardo Vidal, psicanalista da
Letra Freudiana (Rio de Janeiro), durante o I Colóquio Internacional de Psicanálise e Literatura, realizado em novembro de 1998, na
FALE/UFMG, em Belo Horizonte.
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ALMEIDA, Maria Inês de. A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
O objetivo desta colocação é inserir a questão da literatura indígena na ordem das reflexões sobre a
contemporaneidade artística e da infindável discussão sobre a “crise da representação”, como se encontram no
ambiente acadêmico, no qual pretendo inscrever esse trabalho de pesquisa e produção literária com os índios.3
Observando o conjunto das publicações de autoria indígena, é forçoso notar que, desde as capas, seus livros
trazem os indícios das tais formas-sujeito se moldando na escrita. São “novas palavras que surgem”4 e novas imagens
que aparecem no horizonte literário. Estes são os objetos visados por este trabalho de leitura, uma vez que eles
sobressaem no conjunto das atuais práticas discursivas das comunidades indígenas.
Entende-se por prática discursiva o processo de organização que estrutura ao mesmo tempo os dois lados do
discurso − a forma-sujeito e a comunidade. Há uma relação semântica irredutível entre aspectos textuais e não textuais.
O que significa que não se pode pensar a comunidade sem o discurso e vice-versa. O objeto definido por esta análise
não é simplesmente um discurso, mas uma prática discursiva.
As práticas discursivas, que denomino a priori de literárias, vão se configurando a ponto de delinear a
sombra de um movimento. A esse movimento dá-se, não gratuitamente, o nome de literatura − aventura
moderna do pensamento penetrando na linguagem, a experiência da palavra, segundo Blanchot (RANCIÈRE,
1995. p.95).
A representação, o estilo, a escritura, esses mesmos conceitos que permearam a teoria literária no mundo
ocidental, ainda que intensamente questionados na contemporaneidade, sobretudo com a abertura a novos universos
de pensamento promovida pela antropologia estrutural, estão na base de uma investigação que pretende trazer para o
campo da literatura uma produção que se tem encontrado normalmente no âmbito das ciências sociais.
Ao mesmo tempo, a recente prática da escrita, e sua correlata necessária, a criação literária, por parte dos
indígenas brasileiros, podem ser tomadas como a própria historicização da questão indígena. É reinvestigando seu
passado que os povos escapam da ambigüidade traumática dos recalques e rejeições inconscientes. A memória
histórica, nos locais onde a história foi e continua a ser um combate sem testemunhas, arma a coletividade de forças e
decisões novas e lhe permitem ultrapassar os dejetos inconscientes da estruturação imposta, autorizando a refletir
concretamente sobre a necessidade ou não de determinadas estruturas, como a necessidade da escrita, por exemplo.
Parto do pressuposto de que a escrita é estruturante do ser no mundo e de que a memória de que estamos tratando
(tanto os escritores índios quanto seus editores) é coletiva e operatória, isto é, política.
Os indígenas brasileiros, através da aquisição e do domínio da escrita, passam a fazer história, enquanto
produção de sentidos para a própria ressubjetivação. Não há história sem discurso. E a escrita e seus meios são
instrumentos que os índios estão utilizando para configurar suas identidades. Identidades, não como essência, mas
resultantes de processos de identificação do sujeito ao complexo de formações discursivas historicamente
(ideologicamente) determinadas.
Cada época tem suas experiências significantes, na medida em que seus signos se organizam pelas
possibilidades de leitura que vão surgindo. Por que antes não houve literatura indígena no Brasil? A resposta
parece óbvia: antes os índios não escreviam. Será que a literatura se vincula necessariamente ao estado
escritural da língua? Genette acredita que os usos não literários da escrita e a existência da poesia oral
afastam a hipótese de que a condição para a literatura seja a escrita. Porém seria pertinente lembrar a
formulação de Jacques Rancière, quando ele coloca que a questão da literatura não é lingüística, e que a
noção de escrita não se reduz à de estado escrito da língua, oposto ao seu estado oral : “A escrita não é o
contrário da palavra oral, ela é o contrário da palavra viva.” (RANCIÈRE, 1995. p.97).
Seguindo as formulações deste autor, compreendo que a grande novidade, no caso da reinserção das
comunidades indígenas na cultura brasileira, é a possibilidade, pela primeira vez, de sua palavra ser posta em
circulação independentemente da sua presença corporal. Como subjétil, para usar a palavra de Artaud. Nem sujeito,
nem objeto, mas estilo, na medida em que se aproxima do suporte, da superfície, ou do material, do corpo único da
obra em seu primeiro acontecimento (DERRIDA, 1998).
Com o estilo − a inscrição do sujeito quando ele se objetiva a ponto de se anular no papel − vê-se, na literatura,
a história. Estilo e história: dois campos que, em confluência, produzem o fato literário. Sabemos que o princípio do
O grupo de pesquisa Literaterras: escrita, leitura, traduções tem se dedicado a desenvolver métodos que permitam, aos indígenas
e estudantes envolvidos nas pesquisas, experiências literárias, tradutórias, em suas próprias línguas, mas também em relação com
as línguas hegemônicas.
4 Cf. Bay – Educação Escolar Indígena em MG. 1998. P. 35.
e
ALMEIDA, Maria Inês de. A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
discurso colonial é reconhecer apenas a importância “cultural” dos índios e desconhecer, apagar, sua participação
histórica ou política. “Os efeitos de sentido que até hoje nos submetem ao espírito de colônia são os que nos negam
historicidade e nos apontam como seres culturais (singulares), a-históricos.” (ORLANDI, 1990) . Pode-se também
pensar no fato de que a folclorização da literatura indígena cumpre antes o papel de ocultá-la. Para Edouard Glissant
(1997), a folclorização é a literatura em suspensão.
Pensemos, por exemplo, no uso escolar dos mitos indígenas, em como suas entidades míticas,
desespiritualizadas, sempre foram vistas como personagens do folclore brasileiro (nos livros escolares, as lendas de
curupiras, mães-d’água, boitatás, etc.). A passagem destes mitos, do estado de “lenda” para o de literatura, somente se
torna fato com o gesto da escrita efetuado pelos próprios índios. A prática escritural re-espiritualiza a entidade mítica,
quando recompõe graficamente suas formas rituais.
No caso da nova prática escritural a que me refiro, a dos índios brasileiros, é interessante observar como ela
está se investindo do caráter literário na medida em que vai sendo lida, trafegando de público em público, de aldeia em
aldeia, de cidade em cidade. Em suma, é a publicação que torna a escrita indígena, de fato, literatura. Historicamente,
são as edições que promovem o fato literário, desde antes do nascimento da imprensa. No caso da América, existe o
dado relevante de a imprensa fazer parte de sua história desde o primeiro momento, ou seja, de aqui a literatura se
confundir com sua própria impressão.
E o que a faz ser lida é justamente o fato de começar a fazer parte da história do impresso. É então que se
afirma o seu estilo, como ranhura, diferença, im/pressão. Não à toa estilo e estilete têm a mesma raiz. Não quero com
isso dizer que a literatura indígena tem um estilo, um modo único de fazer valer o seu traço. São diversos os seus
produtores, mas em geral possuem uma característica básica: não são sujeitos individuais, são coletividades,
comunidades. È sobretudo por essa razão que a literatura indígena nasce de uma escrita que é política. Além de
instrumento de poder e via real de saberes (que não são próprios da tradição literária), ela serve à constituição estética
da comunidade, é a alegoria desta constituição:
Pelo termo de constituição estética deve-se entender aqui a partilha do sensível que dá forma à
comunidade. Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente,
a separação, a distribuição dos quinhões. (...) A escrita é política porque traça, e significa, uma redivisão entre as posições dos corpos, sejam eles quais forem, e o poder da palavra soberana,
porque opera uma re-divisão entre a ordem do discurso e a das condições (RANCIÈRE , p.8)
Se assim fica entendido o papel da escrita nas comunidades indígenas, considerando seu extrato que interessa
aqui examinar − a literatura , pode-se entender a re-divisão como causa e conseqüência da democratização. Como
afirma Jacques Rancière, desde o mito platônico do Fedro, a escrita é considerada paradoxalmente como muda e
falante demais. Não existindo a voz presente para dar às palavras o tom de verdade, para acompanhá-las, a escrita se
liberta do ato de palavra que garante a um logos sua legitimidade (“que o inscreve nos modos legítimos do falar e do
ouvir, dos enunciadores e dos receptores autorizados.”). Por outro lado, a letra morta da escrita vai circular sem saber a
quem se destina, e qualquer um poderá apoderar-se dela, dando-lhe uma voz que não é mais a sua/dela. Outra cena,
outra divisão do sensível. Assim é que a escrita, ao separar o enunciado da voz que o legitima, vem embaralhar as
relações do fazer, do ver e do dizer, de forma a provocar na comunidade uma perturbação na ordem política.
Essa perturbação atende, desde Platão, pelo nome de democracia. A democracia (regime da escrita) está na
base da literatura indígena, como causa e conseqüência. Com esse ponto de vista, entende-se melhor os mecanismos
de sua produção, a partir de uma reforma constitucional que reconhece e redivide os quinhões da letra/lei. Alguns
grupos são inscritos nos textos oficiais, passando a figurar no regime da escrita, adquirindo maioridade5. Se nenhum pai
irá doravante garantir a legitimidade de sua fala, por outro lado, essa fala deverá ser incorporada na própria textura da
lei (...a inscrição imutável do que a comunidade tem em comum.).
Por caráter político da escrita, compreende-se a sua faculdade de significar sempre mais do que o ato empírico
de seu traçado. A escrita significa, ou metaforiza, a divisão e a redistribuição dos discursos e dos corpos que os
produzem. Por isso ela nasce da democracia, além de fazer nascer a democracia. Por isso ela está na raiz da idéia da
existência de um povo. Quando os índios se põem a trabalhar na sua produção, eles o fazem em nome da fundação de
seus fictícios povos. Eles acionam uma divisão na chamada sociedade brasileira, operando cortes no que, até o recente
No caso brasileiro, existe uma estranha contradição entre os avanços da legislação na Carta magna, na Constituição Federal e a
legislação específica, por exemplo, a que rege o papel da FUNAI na vida dos índios. Por ocasião da reedição do livro O povo
pataxó e sua história, pela Editora Global, de São Paulo, os autores pataxós não tiveram autonomia para a venda dos direitos
autorais a editora. Sua assinatura no contrato de edição só adquiriria valor legal, caso obtivesse a anuência da FUNAI.
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ALMEIDA, Maria Inês de. A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
processo em que suas comunidades e suas línguas estão sendo reconhecidas pela letra/lei, era considerado (pelo
etnocentrismo europeu) uma nação única, um povo único. Os índios, através da escrita, se interpõem na composição
totalizadora de um país, cuja ficção iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade se sobrepôs à realidade fraturada.
A literatura indígena terá então a função de figurar essa fratura, recolocando os discursos, quanto à sua
paternidade, tanto quanto ao corpo da letra que os transporta. A literatura desfaz uma relação estabelecida entre
realidade e ficção, emancipando a letra do seu compromisso com a realidade e com a ficção. A ação literária dos índios
devolve sua matéria de ficção (por exemplo seus mitos e histórias), e seus ritmos poéticos (seus cantos profanos e
rituais, suas danças), ao estatuto de letra abandonada, letra órfã à procura de um corpo de verdade.
Porque o que se deu historicamente é que a matéria literária das diversas tribos brasileiras − suas realidades,
suas ficções, seus ritmos poéticos − foi sistematicamente impedida de configurar literaturas. Os cantos, as histórias de
hoje e de antigamente, as falas rituais, as formas que servem para a ligação entre o visível e o invisível, as fórmulas
para dizer o indizível: tudo o que poderia se transformar em literatura indígena, desde que fosse escrito em língua
indígena, pelos próprios índios, foi expropriado por discursos outros. Discursos cuja paternidade foi assumida pela
impostura religiosa e científica de padres catequistas, antropólogos, etnólogos, lingüistas, agentes nas aldeias dos
sucessivos governos brasileiros e estrangeiros.
O logos indígena se torna, agora − no momento em que o índio empunha os instrumentos da escrita ele mesmo,
seu corpo − letra finalmente órfã, em textos de autoria necessariamente coletiva. Esse pensamento, esse logos do
Novo Mundo, que aqui se confunde com formas de ser, de ver, de dizer, de ouvir, de fazer, o “sentir ser índio” de tantos
poemas recentemente escritos, é o novo mito que os índios colocam em circulação, a partir da situação de ter de
escrever para garantir a continuidade de suas gerações.
Ter uma língua documentada não é ter um corpo morto, mas uma história, um discurso, uma poética. A primeira
palavra coletiva desta poética acaba de ser pronunciada. A escrita da história, pelas mãos dos índios, se embaralha
com a escrita literária, sem deixar também de ser instrumento ou tecnologia de sobrevivência material. O fato de ser
produzida num contexto escolar, na sua maioria, com objetivos claramente pragmáticos, como fornecer material de
leitura para os educandos, comprova o imediatismo de sua função nas comunidades indígenas.
Mas esse instrumento, há muito descoberto pelos indígenas (desde o Descobrimento do Brasil, pelo
menos), permaneceria letra morta se continuasse a não ser pensado por suas comunidades, no processo de
se desgarrarem de seus traumas e nascerem por suas próprias consciências. Como diz Edouard Glissand,
uma política e uma poética de libertação só podem ser secretadas, não sugeridas. “A linguagem mais
enérgica é aquela em que o signo disse tudo antes que se falasse.” (GLISSANT, 1997)
A escrita sempre esteve presente no contato entre índios e brancos. Trata-se agora de um processo de
recuperação, ou melhor, apropriação de seus meios. Recuperação porque os índios já vislumbraram antes seu papel
benéfico, conquanto pudesse continuar a se desenvolver nas suas mãos. Sobretudo materialmente, enquanto
tecnologia. Sabemos que as primeiras tipografias aqui instaladas eram operadas pelos indígenas. Apropriação, porque
o controle ideológico das máquinas de escrita sempre esteve nas mãos dos brancos.
Nesse processo de apropriação, ocorre um fator novo, que aponta para uma outra configuração da escritura: o
pai, o autor, saem de cena para dar entrada a outra forma-sujeito da escrita. É o signo, sempre um ritual antropofágico,
em que a singularidade do homem é substituída por um traço, no lugar do autor, que por sua vez era signo do indivíduo.
A diferença agora é que, no lugar do indivíduo, e do sujeito, temos a comunidade, no papel de autoria. Para clarear esta
idéia, pode-se citar o exemplo dos créditos dados, na maioria dos livros dos índios, aos “Índios fulanos”, “Professores
sicranos”, que figuram como autores.
Não basta dizer que o autor está morto, mas é preciso mostrar o que ocorre precisamente ali no lugar deixado
vazio por ele. Não se pode dizer que, no caso indígena, trate-se da morte do autor, como entidade. Trata-se, porém, da
sua morte como indivíduo. A autoria indígena se configura através de determinados signos, inclusive extra-verbais, que
querem significar a forma de ser dos grupos que ali representados. É a apresentação, até certo ponto ritualizada, da
comunidade, no sentido que os próprios índios atribuem a este termo: um grupo de “parentes”, próximos ou distantes,
amigos ou inimigos, ligados por laços de sangue ou não, mas que compactuam para determinados fins; sendo assim
um grupo político. E sua literatura faz parte da sua política.
ALMEIDA, Maria Inês de. A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O estilo na
contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Maria Inês de Almeida (ed.). Bay – Educação escolar indígena em MG. Belo Horizonte: SEEMG, 1998.
BARTHES, Roland e MARTY, Eric. Oral/escrito. Enciclopédia EUNAUDI. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda,
1987..
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Pespectiva, 1989.
GLISSANT, Edouard. Le discours antillais. Paris: Gallimard, 1997.
ORLANDI, Eni. Terra à vista. Campinas: Ed. Unicamp, 1990.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: 34 Letras, 1995.
VIDAL, Eduardo. O estilo é o objeto. BRANCO, Lucia C. e BRANDÃO, Ruth S.(orgs.) A força da letra. Escrita, estilo,
representação. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
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