ARTE, FORMAÇÃO ESTÉTICA E EDUCAÇÃO
PEIXOTO, Maria Inês Hamann (coord.) – UFPR
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SUBTIL, Maria José Dozza – UEPG/PR
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TROJAN, Rose Meri – UFPR
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RESUMO
Peixoto analisa a concepção de arte do materialismo dialético, assumida pelos três membros do
painel: a arte como um produto do trabalho humano criador livre, expressão da concepção de
mundo do artista enquanto indivíduo determinado/determinante do contexto histórico-sóciopolítico-econômico e cultural a que pertence. Assim, a arte é entendida simultaneamente como
criação vinculada à vida, ideologia e forma de conhecimento – e, como tal, é fonte de humanização
–, por remeter os indivíduos a toda a história humana passada, que a obra de arte traduz e condensa,
e à contemporaneidade, que ela sintetiza e expressa. A autora tece, então, uma crítica tanto às
concepções "arte pela arte" e "arte como auto-expressão emocional" quanto à indústria cultural,
discutindo a função da escola como difusora-promotora do saber necessário à fruição
consciente/ativa da arte.
Subtil apresenta reflexões sobre a produção social do gosto musical enfocando prioritariamente as
interferências da mídia nas práticas musicais em geral e especificamente na escola, devido ao papel
que ela (a mídia) desempenha na vida das crianças e dos adolescentes. A autora considera as
possibilidades de mudanças na ênfase da emissão massiva para o pólo da recepção mediada, na
dialética educação-indústria cultural, enquanto discute as relações mídia/música e escola,
objetivando destacar o papel desta última na formação estético-musical.
Trojan tem por objetivo discutir as políticas de formação de professores de arte, a partir da
concepção de arte como uma resposta à necessidade estética de expressão e compreensão da
realidade humano-social, entendendo a educação como instrumento de transmissão de
conhecimentos e de formação estética. A autora toma sob consideração os cursos de formação de
professores de arte, que têm identificado a competência desse profissional com o domínio de
técnicas e dados da História da Arte – o que resulta numa prática de ensino da arte como
recreação, decoração e/ou meio auxiliar de outras disciplinas –, pretendendo indicar as lacunas
que impedem a transformação dessa realidade.
Palavras-chave: arte e educação escolar; ensino da arte e gosto estético; formação do professor de
artes.
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A partir do estudo das diversas concepções existentes, assume-se a posição dialética que
entende a Arte como trabalho humano criador livre, cujo produto são objetos que expressam uma
visão de mundo e cuja existência se configura pela ótica de um indivíduo o qual, por sua vez, é
determinado/determinante do contexto histórico, social, político e cultural a que pertence, contexto
esse inevitavelmente envolto em ideologias. Assim sendo, toda criação artística é de modo
necessário marcada pela ideologia e, ao mesmo tempo, não apenas envolve/requer conhecimentos
historicamente acumulados (ciência) para o seu processo de produção como é também fonte
geradora de conhecimentos, tanto sobre o indivíduo-criador e o contexto histórico-social-políticocultural em que foi produzida (consciência) como sobre o próprio criador-fruidor, que se revela a si
mesmo a cada nova experiência criativa e interpretativa (autoconsciência). Dessa maneira, a arte é
igualmente, expressão e fonte de conhecimento do universo humano, que o apresenta-representa em
objetos de ordem material ou espiritual.
Tendo por base esse posicionamento, repudia-se a concepção ‘arte pela arte’ – que
propugna uma cisão entre Arte e vida, e ‘arte como expressão de emoções pessoais’ do artista, tido
como um ‘ser especial’, ‘iluminado’, apreendido de modo isolado em relação à sua
contemporaneidade e aos interesses sócio-econômico-políticos vigentes nas sociedades de que é
oriundo, e que, por ‘inspiração’ de qualquer ordem – imanente ou transcendente –, cria obras de arte
desvinculadas da vida real, voltadas para um público restrito, porque somente apreensíveis por
especialistas. Da mesma forma, tece-se uma crítica à indústria cultural que, ao produzir uma ‘arte
média’, banaliza a expressão artística e, em essência, embota as possibilidades de criação
efetivamente livre e de crescimento humano, lembrando o papel da escola como instituição que tem
por finalidade a transmissão, conservação e criação do conhecimento e que, na área do ensino das
Artes deve promover as melhores condições para o desenvolvimento da sensibilidade e de uma
fruição ativa/crítica dessa produção humana.
Este trabalho, então, trata da Arte como produção livre de objetos – materiais ou
espirituais –, totalidades concretas vinculadas à vida, carregadas de conteúdos fundidos em formas
que se realizam como particularidades, expressões simultaneamente individuais e humanogenéricas.
Com base em tais pressupostos, defende-se a Arte como um forte nexo entre o indivíduo e
a totalidade da criação humana, porque no processo livre de sua produção-fruição, ela remete os
indivíduos a toda a história humana anterior – que a obra de arte traduz e condensa –, e à
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contemporaneidade, que ela sintetiza e expressa. Assim, a criação-fruição de um objeto artístico,
permite aos indivíduos mergulharem com a integralidade de suas capacidades humanas –
sensibilidade, intelecto e emoção – na vida da humanidade que os antecedeu e que os envolve. Por
essa concepção, a Arte constitui uma rica fonte de humanização.
A concepção dialética da arte-vida
A concepção dialética da Arte, essencialmente antropocêntrica, tem por pressuposto a
concepção de homem como o único ser que sendo parte da natureza a ela não está submetido. Ao
contrário, domina-a pelo trabalho, no embate para a produção da existência, processo no qual
constrói de modo coletivo a história e a sociedade, enquanto dialeticamente é por elas constituído.
Assim, o indivíduo humano é automediador, significando que se constitui a si mesmo
historicamente, no seio da sociedade, ou seja: “constitui todas as suas potencialidades, as quais não
são pressupostas como algum estado original dado, mas são constituídas na e pela práxis”, que,
como esfera do ser humano, é coletiva, acontece no âmbito social, comunitário. (PEIXOTO, 2003,
p. 41) Dessa maneira, “(...) o caráter social é o caráter universal de todo o movimento; assim como a
sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é por ele produzida. A actividade e o
espírito são sociais tanto no conteúdo como na origem; são actividade social e espírito social. O
significado humano da natureza só existe para o homem social. (MARX,1989, p. 194) Logo, sendo
a individualidade uma construção social, não faz sentido opor o indivíduo à sociedade: “importa,
acima de tudo, evitar que a ‘sociedade’ se considere novamente como uma abstracção em confronto
com o indivíduo. O indivíduo é o ser social”. (MARX, 1989, p. 195)
Como esfera específica do humano, a práxis é atividade que, ao produzir e ser produzida
no movimento histórico, expressa a totalidade do homem e do mundo “da matéria e do espírito, de
sujeito e objeto, do produto e da produtividade”. (KOSÍK, 1976, p. 201-202) Fundem-se, numa
unidade, pensamento e ação: a práxis é ação reflexiva e reflexão ativa.
Desse modo, a práxis artística como trabalho humano de criação livre indica que nela e
por ela o artista materializa sua “subjetividade nos objetos que cria-constrói, ao mesmo tempo em
que promove a subjetivação do mundo objetivo, imprimindo-lhe a marca do humano, quer
dizer, humanizando-o”. (PEIXOTO, 2003, p. 42) Entre tais marcas ressalta-se o corpo de
conhecimentos de cunho técnico, científico e filosófico criado e desenvolvido histórica e
socialmente, bem como a Arte, em todas as suas facetas e áreas.
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Tais são as marcas que permitem ao homem humanizar-se, fazer-se homem e
reconhecer-se como tal, pois são elas – e os objetos criados como produtos de sua ação sobre a
realidade – que configuram sua individualidade e o confirmam como ser genérico, parte viva e ativa
da humanidade. Daí que, quanto mais democratizado, maior e mais intenso for o contato dos
indivíduos com tudo o que a história humana lhe legou: o conhecimento, as idéias, as técnicas,
enfim, o universo da cultura e, como parte dele, a Arte, – transmitidos/construídos no processo
educativo formal –, melhores serão suas condições e chances de tornar-se humano, já que o simples
fato de ter nascido de humanos não lhe garante que assim o seja. O processo de assenhorear-se de si
(constituição da autoconsciência) através do domínio do complexo universo criado pelos homens –
filosofia, arte, ciência e técnica – (constituição da consciência) é um longo e árduo caminho
marcadamente coletivo, porque, como apontado, depende da transmissão e apreensão da totalidade
de tudo o que foi (e está sendo) construção histórica do mundo humano, passado e presente, para a
projeção do futuro. Para que isso aconteça, todos dependem de tudo – os meios – e de todos.
A Arte, nesse caminho, exerce papel essencial: pela ótica do trabalho de criação livre de
um indivíduo, concretizam-se num objeto (uma particularidade de qualquer ordem) visões de
mundo socialmente construídas, herança de toda a história anterior, que representam/apresentam
uma síntese de ações, conhecimentos e técnicas, além de modos de pensar e sentir, situados num
tempo e num espaço específicos. Tais “maneiras de pensar e de sentir não são [...] entidades
independentes em relação às ações e aos comportamentos dos homens. Só existem e só podem ser
compreendidas em suas relações interindividuais que lhes conferem todo conteúdo e toda riqueza”.
(GOLDMANN, 1993, p. 106. Grifado no original) Por isso, uma obra de arte, fundindo conteúdo e
forma numa unidade indissolúvel, para além de expor uma individualidade, carrega em seu bojo a
história de uma época – que, por sua vez, contém em si a totalidade da história humana anterior:
“(...) na obra é resguardada e preservada a obra de uma vida; na obra de uma vida, a época; e na
época, a totalidade do transcurso histórico. O nutritivo fruto do historicamente conceituado tem no
seu interior o tempo como preciosa semente”. (BENJAMIN, 1991a, p. 163) Por esse prisma, a obra,
além de ser expressão de uma individualidade, nela e por ela reflete conteúdos que dizem respeito
ao homem enquanto ser genérico, configurando-se como coadjuvante no conhecimento do mundo
humano e de sua construção.
Entretanto, mesmo determinada social e culturalmente e, constituir uma síntese
expressiva da história humana anterior, a obra de arte, quando posta na existência, passa a ser uma
nova realidade social concreta, com vida própria. Como tal, a cada ação interpretativa ela interage,
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determinando alterações ou transformações no contexto, nos indivíduos – e destes em relação
àquele. Ao criar situações inusitadas, a Arte determina comportamentos e idéias em relação a ela e
ao mundo que expressa: seja de indiferença, de rejeição ou de aceitação, valorização e reflexão.
Como nova realidade, entretanto, sua existência não pode ser negada. Assim, no movimento
dialético da história, a obra de arte é simultaneamente uma nova realidade histórico-humano-social,
determinada pelo e determinante do contexto amplo em que existe. Como fruto do trabalho de um
indivíduo, cidadão de uma dada sociedade, um ser ético e político, necessariamente a obra refletirá
uma ideologia com a qual mantém relações contraditórias e complexas: ora interrogando, ora
negando, ora afirmando ou contestando, ou ainda esquivando-se. São reações e tomadas de posição,
de enquadramento, de crítica ou negação: sempre, porém uma reação, pois o criador através do
objeto criado dialoga com a realidade posicionando-se frente a ela.
Dessa forma, contrariamente à posição da ‘arte pela arte’, uma obra jamais será ‘neutra’
em relação à vida concreta, porque, além de sua própria constituição estar comprometida com a
realidade social e histórica, nela
...estão implicados (...) um conhecimento relativo e uma tomada de posição do autor frente a
esse determinado contexto concreto de vida, ou seja, uma atitude ética e um posicionamento
político do indivíduo criador em face das lutas históricas do tempo presente [em especial da
sociedade a que pertence], como aprovação ou negação, que são as formas de ele se relacionar
com o mundo. Sem esse conjunto de determinações, a obra de arte não terá sostanza para existir.
(PEIXOTO, 2003, p. 58)
Isso qualifica o ‘partidarismo da obra’ (desnecessário dizer que não se trata de
partidarismo político!) visto ser impossível aos indivíduos em sociedade não tomarem partido frente
às injunções da realidade: o próprio ato de negar-se a marcar posição explicita nitidamente um
posicionamento ético-político frente ao real. Para LUKÁCS, “a obra de arte autêntica é partidária de
cabo a rabo, em todos os seus poros”, já que “os princípios de sua construção implicam tomadas de
posição em face dos grandes problemas da vida”. Entretanto, o estético deve sempre prevalecer na
obra para que seu valor seja reconhecido: “o partidarismo não pode ser separado da sua objetividade
estética”, pois ele se faz presente na totalidade da unidade orgânica de forma e conteúdo, da qual é
parte essencial. (LUKÁCS, 1968, p. 218) No mesmo sentido, Benjamin afirma: “a tendência de
uma obra literária só pode ser politicamente correta se ela também for literariamente correta”
(BENJAMIN, 1991b, p. 188). Ou ainda: “a força ética da pintura não está na virtude do que ela
retrata ou defende, mas na estética que materializa”. (HARRISON; WOOD, 1998, p. 254)
Há que se atentar, portanto, para não cair em extremos: identificar arte e ideologia ou
contrapô-las radicalmente. O primeiro caso refere-se à posição ideologizante, subjetivista ou
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sociologista vulgar - que, por exemplo, associa mecanicamente decadência artística e decadência
social; o segundo extremo, o da oposição entre arte e ideologia, pode chegar a negar as
determinações ideológicas da arte, ignorando suas raízes na existência das sociedades humanas e,
dessa forma, contrapondo-se ao pensamento histórico e dialético. (VÁZQUEZ, 1978, p. 28) A partir
de tais considerações, e sendo a obra de arte “parte integrante da realidade social, é elemento da
estrutura de tal sociedade e expressão da produtividade social e espiritual do homem”, entende-se
que obras humanas de qualquer ordem – científica, filosófica ou artística – constituem uma
totalidade estruturada e complexa cujos elementos “ideológicos, temáticos, de composição, de
linguagem”, estão interligados numa unidade dialética. (KOSÍK, 1976, p. 125) Não cabe, portanto,
isolar ou mesmo privilegiar um elemento em detrimento dos demais.
Entendida dessa forma, ARTE-VIDA formam uma unidade indissociável, pois o processo
de sua criação e fruição expressa a totalidade da vida e da história individual e genérica do homem.
Por conseguinte, repudia-se a posição romântica ‘arte pela arte’, defensora de ruptura entre a Arte e
a vida, pari passu à arte erudita (ou arte elitista, para Canclini). O espírito da arte pela arte
apresenta uma série concatenada de tendências, entre elas destacam-se: “1.º) à desumanização da
arte; 2.º) a evitar as formas vivas; 3.º) a fazer com que a obra de arte não seja senão obra de arte;
4.º) a considerar a arte como jogo, e nada mais (...)”. (ORTEGA y GASSET, 1991, p. 31) Tal
posição preconiza uma ‘arte pura’, não ‘contaminada’ pela realidade, pressupondo como viável ao
artista – no processo de produção de suas obras – abstrair de todos os conteúdos aprendidos, frutos
da vida, da sociedade e da cultura em que nasceu e foi criado. Ou seja, de apagar, fazer tabula rasa
de todas as formas de ser, pensar e agir por ele apreendidas e assumidas como suas, no decorrer de
sua existência, desvencilhando-se da história da humanidade, da cultura e da sociedade em que
vive, tudo aquilo que estrutura e dá sustentação à sua individualidade, para, como criar ‘formas
limpas’, zeradas de vida. Isto seria de todo impossível, pois
O autor, como momento constitutivo da forma, é a atividade organizada e oriunda do interior, do
homem como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa, que não presume nada além de si
mesmo, para chegar à conclusão, é, ademais, o homem todo dos pés à cabeça: ele precisa de si
por inteiro, respirando (o ritmo), movimentando-se, vendo, ouvindo, lembrando-se, amando e
compreendendo. (BAKHTIN, 1998, p. 68)
A concepção arte pela arte, num processo coerente de purificação, com o intuito de
“eliminar do seu seio tudo o que pudesse relacioná-la a um tempo e espaço específicos”, na busca
da desumanização, da “ruptura dos laços com a vida foi aprofundando a distância em relação ao
público (...) Ao descartar o conteúdo humano-vital”, enclausurou-se “na forma, agora apreendida
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como um em si, um mundo autônomo presidido pela neutralidade – qualidade até então considerada
privilégio das ciências –, cujo conhecimento exige o domínio de códigos específicos.” (PEIXOTO,
2003, p. 79) Aferrada a um conceito de forma em si mesma, dissociada do conteúdo, tornou-se uma
arte do nada: “a arte pela arte, isto é, (...) a arte em que a arte do artista constitui a única matéria e
cujo único destinatário é a comunidade artística, constitui uma arte para nada, sobre nada”, voltada
para um público exclusivo, composto por “produtores de bens culturais que também produzem para
produtores de bens culturais”. (BOURDIEU, 1999, p. 196; 105) Por motivos óbvios, configurou-se
uma produção hermética, inatingível para o ‘grande público’ (formado pelos leigos em Arte),
caindo no gosto e nos interesses da burguesia, classe que a elegeu como a única verdadeira arte, a
grande arte, produtora de obras únicas, inacessíveis ao vulgo e – é claro – por isso mesmo,
detentoras de um altíssimo valor de mercado. “Pela necessidade de sustentar a aura da
exclusividade, do objeto único, raro e inacessível – produzido por indivíduos especiais ou gênios e,
como tal, detentor de grande valor (valor de mercado, entenda-se) –, nesse novo quadro, o
distanciamento do ‘grande público’ veio a se tornar um imperativo”. (PEIXOTO, 2003, p. 79)
O processo de elitização em curso foi paulatinamente impondo a criação de um corpo de
especialistas – marchands, professores e críticos de arte –, que domina os códigos refinados
disponibilizados para grupos restritos, e que é capaz de conhecer e julgar o valor estético – e de
mercado! – da obra, dentro dos parâmetros da arte pela arte. Rompendo a dialética
quantidade/qualidade, não há preocupação com ampliação de público – nem é visto com bons olhos
o sucesso de seus produtores frente ao ‘grande público’, o de não-produtores de bens culturais
(BOURDIEU, 1999, p. 105; 159). Esse tipo de arte compõe o que se denomina sistema de arte,
uma estrutura de “relações sociais de produção, circulação e consumo, do campo da arte erudita,
cujo funcionamento envolve uma série de instâncias e seus respectivos especialistas”. As
“instâncias de produção (o artista isolado ou associado) e de consagração, legitimação, conservação,
difusão e venda (as academias, a crítica, os salões, os museus, as revistas especializadas, o sistema
de ensino com seus diplomas, títulos, as galerias, etc.)”. (PEIXOTO, 2001, p. 85; nota 13. Com base
em BOURDIEU, 1999, passim)
Para o presente trabalho interessa focar o papel atribuído à escola formal pelo sistema de
arte: cabe a ela dar sustentação e conferir legitimidade a esse sistema formando, basicamente em
nível superior, dentro dos parâmetros da arte erudita, todos os seus quadros – artistas, professores,
críticos, historiadores e pensadores especializados em estética, entre outros, e, através dos
professores, dar formação básica a um público mais amplo composto pelo alunado da escola
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comum (níveis Fundamental e Médio). Por tais características, a escola “tem por função a
reprodução pela inculca, como também a legitimação e a consagração culturais” porque, “segundo
critérios internos, escolhe o conteúdo que merece ser transmitido e adquirido, define e distingue as
‘obras legítimas’ das ilegítimas, bem como preconiza maneiras legítimas e não-legítimas de abordar
as obras legitimadas”, tudo em prol da ortodoxia cultural. Paralelamente, no plano individual “cria
uma ‘segunda natureza’ ou habitus que, num nível inconsciente, estabelece as condições de
obediência consciente aos modelos preconizados”. (PEIXOTO, 2001, p. 85-86; com base em
BOURDIEU, 1999, p. 120-125)
Do ponto de vista do materialismo dialético, para o qual a Arte é um bem precioso da
cultura humana que deve ser disponibilizado a todos, sem óbices, essa posição imposta/assumida
acriticamente pela escola é, por vários motivos, inaceitável: a) por elitizar o ensino, ao denegar a
Arte popular como ‘Arte’, enjeitando-a do rol do que deva ser ensinado/aprendido como tal. O que
dela permanece no currículo é rotulado como folclore; b) por ser excludente, afirmando como
‘Arte’ apenas aquela produção a que uma gama enorme de indivíduos não tem acesso; c) por
impingir uma visão unidimensional de Arte; d) e, por tudo que foi apontado, afrontar/restringir a
liberdade do desenvolvimento humano em toda a riqueza de possibilidades que ele requer. Do ponto
de vista da produção, trata-se de uma restrição abusiva à liberdade de criação/expressão/fruição da
Arte.
No interior da concepção elitista, vinculada ao desenvolvimento das psicologias e pela
posição individualista por elas assumida, houve uma tentativa de resgate – se bem que parcial – da
relação Arte e vida, pelo viés da individualidade: a Arte como ‘expressão individual de emoções’.
Para Canclini, a “arte elitista, da burguesia – mas que inclui também setores intelectuais da pequena
burguesia – privilegia o momento da produção, entendida como criação individual: supõe que o
artístico se realiza inapreensivelmente, no gesto criador e substancializa-se na obra de arte”.
(CANCLINI, 1984, p. 49) Assim compreendida, a obra é transformada em fetiche, tida como
“revelação, a mais pura expressão de sentimentos e emoções pessoais, fruto da genialidade de seu
criador; a originalidade, portanto, é tida como valor supremo. Os processos de distribuição e
consumo são relegados a acessórios posteriores à obra, sem relação direta com ela”. (PEIXOTO,
2003, p. 16)
Diametralmente oposta, a concepção dialética entende que:
para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em
memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção para um artista não é tudo;
ele precisa também saber tratá-la, transmiti-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas,
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recursos, formas e convenções com que a natureza - esta provocadora - pode ser dominada e
sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o
artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a. (FISCHER 1987, p. 14)
Obviamente, domá-la significa que a racionalidade, a ética e a capacidade decisória,
tendo por suporte os conhecimentos de ordem diversa que necessariamente entram na produção de
uma obra, são tão importantes quanto a emoção e a paixão. Por outro lado, esse pretenso elo com a
vida é pouco consistente, pois na concepção da arte como expressão emocional do indivíduo
criador, este é tomado como um ser ‘puramente psicológico’ como um em si, independente, isolado
do contexto histórico-social-cultural em que vive, bastando-se a si mesmo; quando muito, passível
de ‘influências’ externas. Todos os nexos e determinações sócio-histórico-culturais que marcam a
personalidade individual não são tomados em consideração ou relegados a um segundo plano, tidos
como meras ‘influências’.
Arte, indústria cultural e a escola
A par da definição de uma arte erudita, destinada a uma minoria ilustrada, o sistema de
arte comporta uma área artística para o ‘grande público’, aquele formado pelos não-produtores de
bens culturais, que, como Adorno, Bourdieu denomina ‘indústria cultural’, e aponta como um dos
determinantes do avanço de sua produção a extensão de um público que teve acesso ao ensino
elementar. (BOURDIEU, 1999, p. 102) Esse segmento produz a ‘arte média’ para consumo
socialmente heterogêneo, cujo campo de ação é demarcado tanto técnica quanto esteticamente pelos
interesses dessa ampla categoria. Para ele, trata-se de uma arte elaborada por métodos semiindustriais, de acesso fácil, pois que evita temas controversos, apóia-se na trivialidade, em
personagens em geral otimistas e calcados em estereótipos, que devem facilitar a projeção à maior
gama de público possível. Denomina-se uma ‘arte-média’ porque a produção é totalmente definida
por um ‘público médio’ - em geral demarcado por pesquisa de opinião e médias estatísticas. Essa
produção, por visar o lucro, rege-se pela lei da concorrência para a conquista e ampliação de
mercados, pois o público será tanto mais ‘significativo’ quanto maior for sua extensão.
(BOURDIEU, 1999, p. 136-137) Trata-se de uma “mensagem indiferenciada produzida para um
público socialmente indiferenciado”, inclusive com forte autocensura dos produtores para eliminar
todos os signos e fatores de diferenciação. (BOURDIEU, 1999, p. 136, nota 46)
Bourdieu explicita alguns dos vínculos entre os campos da arte erudita e dos produtos
da indústria cultural. Para ele, ambos os campos “têm como princípio comum os progressos da
divisão do trabalho e a constituição de esferas separadas que favorecem a explicitação das funções
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próprias a cada uma delas (‘negócio é negócio’) e a organização racional dos meios técnicos
adequados a estas funções”. Igualmente, em ambos os campos os produtores são artistas e
intelectuais “altamente profissionalizados” que valorizam sobremaneira e de modo similar a técnica,
o que, na arte erudita, transparece na preocupação com o efeito – tanto no sentido da impressão
causada sobre o público quanto no sentido de efeito como “fabricação engenhosa”. Na ‘arte média’,
o “culto da forma pela forma”, uma herança da arte erudita, assumiu proporções assombrosas, em
função do que aquela arte passou a lançar mão de técnicas altamente sofisticadas. (BOURDIEU,
1999, p. 140-141)
Pela argumentação estabelecida, a Arte vê-se “degradada à condição de meio
subordinado aos fins da economia capitalista de mercado”, como enfatiza MÉSZÁROS (1981, p.
192): tanto como produto massivo da indústria cultural – de todo despreocupada com as
necessidades e os valores efetivamente humanos, e obediente às leis de mercado – quanto como
produto para poucos ‘iluminados’ ou subsumida como uma mercadoria qualquer pelo mercado de
obras de arte. Nessa condição submissa, a Arte fica impedida de exercer sua finalidade maior: a de
colocar os homens em contato com a livre representação sensível de “uma etapa do
desenvolvimento da humanidade” (LUKÁCS, 1968, p. 265) condensada numa totalidade concreta:
o objeto artístico. Toda e qualquer ‘mercadoria’, porque oriunda das relações técnicas e sociais de
produção – que regem o modo de produção capitalista – desumanizadas, desumanizadoras e
subjugadas pelas ‘leis de mercado’, contradiz a criação-fruição livre de um bem essencialmente
humano.
Há que se tomar uma posição crítica rigorosa a respeito de tudo o que, sob a chancela de
um sistema que produz a fragmentação do homem, a ele impõe seus produtos artísticos
desumanizados e/ou manipuladores, descentrando-o do foco da vida concreta, empobrecendo sua
consciência do mundo e sua autoconsciência, dispersando sua capacidade de compreender e realizar
suas possibilidades de ser, enquanto indivíduo integrante do gênero humano.
À escola, de modo sistematizado e integrado, como a instituição mor promotora da
humanização, ou seja, da educação do homem, cabe, então, propiciar aos educandos toda a gama de
conhecimentos e condições necessários à análise e compreensão críticas do universo da cultura – e
nele, da arte – focando, em especial, o que concerne à indústria cultural, já que na
contemporaneidade, a mídia e sua produção/difusão ocupam um lugar preponderante na vida das
pessoas em geral. Entendendo, ainda, que a música constitui a área das artes mais intensamente
difundida pelos diversos canais da mídia (rádios; televisões – MTV em especial; cinema; gravações
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em fitas K7, CDs, DVDs, MP3; etc.), fazendo-se presente maciçamente no cotidiano das crianças e
jovens de modo particular, elegeu-se focá-la prioritariamente neste trabalho, como se verá a seguir,
no texto de Subtil.
Contudo, a maioria dos professores, dada a sua formação erudita ou a ausência de
formação – do que, entre outras coisas, trata o texto de Trojan –, ao se defrontar com o gosto
artístico/musical das crianças e jovens, fica entre duas alternativas: ou simplesmente renega o
conjunto da música midiática, negando-lhe qualquer valor artístico e impondo aos alunos um saber
erudito sem vínculos com a contemporaneidade, ou, na tentativa de ser/parecer ‘atualizado’ (ou
benquisto?!), sucumbe inconteste os hábitos musicais dos alunos, com pouco ou nenhum aporte de
conhecimentos para que os jovens desenvolvam uma consciência abrangente, pelas raízes históricosociais e teórico-técnicas do que vêem/ouvem e possam, então, reconhecer-se enquanto fruidores
ativos da arte/música, constituindo criticamente e ampliando sua autoconsciência.
Para um melhor e mais seguro desempenho dos professores, urge que as escolas de
formação de artistas e de professores de arte revejam suas posições e reconstruam seus currículos
com base numa concepção de Arte abrangente, como produto do trabalho humano de criação que,
sem especificações de cunho classista-elitista, possa ser conhecido, assenhoreado pela totalidade da
população (ao menos a escolarizada), cuja afluência seja democratizada por se tratar de um direito
humano: o de ter livre acesso aos bens culturais e artísticos da humanidade, porque tal
aproximação é essencial ao processo de humanização.
Os currículos de formação musical, com raras exceções, são centrados na arte/música
erudita e só a ela reconhecem como Arte, como bem avaliou Bourdieu. Pela lógica, o movimento de
deselitização deveria partir das escolas superiores formadoras dos profissionais, já que lá se
encontram os mais bem preparados artistas, mestres e doutores. Contraditoriamente, esse é o reduto
mais arraigado à ‘grande arte’, mais conservador e muitas vezes preconceituoso em relação à
chamada ‘arte popular’ (ou naïf, para alguns) e às diversas manifestações culturais das minorias,
como a ‘arte indígena’.
A arte como produção humana e fonte de humanização
Reitera-se, então, a Arte como trabalho livre de criação, uma produção exuberante de
vida, livre de toda e qualquer ação coercitiva: seja dos modismos (semi)absorvidos dos países
centrais e apresentados/impostos por Salões e Bienais, seja do interesse econômico que rege o
mercado de arte capitalista, seja de cunho político-partidário, religioso, ou de qualquer outra ordem.
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Uma Arte que promova pelas suas qualidades estéticas, tanto no criador quanto no fruidor, a
consciência de valores humano-sociais essenciais, tais como a busca de se educar, de ser mais e
melhor, de conhecer-se e respeitar a si e os outros, de solidarizar-se aceitando as diferenças, de
desenvolver ao máximo grau possível suas capacidades e necessidades especificamente humanas
para que possam contrapor-se a toda a gama de necessidades postiças e artificiosas voltadas ao ter e
ao consumir, criadas ou repassadas pela mídia como as únicas genuínas. Enfim, uma Arte que,
através do seu valor estético, todos tenham condição de aguçar a sensibilidade e desenvolver a
capacidade do conhecimento sensível ao máximo grau possível.
Quando comparada à lógica e à solidez do conhecimento científico, considera-se que,
... se a ciência, para ser ciência, precisa dissecar a vida [ou os seres já sem vida] – ou seja,
destruí-la, no processo de construção de suas leis universais –, a arte, ao contrário, a vivifica
porque a toma em sua condição de ser vida [grifo da autora], em sua condição de concretude
plena de determinações e de contradições, tal como ela é (existe) na verdade do movimento
vital-histórico”. (PEIXOTO, 2003, p. 72)
Ao que tudo indica, parece não haver possibilidade destrutiva na Arte genuína, só
acréscimos àquele que com ela se envolve pela criação e/ou pela fruição; àqueles que a ela se
entregam, sem impor-lhe ou confrontá-la com as leis da razão, visto não se tratar de um
conhecimento racional-discursivo-universal, como o da ciência, e, sim, de um conhecimento
sensível da totalidade humana envolvida no objeto artístico, em especial a sutileza da sensibilidade
que é o que a Arte exige e, dialeticamente, pode produzir.
Versando sobre a tragédia, a dor, a violência, tanto quanto a felicidade, a alegria ou a
beleza, ao apresentá-las/representá-las promove um novo conhecimento, um novo nível de
consciência de ordem sensorial-sensitivo sobre uma totalidade material/espiritual: um objeto, ato ou
fato, pois se trata de apreciá-los através da visão de um outro indivíduo humano, carregada de uma
outra concepção de mundo, fruto de uma outra realidade de vida que, até o momento, era-lhe
desconhecida. Assim, obra de arte pode surpreender não só o fruidor, mas igualmente seu criador,
pois o objeto, ao ser apresentado ao mundo, a ele se contrapõe como uma nova realidade social à
que ele, como qualquer outro indivíduo, também se confronta e reage. Ao fruidor, pela atenção
concentrada dos sentidos e pela reflexão que desperta, acrescenta percepções e informações tanto
sobre o criador, seu mundo e sua cosmovisão quanto sobre o próprio fruidor (a autoconsciência),
pois
a particularidade da arte reside, precisamente, em poder apreender e representar a astúcia da
vida, entendida, aqui, como a capacidade da vida de escorrer, escorregar por entre os dedos da
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ciência e de suas leis. O fato da arte não pretender a universalidade não a desmerece, muito pelo
contrário, é aí que se encontra sua força e sua enorme virtude, em tomar nas mãos a própria vida
em seu movimento pujante. Por apreender a vida na sua pujança e concretizá-la numa
particularidade (a obra de arte), a arte pode contribuir de modo eloqüente para ampliar,
aprofundar e enriquecer a consciência humana. (PEIXOTO, 2003, p. 72)
“No mundo próprio da obra de arte, na sua unidade orgânica, pulula a multiplicidade de
determinações e, portanto, essa parte condensada representa-expressa de maneira intensiva,
verdadeira e essencial a vida de determinada etapa da humanidade” (PEIXOTO, 2003, p. 73), pois,
como um objeto, uma concretude, ela é sempre uma parte que aponta para o todo: o criador, sua
época e, através dela, toda a história humana “em sua contraditoriedade (sic), em seu movimento e
em sua perspectiva reais”, que, em essência, compõe a unidade da forma-conteúdo da obra.
(LUKÁCS, 1968, p. 267)
Assume-se,
assim,
que
a
Arte,
simultaneamente
criação/ideologia/forma
de
conhecimento – e precisamente por tal motivo – configura-se como fonte de humanização.
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ARTE, FORMAÇÃO ESTÉTICA E EDUCAÇÃO PEIXOTO, Maria Inês