III SEMINÁRIO POLÍTICAS SOCIAIS E CIDADANIA AUTOR DO TEXTO: Vitor Araújo Filgueiras Capitalismo no carnaval de Salvador: o trabalho precário dos “cordeiros” RESUMO: O presente trabalho analisa a empresa capitalista denominada bloco de carnaval, especificamente, o bloco de corda no carnaval de Salvador, Bahia. O objetivo do texto, produto de pesquisa efetuada entre os anos de 2007 e 2010, é debater a lógica produtiva do bloco de corda, que constitui um relevante aspecto da subsunção do evento festivo baiano ao capital. Mais especificamente, são discutidos: a natureza da mercadoria produzida pelos blocos através do trabalho assalariado dos “cordeiros”, as formas de arregimentação e contratação dessa força de trabalho, a organização, as condições e o processo de trabalho impostos a esses trabalhadores. Por fim, é analisada a intervenção do Estado baseada no direito do trabalho sobre essa modalidade de assalariamento. Além de revisão bibliográfica e análise documental, o presente trabalho foi efetuado através de inspeção nos locais de trabalho dos “cordeiros” entre 2007 e 2009, quando foram constatadas in loco as condições de trabalho e entrevistados os trabalhadores. O carnaval de Salvador, Bahia, é mundialmente conhecido1. Caso alguém nesse mundo ainda esteja desavisado, a festa é subsumida ao capital sob vários aspectos: a miríade de propagandas de empresas em todos os espaços imagináveis do circuito, as disputas entre as empresas de televisão e rádio por espaço, audiência e conseqüente venda do tempo comercial, as empresas dos camarotes, que vendem por pequenas fortunas os espaços para que seus consumidores desfilem em seu interior. A ação capitalista nas citadas frentes, como em qualquer espaço no qual se insira, demanda trabalho como condição necessária para produção e extração do excedente. O objetivo do presente texto é analisar um aspecto da subsunção do carnaval baiano ao capital, certamente aquele onde a extração da riqueza socialmente produzida é mais explícita: a empresa conhecida como bloco de carnaval. A empresa denominada bloco de carnaval, constituída na Bahia, difere do instituto conhecido como bloco de carnaval em muitas partes do Brasil. Este último se define resumidamente como um aglomerado de pessoas, conhecidas ou não, que percorrem o circuito do evento bebendo, dançando, dentre outras modalidades de interação. Já a maioria dos blocos existentes no carnaval de Salvador é uma empresa capitalista e, como tal, objetiva o lucro através da venda de mercadoria. Por este motivo – e pela forma como o bloco é constituído, que será detalhada à frente -, ao longo deste texto será empregada a designação bloco de corda para discriminar a modalidade de bloco que hegemoniza o carnaval baiano. Há algumas décadas, o bloco de carnaval na Bahia era um instituto nos moldes daqueles existentes no carnaval de diversas cidades do Brasil, ou seja, não era uma empresa capitalista – como o atual bloco de corda. Ironicamente, o instrumento que contribuiu para a formação dos blocos de corda e segregação do carnaval baiano foi o mesmo que incentivou a democratização da festa em meados do século XX, qual seja: o trio elétrico. Segundo Miguez (2008, p. 103): 1 Em 2007, por exemplo, 43 mil turistas estrangeiros de diversas origens estiveram no carnaval de Salvador, de acordo com o Relatório de Indicadores de 2007, da Prefeitura de Salvador. Os dados dos postos de atendimento ao turista indicam a diversidade dos visitantes, oriundos de Israel, França, Chile, Argentina, Inglaterra, Estados Unidos, Itália, Espanha, Austrália, Alemanha. 1 Até o surgimento do Trio Elétrico, portanto, durante a primeira metade do século XX, o carnaval baiano dividia-se entre dois. Um, o carnaval “oficial”, organizado e patrocinado pela aristocrática elite local, que consistia, basicamente, nos suntuosos desfiles dos préstitos, do corso e das pranchas pelas avenidas centrais da cidade e, também, nos bailes privados realizados em clubes fechados. O outro, um carnaval popular, de extração negro mestiça, com seus afoxés, batucadas, cordões e blocos, praticamente impedido de ocupar as avenidas nobres do centro da cidade e que transitava tão somente pelos bairros populares e ruas próximas ao centro. É esse carnaval popular que, a partir de 1950, com o surgimento do Trio Elétrico invade as zonas centrais da cidade e, assim, promove a deshierarquização do espaço social da festa. Contudo, o valor de uso engendrado pela festa foi paulatinamente sendo privatizado e mercantilizado – as cordas de constituição do bloco e segregação do restante do público do carnaval foram introduzidas em 1962, pelo bloco Os internacionais -, e pelos menos nas últimas três décadas o bloco de carnaval baiano sofreu metamorfoses, passando por uma fase que pode ser denominada de aparente “proto-mercantilização” assentada na segregação sócio-étnica, até se estabelecer como empresa capitalista plenamente explicitada - hoje há pouquíssimo espaço para blocos de carnaval sem corda em Salvador. Durante esse percurso protagonizou e continua em cena um ator principal: o “cordeiro”. Antes de definir o “cordeiro”, por conseguinte, a mercadoria vendida pelo bloco de corda e, mais especificamente, o próprio bloco atualmente hegemônico, cabe um breve esclarecimento sobre o aludido período de aparente “proto-mercantilização” assentada na segregação sócio-étnica que o bloco de carnaval vivenciou. É preciso enfatizar: aparente. Até meados dos anos 1990, não era qualquer ser humano que poderia se tornar consumidor da mercadoria vendida pelo bloco de corda. Para ser consumidor da empresa do bloco de carnaval era necessário (antes de desembolsar uma quantia expressiva de recursos monetários) preencher uma “proposta de aceite” para avaliação pela mesma. Após a análise do seu perfil (local de residência, de estudo, aparência física e, evidentemente, cor da pele), era permitido, ou não, que o indivíduo se tornasse consumidor. A priori, essa versão do bloco de carnaval ainda não poderia ser totalmente definida como capitalista, pois o dinheiro ainda não era plenamente aceito como equivalente geral, não vigia a total impessoalidade da mercadoria. Todavia, a discriminação (por cor, aparência, etc.) empreendida pelo bloco de corda era um importante mecanismo para maximização do prestígio da empresa relativamente aos concorrentes (os blocos mais aspirados eram aqueles sem negros, onde reinava a suposta “gente bonita”), conseqüentemente, viabilizava incremento de preço. Assim, essa mercantilização restringida não se chocava com a lógica do capital. A discriminação, pelo contrário, era um artifício de potencialização da lógica do lucro. Há alguns anos a venda da mercadoria produzida pelos blocos não depende mais, em geral, dos nomes dos consumidores, mas apenas do dinheiro que eles podem desembolsar. Mas, finalmente, qual é a mercadoria vendida pelos blocos? É aqui que aparece o normalmente esquecido protagonista da história, o trabalhar denominado “cordeiro”. A mercadoria vendida pelo bloco é a relação social produzida pelo trabalho dos “cordeiros”, qual seja, um espaço privatizado nas vias que normalmente são públicas, por meio da presença física desses trabalhadores que usam cordas que separam os consumidores (que ficam no interior da corda) do restante do público. Ao contrário do que se poderia pensar, não é a música a mercadoria vendida pelo bloco de corda. Esta é irrealizável enquanto mercadoria, porque a música executada pelas bandas que se apresentam nos blocos 2 constitui exemplo de bem público: seu consumo é indivisível e não excludente 2 – todos os transeuntes têm acesso à música e à banda, dentro ou fora do bloco. O fato que engendra a existência do bloco de corda, o valor de uso que o bloco pode transformar em mercadoria, é o espaço físico no interior da barreira humana formada pelos “cordeiros”. Se os “cordeiros” pararem simultaneamente de trabalhar por apenas um lapso de segundo, o próprio bloco deixa automaticamente de existir; desfaz-se a exclusividade e volta o espaço a ser público, inviabilizando a venda, por conseguinte, a própria empresa 3. Uma observação um pouco mais atenta permite perceber que os blocos de carnaval configuram um mercado de natureza imperfeita, ou seja, na concorrência entre os blocos de corda pela preferência dos consumidores há espaço para alguma diferenciação das mercadorias vendidas. A mercadoria que constitui o bloco de corda é o espaço privatizado, dentro do qual são inseridas especificidades na disputa por fatias do mercado consumidor. Assim, bandas, camisas, status, são apenas aspectos de diferenciação da mercadoria que constitui o bloco (repita-se): o espaço privatizado de socialização constituído pelo trabalho dos “cordeiros” 4. A despeito da importância ontológica do trabalho dos “cordeiros” para o empreendimento dos blocos carnavalescos, a relação que as empresas impõem a esses trabalhadores é, no mínimo, cruel. Dado o estrutural excedente de força de trabalho existente na capital baiana, sobram trabalhadores dispostos a segurar as cordas por horas a fio no curso do desfile dos blocos de corda. Esse dado é fundamental para o padrão de gestão adotado pelas empresas. Elas utilizavam intermediários para contratação dos “cordeiros”, que por sua vez contatam uma segunda camada de indivíduos interpostos que arregimentam os trabalhadores nos bairros pobres e periféricos, ou mesmo em cidades próximas à capital baiana. Em geral, são trabalhadores desempregados, mulheres, muitas vezes idosos e crianças. Quando a arregimentação prévia não é suficiente, há um estoque de trabalhadores que se aglomera em um campo de barro no início do circuito (ao lado do colégio Odorico Tavares, no Corredor da Vitória), ansiando a convocação de última hora por algum intermediário de bloco. 2 A despeito dos limites, a acepção neoclássica de bem público facilita a visualização do fenômeno. Ver, por exemplo, MUSGRAVE (1980). 3 Mercadoria é a forma que a riqueza socialmente instituída normalmente adquire na nossa sociedade. Trata-se de uma relação social, cuja condição necessária de existência reside num valor de uso socialmente imputado. Em existindo o referido valor de uso (que pode estar aplicado ou não em objeto material) pode se constituir a relação social de propriedade e valor de troca (o fato de o valor de troca na sociedade capitalista subsumir o valor de uso não significa que o primeiro prescinda do último). Sua reprodução, sob a lógica do capital, demanda necessariamente a teleologia do trabalho. A venda do bloco de carnaval como mercadoria detém a mesma natureza, no que concerne à riqueza social e ao capital, de outra mercadoria qualquer. Trata-se de riqueza social (valor de uso) subsumida à lógica mercantil (valor de troca), produzida por trabalhadores assalariados (os “cordeiros”) e apropriada pelos detentores dos meios de produção. Em nada contribui a dicotomia entre bens simbólicos X materiais na discussão sobre o trabalho dos “cordeiros”, a começar pelo fato de que qualquer bem material é também simbólico. 4 Com a generalização dos blocos, muitos dos chamados blocos afros e afoxés entraram no esquema empresarial do bloco de corda. Por isso, não discriminei neste texto o blocos de corda em blocos de trio, afro e afoxés, apesar das especificidades históricas (a discriminação é feita por especialistas e documentos oficiais, inclusive). Assim, a segregação que historicamente esteve vinculada à renda e etnia passou a ser estritamente determinada pela classe social de pertencimento. Com a mercantilização total dos blocos de corda, os negros podem participar dos blocos da burguesia. São poucos, pois poucos têm dinheiro. Destaque-se, contudo, que há blocos menos caros cheios de negros como consumidores. Nesses, são indistinguíveis trabalhadores e consumidores pela cor da pele. 3 O processo de trabalho demanda muita força dos “cordeiros” para formar o supracitado cordão de isolamento (o bloco de corda). Os trabalhadores seguram as cordas por um período de 5 a 7 horas, durante todo o tempo, evidentemente, de pé, e muitas vezes debaixo do sol. Não há sanitário à disposição, nem médico para atendimento em caso de emergência. Eles não são submetidos a qualquer espécie de exame médico antes de iniciarem as atividades. Os trabalhadores não recebem calçados de proteção, nem água gelada (é comum, pelo contrário, o líquido ficar exposto ao sol e literalmente quente), muitas vezes sequer obtêm luvas para proteger as mãos que seguram as cordas durante o circuito, nem vale transporte, filtro solar, protetor auricular. Quase sempre sequer recebem a via de um contrato para formalização mínima da relação. Os “cordeiros” trabalham entre a chamada “pipoca” – indivíduos participantes da festa que não são consumidores do bloco - e os consumidores do bloco. É comum que apanhem de pessoas de ambos os lados, inclusive dos seguranças contratados pelo bloco de corda, uma espécie de categoria de “cordeiros” mais fortes que transita por trás da corda. Eventualmente eles também batem, mas evidentemente que só nos interlocutores do lado de fora5. Apesar do período determinado de existência, a relação entre bloco e “cordeiro” é tipicamente assalariada, já que os trabalhadores, subsumidos ao detentor do monopólio social, produzem riqueza na forma mercantil para apropriação privada (por aquele que os subsume), sendo remunerados por isso (quando conseguem receber). Todavia, os trabalhadores não têm quase nenhum dos seus direitos respeitados, do registro em livro como empregado à obtenção de equipamento de proteção individual. E o Estado, estaria ausente da relação entre blocos e “cordeiros”? Óbvio que não, pois como em qualquer relação de assalariamento, o Estado é condição necessária para sua existência, contribuindo para instituir (ou instituindo diretamente) e garantindo a propriedade privada, no caso, a propriedade privada do trio elétrico e, especialmente, a privatização das vias públicas. Mas, e no que concerne ao direito do trabalho, intervenção subsidiária do Estado no assalariamento? O Estado – através do Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho- vem tentando negociar o cumprimento, pelos blocos de corda, de algumas regras ao longo dos últimos anos, consentindo que as empresas observem apenas determinadas obrigações legais, e se omitindo frente ao desrespeito de itens elementares das normas de proteção ao trabalho, a começar pela assinatura da carteira dos trabalhadores. A fração do capital que compõe os blocos de corda detém forte influência nos diversos meios de comunicação (muitos donos ou sócios de blocos são os próprios artistas), através dos quais busca se legitimar e normalmente retruca qualquer proposta de regulação ou medidas alternativas à ordem que te favorece, com o argumento de que os blocos não se sustentariam e, no limite, que o fim dos blocos de corda inviabilizaria o próprio carnaval6. Segue abaixo reportagem que descreve reação dos blocos de corda à proposta de regulamentação do trabalho dos “cordeiros” feita pela prefeitura: 5 Criou-se inclusive, o senso comum de que os “cordeiros” são violentos. Interessante ressaltar que o carnaval do Rio de Janeiro, famoso pelos desfiles das escolas de samba, tem vivenciado nos últimos anos intenso crescimento do carnaval de rua com participação de milhares de pessoas: sem blocos com cordas. O carnaval de Recife, comparável ao de Salvador em número de participantes e turistas, não possui blocos com de corda e nem por isso faz menos sucesso. 6 4 A situação dos cordeiros é tema central na discussão acalorada que cerca o Estatuto do carnaval de Salvador em 2010. A exigência de uma série de benefícios para a galera que segura a onda entre o bloco e o povo causou revolta nos donos de blocos, que agora ameaçam ir à Justiça para cancelar as exigências e, em ultimo caso, até não colocar os trios na rua. “Vamos ingressar na Justiça para cancelar as regras, pois elas foram divulgadas a 35 dias do carnaval. Nós não fomos consultados e nem temos condições de arcar com os custos para equipar os cordeiros com tantos itens”, ataca o presidente da Associação de Blocos de Trio de carnaval de Salvador (ABT) e do Conselho do carnaval, Fernando Boulhosa (TRIOS PODEM NÃO SAIR, 2010) O estatuto do carnaval previa o fornecimento de calçados e água gelada aos cordeiros, dentre outras exigências. Segundo o referido representante dos blocos, Fernando Bulhosa: “É impossível um carro de apoio conseguir armazenar 3 mil litros de água gelada, fresquinha, para o cordeiro beber. Existem itens que foram formulados sem intenção de prejudicar, mas com falta de conhecimento” (citar reportagem). Curioso notar que o número de consumidores no interior do bloco é bem superior ao número de “cordeiros”, mas os blocos não têm qualquer dificuldade em atender a demanda dos foliões por água gelada, cerveja gelada, energético, uísque com gelo, ensejando o armazenamento de milhares de litros de líquidos gelados. A participação dos blocos na apropriação da riqueza social produzida no carnaval é significativa. A tabela abaixo apresenta a renda obtida pelo setor privado no carnaval baiano em 2007: Indicadores Econômicos do carnaval Baiano 2007 ITEM VALOR Dólares Americanos* Receita Privada 95 milhões Organizações carnavalescas (blocos, afoxés, etc.) 38,5 milhões 33,3 milhões Hotéis Camarotes Transporte Rodoviário Ferry Boat Infra-estrutura (montagem, energia, limpeza, etc.) Comunicação / Publicidade Fonte: Infocultura, 2007 * 1 US Dólar = 1,8 Real Obtido in: MIGUEZ (2008) 9,4 milhões 2,9 milhões 0,9 milhão 8,1 milhões 1,9 milhão De acordo com os dados oficiais (prefeitura de Salvador e governo do estado da Bahia), os blocos são os agentes privados que mais arrecadam no carnaval. Em 2007, teriam sido 207 as entidades carnavalescas a desfilar. Dessas, diversas não eram blocos de corda, a exemplo dos 30 trios independentes, 17 blocos de amigos, afoxés e blocos de sopro 5 que não necessariamente usam cordas. Talvez tenham desfilado efetivamente pouco mais de 100 blocos de corda. Segundo dados do Governo da Bahia, 40,5% de toda a renda apropriada no carnaval de salvador por agente privados em 2007 (69,3 milhões de reais) foi obtida pelos blocos de corda apenas com a venda de abadas. A diária estipulada para o trabalho de um “cordeiro” no mesmo carnaval foi de 18 reais. Não bastasse tamanha solidariedade, os blocos têm lutado nos últimos anos (após autuações efetuadas no início dos anos 2000 por iniciativa de alguns auditores do Ministério do Trabalho) para afastar, através de embates nos tribunais, a própria existência do vínculo empregatício com esses trabalhadores do campo cognitivo dos operadores do direito – conforme pode ser observado nos bancos de jurisprudência, inclusive em âmbito do Tribunal Regional do Trabalho. Seus argumentos, que para um observador desconhecedor do processo produtivo institucionalizado no carnaval baiano podem até oferecer algum indício de plausibilidade, são, na verdade, totalmente anacrônicos. Segundo defendem os Blocos Carnavalescos, a atividade dos cordeiros seria eventual, bem como não estaria inserida na atividade fim dos seus empreendimentos7. A suposta transitoriedade, efemeridade, ou outra característica que aspire configurar a atividade dos cordeiros como eventual à luz do direito do trabalho é difícil de sustentar se considerada a empiria. A empresa do bloco demanda integralmente, ou seja, durante todo seu processo produtivo, enquanto durar (existir) o bloco de corda, a atividade do cordeiro. A produção do empreendimento empresarial chamado bloco de corda existe, de fato, durante uma semana por ano8, do ponto geográfico de concentração dos seus clientes até o final do circuito. Nesse período, os “cordeiros” trabalham do primeiro ao último minuto de existência da empresa, do primeiro ao último minuto de consumo da mercadoria vendida aos clientes pelo empreendimento denominado Bloco Carnavalesco. Assim, o “cordeiro” está em atividade durante toda a existência do processo produtivo da empresa. Conforme já afirmado, o empreendimento só existe por causa dos “cordeiros”, ou mais especificamente, o trabalho dos “cordeiros” constitui (literalmente) o bloco de corda enquanto empresa. Destarte, não é a atividade dos “cordeiros” que é transitória, mas sim a própria empresa denominada Bloco de carnaval. Trata-se, assim, de típica atividade empresarial por prazo determinado (como outras tantas com periodicidades específicas, para as quais a legislação já contempla modalidades próprias de contrato de trabalho). Por isso, é necessário contorcer muito o fenômeno do assalariamento dos “cordeiros” para enquadrá-lo juridicamente como eventual: ele tem precisamente a mesma duração que a própria atividade empresarial, que, por ter natureza temporal determinada, faculta a consecução de contrato de trabalho por prazo determinado. Antes de analisar a relação entre a atividade fim dos blocos de corda e o trabalho dos “cordeiros”, cabe frisar que o judiciário baiano, através do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, já tem manifestação na qual admite a existência de vínculo empregatício entre “cordeiros” e blocos de carnaval – ver acórdão Nº 2167/07, 5ª TURMA (RECURSO ORDINÁRIO Nº 0219.2005.009.05.00.1). Segundo a decisão, os blocos de carnaval: (...) destinam-se a oferecer aos seus clientes a participação em um evento musical, provido de serviço diferenciado que deve, 7 A terceirização no Brasil é regulamentada pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho. De acordo com esse instrumento, as empresas podem contratar serviços especializados de outras empresas para executar tarefas que não integrem a finalidade do seu empreendimento. 8 Ações de publicidade e de venda podem durar o ano todo, mas precisamente para realizar a referida semana. 6 necessariamente, compreender a reserva de um espaço físico seguro, destinado, exclusivamente, aos participantes do bloco, promovendo, para tanto, a contratação de pessoal destinado a assegurar o cumprimento daquela atividade. Não há dúvida de que a contratação dos chamados “cordeiros” para a preservação do mencionado espaço físico destinado aos sócios participantes do bloco, garantindo-lhes passagem mais segura e desimpedida pelo circuito do carnaval, detém a marca da essencialidade do serviço. Tal atividade é um forte atrativo oferecido pela empresa Autora, caracterizando-se como traço distintivo para a execução daquela atividade (grifos meus). A decisão judicial admite que os “cordeiros” são empregados dos blocos de carnaval. Contudo, no que concerne ao fenômeno concreto, a atividade dos cordeiros não detém simplesmente a marca da essencialidade do serviço promovido pelos blocos de corda. Essa é uma afirmação superficial acerca do empreendimento dos blocos carnavalescos, que parte da premissa de que a mercadoria (o serviço) vendida pelos blocos é um evento musical. Como vimos, o trabalho dos “cordeiros” constitui a própria mercadoria transacionada pelos blocos com os seus clientes. O emprego da analogia pode facilitar a apreensão da perspectiva aqui apresentada: a existência de toda empresa está vinculada à venda de uma (ao menos) mercadoria (seja produto ou serviço, na discriminação popularmente consagrada). Se uma montadora de veículos vende carros, uma siderúrgica vende aço: o bloco de carnaval, o que vende? De acordo com as proposições apresentadas, um bloco de carnaval vende um espaço nas vias públicas (que nos dias do evento são privatizadas), dentro do qual os consumidores interagem nas modalidades amplamente notórias. Portanto, o trabalho do “cordeiro” resultado na existência do próprio bloco de corda. O conceito de atividade fim definido pela Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, como qualquer parâmetro legal (regra ou norma social) é ontologicamente político, ou seja, historicamente imposto, não contempla verdade a priori, não existe per si, simplesmente é apresentado a alguma esfera de relações concretas – desconhecer tal assertiva implica necessariamente a fetichização das leis. O fato de já existir jurisprudência que reconhece a natureza da relação empregatícia entre blocos de carnaval e “cordeiros” criou um precedente (parâmetro), desse modo, contribuiria para o Estado exigisse o cumprimento das obrigações trabalhistas pelas empresas. Contudo, as instituições responsáveis pela fiscalização dos blocos de corda, a Superintendência Regional do Trabalho (do Ministério do Trabalho, antiga DRT) e o Ministério Público do Trabalho, têm sistematicamente evitado enfrentar diretamente os interesses dos capitalistas dos blocos de corda e sequer exigem a anotação da careira dos trabalhadores. Ao longo dos anos 2000 tem sido firmados anualmente termos de compromissos entre as instituições e os blocos de corda, que contemplam fornecimento de luvas aos trabalhadores, vale transporte, etc. As empresas descumprem sistematicamente as cláusulas constantes nos acordos, mas não há notícias de sanções correspondentes. Todavia, o mais grave, no que tange ao direito do trabalho, é que as instituições estão legitimando a conduta precarizante e ilegal das empresas, pois esses acordos sequer contemplam os parâmetros mínimos que a relação de emprego impõe aos empregadores: não há exigência da anotação da carteira de trabalho (art. 29, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho), recolhimento de FGTS (Lei nº 8.036), fornecimento de banheiro (art. 157, inciso I, da CLT, c/c NR 24) e água fresca (art. 157, inciso I, da CLT, c/c item 24.7.1.1 da 7 NR-24), realização de exame médico antes das atividades (art. 157, inciso I, da CLT, c/c item 7.4.3.1 da NR-7). Desse modo, radicaliza-se a dificuldade de realizar qualquer iniciativa que tente civilizar a relação de emprego que subsume os “cordeiros”. O Estado, ao não exigir a assinatura das carteiras (art. 29 da CLT) pelos blocos de corda, fragiliza todas as demais (e eventuais) exigências, pois a legislação prevê que só há obrigatoriedade de cumprimento da legislação trabalhista quando há relação de emprego, por conseguinte, empregador (caso em que a carteira de trabalho deve ser necessariamente anotada). Destarte, se o Estado permite que a carteira de trabalho não seja anotada, é porque entende que não há relação de emprego. Só por liberalidade, desse modo, os blocos de trio aparecem como partícipes de qualquer espécie de compromisso. Portanto, os acordos até agora realizados legitimam e incentivam a ilegalidade. Por exemplo, após a pressão empresarial sobre a supracitada proposta da prefeitura, Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho formalizaram mais uma vez em acordo a não exigência do fornecimento de calçados aos “cordeiros” 9. Em suma, o quadro de precariedade do trabalho dos cordeiros não possui qualquer indicativo de melhora. No âmbito dos próprios acordos firmados entre os aparelhos do Estado e as empresas não tem ocorrido avanços relevantes, conforme constatei in loco em nos anos de 2007 e 2009, quando já tinham sido firmados reiterados termos de compromissos. Pior, como o Estado (através do Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho) faz acordos sem exigir assinatura das carteiras de trabalho dos “cordeiros”, tem-se como conseqüência o fato (importantíssimo) de que as empresas se apresentam como voluntárias para assinatura do compromisso, como se não fossem empregadoras, mas simplesmente agentes de boa vontade. Evidentemente, quando o Ministério do Trabalho ou o Ministério Público eventualmente (após os sucessivos fracassos dos acordos, por exemplo) decidir exigir dos blocos de corda as obrigações previstas em lei para qualquer empregador, as empresas utilizarão os próprios acordos como argumento contrário à iniciativa, inclusive recorrendo à justiça, se necessário. O Estado, desde modo, “amarrou as próprias mãos”. Referências: BAHIA. Secretaria da Cultura do Estado da Bahia. INFOCULTURA. Carnaval 2007: Uma festa de meio bilhão de reais. Salvador, 2007. FERREIRA JR, Hamilton; OLIVEIRA, Sérgio; MOTA, Fábio. Indústria cultural e o carnaval da cidade da Bahia de todos os Santos, Salvador. Nota Técnica 15/2008 do projeto de pesquisa: “Arranjos e Sistema produtivos e inovativos locais em áreas intensivas em cultura e mobilizadoras do desenvolvimento social”. Obtido em: www.redesist.ie.ufrj.br MIGUEZ, Paulo. A EMERGÊNCIA DO CARNAVAL AFRO-ELÉTRICO EMPRESARIAL IX Congresso Internacional da BRASA – Brazilian Sudies Association. Tulane University, New Orleans, Louisiana. 27 a 29 de março de 2008. 9 “O polêmico Estatuto das Festas Populares, lançado pelo vice-prefeito Edvaldo Brito no dia 7 de janeiro, perdeu força e não mais obrigará que os blocos de carnaval forneçam calçados fechados aos cordeiros. Em acordo firmado na manhã desta terça-feira (19) entre a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), o Ministério Público do Trabalho, o Centro Regional de Saúde do Trabalhador (Cerest) e os representantes dos blocos, ficou decidido que as entidades devem apenas impedir que os cordeiros descalços ou com sandálias trabalhem” (BLOCOS NÃO SÃO MAIS OBRIGADOS, 2010) 8 MUSGRAVE, R. & MUSGRAVE, P. (1980) Finanças Públicas. Teoria e Prática. Campus/EDUSP, São Paulo. MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Termo de compromisso 2009. Obtido em www.prt5.mpt.gov.br TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO. Obtido em www.trt5.jus.br Trios podem não sair por regras para cordeiros. 10 de Janeiro de 2010. Obtido em: http://www.bahianoticias.com.br/noticias/noticia/2010/01/10/54597,trios-podem-nao-sairpor-regras-para-cordeiros.html. Data do acesso: 15/04/2010 Blocos não são mais obrigados a ceder calçados. 20 de janeiro de 2010. Obtido em: http://www.bahianoticias.com.br/noticias/noticia/2010/01/20/55251,blocos-nao-sao-maisobrigados-a-ceder-calcados.html Data do acesso: 15/04/2010 Trio elétrico terá de usar GPS no carnaval de Salvador. Obtido em 12 de agosto de 2010, em http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2010/01/08/trio-eletrico-tera-de-usar-gpsno-carnaval-de-salvador-915488714.asp PREFEITURA DE SALVADOR. www.portaldocarnaval.ba.gov.br. Relatório de Indicadores 2007. Obtido em: Segurança e medicina do trabalho. Normas Regulamentadoras. São Paulo, Atlas, 2009. 9