CLÍTICO ACUSATIVO DE 3ª PESSOA E OBJETO NULO: UMA
PESQUISA DIACRÔNICA SOBRE A MUDANÇA LINGUÍSTICA
NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Solange Mendes Oliveira - UTP
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Neste estudo, investigam-se as mudanças sintáticas diacrônicas ocorridas na sintaxe
brasileira quanto à posição de objeto direto, como o progressivo abandono do clítico
acusativo de 3ª pessoa (pronomes oblíquos o/a) e o consequente aumento no uso do
objeto nulo (omissão do objeto direto), com o objetivo de verificar se essas mudanças
realmente se deram na segunda metade do século XIX, época em que, presumivelmente,
ocorreram as transformações lingüísticas no português do Brasil. Para isso, além da
pesquisa teórica, analisam-se os dados que compõem o corpus: textos escritos em
jornais do Paraná na segunda metade do século XIX. Trabalha-se com a hipótese de que
o uso do clítico acusativo está condicionado ao traço [+animado,
+específico/referencial] de seu antecedente, enquanto o do objeto nulo, ao traço [animado, +específico/referencial] de seu referente. A pesquisa está assim organizada: A
seção 1 aborda os estudos de Mattos e Silva (2003, 2004), Houaiss (1992), Ilari (2006) e
Naro e Scherre (2007) sobre a formação histórica do português brasileiro (PB). Segundo
os autores, na ocasião do descobrimento do Brasil, viviam no país cerca de 6 milhões de
indígenas que falavam cerca de 340 línguas. Esse multilingüismo seria enriquecido mais
tarde pela presença do elemento africano, trazido à força a partir de 1.549. Para Mattos e
Silva (2004), até 1850, a população branca nunca ultrapassou 30% dos habitantes – isto
indica que os 70% de negros e seus descendentes adquiriram a língua do colonizador
numa situação de transmissão irregular ou de aquisição imperfeita, já que tinham a
língua portuguesa como segunda língua. O modelo da língua-alvo era, ainda, defectivo,
pois o PB culto só começa a definir-se da segunda metade do século XVIII para cá,
quando o Marquês de Pombal, em 1757, define o português como a língua oficial da
colônia e implementa o ensino leigo no Brasil, incentivando o ensino da língua, antes
preterido pelos jesuítas em função da catequese, em favor da língua geral de base
tupinambá, e do latim. Desde o século XVI, a política seguida no Brasil para com os
negros foi matadora de suas línguas, pois aqui chegados, eram separados, de modo que
não ficassem juntos nem por línguas, nem por etnias. Esse processo fez com que o
Brasil, já no início do século XIX, provindo de centenas de línguas, apresentasse a sua
atual fisionomia linguística: uma língua falada comum com diversificações dialetais
horizontais e verticais (Houaiss, 1992). O Brasil Colônia teve poucas escolas e poucos
letrados; na verdade, não havia escolarização no Brasil até o século XVIII. Passado um
século da implantação da política pombalina, já nos finais do Brasil imperial, a situação
da instrução regular no Brasil apresentava os seguintes dados do primeiro
recenseamento geral do Brasil de 1872: em 1872, entre os escravos, o índice de
analfabetos atingia 99,9% e entre a população livre, aproximadamente 80%, subindo
para mais de 86% quando consideradas as mulheres. A população estimada era de
4.600.000 milhões. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários e
calcula-se que chegavam a 8 mil o número de pessoas com educação superior. Um
abismo separava, pois, a elite letrada da grande massa de analfabetos e gente com
educação rudimentar. Esta situação da escolarização ainda persistia um século depois:
nos anos 1990, apenas 10% da população brasileira alcançavam o nível superior
(Houaiss 1992). A língua portuguesa no Brasil, portanto, predominantemente nas suas
variantes populares e vernáculas, deve as suas características, em geral simplificadoras
em relação ao português europeu, tanto no plano sintático como fônico, à forma como
foi aprendida pela massa populacional predominante ao longo do período colonial:
como segunda língua, com modelos defectivos da língua-alvo, na oralidade, sem o
controle normativo da escolarização. Isto ocasionou a reestruturação do português
europeu, que começou a chegar aqui em 1500. O português brasileiro, profundamente
marcado pelas influências indígenas e africanas seguiu, ao longo do tempo, uma deriva
própria; ao mesmo tempo, outra variedade do português, usado em contextos oficiais e
falado por uma pequena parcela da população, continuou alimentando-se de influências
européias. No início do século XX, a estrutura sintática do português do Brasil
apresentava as seguintes mudanças estruturais em relação ao português europeu: a) uso
de ele acusativo: eu vi ele; b) uso do objeto nulo, isto é, omissão do objeto direto
quando ele consistisse num pronome oblíquo átono: eu vi Ø (eu a vi); c) uso de mim em
lugar de eu na função de sujeito: para mim fazer; d) uso do pronome se como reflexivo
universal: eu se lembro; e) uso de ter existencial: tem uma pessoa lá fora; f) ampliação
das perífrases verbais: vou falar em lugar de falarei; g) falta de concordância de número
entre constituintes do sintagma nominal: as pessoa magra; h) falta de concordância de
número entre o verbo e o sujeito: tava lá as pessoa (Naro e Scherre 2007). A seção 2
aborda as pesquisas de Cyrino (1996, 1997), Nunes (1996) e Galves (2001) sobre as
variantes do objeto direto anafórico. Essas pesquisas mostram que a mudança no uso
dos clíticos abrange ainda outro aspecto: sua posição mudou - a próclise passou a ser a
tendência geral. Cyrino (1997) observa que o clítico neutro, usado para substituir uma
oração (“O caso he este; dir-vo-lo-hei”), foi o primeiro a desaparecer do PB. O segundo
a desaparecer foi o clítico o quando retoma um antecedente [+masculino/-animado] e
substituído por uma categoria vazia (“Eu vi Ø”). Por último, é o clítico acusativo de 3ª
pessoa com antecedente [+animado] que cai em desuso e é substituído pelo pronome
tônico ele/ela (“Eu vi ele”). Para Nunes (1996), uma mudança na direção da cliticização
fonológica – da esquerda para a direita, que não permite o licenciamento do onset do
clítico acusativo – começou a se processar em meados do século XIX, ocasionando a
queda progressiva do clítico de 3ª pessoa. A direção da cliticização fonológica do PB
atual permite que outros clíticos, exceto o de 3ª pessoa, possam ocorrer em início de
sentença, generalizando, assim, o uso da próclise (“Me acorde às 7:00 horas”; “*O
acordo às 7:00 horas”). Esse sistema inovador, por sua vez, abriu caminho para duas
novas construções que substituíram a antiga construção com clíticos acusativos de 3ª
pessoa: construções com objeto nulo e construções com pronome tônico na posição de
objeto direto (“Eu devolvi [Ø] para o João”; “Eu devolvi ele para o João”). Já Galves
(2001) atribui o desaparecimento do clítico acusativo de 3ª pessoa e o surgimento do
objeto nulo ao enfraquecimento da flexão verbal no PB atual, pois com uma
concordância fraca, o clítico acusativo, por ser o que mais apresenta traços de
concordância, deixa de ser legitimado. O enfraquecimento da concordância no PB e as
mudanças na posição dos clíticos causaram então uma reorganização lexical no sistema
de pronomes: os pronomes eu/ele/você começam a aparecer em qualquer posição,
inclusive na posição objeto. Explica-se, assim, como é legitimado o pronome tônico
ele/ela em posição objeto. Em suma, com a mudança no posicionamento dos clíticos,
formas alternativas como o objeto nulo e o pronome tônico passaram a substituir o
clítico de 3ª pessoa, provocando, assim, uma diminuição constante no uso deste
pronome. A seção 3 apresenta os objetivos da pesquisa, a metodologia, os critérios para
a seleção dos dados, o levantamento quantitativo quanto ao preenchimento das variáveis
do objeto direto anafórico de 3ª pessoa e os condicionamentos lingüísticos que atuaram
na realização dessas variáveis. Entre os grupos de fatores que podem condicionar a
variáveis, foram considerados: (i) grupos lingüísticos de natureza semântica, como
animacidade do antecedente, especificidade e referencialidade do referente; (ii) grupos
lingüísticos de natureza morfológica, como o uso de tempos verbais simples ou
compostos: [Aux + inf], [Aux + part] ou [Aux + ger]; (iii) grupos lingüísticos de
natureza sintática, como a posição do clítico (próclise ou ênclise). Para a análise dos
dados, seguiu-se a proposta de Kato e Tarallo (1988), que une a Sociolingüística de
Labov (1972) – para a ordenação, quantificação e análise dos dados - à Teoria Gerativa
de Chomsky (1981) – como suporte teórico para a formulação de hipóteses e escolha de
fatores linguísticos condicionadores - resultando na Variação Paramétrica ou
Sociolingüística Paramétrica. O levantamento ainda parcial dos resultados estatísticos
quanto ao preenchimento das variáveis do objeto direto permite tecer as seguintes
considerações: nos jornais escritos no Paraná durante a segunda metade do século XIX,
o clítico acusativo foi a estratégia preferida para a retomada de um objeto direto
anteriormente citado em 74,5% das ocorrências. Quanto à natureza semântica do
antecedente, o traço [+animado] – 87,5% das ocorrências – e o traço
[+específico/referencial] – 90% das ocorrências – mostraram-se relevantes para o
condicionamento do clítico acusativo. A natureza morfológica do verbo também se
mostrou um fator condicionador do clítico acusativo, já que do total de ocorrências,
81,3% estão marcadas pelo tempo composto [Aux + inf]. Já o traço [-específico] do
antecedente mostrou-se relevante para a ocorrência do objeto direto nulo em 53% das
ocorrências. Este resultado comprova a nossa hipótese inicial quanto à opção pelo
clítico acusativo para retomar um antecedente [+animado, +específico/referencial] e
pelo objeto nulo para um antecedente [-animado]. Os resultados, ainda que parciais,
sugerem que as ocorrências da variante objeto nulo são resultado de uma mudança
gramatical em processo, e não apenas de uma simples variação na língua, pois nota-se
um aumento significativo no uso dessa variante no decorrer da segunda metade para o
final do século XIX.
Palavras-chave: clítico acusativo de 3ª pessoa; objeto direto nulo; mudança lingüística.
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