PARECER TÉCNICO-CIENTÍFICO DA LPN AO CALENDÁRIO VENATÓRIO PARA A ÉPOCA DE 2008/2009 No seguimento da publicação da Portaria n.º 345-A/2008, de 30 de Abril, relativa ao calendário venatório para a próxima época, a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) procedeu à apreciação do diploma e dos respectivos anexos. Da análise resultou um conjunto de questões que, dada a sua importância e relevância dos potenciais impactes negativos para a sustentabilidade da caça, importa alertar e solicitar esclarecimentos junto do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas (MADRP). 1. Participação da LPN no processo de análise do calendário venatório para 2008/2009 De acordo com a legislação cinegética em vigor não existe um prazo limite definido para a publicação de um calendário venatório para cada época de caça. No entanto, é possível constatar pelas datas de publicação das portarias de calendário venatório que nos últimos 10 anos os meses predominantes de publicação são Junho e Julho e que pela primeira vez foi publicada uma portaria em Abril. É também um facto inequívoco que uma pronta apresentação das normas de exploração em Portaria permite aos caçadores conhecerem antecipadamente as disposições para a próxima época e as adequarem ao tipo de exploração que praticam. Contudo, esta execução temporal poderia ter sido motivo de júbilo e satisfação por parte da LPN se tivesse sido garantido o processo de consulta a todos os intervenientes do sector cinegético, como sucedeu no ano passado para a época de caça 2007/2008. A LPN sempre se pautou por uma colaboração estreita com o MADRP e os seus serviços nesta temática, por exemplo no Conselho Nacional da Caça e da Conservação da Fauna, quando se realizavam, nalguns Conselhos Cinegéticos Municipais, em que se nomeou um representante da LPN, e colaborado com a Direcção-Geral dos Recurso Florestais, sempre que solicitado. Dado ter existido tempo para S. Exª o MADRP solicitar a participação da LPN neste processo, gostaríamos de conhecer a(s) razão(ões) que justificou(aram) esta conduta de exclusão. 2. Harmonização da abertura e fecho da caça – benéfico para os caçadores? De acordo com um dos parágrafos referido no preâmbulo da Portaria “um menor número de datas de abertura e de fecho da caça às espécies contribui para uma melhor gestão e exploração adequada do património cinegético e conduz a uma maior facilidade de cumprimento das normas por parte dos caçadores”. Numa primeira análise, com esta medida, o Estado estaria aparentemente a beneficiar todos os caçadores simplificando temporalmente a exploração cinegética. Mas a medida é, na realidade, deveras vantajosa para as autoridades de fiscalização, uma vez que facilita em muito os actos de policiamento e fiscalização especialmente no período de abertura da caça em que o número de caçadores é mais elevado. Contudo, se se compreende esta alteração do ponto de vista da fiscalização o mesmo não se pode dizer do ponto de vista da gestão sustentada dos recursos cinegéticos, o que prejudica os interesses a curto-médio prazo dos caçadores. Na realidade esta medida lesa os caçadores porque, para algumas espécies, sobrepõe-se o período de caça com o período de migração pré-nupcial, sendo esta uma etapa crítica do ciclo de vida das aves e aumenta o número de dias de caça, prejudicando seriamente a sustentabilidade dos recursos cinegéticos, como se verificará no ponto seguinte. ............................................................................................................... Estrada do Calhariz de Benfica, nº 187 • 1500-124 Lisboa Tel. +351 217 780 097 217 740 155 - 76 • Fax: +351 217 783 208 E-mail: [email protected] • www.lpn.pt Agencia Nacional do Centro Naturopa do Conselho da Europa Fazendo um paralelismo, uma medida idêntica seria uniformizar os limites de velocidade máximos e mínimos independentemente de se circular em auto-estradas, itinerários complementares, estradas municipais ou dentro das cidades, de modo a facilitar a fiscalização e o “cumprimento das normas por parte dos” condutores. Combate-se o incumprimento das normas com acções de esclarecimento e formação, por exemplo, e não com a cedência de princípios básicos gestão sustentada dos recursos. Com esta medida tabela-se por baixo a comunidade dos caçadores portugueses, possuidores de carta de caçador e cumpridores da Lei, face aqueles que caçam à margem das normas iniciando a sua época de caça mais cedo ou terminando-a mais tarde que os restantes. A LPN considera que devem ser reforçadas as equipas das autoridades de fiscalização, definido o enquadramento legal e o papel dos Guardas Florestais Auxiliares e fomentadas acções de sancionamento sobre os caçadores furtivos que caçam ilegalmente, e não ser baixada a fasquia do cumprimento. Neste sentido, dado que a comunidade de caçadores é constituída por pessoas elucidadas, conhecedoras do campo e da sazonalidade das espécies, o argumento apresentado - “contribuir para uma melhor gestão e exploração adequada do património cinegético e conduz a uma maior facilidade de cumprimento das normas por parte dos caçadores” - carece de demonstração por parte do MADRP. 3. Alargamento do período de caça e aumento dos limites de abate – benéfico para as espécies e/ou para a sustentabilidade cinegética? No que se refere às disposições de exploração das espécies cinegéticas, períodos de caça e limites de abate, em terrenos cinegéticos ordenados e em terrenos cinegéticos não ordenados, importa apresentar as implicações que a harmonização da abertura e fecho da caça e o aumento dos limites diários de abate têm para algumas espécies cinegéticas: Rola (Streptopelia turtur) – permanece o mesmo período de abertura e fecho da época de caça passada, pelo que se mantém a possibilidade de caçar esta espécie durante o mês de Agosto quando neste período uma percentagem significativa de juvenis está ainda dependente dos progenitores. Patos, Galeirão (Fulica atra) e Galinha-de-água (Gallinula chloropus) – antecipou-se a abertura da caça de 2 de Setembro para 15 de Agosto e prolongou-se o fecho de 20 de Janeiro para 25 de Janeiro, aumentando assim o número de dias total de caça a estas espécies em mais 23. Dado ter-se prolongado o período de fecho, no caso do Zarro-negrinha (Aythya fuligula) verifica-se uma sobreposição da caça com o período de migração pré-nupcial que decorre, para estas espécies, a partir de 10 de Janeiro, de acordo com os dados do Comité Ornis. Este facto vai para além da década (que corresponde a 10 dias) de sobreposição acordada a nível europeu entre a Birdlife, a FACE e a Comissão Europeia, no âmbito da Directiva Aves, em mais cinco dias da terceira década. No caso do Pato-real (Anas platyrhynchos), o prolongamento vai afectar a reprodução pois na segunda quinzena de Janeiro estão no ninho mais de 7% das fêmeas desta espécie (Rodrigues et al., 2004). Para os patos, Galeirão e Galinha-de-água a LPN considera que a data de abertura da caça deveria ser adiada para o início da época geral (Outubro) e não antecipada para 15 de Agosto. As razões para tal são: – mais de 50% das fêmeas de Pato-real estão a fazer ou têm de fazer a muda das penas primárias depois de 15 de Agosto, com mais de 30% depois de 1 de Setembro (o calendário venatório de 2008/2009 sacrifica mais 20% das fêmeas do que os das 2 épocas anteriores), e mais de 8% depois de 1 de Outubro (Rodrigues et al., 2004), logo estas estão mais vulneráveis à caça porque não voam ou voam mal, e mesmo depois de voar sem limitações estão mais vulneráveis à caça pois têm baixa condição corporal ............................................................................................................... Estrada do Calhariz de Benfica, nº 187 • 1500-124 Lisboa Tel. +351 217 780 097 217 740 155 - 76 • Fax: +351 217 783 208 E-mail: [email protected] • www.lpn.pt Agencia Nacional do Centro Naturopa do Conselho da Europa e têm de procurar mais alimento que os machos (Owen & Black, 1990), logo expõem-se mais à pressão cinegética e têm menor sobrevivência (Hepp et al., 1986; Rodrigues, 2001); – o caso das Frisadas ainda é mais problemático pois nidificam mais tardiamente que os patos reais (Amat, 1982), logo os valores seriam deslocados para 2 a 4 semanas mais tarde, relativamente ao pato-real. De referir que o Pato-real é uma espécie basicamente residente (Rodrigues et al., 2000), assim como o deverão ser o Galeirão, a Galinha-deágua e a população nacional reprodutora de Frisada (Rufino, 1989); – no início de Outubro a maioria dos patos machos já têm plumagem nupcial, logo são melhores troféus e permitem uma selecção positiva por parte dos caçadores – idealmente devem poupar as fêmeas – permitindo uma exploração cinegética mais sustentada; – nos arrozais, antes da colheita, a taxa de patos não recuperados é muitas vezes superior aos patos recuperados, logo a caça não é sustentável nesse período; – no Verão os agricultores de arroz queixam-se mais do arroz que os caçadores estragam do que o que os patos comem, tanto mais que as perdas por consumo directo pelos patos é insignificante, em termos médios (Rodrigues et al., 2002). Assim, o retorno ao 15 de Agosto como data de abertura da caça às aquáticas terá certamente reflexos negativos nas espécies envolvidas, acentuará os conflitos com os agricultores, e aumentará os efeitos negativos nas espécies protegidas (não cinegéticas) que utilizam as zonas húmidas e arrozais (e.g. Garça-vermelha, Goraz, Garçote, Andorinha-das-chaminés, Andorinha-das-barreiras e Milhafre-negro) – de referir que a maioria estas espécies protegidas migram para África no fim de Agosto. São as razões atrás referidas, e eventualmente outras, que levam a que a caça às aquáticas só comece a partir do fim de Agosto em todos os países da Europa Ocidental, sendo de salientar que em Espanha a caça aos patos só começa em Outubro. Neste sentido, a LPN gostaria de saber como o MADRP justifica o facto de Portugal ser o país que começa mais cedo a caça a estas espécies. Narcejas – o limite diário de abate aumentou de 5 para 10, foi também um retorno ao que se verificava no passado. Salvo melhor opinião, sem que para isso tenha surgido informação técnica ou científica que explique este acréscimo. Tordos e Estorninho-malhado (Sturnnus vulgaris) – o limite diário de abate deste grupo aumentou de 30 para 50, foi também outro regresso ao passado. Embora os dados das populações europeias relativos aos tordos refiram uma estabilidade nas suas populações, a verdade é que tem-se verificado, especialmente no Norte de Portugal, um declínio das populações invernantes de tordos nos últimos cinco anos. Salvo melhor opinião, deve ser reposto para 30 o número máximo de efectivos abatidos por caçador por dia deste grupo. Coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) e Lebre (Lepus granatensis) – constata-se que o fim do período venatório voltou a ser 28 de Dezembro, em vez de dia 16 da época anterior. Novo retorno ao passado. Possibilidade de caçar o Coelho-bravo em Dezembro quando tendo em conta o seu estatuto (Quase ameaçado, de acordo com o Livro Vermelho de Vertebrados de Portugal), e o facto de existirem fêmeas gestantes em Dezembro, o fecho da caça a esta espécie deveria ocorrer no fim de Novembro. Galinhola (Scolopax rusticola) – mantém-se a exploração a esta espécie durante o mês de Fevereiro quando, na realidade, o período de migração pré-nupcial pode iniciar-se em Portugal a partir de 1 de Fevereiro, sobrepondo-se com o período de caça. Assim, a caça à galinhola só deveria ocorrer, no máximo, até ao fim de Janeiro. ............................................................................................................... Estrada do Calhariz de Benfica, nº 187 • 1500-124 Lisboa Tel. +351 217 780 097 217 740 155 - 76 • Fax: +351 217 783 208 E-mail: [email protected] • www.lpn.pt Agencia Nacional do Centro Naturopa do Conselho da Europa Assim, e porque não se compreende como no espaço de uma época venatória as espécies cinegéticas possam ter atingido índices populacionais tão bons que permitiram agora ao MADRP aumentar o número de dias de caça e o efectivo diário de abate, agradecíamos que fosse facultada à LPN a informação que fundamentou esta significativa alteração. Salvo melhor opinião, a LPN considera que a harmonização da abertura e fecho da caça e o aumento do limite diário de abate por caçador, para algumas espécies, lesa os interesses a curtomédio prazo dos caçadores na medida em que põe em risco a gestão sustentada dos recursos cinegéticos e contraria o referido no preâmbulo da portaria - “[...] contribui para uma melhor gestão e exploração adequada do património cinegético [...]”. 4. Conclusões A LPN defende a caça como uma actividade sustentável fundamental para o desenvolvimento rural do século XXI. O duplo incremento da possibilidade de intensificação da exploração dos recursos cinegéticos tanto em termos temporais como de efectivos deverá estar sempre alicerçado em dados inequívocos de crescimento e estabilidade populacionais. Caso contrário, este diploma representa um retorno ao passado promovido pelo actual MADRP, com medidas desadequadas para os caçadores e lesivas para as espécies cinegéticas, com potenciais impactes negativos para as espécies não cinegéticas e que apenas poderá beneficiar, a curto prazo, quem não faz uma gestão cinegética efectiva. Face ao exposto nos pontos anteriores, e porque compete, neste caso, ao MADRP cumprir as tarefas do Estado [especialmente as alíneas a) e c), do Art.º 4.º da Lei n.º 173/99, de 15 de Setembro] e os sete princípios gerais da Política Cinegética Nacional, solicitou-se a S. Exª o MADRP a apresentação das razões que justificaram a conduta de exclusão, dado existir tempo para solicitar a participação da LPN no processo, e a merecida fundamentação técnico-científica que esteve na base da harmonização da abertura e fecho da caça e do aumento do limite diário de abate por caçador. Lisboa, 27 de Maio de 2008 Grupo de Trabalho da Cinegética da LPN Bibliografia: Almeida J. (coord.), Catry P., Encarnação V., Franco C., Granadeiro JP., Lopes RJ., Moreira F., Oliveira P., Onofre N., Pacheco C., Pinto M., Pitta MJ., Ramos J., Silva L. 2006. Aves. 143-428 pp. In: Cabral MJ et al (Eds.) Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Instituto da Conservação da Natureza. Lisboa. Amat, J.A. 1982. The nesting biology of ducks in the Marismas of the Guadalquivir, south western Spain. Wildfowl 33: 94-104 pp. BirdLife International. 2004. Birds in the European Union: a status assessment. Wageningen, The Netherlands: BirdLife. 50 pp. Dados do Comité ORNIS. Hepp, G.R.; Blohm, R.J.; Reynolds, R.E.; Hines, J.E. & Nichols, J.D. 1986. Physiological condition of Autumn-banded mallards and its relationship to hunting vulnerability. J. Wildl. Manage. 50(2): 177-183 pp. Owen, M. & Black, J.M. 1990. Waterfowl Ecology. Blackie, London. 204 pp. Rodrigues, D.J.C. 2001. Ecologia e Ordenamento de Populações de Pato-real (Anas platyrhynchos L.) em zonas húmidas de Portugal. Tese de Doutoramento. Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa. 132 pp. Rodrigues, D.J.C., Fabião, A.M.D., Figueiredo, M.E.M.A. & Tenreiro, P.J.Q. 2000. Migratory status and movements of the Portuguese Mallard (Anas platyrhynchos). Vogelwarte 40: 292-297 pp. Rodrigues, D.J.C., Figueiredo, M.E.M.A. & Fabião, A.M.D. 2002. Mallard Summer Diet in Central Portugal Rice-fields. Game and Wildlife Science 19: 55-62 pp. Rodrigues, D., Figueiredo, M., Fabião, A. & Tenreiro, P. 2004. Será a exploração cinegética de Anatídeos e Ralídeos uma utilização sustentável da diversidade biológica? Implicações no calendário venatório. 70-74 pp. In Actas do IV Congresso Florestal Nacional. SPCF. Rufino, R. 1989. Atlas das Aves que nidificam em Portugal Continental. SNPRCN, Lisboa, 215 pp. ............................................................................................................... Estrada do Calhariz de Benfica, nº 187 • 1500-124 Lisboa Tel. +351 217 780 097 217 740 155 - 76 • Fax: +351 217 783 208 E-mail: [email protected] • www.lpn.pt Agencia Nacional do Centro Naturopa do Conselho da Europa