A prosa telúrica de Euclides Neto Vitor Hugo Martins* a Cid Seixas Telurismo [De telu(i) + -ismo] S.m. 1. Influência do solo de uma região nos costumes, caráter etc, dos habitantes. 2. Med. Suposta produção de doenças por emanações provenientes do solo. (Novo Aurélio – Século XXI, 1999, p. 1939) Mas Os magros não tem nada de pastiche ou imitação simplória. É obra autônoma que testemunha o engajamento da escrita de um homem comprometido com sua terra e, principalmente, com a gente que vive nela. (Cid Seixas, www.uneb.br/seara1/21/09/2007) Há muitíssimo o que comentarmos a respeito da obra de EUCLIDES José Teixeira NETO (1925-2000). Trata-se de mais um escritor, ficcionista, baiano, grapiúna. Como o foram Jorge Amado (1912-2001) e Adonias Filho (1915-1990). Talvez em razão de suas regiões de origem, têm os três, dentre outros, um ponto em comum, sobre o qual gostaríamos de fazer alguns comentários neste breve ensaio. Referimo-nos, é claro, ao telurismo. Os leitores desses ficcionistas sabem muito bem que um temapersonagem é recorrente na ficção deles: o cacau. Ora, cacau, para os homens, vem da natureza para a cultura da terra e depois para a da mente. Assim, Jorge Amado, Adonias Filho e Euclides Neto, com Cacau (1932), Corpo vivo * Professor do Departamento de Letras da UNEB, Campus XXI e do Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento regional da UNEB, Campus V. Poeta, cronista e contista. 1 (1962) e Os magros (1961) – para citarmos apenas três narrativas longas desses autores –, tematizaram e mimetizaram a terra do cacau, o sul da Bahia. Certo, cada um deles o fez seguindo a sua idiossincrasia, à sua maneira, com o seu estilo próprio, o que pressupõe três mundividências distintas. E isso é o que os torna preciosos para os grapiúnas, para os soteropolitanos, para todos os baianos e para todos os brasileiros. Não há dúvida de que um se alimentou do outro, mas sempre digerindo o outro, quer dizer, transformandoo. Em conformidade, pois, com a lição oswaldiana, ontem, e a kristevaniana, hoje. Ideologicamente, partidariamente, até se afinavam, sobretudo o primeiro com o terceiro, pelo menos por um bom tempo. Jorge Amado e Adonias Filho fizeram-se nomes nacionais, internacionais mesmo, como o autor de Terras do sem fim (1942), indicado algumas vezes para o Nobel de Literatura. E suas obras foram traduzidas para diversos idiomas. Enfim, conseguiram o que só poucos conseguem: falando de suas aldeias, universalizaram-se. Há quem prefira Jorge Amado; há quem prefira Adonias Filho. Não se trata aqui de valorar um em relação ao outro, como parece fazer, inexplicavelmente, a Academia (entenda-se Universidade, e não-baiana, e não a Casa de Machado de Assis, já que a esta ambos pertenceram), mas sim de compreender a ética e a estética de cada um deles. Se há mais dissertações e teses sobre o criador de Cajango; por outro lado, há muitíssimos mais leitores para o criador de Gabriela, dentro e fora do País. Revanche do destino, diria esta fina escritura que se chama Roland Barthes (2003). Quanto a Euclides Neto, que é dos três grapiúnas o menos conhecido nacionalmente (e mesmo na Bahia, infelizmente), mas o que nos interessa mais de perto aqui neste ensaio, urge que nós o leiamos. “Nós” significa dizer não só quem é de Ipiaú (o grande cenário de seus textos, por certo), mas 2 também, repetimos, quem é da Bahia, do Brasil e – por que não? – da Humanidade, deste planeta, hoje mais fogo do que água, chamado Terra. Por quê? Porque fala, como no seu supracitado romance, de homens, famélicos, comendo terra. Pior: de crianças, como o Agrípio, comendo terra. Vale dizer, de não-humanos. Como naquele poema de Manuel Bandeira, “Os bichos” (do livro Estrela da vida inteira, de 1966), cuja leitura nos arrepia hoje mais do que ontem. E essa não-humanidade vindo precisamente da desumanidade. O homem lobo do homem, de acordo com a máxima de Thomas Hobbes (1974). Foi contra isto que se bateu, na vida e na arte, o grapiúna Euclides Neto. Por isso, vamos chamar aqui Os magros de romance solidário. Denominação que cabe, porém, a contento também para os demais romances e contos e crônicas deste político-literato (ao contrário de Jorge Amado, literato-político), sublinhemos. Sem dúvida, Euclides Neto foi um homem solidário. Principalmente ao homem da terra, sem-terra. Sua biografia de homem público é admirável. Aí está a Fazenda do Povo, em Ipiaú, aí está a sua atuação como Secretário da Reforma Agrária do Governo de Waldir Pires no estado da Bahia (1981-1983), como provas cabais disso. Sem falarmos em sua atuação como advogado do povo da terra. Não é de se estranhar, assim, que sua ficção também seja solidária à dor do homem da terra. Não bastasse tudo isso, os informantes de que dispomos em Ipiaú e em toda a Bahia atestam o homem público correto que ele foi. O telurismo de Euclides de Neto difere, é certo, do de Jorge Amado e do de Adonias Filho. Em que medida? Na medida em que a maneira dada à matéria não é lírica, “folha prolixa”, como a do romancista de Terras do sem fim; tampouco é trágica, elíptica, como a do romancista de Corpo vivo. Desse modo, poderíamos dizer que Os magros estariam no meio termo. Isso é isto: a ficção euclidiana, empenhadíssima, nem por isso prescinde da linguagem e da 3 montagem literárias em nome da mensagem ideológico-político-partidária. Neste sentido, o telurismo de Euclides Neto lembra, principalmente em Os magros, o de Graciliano Ramos (1898-1953), sua inegável e grande influência. Assim, João tem mesmo muito de Fabiano, como bem observou Hélio Pólvora, na orelha de nossa edição (2a. ed., São Paulo: GBS, 1992). Até nos tiques expressionistas, acrescentaríamos, por meio dos quais os homens ganham aspectos animalescos, zoomorfizam-se (e, em contrapartida, os animais antropomorfizam-se), haja vista para os pares Fabiano e Baleia, de Vidas secas (1938) e João e Sereia, de Os magros. Não vamos, no entanto, nos ater aqui a um estudo comparativo entre estas obras – embora isso seja quase que inevitável e necessário, uma vez que são tantos os pontos de aproximação entre as soluções narrativas e estilísticas do romancista alagoano e as do baiano. Outra influência, também evidente, mas agora concernente à estrutura narrativa, que aproxima Euclides de Graciliano em Os magros é a que diz respeito ao contraponto, ou seja, à alternância dos blocos narrativos, muito embora em Vidas secas eles sejam mais autônomos, à maneira de contos. Lembremo-nos, a propósito, de que “Baleia” foi publicado como um conto, que depois se juntou a outros “contos” para formarem a novela Vidas secas. Assim, tanto num caso quanto noutro, percebemos uma intencionalidade por parte dos ficcionistas, a saber, fazer com que o plano do conteúdo esteja, melhor, seja o plano da expressão. Ou melhor dito: que o significado seja o próprio significante. Ou ainda: que o signo espelhe em si o que represente. Por certo, a iconicidade alcançada por Graciliano é diversa da de Euclides. Naquela o que se iconiza é o inferno da incomunicabilidade; nesta, o da alienação. Portanto, ali uma questão psicológica e filosófica; aqui uma questão sociológica e política. Isso, porém, não quer dizer que em Os magros não haja 4 retratos psicológicos construídos à perfeição, como os do tíbio e espoliado João (e aqui não há como não nos lembrarmos de outro tíbio, o já citado Fabiano) e principalmente os do Dr. Jorge e da esposa deste, fetichistas, cada um deles a seu modo. Os magros, de acordo com a leitura de um atento pesquisador da obra euclidiana, sobretudo pelo viés sócio-político, Elieser César (2003), compõem uma tetralogia, da qual fazem parte, O patrão (1978), Machombongo (1986) e A enxada e a mulher que venceu o próprio destino (1996). Essa série, correlata à do ciclo-do-cacau de Jorge Amado e de Adonias Filho, traz consigo, porém, uma novidade apontada desde logo pelo pesquisador a que nos referimos linhas atrás: o telurismo agora diz mais respeito ao roceiro do que ao fazendeiro. Dito de outra maneira: lemos, na ficção euclidiana, não mais o apogeu do cacau, mas sim sua derrocada e, por extensão, a do latifúndio. Em Os magros, que iniciam a série, vemos o fazendeiro, o Dr. Jorge, e a esposa, Helena, alienados (em qualquer sentido que se dê a essa palavra), mas ainda abastados. Em contrapartida, João, Isabel, a mulher, e prole, coisificados, descambam para a miséria, para a morte. Não há dúvida quanto à preferência do narrador, que tende mais para o agregado do que para o fazendeiro ou representantes deste, mais para o sujeito-presa do que para o(s) sujeito(s)-predador(e)(s). Não gratuitamente o título do romance refere-se antes à magreza de João e sua gente do que à gordura do Dr. Jorge e seu clã. Não gratuitamente o romance inicia-se e termina com o também alienado João, que não malsina quem o malsina, quem faz a sua má sina: “ – Ninguém tem culpa. Quem manda a gente ser pobre?” (Neto, 1992: 71) E aqui não vemos, ao contrário de muitos críticos de Euclides Neto, maniqueísmo, e sim dialética, na medida em que há muita riqueza em João e 5 muita pobreza no Dr. Jorge. Referimo-nos, evidentemente, à alma dessas personagens. Assim, umestánoutro. Como o papel na árvore e a árvore no papel, para nos valermos da feliz observação de Marilena Chauí (2003). Os magros devem ser lidos, sim, e urgentemente, pela juventude ipiauense e também pela Academia baiana. Sabemos o quanto de dificuldade existe para que isso ocorra: primeiro, porque o livro, este objeto precioso, tende a desaparecer (aliás, como já se previu ficcionalmente, e admiravelmente, num dos episódios do seriado televisivo O planeta dos macacos, há quase quarenta anos), é tudo uma questão de tempo; segundo, porque o texto de Euclides Neto vai de encontro à prosa de ficção pósmodernista, uma vez que esta se volta antes para o de-fora do que para o dedentro. Assim, Euclides Neto insiste em falar da história de Ipiaú, rememorando-a, melhor, recordando-a. Por isso, o esforço que vem fazendo a Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, ao reeditar, por sua editora, a Editus, a obra euclidiana, merece ser louvado por todos nós. Enfim, lendo Os magros, resgatamos a cultura da terra, a nossa identidade telúrica e, dessa forma, desalienamo-nos. Não podemos, não devemos permitir que o “vício” de Agrípio exista ainda hoje. Quem o produz comete um crime de lesa-humanidade. Referências AMADO, Jorge. Cacau. 54a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. _____________. Terras do sem fim. 72a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. 6 BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. CÉSAR, Elieser. O romance dos excluídos. Ilhéus: Editus, 2003. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13ª ed. São Paulo: Ática, 2003. DIAS, Heloisa Martins. A estética expressionista. São Paulo: Íbis, 1999. DORON, Roland & PAROT, Françoise. Dicionário de psicologia. Trad. de Odilon Soares Leite. São Paulo: Ática, 2002. ÉLIS, Bernardo. Ermos e gerais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. FILHO, Adonias. Corpo vivo. 30a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. de João Paulo Gomes Monteiro & Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril (Coleção Pensadores), 1974. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo Aurélio – Século XXI – Dicionário da língua portuguesa. 3a. ed. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 1999. JAPIASSU, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. MEDAUR, Jorge. “Euclides Neto: o mais próximo de Machado de Assis”, in Introdução à edição de O tempo é chegado, de Euclides Neto. Ilhéus: Editus, 2001 NETO, Euclides. Os magros. 2a.ed. São Paulo: GSB, 1992. _____________. A enxada e a mulher que venceu o próprio destino. São Paulo: Littera, 1996. _____________. Dicionareco das roças de cacau e arredores. Ilhéus: Editus, 1997. ______________. Machombongo. Itabuna: Cacau Letras, 1986. ______________. O tempo é chegado. Ilhéus: Editus, 2001. ______________. 64: um prefeito, a revolução e os jumentos. a fábula do presidenciável Salém. Salvador: Fator, 1983. 7 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 94a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. SEIXAS, Cid. “Dois momentos da obra de Euclides Neto”. www.uneb.br/seara1/acesso 21/09/2006. 8