Texto: Paulo Fernando Góes EDIFÍCIO ROLIDEI - ESPETÁCULO TEATRAL Comédia para 4 atores (2 Homens e 2 Mulheres) PERSONAGENS NALVA Trinta e tantos anos, suburbana mas de alma requintada, Nalva mora sozinha de aluguel em um muquifo do edifício Rolidei. É bem-humorada, otimista, sonhadora e carente. Fala rápido, faz 10 coisas ao mesmo tempo e dorme com tarja preta. Aumentou a dose depois que seu noivo a trocou por uma mulher vinte anos mais velha. Venceu um concurso de Miss onde competia com sua vizinha, Vera. VERA Trinta e poucos anos, se acha chique mas é bem cafona. Exagera na maquiagem e está sempre com a roupa equivocada (como o vestidinho rosa choque que usou no enterro do sogro). Vera adora chamar atenção e combina roupas de zebra e onça com sua mobília. Ela parece ser a que tem melhor situação financeira no prédio mas, na verdade, é quem mais deve. Nunca aceitou ter perdido a coroa de Miss para Nalva, sua ex-melhor amiga. Depois desse baque, entrou para uma igreja evangélica radical onde tudo é proibido, o que não combina com sua personalidade tresloucada. É uma mulher forte, manipuladora e persuasiva. Veio do Recife para casar-se com Edmar, o marido em quem ela manda e desmanda. EDMAR Casado com Vera, é do tipo malandro e vagabundo, vive dos biscates que faz. Apesar de se achar espertalhão, Edmar é um bobo, facilmente enganado por qualquer um. Tira onde de machão mas chora fácil e morre de medo de quem faz macumba. Ele é apaixonado por Vera e é capaz de qualquer coisa para não perder a esposa. ABÍLIO Síndico do edifício, mora com sua esposa, Lucimar. Ele está sempre bem arrumado e fala como os políticos. Neurótico, ele tem mania de doença, é alérgico a tudo e ainda tem vários TOC's. Gosta que tudo esteja sempre certinho mas é corrupto com a administração do condomínio. Tem obsessão pela falecida mãe e cuida do jarro de barro que ela lhe deu como se fosse a própria. É o amante de Vera. LUCIMAR (Off ou Contrarregra) Obesa, não consegue passar pela porta de casa há anos. A última vez que tentou, ficou entalada por horas, chamaram a imprensa sensacionalista, foi um horror. O trauma a impede de tentar sair de novo. Só aparece de relance pela porta ou em Off. Esposa de Abílio, faz da vida dele um inferno. CENÁRIO Dois apartamentos, tipicamente suburbanos, separados por um hall. Neste hall, há uma porta que dá para as escadas e outra para o elevador. SINOPSE Nalva acaba de perder o namorado pra uma mulher vinte anos mais velha e está desiludida da vida. Ela mora no famoso Edifício Rolidei, um pardieiro caindo aos pedaços que, não se sabe como, ainda está de pé. Sua vizinha, Vera, é uma evangélica recém-convertida, casada com Edmar, um pintinho que se acha galo-alfa. Vera nunca aceitou o fato de ter perdido para Nalva o título de Miss e, por isso, as duas vivem em pé de guerra. Sem trabalho e sem marido, Nalva decide fazer uma simpatia para seu dinheiro render e coloca suas economias junto com fermento em um jarro de barro que foi pego emprestado do hall. Mas o jarro era do síndico, Abílio, o único presente que sua mãe lhe dera em vida. Quando vai cobrar os doze meses atrasados de condomínio para Vera e Edmar, Abílio sente falta do jarro, reclama por ele e Nalva recoloca-o no lugar, sem tirar o dinheiro que colocou dentro para que a simpatia não tenha efeito contrário. Edmar, por sua vez, ganha mil reais no jogo do bicho e não conta para ninguém. Ao voltar para casa com o prêmio, sua esposa - que já descobriu tudo - vai abrir a porta reclamando pelo dinheiro e, sem saber o que fazer, Edmar escondeo no jarro de barro. Nalva encontra o dinheiro e acredita que sua simpatia deu certo. A partir daí, uma sucessão de confusões e mal-entendidos acontecem em um engenhoso abrir e fechar de portas que fazem desta, uma divertidíssima comédia. SOBRE ESTE AUTOR QUE VOS ESCREVE Acredito na conciliação do artístico com o comercial. Escrevi este texto pensando em agradar desde o público da Internet às idosas que vão em grupos de vã ao Teatro. O humor é atual, os diálogos são dinâmicos mas a história tem uma inocência que agrada aos mais conservadores. SOBRE A DIREÇÃO O Rio de Janeiro ainda não descobriu o maior diretor de comédia do Brasil: MÁRCIO WILDHAGEN. Um gênio vivo, uma assumidade no ramo. Ele fez a façanha de escrever e dirigir um monólogo musical de duas horas e meia sem intervalo onde a plateia não se cansa e não pára de rir. Falo de "Sarjeta - Meu Mundo Caiu", com Gustavo Mendes. Com este diretor, temos 75% de chance de sucesso do projeto. SOBRE O ELENCO É imprescindível que sejam atores com excelente timing de comédia. EXIGÊNCIA Apenas uma: não falar nenhum palavrão, nem de improviso. Este texto é uma prova de que se pode ser hilário sem apelações, portanto, palavrões fazem-se desnecessários. PRÓLOGO Abrem-se as cortinas ao som da música 'Sorria, Sorria', de Evaldo Braga. No palco, o hall do edifício Holliday e dois apartamentos: o de Nalva e o de Vera e Edmar. Há também uma porta de acesso às escadas, outra do elevador e, por último, a porta da casa de Abílio, o síndico. No hall, um pedestal vazio. Nalva está em casa, rindo e chorando ao mesmo tempo. NALVA Cretino! Cachorro! Canalha! Onde já se viu, me largar por uma mulher 20 anos mais... (Chora) Mais velha! Vou fazer uma faxina porque, como diz a minha vó, a vassoura é um santo remédio! Vem cá, Cileide! Por falar em santo remédio, cadê meu Rivo? Toma o Rivotril com um whisky vagabundo. NALVA Boi, boi, boi... Boi da tarja preta... Ui, já tá batendo. (Varre.) Bora, Cileide, é isso aí, animação! Bom dia, comunidade! Vera, evangélica recém-convertida e vizinha de Nalva, coloca a música 'Não Nego a Jesus', de Cassiane. OFF CASSIANE Não nego a Jesus! Não nego a Jesus... NALVA Ih, a crente de sangue quente acordou. Edmar surge. EDMAR Vera! Dá um tempo! A essa hora? VERA Com Deus me deito, com Deus me levanto. EDMAR (abaixando o som) Abaixa, pelo menos! VERA O edifício Holliday inteirinho carece de ouvir a palavra de Deus. Só mora pecador nesse pombal. EDMAR Meu beijinho de bom dia. Dormiu bem? VERA Que nada, muito pesadelo. Sonhei que eu tava presa numa jaula com o Alexandre Frota. Ele tava vestido como veio ao mundo, aí ele se aproximava com uma coisa envergada na mão que meus olhos puros não identificaram o que era... Só quando ele se aproximou que eu vi que era uma banana! E ele não tava nu, tava vestido de macaco! EDMAR Vou jogar macaco no bicho! Abílio surge no hall com um vaso de violetas em mãos. Feliz, ele cheira a violeta, espirra e toma um remédio que tira do bolso. Lucimar, esposa de Abílio, grita. LUCIMAR Abíliooooooo!!! CENA 1 Nalva limpa a casa e ouve no rádio. OFF Você, minha cara ouvinte, que esta aí sozinha, na fossa... NALVA Eu! OFF Você que foi abandonada... NALVA Trocada por uma velha! OFF Levanta esse astral! Embarque no cruzeiro das solteiras! Grita comigo: 'Sou solteira!' NALVA Sou solteira! OFF Mas não por muito tempo! O amor da sua vida vai estar neste cruzeiro para Santos! NALVA Preciso ir! Mas com que grana? OFF E não se preocupe com o pagamento! Se você ligar nas próximas 24 horas, você paga somente mil reais pelo Cruzeiro! Você não vai perder a chance de conhecer o amor da sua vida, vai? NALVA Claro que não! Ai, eu tenho 24 horas pra arrumar mil reais! Cruzeiro das solteiras, me aguarde! Nalva coloca 'Dandalunda', de Margareth Menezes. Vera surge no apartamento ao lado, enfurecida. OFF VERA Bem pertinho da entrada do gueto, num terreiro de angola Iketu, Mãe Maiamba que comanda o centro, dona Oxum dançando Oxossi no templo... Tá amarrado, em nome de Jesus! Isso é música de Deus? Essas músicas de Carnaval só falam de macumba! Será que... Será que ela é macumbeira? Vera sai. Abílio bate na porta de Nalva com um aparelho em mãos. ABÍLIO Dona Nalva! Dona Nalva! NALVA Ai, caramba, o síndico! Nalva desliga o som e abre a porta em trajes mínimos. NALVA Oi, seu Abílio! ABÍLIO Dona Nalva, a regra 954 do estatuto do condomínio diz que o barulho não pode exceder 200 decibéis. Meu aferidor acusou 384 decibéis, dona Nalva, quase um trio elétrico! NALVA Desculpaê, eu tava deprê e resolvi fazer uma faxina em clima de micareta. ABÍLIO (malicioso) Abadá, ainda tem? LUCIMAR Abílioooooooooo!!! NALVA Ih, sua mulher! ABÍLIO Tenho que ir! NALVA Tchau! ABÍLIO Jesus Christ! Fuck! Essa pequena... Abílio sai de cena. Vera reaparece em sua casa. CENA 2 VERA Parou. Agora sou eu que vou botar Gal Costa pra ela ver o que é música boa. Coloca 'Pegando Fogo', de Gal Costa e canta junto, bem alto. VERA Meu coração amanheceu pegando fogo... Fogo! FOGO! No último 'Fogo', Vera abre sua porta e canta na direção da porta de Nalva, para provocá-la. NALVA Fogo? Meu Deus, fogo! Fogo! Vera fecha de novo sua porta. Nalva corre pro hall com o balde de água da sua faxina e dispara o alarme de incêndio. VERA Socorro! Edmar, corre! É fogo! Socorro! Edmar aparece usando uma cueca samba-canção infantil e com um extintor de incêndio em mãos. EDMAR Fogo! Onde, cadê? Vera, Edmar e Nalva já estão no hall. VERA Cadê o fogo? NALVA Eu é que te pergunto! Disparei o alarme porque tu tava gritando fogo! VERA (desliga o alarme) Eu tava cantando! EDMAR Então, não tem fogo nenhum? NALVA Pergunta pra sua esposa. VERA Tem o fogo de Satanás que é onde vão queimar todos que não levam Jesus no coração! EDMAR Amor, não começa... VERA Me deixe, Edmar. Meu problema com essa daí é antigo. NALVA Não tenho problema nenhum com você, meu amor. Não tenho culpa se você ainda não aceitou que perdeu o título de Miss Zona Leste pra mim. VERA Aquilo foi armação! Aquele prêmio era meu. EDMAR Um carro usado, velho, caindo aos pedaços... NALVA Não fala assim da minha caranga! VERA Mas ia servir, já que meu marido nunca me deu nem um patinete pra eu fazer minhas entregas de salgado pras madames. NALVA Salgado? Seu risole de camarão não tem UM camarão dentro, é só água de cabeça! EDMAR Mas até que é gostosinho... VERA Deixe estar, Edmar, meus salgados já mataram a fome dessaí muitas vezes! Por isso que ela tá gorda! NALVA Tu quer que eu desça pro teu nível mas eu não vou descer! Dá licença que eu tenho mais o que fazer. VERA Espere! Quando tu vai pagar o aluguel atrasado? EDMAR Venceu ontem, amor, dá um refresco pra ela. VERA E eu lá tenho cara de lanchonete pra dar refresco? NALVA Me apertei mas assim que der eu pago. Pode cobrar a multa. Agora, com licença. VERA Tu tá vexada pra ir porque tá com inveja de mim, né? NALVA Inveja? Eu? Tá boa! VERA Tu tem a faixa e a coroa de Miss Zona Leste mas não tem um homenzarrão gostoso desse kilate... NALVA Ah, ele late, é? EDMAR Peraí, pô... VERA Tu respeite meu marido, sua ladrona de coroa! EDMAR Não pirraça, amor, vamos pra casa. NALVA Tu que é uma desmiolada! VERA E tu, uma despirocada! Antes sem miolo do que sem... EDMAR Amor! Vamos embora. VERA Simbora, Mamá. Vamo fazer amor e gritar nossa felicidade! EDMAR Aleluia! VERA E os incomodados que se matem! NALVA Queridinha, o único barulho que escuto daí é do ronco do seu marido! EDMAR Quem ronca é ela... VERA Quieto, Edmar! NALVA E viva a minha vida de solteira... VERA Tu não é solteira, tu é largada que eu sei! NALVA Do quê que tu tá falando? VERA Fala pra ela o que tu me contou, Edmar! EDMAR Eu? Ah... Lá na sinuca o pessoal tava comentando que seu caso lhe trocou por uma mulher vinte anos mais velha... NALVA Largou porque ela tinha dinheiro! Já foi tarde, aquele interesseiro. VERA Que feio, Nalva, perder pra uma coroa! NALVA Por falar em coroa, vou lá dentro polir a minha de Miss Madureira! Sou rainha, meu amor! VERA NALVA Essa coroa é minha por direito! (doce) Tá bom, Verinha. Te dou a coroa. Igual a de Jesus Cristo! Quer? VERA Lave sua boca, mulher medonha! NALVA Horrorosa é você! Com esse cabelo e esses dentes de caveira, parece a morte! VERA Pois venha cá que tu vai conhecer a morte, venha! Vera voa para cima de Nalva e Edmar se coloca no meio. EDMAR Olha o barraco, minha gente! Vamos manter o nível, pô! VERA Sua desfrutável! Malévola! NALVA Sonsa! Mocréia! EDMAR Pára com isso, pára, pára! (Elas param pra ouvir o sermão de Edmar). Vocês sempre foram tão amigas, como é que chegaram a esse ponto? Tudo por causa de uma coroa! NALVA E uma faixa, linda e maravilhosa. VERA (retomando a pancadaria) A miss tinha que ser eu! NALVA Tu não tem classe pra isso! Nem sabe dar aquele adeus, sabe? EDMAR (segurando Vera) Pára, Veroca, pára! VERA Me deixe, Edmar, em nome de Jesus, me deixe! Vá lavar a louça, vá! NALVA É, vaza, linguarudo, vai lavar a louça! VERA Quem manda no meu marido sou eu! Vai lavar a louça, Edmar! NALVA Gato que aparta briga é o que mais sai arranhado! EDMAR Tem razão. Eu vou me embora. VERA Vai dar razão pra ela, Edmar? EDMAR Tchau! Edmar entra em sua casa e bate a porta. Vera olha feio pra Nalva que responde, debochada, com um par de chifres e uma careta demoníaca. VERA Desconjuro! Vera entra em casa e, logo em seguida, Nalva vai para a sua. CENA 3 Cenas paralelas acontecendo nos apartamentos. NALVA Ai, preciso urgente de dinheiro! Ninguém merece morar nesse muquifo de prédio. VERA O edifício Holliday tá um cortiço, um pulgueiro! Aqui não é lugar pra uma mulher de Deus como eu. EDMAR Mas tu acabou de se converter, meu amor... Seu problema não é o prédio, é a Nalva! Poxa, era tão bonito ver a amizade de vocês, viviam grudadas! VERA Eu não sei quando foi que esse bolo desandou... NALVA Depois que eu ganhei a coroa de Miss Madureira, a Vera pirou de vez. Até pra igreja entrou! Justo ela, que sempre viveu no pecado. EDMAR Esquece esse negócio de miss, ano que vem você tenta! VERA NALVA E receber a coroa das mãos dela? Deus me livre, é muita humilhação! Esse Satanás de saia sempre quis tudo o que era meu! Se eu alisasse o cabelo, ela alisava também... Sempre achei tão bonito o cabelo liso da Vera... VERA Qualquer moda que eu lançava, ela me copiava! NALVA Ela sempre teve bom gosto pra se vestir. VERA O pior é que ela sempre foi mais encorpada que eu. Posso malhar o que for que eu não consigo o corpo dela! NALVA Ela sempre foi tão magra... Posso passar fome que eu não consigo o corpo dela! VERA E NALVA Vaca! VERA Vou resolver isso agora. Hoje eu sou uma mulher de Deus mas sim, eu tenho um passado. (Pega um livro de Simpatia). Aqui, Simpatia Para Tudo e Para Todos! NALVA Meu São Jorge, tenho um pedido a lhe fazer. Nalva vai acender uma vela para São Jorge. EDMAR (pegando o livro das mãos de Vera) Como que eu nunca soube disso, Vera?! Isso aqui é bruxaria? VERA Claro que não! É um livro poderoso de Simpatias, minha vó que me deu. Tem de tudo. (Folheia o livro). Simpatia pra conseguir dinheiro... NALVA Eu queria tanto ganhar um dinheirinho... VERA Simpatia pra arrumar marido... NALVA Queria tanto um marido também. EDMAR (Pega o livro das mãos de Vera) Cadê. Olha, simpatia pra amarrar o marido! (Lendo) Dê ao seu marido um chá de calcinhas usadas com gengibre, alecrim e mel... Vera! E você dizendo que o chá era pra minha garganta! VERA Naquela época tu tava muito saidinho! EDMAR Simpatia pra curar cecê, pra evitar fofoca... Ah! É por isso que aquela dentadura tava no congelador! VERA Sim, senhor! NALVA Queria tanto ir nesse cruzeiro, São Jorge... Me dá uma força, vai. Preciso desse dinheiro. EDMAR (folheando o livro) Simpatia pra arrumar marido rico, pra arrumar marido inteligente, pra arrumar marido dotado... Vera! Agora você é uma mulher de Deus e não pode mais ler essas coisas! Vou jogar isso fora! NALVA Manda um sinal qualquer, São Jorge. VERA O livro de vovó, não! Edmar abre a porta e joga fora o livro, que bate na porta de Nalva. NALVA Já vai! Vera quer ir atrás do livro mas Edmar a embarreira. EDMAR Ou o livro ou eu! VERA Tá, Edmar! Você. EDMAR Ótimo! Vamos lá pra dentro, amor. Vamos fazer o Ypsilone Invertido Underline. Edmar e Vera saem. Nalva abre a porta e vê o livro. NALVA O que é isso? Simpatia para tudo e para todos. Gente! São Jorge, tu é o cara! Valeu! CENA 4 Nalva entra em casa e folheia o livro rapidamente. NALVA Nunca acreditei nesses troços, mas... São Jorge sabe das coisas. Aqui, como fazer render o seu dinheiro. (Lendo) Coloque suas economias num jarro de barro com fermento dizendo: assim como esse fermento faz crescer o pão, também fará crescer o meu dinheiro! Ora, se eu tivesse economia não estaria me prestando a esse papel ridículo! E jarro de barro? Ô povo que complica, não podia ser uma tupperware? (Continua lendo) Siga as orientações ao pé da letra para que a simpatia não tenha efeito contrário. Tá vendo? Onde que eu vou arrumar um jarro de barro agora? Nalva sai de cena. Abílio entra esbaforido no hall, abraçado a um jarro de barro. LUCIMAR Abíliooo! Some daqui com esse jarro! ABÍLIO Lucimar, você está sendo injusta com a mamãe! Ela fez esse jarro cega, na véspera de morrer, não posso jogar fora. Além do valor sentimental, é uma obra de arte! LUCIMAR Então vende pra um museu que eles cuidam bem! Não quero fantasma da tua mãe aqui! ABÍLIO (para o jarro) Perdoe Lucimar, mamãe, ela não é má remédios da tireóide que deixam ela descompensada. Vou deixar a senhora que volto pra te buscar, tá, mamãe? pessoa, são os assim, aqui mas juro Te amo. Abílio beija o jarro, coloca-o no pedestal e volta pra sua casa. Quase ao mesmo tempo, Nalva sai de casa e vê o jarro no hall. NALVA Jesus, Maria, José! São Jorge, Oxum, Ogum! Alah! Buda! Quem colocou esse jarro de barro aí pra mim? Nunca teve jarro aí! Não sei quem foi, mas... Obrigada! Nalva pega o jarro e entra em casa. NALVA Cadê o livro... Aqui. Cem reais é tudo que tenho, das unhas que fiz essa semana. Fermento... Agora, as palavras mágicas. (Lê algo estranho no livro). Ih, peraí. PS. Para a simpatia ter efeito, as palavras devem ser ditas por uma pessoa estranha e do sexo oposto. Acendem-se as luzes da plateia. Nalva os encara e escolhe um espectador. NALVA Oooooooi! Por favor, não se ofenda com a minha pergunta: você é do sexo oposto, não é? Sei lá! Hoje em dia... Não custa perguntar. Outra perguntinha básica que eu sou meio sequelada: a gente não se conhece, não, né? (Resposta esperada: Não). Você acaba de perder a chance de escapar dessa, querido. Pensou que só o pessoal da primeira fila era pego pra número de plateia, não é? Não! (Ela desce). Vou colocar meus cem reais no jarro e enquanto eu jogo o fermento, você fala: assim como esse fermento faz crescer o pão, também fará crescer o meu dinheiro! Vai. (Ele repete a frase e Nalva o corrige). Não! Meu dinheiro, não, você tem que falar dela! (Ele repete: Assim como esse fermento faz crescer o pão, também fará crescer o dinheiro dela!). Obrigada! (Volta ao palco e entra na sua casa com o jarro). Pronto, agora é só esperar. De repente, a herança de algum tio milionário desconhecido, sei lá. CENA 5 Nalva entra em sua casa e deixa o jarro na sala. Ela sai de cena. Entram Vera e Edmar. VERA Fez nossa fezinha essa semana, Edmar? EDMAR Crente não pode se envolver com jogo! VERA Nunca! Jamais! Só pecador faz isso. Como tu é pecador, pode jogar pra gente. EDMAR Joguei no bicho. Macaco. Segui o palpite do teu sonho com o Alexandre Frota. VERA Devia ter jogado veado! Desde quando sonho dá resultado de jogo do bicho? EDMAR (manhoso) Por falar em bicho... Vamo lá no quarto tentar fazer a ariranha bailarina? VERA Só se tu fizer aquilo que eu lhe pedi. EDMAR Amor, eu não gosto de bater, você sabe... VERA Não quero ser espancada, Edmar, eu sou contra violência. São tapas de amor! EDMAR Mas benzinho... Vera esbofeteia Edmar. VERA EDMAR Isso foi um tapa de amor! Viu como é diferente? VERA Doeu igual. Sua vez. EDMAR Amor, eu te respeito... VERA Respeite sua mãe! EDMAR Cadê Deus nessa hora, Ele deixa isso? VERA Deus tá cuidando de coisa mais importante! Tu acha que ele fica assistindo a intimidade dos casais, é? Fica não! O próprio Deus diz que a gente aprende pelo amor ou pela dor! Edmar dá um tapa na bunda de Vera. EDMAR Vamo que hoje você vai ter! VERA Ui, Edmar... Isso não é um carinho, é um 'eu te amo'! Saem de cena. CENA 6 Luz no relógio que indica passagem de tempo. Música 'Je T'Aime Moi Nos Plus'. Nalva dança com sua vassoura. Abílio entra em cena com sua violeta e logo dá falta do jarro. ABÍLIO Mamãe! Cadê você, mamãe!? Sequestraram minha mãe! Abílio toca desesperado na casa de Nalva. NALVA O que foi, seu Abílio?! Tá passando mal? ABÍLIO Dona Nalva, a senhora viu mamãe por aí? Ela estava aqui no corredor! NALVA A dona Zuleica já morreu faz tempo, seu Abílio! Deu pra ver espírito agora? Era só o que faltava, fantasma no edifício Holliday! ABÍLIO Mamãe estava aqui ainda agora! NALVA Ai, pára! Morro de medo dessas coisas! ABÍLIO (inalando uma bomba para asmáticos) Tô passando mal. Preciso de ar! NALVA Ai, meu Deus! Entra, seu Abílio, vou te dar um copo d'água com açúcar. Abílio entra e Nalva observa o hall, amedrontada. Quando ela entra em casa, Abílio vê o jarro atrás dela. ABÍLIO (apontando na direção de Nalva) Mamãe! Ela está aqui! NALVA (vira-se) Aaaaah! Onde? ABÍLIO Ali! NALVA Onde? ABÍLIO Na sua frente! NALVA (fecha os olhos) Eu não quero ver! Vai embora, dona Zuleica, siga pra luz! Ela já foi, Abílio? Vou me mijar! Quando Nalva abre o olho, vê Abílio abraçado com o jarro. ABÍLIO Mamãe, mamãe... NALVA Deixa esse jarro aí, seu Abílio! Ele é horroroso mas tá me sendo útil. ABÍLIO Foi mamãe que me deu. Ela fez pra mim na véspera de morrer. Cega! O único presente que ela me deu em vida. NALVA Ah, a mamãe é o jarro? Faça-me o favor, seu Abílio, um homem do teu tamanho! ABÍLIO Pra quê você pegou a mamãe do hall? NALVA Pra... Pra regar minhas plantas! Ganhei umas ervas pra emagrecer... ABÍLIO Ervas? Algo proibido? NALVA Não! São umas ervas pra secar barriga. E a sabedoria popular diz que se regar plantas com jarro de barro, elas nascem mais vistosas! ABÍLIO Pois mamãe vai ficar no hall! O jarro agora é patrimônio do condomínio! NALVA Sim, senhor! LUCIMAR Abíliooooo!!! ABÍLIO Tenho que ir. Até mais ver, dona Nalva! Bye bye! NALVA Tchau! Abílio recoloca o jarro no pedestal e vai pra sua casa. NALVA Ferrou! Se eu tirar o dinheiro dali, minha simpatia pode ter o efeito contrário! Ah, ninguém sabe de nada mesmo, vou deixar a grana ali e seja o que Deus quiser! CENA 7 Nalva sai de cena. Edmar reaparece de pijama e interfona para a portaria. EDMAR Fala, Zé! Chegou correspondência? Conta pode deixar aí. Escuta, tu sabe qual foi o resultado do bicho? Macaco?! Opa! Ganhei 1.000 reais! Hã? Pô, adoraria te emprestar mas não posso... Ué, se teu gás acabou, compra um microondas! Abusado! Edmar desliga. Vera surge. VERA Quem é, Edmar, que macaquice é essa? EDMAR Nada, amor. Vou ali comprar um cigarro e já volto! VERA Não demore! Vera sai de cena. CENA 8 Edmar sai e, enquanto espera o elevador, Abílio o surpreende. ABÍLIO Seu Edmar! Se me permite, eu gostaria de tratar de uns pormenores para com a sua pessoa. EDMAR Pois não. ABÍLIO (Desenrolando um papel enorme) Como o senhor deve ter acompanhado pela ata da última reunião, nunca antes na história deste condomínio, houve uma administração tão eficiente como a minha. Pintei a fachada que estava imunda, recoloquei as letras de Holliday que estavam caídas... EDMAR Eu vi. Só que holliday começa com H e termina com AY. ABÍLIO Não começa com R e termina com EI? EDMAR Não. ABÍLIO Tanto melhor. Abrasileiramos a coisa. I don't like americanices. EDMAR Agora, se me dá licença, tenho que... ABÍLIO Ainda não, seu Edmar! Tenho que falar sobre... EDMAR ...sobre o condomínio que tá atrasado, né? ABÍLIO São 12 meses, seu Edmar! Os outros moradores estão me acusando de ser tolerante com o senhor. A Mirtes do 417 chegou a questionar se estamos de caso. Veja a que ponto chegou sua dívida! EDMAR Qual é, seu Abílio, tá me estranhando? Mas é que... Seu Abílio, o senhor tá com alguma alergia? Seu pescoço tá todo empolado! ABÍLIO Ai, ai, ai! Deve ser! Sou alérgico a tudo que começa com P. Pelo, pólen, poeira, pastel... EDMAR Até pastel? ABÍLIO (tomando um comprimido) Se for de camarão, então, minha glote fecha em segundos! EDMAR Vamos evitar o P, então. Nada de falar em pagamento pra não fechar sua glote. ABÍLIO Falemos, então, da sua dívida! EDMAR (em tom confessional) Ô, seu Abílio, eu tô nessa crise financeira por conta dos vícios da Vera! Tu sabe que ela é dependente química, né? ABÍLIO É? EDMAR Viciada em formol. Gasta tudo no salão alisando aquele cabelo. Outro dia tive que buscar a televisão que ela deixou empenhada lá no Joselito's Coiffeur. E eu tô desempregado, sem dinheiro nenhum. ABÍLIO Nenhum? Mas eu fiquei sabendo pelo porteiro que o senhor ganhou mil reais na contravenção! É verdade? EDMAR Fala baixo, homem! Se minha mulher descobre, nem eu, nem você! (Para si) Eu mato aquele calango do Zé... ABÍLIO (Com uma calculadora em mãos) Esses mil reais vão pagar... 12 vezes duzentos e cinquenta... 1 terço da sua dívida! Já é alguma coisa. EDMAR Claro! Eu ia te ligar mas o Zé fez o favor de se adiantar, né? ABÍLIO Os funcionários deste edifício são instruídos para repassar informações valiosas que facilitem na complexa tarefa que é administrar o edifício Holliday. Se fosse fácil, não se chamaria edifício, concorda? Edmar ri forçado da piada sem graça e dá em Abílio um tapinha de camarada mas o síndico permanece sério e imóvel. ABÍLIO E então? EDMAR O quê? ABÍLIO O dinheiro! EDMAR Ah, o dinheiro! Ave Maria, seu Abílio, que pressa danada! Eu acabei de saber que ganhei no bicho, ainda nem fui buscar a grana. ABÍLIO Vou te esperar com esta verba para quitação parcial da sua dívida, estamos combinados? EDMAR Sim, senhor. Até logo! Edmar vai saindo e Abílio grita. ABÍLIO Seu Edmar! EDMAR Mas gosta de dar susto, né? Seu brincalhão danado. ABÍLIO (orgulhoso) Notou algo diferente no hall? EDMAR Nada demais, só esse jarrinho vagabundo. ABÍLIO Foi mamãe que me deu. O único presente que ela me deu em vida. EDMAR Olhando bem... É bonito, sim. Dá licença, viu, seu Abílio, tenho que correr. ABÍLIO Até. Edmar sai. Nalva sai de casa e encontra com Abílio no hall. CENA 9 NALVA Seu Abílio! Bom te encontrar. Fiquei sabendo que a Rita do 309 foi assaltada ontem! No elevador! O senhor tem que tomar uma providência! ABÍLIO Sim, vou investigar e os responsáveis serão punidos. NALVA Nem precisa de investigação, ela reconheceu o bandido! É o Demival, do 701! Esse prédio tá virando uma penitenciária, seu Abílio! A Etiene, do 213, deixou o filho de castigo sem computador e sabe o que ele fez? Queimou o colchão e jogou pela janela! O senhor já sabe o futuro que vai ter esse menino, né? ABÍLIO Já passei uma circular avisando para não jogarem nada pela janela. Vira e mexe jogam uma casca de melancia, um botijão de gás, um corpo... NALVA Seu Abílio... O senhor tá cheio de placa vermelha no pescoço! É alergia? ABÍLIO (entra em pânico) Ah, não! Tomei um antialérgico que às vezes me dá alergia! Tô sentindo minha glote fechar! (Saca outro comprimido do bolso). Esse é batata! NALVA Quer que eu pegue uma água? ABÍLIO Não sei se tenho esse tempo de vida! Vai no seco mesmo. (Tenta engolir o comprimido e se engasga). Acode! NALVA Meu São Jorge! Peraí, seu Abílio, outro dia vi na TV como é que faz pra desengasgar! Nalva faz em Abílio a manobra de Heimlich para desengasgá-lo. Quando Abílio está quase de quatro e com Nalva abraçada a ele por trás, comprimindo sua barriga, Vera entra. CENA 10 VERA Jesus! Que pouca vergonha é essa em minha porta? NALVA Ih, lá vem! Hora de ir embora. Até! ABÍLIO (já desengasgado mas ainda ofegante) Dona Vera, muito bom dia, como vai a senhora? Nalva sai. VERA Como Deus quer. Já tu, tá como o diabo gosta, né? ABÍLIO Que tal um café na sua casa? VERA A casa é minha, lhe convido se eu quiser! Entra. Vera entra em casa e Abílio a acompanha. Quando estão a sós, Abílio esbofeteia Vera. VERA (excitada) Ai, Bibi... ABÍLIO Enfim sós, que saudades! Vem cá, minha quente, hoje é dia de tomar vacina no bumbum. VERA Não, não! Nem mais um passo! Se saia que minha vida de pecado com você acabou! Minha alma agora pertence a Deus! ABÍLIO (tirando a camisa) Tudo bem, eu só quero o corpo. Come on, come, come! VERA (tentada) Eu lhe repreendo, em nome de Jesus! Ai, o demônio entrou na minha sala em forma de síndico pra atentar meu juízo! Abílio, eu não traio mais o meu marido! Minha raiz tá encrespando, perdi a coroa de Miss, tô envelhecendo, sem dinheiro mas eu tô feliz porque eu tenho um marido que faz tudo por mim! ABÍLIO Ué, eu também sou bem casado! VERA É nada! Tua mulher é uma elefoa, nem passa no batente da porta! Já deve estar com quantos kilos, 200? ABÍLIO 223. VERA Por isso que tu trai a coitada comigo e com a Nalva! ABÍLIO Eu não tenho nada com a Nalva! VERA Pensa que eu não lhe vi de roça-roça com ela? ABÍLIO Deixe de ciúme e venha cá! Tá na Bíblia: 'Amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei'. VERA É verdade, isso tá na Bíblia mesmo. ABÍLIO Então, Veroca. Eu te amo! VERA Se tem amor, Deus deve deixar. Vera pula no colo de Abílio. VERA Seu sem vergonha! Por onde tu tem andado, Bibi? ABÍLIO A Lucimar tá no meu pé. VERA Será que ela sabe de nosso caso de amor? ABÍLIO Não sei. Outro dia, ela me deu uma violeta e disse que eu tinha que cuidar como se fosse o nosso amor. VERA Deixe estar que pra eu jogar um Baygon nessa violeta é um pulo! E esse conversê é típico de mulher que quer salvar o casamento. Tu sabe que, um dia desses, eu tava esperando o elevador, ela botou a cabeça na porta e me lançou um olhar fuzilante? ABÍLIO Não, ela não sabe de nada. E se desconfia de alguém, não é de você. VERA E tu tem outra outra? É Nalva, é? Pode dizer que eu aguento. Essa invejosa quer tudo que é meu! ABÍLIO Eu não dou conta de duas, pra quê ia querer uma terceira? VERA Acho bom. ABÍLIO Deixemos esse ciúme bobo de lado e vamos direto ao ponto. VERA Ui! Não, Bibi, o Edmar pode chegar, é perigoso! Ele só foi ali na esquina comprar cigarro! ABÍLIO Ele vai demorar. VERA Como é que tu sabe? O Edmar tem outra? Vocês são cúmplices? Quem é a rapariga? É Nalva, é? Pense numa mulher que quer tudo que é meu! ABÍLIO Não é nada disso, sua boba. VERA (sacudindo Abílio) Desembuche logo, Abílio! Ou eu faço de sua gravata uma forca, perante a Deus! ABÍLIO MIL REAIS! O Edmar foi pegar os mil reais que ele ganhou no jogo do bicho! VERA E foi? Bandido, nem me disse nada! Pense num marido traíra! Eu preciso desse dinheiro! ABÍLIO Ele vai usar este dinheiro pra pagar o condomínio! VERA Quem manda no meu marido sou eu! Tu não manda nem em mim. ABÍLIO Eu não sou o tonto do seu marido, veja lá como fala! VERA Se fosse, também já estaria com um belo par de chifres, tal qual Belzebu! ABÍLIO Não tenho mais nada pra fazer aqui. Mas se o seu marido não pagar o condomínio, vou entrar com uma ação de despejo contra vocês! Bye, bye! VERA Entre que eu entro na mesma hora com uma ação de despejo pra sua mulher! Safado! Vá simbora, vá! Abílio sai catando suas roupas e vai em direção a porta para sair. CENA 11 Edmar surge no hall, concentrado na contagem do dinheiro que ganhou no bicho. Ao perceber que Edmar está no hall, Abílio se esconde. Vera grita. VERA Edmar! Que história é essa de que tu ganhou mil reais no bicho?! EDMAR Putz, ela descobriu! Vera está com a mão na maçaneta para abrir a porta e Edmar, do outro lado, em vez de abrir, tranca a porta. Ela destranca por dentro e ele tranca por fora. VERA Edmar, abre essa porta! EDMAR Tá com defeito, meu bem! Assustado e sem saber o que fazer com o dinheiro na mão, ele coloca os mil reais no jarro de barro. Vera abre a porta. Edmar está ofegante. VERA Já pra dentro, Edmar! EDMAR Olá, benzinho. Edmar e Vera entram. Abílio está escondido. VERA (revistando Edmar) Eu quero saber dos mil reais que tu ganhou no bicho, cadê, homem? EDMAR Como as notícias correm rápido neste prédio! Foi o porteiro que te contou? VERA Até o porteiro já sabia e eu não? EDMAR (ainda ofegante) Ô, benzinho, calma! Não tá vendo que eu tô passando por um momento difícil? VERA Que foi? EDMAR Então, acertei no macaco, sim. Mil reais. VERA Eu que sonhei com macaco! Meu palpite, meu dinheiro! EDMAR Pois é. Eu ia fazer uma surpresa pra você. Ia te levar pro salão, mas... Quando eu peguei o dinheiro, vieram quatro moleques armados, me renderam e levaram tudo! VERA E foi? Tadinho... Pensa que eu sou idiota, Edmar? Cadê esse dinheiro, homem? EDMAR Levaram tudo! Não sobrou nem uma moeda pro cigarro! Foram quatro moleques, benzinho, quatro! Um pegou numa mão, outro na outra, um numa perna, outro na outra... Fiquei suspenso no ar, com aqueles marginais me esticando... VERA Mas eram fortes esse moleques, hein? EDMAR Sim, eram moleques mas tinham corpo de homem! Você sabe como essa juventude se desenvolve cedo, tudo à base de Whey Protein. VERA Tu não me engane, Edmar! EDMAR (chorando) Eu juro por tudo o que há de mais sagrado! Tu quase fica viúva, benzinho! Meu Deus, que cidade violenta! VERA (acreditando) Oh, Edmar... Tadinho. E eu aqui, pensando mal de você. Machucaram meu benzinho? EDMAR Um pouco, só um pouco. Me jogaram no chão, eu caí, um horror. VERA Tá doendo? EDMAR Ah, dói. O corpo inteiro. VERA Venha cá, fique nu e deite de bruços que eu vou lhe fazer aquela massagem bem boa. EDMAR Não! Deixa pra lá, passou! VERA Tu tá com medo, Edmar? Relaxe, hoje eu vou só até o cóccix. EDMAR Essa sua mão é muito escorregadia! VERA Não vai doer, não, venha. Deite aí. Feche o olhinho... Visualize uma luz azul... Relaxe. CENA 12 Nalva vai colocar o lixo na escada e ouve os gemidos de Edmar. EDMAR Ai! Ui! VERA VERA Calma, meu amor. Agüente firme! EDMAR Ai! Relaxe, benzinho. EDMAR Ui! VERA Vou pegar um óleo pra deslizar melhor. Fique aí, de olhinho fechado... Relaxe... Vera faz sinal para Abílio sair do quarto. Edmar fica em silêncio e de olhos fechados. Abílio vai embora de mansinho, com a blusa por fora da calça, a gravata e os sapatos ainda nas mãos. Quando Nalva está indo conferir seu dinheiro no jarro, Abílio aparece no hall e ela disfarça. ABÍLIO (constrangido) Dona Nalva? NALVA (maliciosa) Hum, seu Abílio... Como é que tá sua esposa? ABÍLIO Ah, levando, né? NALVA E a Vera? ABÍLIO A Vera? É... NALVA Levando, né?! Seu Abílio, o que é isso roxo no seu pescoço? É alergia ou foi um chupão? ABÍLIO Alergia! Certamente! Alergia! NALVA Então corre pra tomar um remédio, seu Abílio! O senhor tá vermelho! Não sei se de vergonha, de nervoso, mas ó, sua cara tá toda cheia de placa! LUCIMAR Abílioooooooo! ABÍLIO Tenho que ir! Preciso me medicar! Com licença! Abílio sai correndo. NALVA Tchau, seu Abílio! Deixa eu aproveitar pra ver se tá tudo bem com meu dinheirinho. (Pega o dinheiro do jarro e percebe que este decuplicou.) Caraca, deu certo!(Conta o dinheiro) Mil e cem reais, 10 vezes o que eu botei! Nunca pensei que o dinheiro fosse sair do jarro, menina! Vou fazer mais. Vou ficar rica! Nalva pega o jarro e leva pra dentro da sua casa. NALVA (para o mesmo espectador de antes) Fala comigo, rápido! (Joga o fermento) Assim como esse fermento faz crescer o pão, também fará crescer o meu dinheiro! Pronto! Vou ficar rica! Agora eu tenho que devolver o jarro pro hall antes que o Abílio perceba! Nalva recoloca o jarro no hall e vai para a rua. CENA 13 Vera volta com um óleo Liza para a massagem. EDMAR Óleo de cozinha, amor? VERA Tem quanto tempo que tu não me dá um Vitoria Sics? Abílio toca com insistência na casa de Vera. VERA (gritando para a porta) Quem é o avexado?! EDMAR Ah, meu Deus, tava quase dormindo... ABÍLIO O síndico! Edmar finge que está dormindo e começa a roncar. Vera abre a porta. VERA O que é que tu quer? ABÍLIO (ainda no hall) Dona Vera, tenho negócios para tratar com seu marido. VERA Meu marido, macho alfa, tá no sono alfa, aquele sono que não pode ser despertado, igual sonâmbo. ABÍLIO E quem é que vai pagar o condomínio atrasado? A senhora? VERA (à parte, para Abílio) Tu não sabe que ele foi assaltado, homem? ABÍLIO (à parte, para Vera) Não sou trouxa, não acredito! Abílio bate palma e faz barulho para acordar Edmar. ABÍLIO Seu Edmar! EDMAR Ai, meu Deus! Ladrão de novo!? É ladrão? Por favor, me deixem viver! ABÍLIO Não é ladrão, não, seu Edmar. É o síndico! EDMAR Ai, meu Deus! Ai, meu coração. Ui, ui, ui. VERA Tadinho! Pense num sujeito assustado! Vou buscar uma aguinha com açúcar pra tu. Vera sai para buscar água. ABÍLIO Muito bem, seu Edmar, passado o susto... EDMAR Que passado, que nada! O senhor por um acaso sabe do trauma que eu sofri? Fui assaltado, levaram tudo! Inclusive o dinheiro do condomínio, tá? Foi. ABÍLIO Sei. EDMAR Três marginais com armas em punho! Vera volta com a água. VERA E não foram quatro, Edmar? EDMAR Então, quatro. Eu disse quatro! ABÍLIO O senhor falou três. EDMAR Três com armas em punho! O quarto era aleijado, não conta. Tava só na butuca, vigiando. VERA Ah, bom. ABÍLIO Pois, muito bem. Se até a semana que vem o senhor ou a senhora sua esposa não pagar pelo menos um dos meses atrasados, serei obrigado a entrar com um pedido de despejo! VERA Pois antes de ser despejada, faço questão de ir na sua casa pra me despedir da sua esposa pessoalmente! EDMAR Seu Abílio, cadê seu coração? Eu aqui, passando por um momento difícil e o senhor me vem com mesquinharias? Francamente! E a nossa amizade? ABÍLIO Que amizade? EDMAR Seu Abílio, o senhor é meu melhor amigo! Só não me mudo desse cortiço por sua causa! Todo dia antes de dormir eu rezo pelo senhor e pelos meus filhos! ABÍLIO O senhor não tem filhos. EDMAR Mas vou ter! E o senhor vai ser padrinho. ABÍLIO Puxa vida, não esperava. Muito obrigado! EDMAR Você é meu amigo de fé, meu irmão, camarada! Lembra daquela chupeta que fiz pro senhor? VERA Chupeta?! Que chupeta? EDMAR Ele tava atrasado pro trabalho, o carro dele arriou a bateria e foi minha chupeta que salvou este homem! ABÍLIO Amigos, amigos, negócios à parte. Continuo irredutível na minha decisão. Ou vocês pagam o que devem ou entro com uma ação de despejo contra vocês. Com licença. VERA Lembranças à sua esposa! Vera sai e Edmar conduz Abílio até a porta. CENA 14 Abílio e Edmar continuam a conversa no hall. EDMAR Repense, seu Abílio, repense com o coração... Abílio ignora Edmar, pega o jarro e vai na direção da sua casa. Edmar, desesperado, intercede. EDMAR (pegando o jarro de Abílio e recolocando-o no pedestal) Larga isso! Deixa o jarro aí, menino, a obra de arte da tua mãe! ABÍLIO Dona Nalva disse que se as plantas forem regadas com um jarro de barro, nascem mais vistosas. E a violeta que minha mulher me deu está morrendo! EDMAR Pois eu tenho um adubo milagroso pra você. Foi trazido das montanhas do Tibet pelos camelos mancos do Sri Lanka e benzido pelo Dalai Lama! Dizem até que você não pode enterrar as cinzas de ninguém com esse adubo porque é capaz da pessoa ressuscitar! ABÍLIO Se eu tivesse as cinzas de mamãe... Seu Edmar, preciso desse adubo pra salvar minha violeta! EDMAR O problema é que esse adubo foi muito, muito caro... ABÍLIO (escuso) E não pode ser abatido da sua dívida do condomínio? EDMAR Uma dívida de 3 mil por um adubo que vale 6 mil? Assim o senhor me quebra, seu Abílio. ABÍLIO Vamos negociar! Esse adubo mais esse jarro vão salvar minha violeta! EDMAR Não, o jarro, não! Esquece o jarro! O que a Nalva falou é tudo balela! ABÍLIO Se era mentira, pra quê ela pegou o jarro? EDMAR Ah, a Nalva é meio pirada, né? Já vi até remédio tarja preta no lixo dela! ABÍLIO Oh, my God, isso é muito sério! Vai que ela fica sem o medicamento e, num surto, toca fogo no prédio? Todos nós estaríamos em perigo! EDMAR E não é? ABÍLIO E se ela resolve se matar? Todos nós viraríamos suspeitos! EDMAR Já pensou? ABÍLIO Mesmo assim, não custa levar o jarro. Se bem não fizer pra minha violeta, mal não há de fazer. EDMAR (recolocando o jarro no lugar) Ah, pode, sim! Ouvi falar que ela é envolvida com macumba! E se ela pegou esse jarro pra fazer algum despacho? Eles costumam colocar pipoca, farofa e até galinha morta numa tigela de barro. Vai ver ela não tinha tigela e resolveu pegar um jarro! ABÍLIO Oh, my god, again! Dona Nalva, hein... Como a gente se engana com as pessoas! EDMAR É! Não duvido que ela queime uma erva. ABÍLIO As tais ervas! Meu Deus, o jarro que mamãe me deu sendo usado para coisas ilícitas! Ela não ia gostar nada nada disso. Vou pegá-lo de volta para que não haja mais rituais de magia negra no edifício Holliday! EDMAR Não pega! Tá maluco? Desmanchar a macumba dos outros é um atraso de vida sem tamanho! ABÍLIO Tem razão, é melhor deixar quieto. Mas e minha violeta? Será que só seu adubo resolve? EDMAR Claro! Vamos pegar agora! ABÍLIO Vamos. Eles entram na casa de Edmar. CENA 15 Imediatamente, Nalva aparece com um carrinho de supermercado abarrotado de jarros idênticos aos do hall. NALVA Zum, zum, zum, zum zum baba... (Pega o jarro do pedestal) Ah, meu São Jorge, duvido que esse jarro tenha sido feito pela mãe do Abílio. (Coloca-o no carrinho junto com os outros jarros idênticos). Na feira tinha um monte igual! Vou repetir minha simpatia com todos e vou ficar rica, rica, rica! Edmar e Abílio voltam com o adubo. EDMAR Pode replantar sua violeta que ela vai ficar linda... Edmar e Abílio se espantam ao ver Nalva com tantos jarros. ABÍLIO Mamãe! EDMAR (numa angústia contida) Ai! Ai, ai, ai, ai, ai. Socorro. Meu Deus do céu! Mas... Mas o que é isso?! ABÍLIO Qual delas é a mamãe?! NALVA Pronto! Taí sua mamãe! (colocando um jarro no pedestal) EDMAR Esse é o que tava aí, não é? Digo, é a mamãe mesmo? NALVA (sem se importar) É! ABÍLIO Mamãe fica aí e ninguém mais mexe nela! EDMAR Ninguém mais mexe nela! NALVA Tá, ninguém mais mexe nela! Tenho 10 jarros aqui, pode ficar com tua mamãe. Eu, hein. Fui! Nalva entra na sua casa com os jarros. Ela acende uma vela. NALVA Vamos lá, São Jorge? LUCIMAR Abíliooooo! ABÍLIO Tá na hora da sopa da Lucimar. Com licença, até mais! Obrigado pelo adubo! NALVA Agora, o dinheiro... EDMAR Até! Abílio sai de cena. CENA 16 EDMAR Ui, meu dinheirinho! Você tem que estar aí! Nalva e Edmar entornam os jarros ao mesmo tempo. O dinheiro está no jarro de Nalva. NALVA Pronto! EDMAR Não é a mamãe! NALVA Hum, esse fermento não vai dar. Vou pegar mais na vizinha. EDMAR Essa maluca trocou os jarros. Ela tá com mil reais num daqueles jarros e nem sabe! Daqui a pouco tá jogando água no meu dinheiro pra regar planta! Edmar ouve Nalva abrir sua porta e se esconde em sua casa. Ela sai pelas escadas. EDMAR É a minha chance! Edmar entra na casa de Nalva. EDMAR Quanto jarro! Só pode ser pra macumba, até vela tem! E eu pensando que era cisma da Vera. Vou pegar minha grana e vazar, não gosto desses ambientes. O primeiro jarro que Edmar vai olhar está cheio d'água. Quando ele vira o jarro para olhar se seu dinheiro está dentro, recebe um banho. EDMAR Merda! (tirando a camisa) Mesmo molhado, ele continua entornando os outros jarros em busca do seu dinheiro. CENA 17 Nalva volta com o fermento. Edmar escuta o barulho no hall e se esconde num ponto em que só a plateia o vê. Nalva entra em casa cantando. NALVA Meu pai Oxalá, é o rei, venha me valer... O velho Ômolu, Atotô, Baluaê... Pronto, agora vou fazer meu trabalho. Vou conseguir o que quero e nunca mais essa vizinha vai me incomodar! Vou calar a boca dessa mulher pra sempre! Com medo e em um momento de distração de Nalva, Edmar tenta sair mas acaba derrubando um jarro. Nalva grita desesperada e Edmar também. NALVA Aaaaaaaaaah! Tarado! Ai! Socorro! Sai! Ai! EDMAR Ai! Macumbeira! Assassina! Atraídos pelos gritos, Vera sai pra ver o que está acontecendo. VERA Pára com essa gritaria, sua barraqueira! NALVA Edmar? O que é que tu tá fazendo aqui? EDMAR Eu? Então, pois é. Eu vim pra... Vera escuta Edmar na casa de Nalva. VERA Edmar!? É tu que taí, cão? Nalva abre sua porta. NALVA É ele, sim! Esse safado! EDMAR Jesus meu, me ajude. VERA Em nome de Jeová Rei, Edmar, só me diga o que sua pessoa está fazendo nesta casa por onde Jesus não passeia? EDMAR Calma, Veroca. Não é nada disso que tu tá pensando! VERA Eu não tô pensando, eu tô vendo! Demônio! Como tu teve coragem, homem? Me trair com essazinha! Jesus me segura! NALVA Não sou teu tipo de mulher, tá louca! VERA Eu exijo uma explicação dos dois! Jesus não me segura! NALVA Eu é que mereço satisfações. Vamos, Edmar, se explique! VERA Segure minhas mãos, Jesus, segure. Faz com que eu não cegue esta mulher com este crucifixo que carrego em meu peito. EDMAR Calma, minha gente... VERA Tu fica quieto, se não quiser apanhar! NALVA Ele não vai ficar quieto nada, ele me deve explicações! (Para Edmar) Eu quero saber o que é que tu tava fazendo na... VERA Querendo tirar satisfações com meu marido? Foi isso mesmo que meus ouvidos captaram? Não tens amor à vida? Seu lixo! NALVA Lixo é você, sua vaca! As duas se atracam. Vera arranca alguns tufos de cabelo do mega hair de Nalva. Edmar as separa. EDMAR Olha o barraco! Pára! VERA Me largue, Judas Escarioti! Não perdoo traição! NALVA Pimenta no dos outros é refresco, né? VERA Hã? EDMAR Não entendi. NALVA Trair, pode. Ser traído, não. (Direto para Vera) Né? EDMAR Ela tá falando do quê, benzinho? VERA Vamos embora, Edmar! Satanás tomou conta dessa mulher. NALVA Ninguém vai embora! Tão pensando o quê? Invadem minha casa, arrancam meu cabelo e vai ficar por isso mesmo? Nada disso! Quer saber, Edmar? Você é corno! Corno! EDMAR É mentira. Não é, amor? Se defenda! VERA Deus que me defenda de uma vizinha dessas! NALVA Olha que ironia, a crente casada com um chifrudo! EDMAR Vera, tu me traiu ou não? VERA Traí, traí sim! Tu também não tava me traindo com essazinha? EDMAR Não! Não pode ser. NALVA Tu tá é louca! Eu nem sei o que o seu marido tava fazendo na minha casa! VERA Cinismo tem limite, ouviu?! EDMAR Com quem você me traía? VERA Não me pergunte que eu falo! Tu sabe que eu sou bocuda! EDMAR Fala! Com quem? VERA Quer saber mesmo? EDMAR Quero! VERA Com Jesus! EDMAR Ah, bom, que susto. Aí pode! VERA Abílio de Toledo Jesus! Abílio aparece no hall. EDMAR O síndico!? NALVA É! Todo o prédio já sabe! A Clotilde, do 907, o Claudineisson, do 1104... EDMAR Filho da mãe... Ainda levou meu adubo! CENA 18 Abílio bate na porta de Nalva. ABÍLIO Dona Nalva! Os vizinhos estão reclamando do barulho! EDMAR Deixa que eu abro! NALVA Ih, agora minha casa cai! Edmar recebe Abílio. EDMAR Eu te mato, filho da mãe! Socos e pontapés, eles rolam no chão. Vera e Nalva tentam separar os dois, sem sucesso. EDMAR Bandido, pegou a minha mulher! Confessa! ABÍLIO Nunca! Jamais faria isso! VERA Cachorro! Nalva pega um balde cheio d'água e joga nos dois. Eles param a briga. NALVA Que nem cachorro! Agora, todo mundo pra fora da minha casa! Abílio aproveita a deixa pra ir embora. Edmar sai com Vera. CENA 19 Nalva vai preparar seus jarros pra simpatia enquanto Vera discute com Edmar. NALVA Ah! Como eu queria ir embora dessa baixaria desse edifício Holliday! O prédio vizinho aqui, o Hollywood, deve ser muito mais tranquilo. EDMAR Quer dizer que o Holliday inteiro sabia, menos eu! Corno! Meu Deus, corno! VERA (enxugando Edmar) Edmar, desapegue desses rótulos cretinos, homem! Traição é quando tem sentimento no meio. E eu só amo você, meu coisinho lindo. EDMAR Ah, com ele era só sexo? VERA Por quem me tomas, Edmar? O fuscãozinho é só seu! O Abílio... Ficava com o bagageiro. EDMAR O quê?! Então, quer dizer que pro Abílio você... VERA Não me relembre o tempo em que Jesus não vivia em mim, por favor! EDMAR Isso não tem perdão! Vou fazer minhas malas. Edmar vai colocando as roupas na mala e Vera, ao mesmo tempo, vai tirando. Enquanto isso, Nalva distribui as notas de cem reais nos jarros e, sussurrando seu mantra, joga fermento neles. NALVA (Para o mesmo espectador que a ajudou da primeira vez) Fala daí, querido? Fala direitinho senão vai ter que subir. VERA Edmar, me escute! Eu não queria fazer isso, eu juro, perante a Deus! Mas... Eu fiquei com medo do Abílio despejar a gente daqui! Eu... Eu fiz esse sacrifício por nós, pela nossa casa, pela nossa dignidade! Mas eu não queria! Achei que fazendo um agrado pro síndico, ele ia perdoar sua dívida! EDMAR Meu amor... Então, foi por isso? VERA Foi! Se tu trabalhasse e pagasse em dia esse condomínio, nada disso teria acontecido! EDMAR Me perdoa, Veroca! Me perdoa! VERA Perdoo se tu me explicar o que é que tu tava fazendo na casa da Nalva. EDMAR Fui pegar o dinheiro que ganhei no bicho! VERA Ah, então, não teve assalto nenhum? Foi tudo teatro? Como tu teve coragem de me fazer de idiota por mil reais, Edmar, uma ninharia! EDMAR Mil reais é dinheiro! VERA E eu ainda lhe fiz massagem! EDMAR Com óleo Liza. VERA (furiosa) Não interessa! Nalva está sentada olhando para os jarros. NALVA Será que meu dindin já reproduziu? Vou dar mais um tempinho. EDMAR (culpado) Benzinho, não briga comigo! VERA Tu me enganou, Edmar. Traíste minha confiança! EDMAR Veroca, vamos combinar assim? Você me perdoa e eu te perdoo. Perdoo porque eu te amo. Perdoo porque não tenho mais ninguém. Perdoo porque eu não tenho mais idade pra voltar pra pista. E a pista só tem periguete. Perdoo porque você é linda e me ama. Não ama? VERA Claro que amo, Mamá... EDMAR Prometo que seu maridão vai ficar mais selvagem, tá? VERA Tá! Agora me diga, como seu dinheiro foi parar na casa de Nalva? EDMAR Eu explico. Enquanto Edmar explica pra Vera o ocorrido, Nalva vai conferir se o dinheiro já se multiplicou. NALVA Nada ainda?! Tem problema, não. Vou pro shopping, renovo meu look e boto tudo no cartão. Fui! Nalva sai de casa. VERA NALVA Shhhh! Ela tá saindo! Vou trancar isso aqui muito bem trancado porque no último vacilo que eu dei, invadiram minha casa! Nalva tranca sua porta e sai de cena. VERA Já foi. Deixa ver se eu entendi. O dinheiro tá no jarro que tava no hall e que agora tá com Nalva, certo? EDMAR Exatamente. Ela nem faz ideia que tem mil reais em um daqueles jarros! VERA A gente tem que matutar um jeito de entrar lá! EDMAR Isso é crime, amor! VERA Eu não dou toda essa importância pras leis dos homens, o que me interessa é a justiça divina! E Deus sabe que eu só quero ir lá pra buscar meu dinheiro, nada mais! EDMAR (tímido) O dinheiro é meu. VERA Tive uma ideia! Mas tenho uma condição: se a gente pegar o dinheiro, metade é meu. EDMAR Metade? VERA É pegar ou largar. EDMAR Tá... VERA Vamos entrar pela janela. EDMAR Pirou? A gente mora no terceiro andar! Uma queda é fatal! VERA Dá pra andar pelo parapeito, Edmar. Deixe de ser frouxo! Vamos logo enquanto ela tá na rua! EDMAR Ai, meu Deus... Vera e Edmar saem pela janela ao mesmo tempo em que Abílio aparece no hall. CENA 20 ABÍLIO (com uma penca de chaves nas mãos) A dona Nalva não sabe mas já morei neste apartamento. Se ela não mudou a fechadura, a chave que vai abrir esta porta é... Essa aqui. Abílio abre a porta e entra com cautela. ABÍLIO Isto não se trata de uma invasão de privacidade. Só estou zelando pela segurança do condomínio. Abílio fecha a porta. No apartamento vizinho, Vera e Edmar estão saindo pela janela. VERA Vamos pegar esse dinheiro, é uma questão de honra! (Vendo Edmar ofegante) Que foi, Edmar? Passando mal? EDMAR (ofegante) Esses são os mil reais mais caros da minha vida! Eu não sabia que a gente morava tão alto! VERA Deixe de drama, homem! Cadê o Edmar selvagem que tu me prometeu? Simbora! Vera e Edmar saem pelo parapeito da janela. ABÍLIO Esses jarros podem ser pra qualquer coisa, menos pra regar planta! O que será que tem dentro? Com medo e dificuldade, Abílio coloca a mão dentro do jarro. ABÍLIO Oh, my God, é cocaína! A Dona Nalva é traficante! Como fui ingênuo. Ela deve ter algum serviço do tipo Disk-Pó. E tem mais um papel... Abílio pega o dinheiro do jarro. ABÍLIO Dinheiro! Deve ser o preço desta quantidade de cocaína! Será que tem em todos? Neste tem. Neste também. E também neste! Bom, não quero me envolver com tráfico, vou deixar a cocaína. Já o dinheiro, sou obrigado a confiscar, afinal, ele foi obtido através de práticas ilícitas dentro do edifício Holliday, meu distrito. Se permito que um faça, daqui a pouco o prédio vira uma cracolândia! Abílio ouve o barulho de alguém entrando pela janela. Ele sai assustado. ABÍLIO Shit! Devem ser os clientes dela! Cracudos! É por isso que ela nunca levantou suspeitas, eles não passam pela portaria! Estou de parabéns pelo meu serviço de detetive! Abílio sai. CENA 21 Edmar e Vera entram no apartamento de Nalva pela janela. VERA Vamo rápido que ela pode chegar! EDMAR A grana tá num desses jarros. VERA Vou babatar até achar! Edmar põe a mão dentro de um jarro. EDMAR Que pó branco é esse? VERA Cheira pra ver! EDMAR E se isso me deixar doidão? VERA Frouxo! Quedê? Vera cheira o pó na mão de Edmar. VERA Isso é fermento! Pra quê essa desvairada tá botando fermento nos jarros? EDMAR Pode ser alguma oferenda pra algum orixá, melhor não mexer. VERA Tu quer ou não quer seu dinheiro de volta? EDMAR Quero, claro! VERA Então, procura, homem! EDMAR Olha esses que eu olho aqueles. Procuram em todos os jarros e não acham nenhum dinheiro. VERA Nada aqui. Achou alguma coisa aí? EDMAR Nada também! Não é possível, tem que estar em algum jarro! VERA Edmar, tá óbvio que ela achou o dinheiro e ficou pra ela! EDMAR Meu dinheirinho... CENA 22 Nalva entra em cena ao som de 'Pretty Woman' completamente transformada: peruca, enchimentos, roupas extravagantes e muitas sacolas na mão. Ela entra em sua casa e flagra Vera e Edmar. NALVA Aaaaah, não! Que zona é essa?! Já virou bagunça! VERA Cadê o dinheiro do meu marido? EDMAR Benzinho, calma. Ela achou, achado não é roubado. VERA Tu quer ou não quer o seu dinheiro de volta? NALVA Que dinheiro, maluca? Eu não tenho nada com o seu marido, já disse! EDMAR Esses jarros... NALVA Não toque nos meus jarros! Eles são sagrados. VERA Macumbeira! Desde quando jarro de barro com fermento é coisa sagrada? NALVA Vocês mexeram nos meus jarros?! EDMAR Calma, a gente não desmanchou nada, não, viu? Nalva coloca a mão dentro dos jarros. NALVA Tinha uns dez mil reais em cada jarro desse! Vocês me roubaram! VERA A única ladra aqui é tu, mulher! NALVA Chega! Vou chamar a polícia. Abílio abre a porta de Nalva com sua chave e entra. ABÍLIO Já chamei a polícia. NALVA Quero esses dois na cadeia! ABÍLIO Quem vai presa é a senhora, dona Nalva! NALVA O quê?! Invadem minha casa, roubam minha fortuna e ainda vou presa? É pegadinha, né? ABÍLIO Fontes seguras me garantiram que a senhora comercializa entorpecentes neste apartamento. EDMAR Dona Nalva... Quem diria! VERA Ela nunca me enganou. NALVA Tu é que deve estar drogado pra dizer uma besteira dessas! ABÍLIO Os vizinhos do prédio da frente acusaram a entrada de cracudos pela janela do seu apartamento, tudo para não levantar suspeitas na portaria. Edmar e Vera se entreolham. NALVA (indo até a janela) Só o Homem-Aranha pra escalar até aqui! A não ser que o invasor tenha vindo do apartamento vizinho... Aí dá pra vir pelo parapeito! Não é, Dona Vera e seu Edmar? VERA A gente veio buscar o que é nosso! EDMAR O meu dinheirinho! VERA Nosso! NALVA Quem roubou meu dinheiro foram vocês! ABÍLIO Veja bem, a invasão deles não retira a queixa do comércio de entorpecentes! Foi descoberto que a senhora armazena cocaína dentros desses jarros. NALVA Ai, meu Deus! O povo fala, viu?! ABÍLIO Então, a senhora confirma! NALVA Confirmo nada! Nalva vira um dos jarros em cima de Abílio. NALVA Isso aqui é fermento! Pra fazer render o meu dinheiro! ABÍLIO Eu sou alérgico a farináceos! Socorro! EDMAR Deixa ele se estrebuchar aí! Abílio se sacode e toma um comprimido. Nalva joga água nele. NALVA Morre não, seu Abílio, quero você vivo pra descobrir onde foi parar o meu dinheiro! VERA Não pegamos dinheiro nenhum! EDMAR Até viemos pra cá com essa intenção mas, pelo visto, alguém passou aqui antes da gente. ABÍLIO Fermento num jarro de barro pra fazer o dinheiro render? A senhora quer que eu acredite nisso? NALVA É uma simpatia! Fiz uma vez e deu certo. Coloquei cem reais no jarro do hall e quando fui ver, tinha mil e cem! EDMAR Esse dinheiro era meu! Era meu! NALVA Seu? VERA Foi o dinheiro que ele ganhou no bicho. Ele escondeu no jarro! ABÍLIO Não tinham roubado o senhor, seu Edmar? EDMAR Ué, e não roubaram?! Roubaram de dentro do jarro! VERA E essa simpatia... Você tirou de onde? NALVA Desse livro. VERA Meu livro! Devolve! NALVA Ah, pode ficar, a simpatia não deu certo mesmo. Tô ferrada, comprei tudo no cartão. ABÍLIO Não se preocupe, o código de defesa do consumidor dá sete dias pra desistir da mercadoria. NALVA (vai desmontando-se) É, vou devolver minhas unhas, meus cílios, meu cabelo, meu peito, minha bunda... Tudo! EDMAR Era tudo falcatrua? NALVA Mas se minha simpatia não funcionou pra aparecer o dinheiro, como ele desapareceu? EDMAR Também queria saber. NALVA Alguém pegou. VERA Alguém com acesso a essa casa. Abílio, sonsamente, ainda analisa o fermento nos jarros. VERA Ô, Bibi... Seu Abílio! Como foi que o senhor entrou agora aqui? NALVA É! A porta tava trancada e tu não tocou a campainha! ABÍLIO Eu... Na verdade, eu... VERA Antes de tu, Nalvinha, meu inquilino deste apartamento era ele. Trocaste a fechadura? NALVA Não! VERA Foi ele! EDMAR Ladrão safado! Toca o interfone. Nalva vai atender. ABÍLIO Deve ser a polícia. Vou dispensá-los. NALVA Eu atendo! Alô? Não é polícia, não. O Abílio tá aqui, sim. É sua esposa. Sei... Tá. Mandou tu ir pra casa. A violeta morreu, ela quer falar contigo. EDMAR Deixa eu trocar uma palavrinha com ela. ABÍLIO Não! Por favor, não... EDMAR Fica quieto aí, seu frango! Alô? É o Edmar do 302, minha senhora. É só pra falar que tua violeta morreu porque teu marido tava regando outra plantinha. No caso, minha mulher! ABÍLIO Com que direito o senhor fez isso? EDMAR Como corno, tenho o dever de abrir minha boca! Mas só pra ela. VERA Bem feito! Traste ruim. NALVA (para Abílio) Agora só falta chegar a polícia pra te prender. Por invasão de privacidade... VERA ...furto do dinheiro alheio... EDMAR ...e da mulher alheia! ABÍLIO Calma, vamos conversar. É conversando que a gente se entende... NALVA Cala a boca! Vera, tu que tem intimidade, revista ele! EDMAR Vai com calma, hein. VERA (revistando o bolso de Abílio) Aqui! A chave e o dinheiro. EDMAR Meu dinheirinho! Até que enfim! NALVA Peraí que cem são meus! VERA E quinhentos são meus! LUCIMAR Abíliooo!!! Safado, cafajeste! Vai dormir na rua! Acabou! ABÍLIO Amor, calma. Olha o escândalo! Vamos conversar! Eu vou pra casa. Preciso conversar com a minha mulher. Ela tem que me perdoar! NALVA Nem mais um passo, Seu Abílio. Antes, nós temos que te perdoar. EDMAR Eu não perdoo! ABÍLIO Vera, Edmar, que tal esquecer este infeliz ocorrido e eu não entro com a ação de despejo? EDMAR Que infeliz ocorrido? NALVA Vocês invadiram minha casa, isso é crime! VERA Nalva, querida, está na hora de levantarmos a bandeira branca, não acha? Tenho uma proposta. Coloca o dinheiro que estava em suas mãos nas mãos de Nalva. VERA Tá aqui, toma. Meus quinhentos reais... EDMAR Amor, que gesto lindo. Já ganhou o céu. VERA (tomando o dinheiro das mãos de Edmar e colocando-o nas mãos de Nalva) Mais os quinhentos do Edmar. EDMAR Veroca, meu bem, não... NALVA (guardando o dinheiro no soutien) Oba, aceito, sim! EDMAR Espera... VERA (à parte, para Edmar) Encare isto como uma fiança. Se ela nos dedurar, estamos presos! Tô fazendo um bom negócio, acredite! Edmar, com muito custo, entrega o dinheiro para Nalva. EDMAR Leva, querida... Leva. NALVA Obrigada! Vera, tenho uma coisa pra te dar também. Nalva sai e volta com a coroa e a faixa de Miss Madureira. NALVA Toma, é teu. Ninguém sabia, mas... Dos três jurados do concurso de Miss Madureira, um era meu tio e outro era meu primo. Tá no regulamento que não pode parente jurado, eu sei! Mas eu queria ganhar. Achei que essa coroa ia mudar alguma coisa na minha vida, mas... Continuo aqui, solteira. Queria tanto um marido! Não o seu. Mas um que fosse babão igual a ele, que soubesse perdoar, que me levasse no salão... VERA Ô Nalvinha, fique assim, não. Tenha fé em Jesus que teu homem há de aparecer. Agora me dê aqui minha faixa e minha coroa... Eu sabia que ali tinha treta! Tô linda, Edmar? EDMAR Uma rainha. VERA Eu sei, eu sei. Agora vamo simbora. E tu, fique de olho nos sapos que um deles pode príncipe! Ah, outra coisa. Fique com esse também. Eu sou a mais bonita mas você é a simpatia! amiga, ser seu livro miss NALVA Obrigada, minha amiga. EDMAR Tchau! VERA Tchau, minha querida! Vera e Edmar saem de cena. ABÍLIO Bom, eu vou avisar ao porteiro pra, se a polícia vier, dizer que alguém passou um trote. Vou lá tentar juntar os caquinhos da minha violeta... NALVA Boa sorte. ABÍLIO Então, nós dois solteiros, né... NALVA Nem vem que não tem, seu safado! Vaza daqui. Nalva coloca Abílio para fora e ele se senta no hall, abraçado ao jarro, como se pedisse o colo da mãe. Quando ele vai começar a chorar, sua esposa intervém. LUCIMAR Abíliooooooo!!! Volta. Abílio sai de cena. Nalva está sozinha em casa. NALVA Bom, pelo menos ganhei mil reais que já vai dar pra pagar a entrada do cruzeiro das solt... Peraí! Deu certo! A simpatia falou que eu ia ganhar dinheiro e ganhei! Cadê o livro? Vou fazer outra pra arrumar um marido! Melhor do que sair num cruzeiro! Cadê... Aqui. Quando ouvir tocar o sino de qualquer igreja, coloque um Santo Antônio nos seios. Depois, eleja um estranho para se casar e faça com que ele beba um cálice de mel. Ele cairá de amores por você. Barulho de sinos. Nalva coloca um Santo Antônio nos seios e aponta para um homem da plateia. NALVA Hummm... Você! CAI O PANO. CONTATOS: Paulo Fernando Góes [email protected] Tel. (21) 98861-1005 facebook.com/paulofernandogoes Instagram: paulofernandogoes Twitter: @paulogoes