Título: Stella/Winnicott: meio ambiente facilitador.
Autora: Lourdes Mara Costa Silveira – Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica,
Mestre em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas: UNICAMP.
Resumo:
Pretende-se com este trabalho apresentar reflexões sobre o filme Stella, escrito e dirigido por
Sylvie Verheyde, relacionando-as com o conceito de Winnicott, sobre o meio ambiente
facilitador. O filme, cuja protagonista é Stella, versa sobre sua entrada na adolescência e a
descoberta de um novo universo ético, distinto de sua origem. Nessa fase, os valores de Stella
são ampliados através das novas experiências, inclusive no nível cultural, no contato com a
literatura e a música. Stella está apta a absorver esse contexto, o que provoca uma
transformação em sua vida.
Palavras-chave: Espaço potencial, meio ambiente facilitador; relação “ambienteindivíduo”; sentido de self.
O filme, cujo título é Stella (VERHEYDE, 2008) foi utilizado por mim como base para
fazer algumas reflexões sobre a teoria de Winnicott, de que é necessário um meio
ambiente facilitador para possibilitar o viver saudável, viver verdadeiramente, o viver
criativo (WINNICOTT, 2000).
O filme conta a história de Stella, uma garota de onze anos que vive com seus pais,
proprietários de um bar e hospedaria, na periferia de Paris. A família mora em cômodos
no andar em cima do bar, onde também fica a hospedaria. O local é frequentado por
gente simples, trabalhadores da região e tipos boêmios, sendo que alguns residem na
hospedaria. A menina cresceu no bar, tendo desenvolvido uma convivência amigável
com os fregueses, os quais, em geral, vão lá para beber e jogar. Ela brinca e se diverte
com eles, faz amizades, participa dos jogos e até aprende a atirar com o pai e um
morador da hospedaria. Mas também assiste a brigas e episódios de embriaguez e
presencia situações em que fregueses não devolvem dinheiro emprestado por seu pai;
este parece ser mais vulnerável, mas a mãe é firme e determinada. No entanto, Stella
tem conhecimento de seu ressentimento com o marido, que ela trai no próprio bar.
Apesar desse ambiente adverso e conturbado, os pais parecem amá-la e sonham com
uma vida melhor para ela.
O ano é 1977 e o filme mostra a transição de Stella da infância para o início da
adolescência, retratando a vida da menina durante um ano.
Aos onze anos, ela, embora continue morando nos cômodos em cima do bar de seus
pais, passa a freqüentar uma escola em Paris, onde estudam crianças cujas realidades
são o oposto da sua e onde toma contato com um universo ético diferente. É rejeitada
por seus colegas de classe e discriminada, inclusive pelos professores, que a tratam de
maneira desigual. Reage a essas situações brigando com os colegas e se insubordinando.
Sente-se deslocada, com dificuldade para fazer amigos e seu desempenho escolar é
insatisfatório. A força vital que precisa usar para se proteger é “roubada” e assim não
está disponível para ser usada nos estudos, algo construtivo.
É nesse contexto que emerge a possibilidade de transformação da vida de Stella. Ela
conhece Gladys, colega descendente de imigrantes argentinos, cujo pai é um intelectual
judeu. Apesar de compartilhar do mesmo universo que os outros alunos da escola,
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Gladys é imigrante e judia e, por isso, também é considerada “estrangeira”. É ela quem
vai ajudar a personagem principal para que o potencial agressivo se transforme em
construtivo. Gladys se aproxima dela pensando que ela é outra colega, confunde Stella
com outra menina e a partir daí começam a se relacionar.
A protagonista está em fase de adaptação à nova realidade e precisa de ajuda. Encontra
esse auxílio na amizade de Gladys, que se transforma em modelo para ela, alguém a
quem imita e em quem procura apoio. Gladys representará para Stella a ponte que ligará
dois mundos: o de Stella - da pobreza, da ignorância e da rudeza -, e o da escola, de
crianças abastadas e intelectualmente mais desenvolvidas. Descobre na colega uma
parceria, algo em comum e, através da identificação, criam-se possibilidades para o
aproveitamento do potencial construtivo de Stella.
A menina começa, então, a viver experiências que modificarão e enriquecerão sua vida.
Passa a frequentar a casa da amiga estrangeira, faz refeições à mesa com os amigos dos
pais, participa de conversas intelectualizadas. Descobre novos discos, os prazeres da
leitura, até que, em uma loja de livros usados, começa sua procura por boa literatura.
Começa a frequentar festinhas na casa dos colegas e, ainda que somente Gladys seja
convidada, esta cede aos pedidos de Stella e a leva também. Stella percebe o interesse
de um dos meninos de sua classe por ela e também se interessa pelo menino.
O desenvolvimento da protagonista é expresso em diferentes situações: quando rasga o
papel de parede infantil de seu quarto, ao decidir se dedicar com afinco aos estudos, ao
se interessar pelo colega de classe. Stella apresenta comportamentos diferentes dos
anteriores, diminui seu tempo de convívio no bar. Quando vai passar as férias na casa da
avó paterna, no interior da França, e reencontra Geneviéve, uma amiga de infância, fica
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evidente a transformação dos seus valores, a mudança de atividades e de preferências,
em comparação com o universo da amiga de infância.
O filme não elucida alguns acontecimentos importantes, como, por exemplo, se no
encontro com a amiga Geneviéve durante as férias do meio do ano letivo, elas têm uma
relação homossexual. Infere-se que o encontro deva ter existido, como uma espécie de
superação de sua sexualidade infantil rumo à sexualidade adulta. De qualquer forma,
compreende-se que ela realmente se despediu da infância, que o aspecto homossexual
infantil ficou para trás, está encerrado. Outro incidente importante aconteceu na
hospedaria, quando Stella é convidada para ir ao quarto de um dos hóspedes seus
amigos, em quem parecia confiar, para ir ao quarto dele receber um livro - ele já havia
lhe dado outros presentes. Ele toca seu corpo e Stella, já em seu quarto, rasga o livro e
se desfaz dos presentes que ele havia lhe dado. O filme não deixa claro até que ponto a
menina foi abusada, mas mostra sua reação de revolta, encerrando aquele episódio.
As cenas finais do filme se passam na casa da atriz coadjuvante. Logo após a aprovação
de Stella no conselho de classe do qual Gladys participou como representante, ela vai
dormir na casa da amiga e quando já estão deitadas a protagonista começa a conversar e
diz que por ter permanecido na escola terá além de outras oportunidades a de se
aproximar do garoto pelo qual se apaixonou. Revela a amiga alguns de seus medos e a
agradece pela ajuda e amizade. O filme termina com recordações das férias passadas
com a amiga Geneviéve. Ela está se lembrando de algo que também foi importante na
sua vida. Stella nunca rompe, sempre transforma.
O desenvolvimento emocional vivido pela personagem dá a impressão de que ela teve
uma vida primitiva boa, uma vez que demonstra ter todas as condições para vencer e
enfrentar as dificuldades. Tem-se a sensação de alguém com impulso para o
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crescimento que, apesar de criada em ambiente desfavorável, recebeu dos pais
condições favoráveis e estímulo para seu crescimento. Eles demonstram o desejo de
que ela tenha um futuro diferente do deles e ela corresponde alcançando aprovação e
permanecendo na escola. A mãe, ao mesmo tempo em que é severa quanto aos
problemas iniciais da menina na escola, demonstra seu agrado quando, no final do ano,
ela é aprovada, correspondendo à expectativa de toda uma vida, de ter uma filha com
oportunidades e realizações de vida diferentes da dela.
Sem dúvida, Stella passou por uma transformação, internalizando novos valores. Parece
perceber que também é riqueza a possibilidade de ler, de poder pensar.
Stella demonstra ter uma riqueza interna muito grande. Uma boa semente plantada num
bom ambiente busca e encontra solo para crescer. No desenvolvimento de Stella podese perceber o efeito proveniente de experiências vividas anteriormente (WINNICOTT,
2000). Ela tinha desenvolvido um sentido de self (possibilitado pela mãe) e havia uma
semente para ser desenvolvida. O incentivo dos pais para que ela tivesse uma vida
melhor do que a deles foi a possibilidade gerada por eles para que ela pudesse “sentir-se
real”, “criar" e expandir-se.
A capacidade de Stella desenvolver-se emocionalmente havia sido favorecida na
primeira relação “ambiente-indivíduo”. Embora seu universo de origem fosse
culturalmente mais pobre, com menos recursos, menos sofisticado, havia uma riqueza
interior plantada nessa relação com o “ambiente-mãe”. Ela teve condições de beneficiarse da relação com a amiga Gladys, que trouxe coisas boas para a sua vida, ampliando
seu universo. Havia “força vital”. Para Winnicott (2000), a capacidade de fazer uso do
espaço transicional representa algo definitivo no desenvolvimento humano e está
relacionada à habilidade de ‘viver’ com criatividade e ‘sentir-se real’. Toda teoria do
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desenvolvimento emocional de Winnicott parte da primeira relação, o contínuo
‘ambiente-indivíduo’; ele afirma que não há possibilidade de saúde para um indivíduo
se não tiver tido um ponto de partida suficientemente bom (WINICCOTT, 2000).A
capacidade de Stella para aproveitar as oportunidades demonstra o efeito proveniente de
experiências vividas precocemente. A forma como a protagonista se relacionava no
ambiente original mostra que ela tinha capacidade para brincar. Stella brinca. No
brincar de Winnicottt, tanto na infância, que o filme não retrata, quanto no bar e na casa
da avó (WINICCOTT, 1975). O autor afirma que:
É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e
utilizará sua personalidade integral e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu
(self) (p.80).
[...] Entretanto, valorizamos especialmente o brincar e a experiência cultural; são coisas que
vinculam o passado, o presente e o futuro, e que ocupam tempo e espaço. Exigem e obtêm nossa
atenção deliberada, concentrada, embora nela não exista muito da deliberação do experimentar
(p.151).
Com relação à ‘natureza humana’, Winiccott sugere que “[...] para cada indivíduo que
tenha atingido o estágio de ser uma unidade (com uma membrana limitadora, um
exterior e um interior), existe uma realidade interior a esse indivíduo, um mundo
interno que pode ser rico ou pobre, estar em paz ou em estado de guerra.”
(WINNICOTT, 2000, p.317).
O bar, embora inadequado para uma criança crescer, parece ser um lugar onde existe
afeto, parece ser um ambiente promissor.
A amizade da menina rica pela menina pobre foi um propiciador para o uso do espaço
potencial. Stella a partir dessa amizade demonstra uma transformação ampliadora de seu
universo, era uma boa semente e encontrou solo fértil para crescer.
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Referências bibliográficas:
WINNICOTT, D.W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora.
WINNICOTT, D.W. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de
Janeiro, Imago Editora.
Referência do filme citado:
STELLA. Roteiro e Direção de Sylvie Verheyde. Gênero: Drama. Produtoras: Lês
Films du Veyher, arte France Cinéma, WDR/Arte,Canal+, Cinecinema, Centre National
de la Cinématographie, Région Ilde-deFrance, Banque Populaire Imagens 8,
Soficinéma. , 2008.1 DVD.
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Stella/Winnicott: meio ambiente facilitador. Autora