EDITAL DE LICITAÇÃO NÃO É PROVAÇÃO INICIÁTICA.
REFLEXÕES DE HUMOR BASTANTE VARIADO
Ivan Barbosa Rigolin
Ridendo castigat mores.
Mieux est de rire que de larmes écrire.
Introdução ao nefando tema
Custa crer, mas a impressão é a de que bastantes
autoridades, inumeráveis servidores, e ainda múltiplos segmentos da
Administração pública, ainda não se deram conta - nestes velocíssimos idos de
2.014, mais de quarenta anos após razoavelmente disciplinado o tema das
licitações no horizonte do direito administrativo, e mais de meio século
decorrido de prática diária desse intricado mister -, de que os editais de
licitação não podem constituir sessões de tortura entre os homens, nem
desafios à resistência mental de alguém, nem, quiçá, exercício de sadismo
inquisitorial ou de campo de concentração nazista, ambos da mais asquerosa
memória.
Desconhecerão porventura aquelas autoridades,
aqueles servidores e aqueles segmentos administrativos que a Constituição
proíbe penas cruéis no direito brasileiro?
E desejam então, com os editais que se examinam a
torto e a direito em todos os cantos do país, aplicar aos licitantes a pena
crudelíssima de ter de ler, do início ao fim, aquelas labirínticas e escabrosas
mixórdias ?
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Qual a recompensa a quem demonstrar que as leu
por inteiro, indulgência plenária no apocalipse ? Um tanque de caviar ?
Duzentos e cinqüenta virgens no paraíso, como alguém, bem a salvo, promete a
terroristas suicidas e desprovidos por certo de uma só célula cerebral ?
Seja escusado o quiçá excessivo tom de pilhéria.
Ela, toda inteira, não é mais ridícula que referidos editais.
Edital de licitação não pode ser espantalho de fornecedores
Sempre se observam editais francamente ruins por
excessivos, repetitivos, rebarbativos, prolixos e enfadonhos a todos os demais
títulos, e sempre se tem
ímpeto de escrever sobre isso, sendo que já se
dedicaram partes de livros, e diversos estudos, ao tema. O gatilho para este
artigo, entretanto, foi um único edital de pregão eletrônico para a aquisição de
combustível, de determinada Prefeitura Municipal, à qual agradecemos pela
inspiração e pelo mote.
Tem – ou tinha, espera-se – 31 (trinta e uma)
páginas, e sua leitura foi mais penosa que a de um balanço de banco, desses
inomináveis purgantes que se publicam em página dupla de jornal em corpo
um e espaçamento zero, algo que não se atina como alguém um dia, ainda que
compelido por circunstância atávica, logrou produzir.
Para escrever este artigo-desabafo e trabalhar sobre
aquele edital seria natural que se o imprimisse, já que constava apenas de
arquivo na internet - mas não. O texto não valia a tinta da impressora nem o
correspondente papel sulfite, de modo que não foi impresso mas somente lido
por relances, au vol d’oiseau ou en passant como se sói obtemperar, o que já
constituiu esforço em demasia.
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Com todo o máximo efeito, que tortura chinesa !
Que martírio infando, e que provação cármica ! Que atividade francamente
insalubre ! Que crueldade para com o semelhante !
Qual fornecedor, qual prestador de serviço ou
construtor de obra, por menos confiável que sabidamente seja, merecerá um
castigo equivalente – e por antecipação ?
Editais de licitação não podem ser tenebrosos. Edital não é o labirinto do
minotauro
Nestes tempos tão ecológicos que testemunhamos e
nestas vertentes comportamentais tão declaradamente antipoluentes, e nestas
quadras tão acerbamente ambientalistas e naturalísticas dos dias que correm – e
como demoramos a atingir um semelhante grau de consciência ! -, indaga-se
como ainda é
possível a determinados grotões da Administração pública
permanecer aferrados a um franco primitivismo, avesso a toda e qualquer
evolução institucional, sob o qual se formulam editais de licitação que renegam
o viço de qualquer inteligência.
Acusava-se até há pouco tempo a idade média de a
noite dos doze séculos, numa grosseria histórica que mais recentemente restou
desmascarada por completo – porém aquele epíteto não foi perdido, porque
uma noite tenebrosa dos séculos é como se poderia qualificar uma vasta plêiade
de editais de licitação que se publicam hoje em dia.
Avancemos, então, rumo à escuridão, e vejamos um
exemplo disso, um edital de pregão eletrônico para compra de combustível.
Deveria ser o documento mais simples e raso do
universo, mas já no frontispício exibe a ordem de que os licitantes deverão
lançar o valor unitário pedido por litro de combustível no “caixa-portal de
compras”. Que será isso ? E como exigir lançar desde logo o preço, que é o
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único segredo admitido em licitações, em algum lugar supostamente acessível ?
O edital inicia não mal, mas pessimamente.
Abrindo-se o doloroso documento, lê-se que o
fundamento desse pregão eletrônico é a lei do pregão presencial – que nada tem
com pregão eletrônico, mais um decreto municipal, mais a lei de licitações.
Tudo absolutamente errado. O único fundamento que interessava levantar é o
decreto nacional regedor do pregão eletrônico, o Decreto nº 5.450, de 31 de
maio de 2.005. Toda a legislação mencionada é rigorosamente inaplicável.
Diante disso, a um licitante cônscio do direito
aplicável, como de seus direitos e deveres, já parece temerário avançar por
terreno tão mal assombrado. Mas sigamos, por puro sadismo, edital adentro,
porém sem o varrer com muito rigor porque até o sadismo tem limite.
Anuncia-se
que
será
contratada
empresa
fornecedora ou consórcio de empresas. Ora, passa pela cabeça de alguém a
idéia de ser necessário um consórcio de postos de combustíveis, para vender
álcool, gasolina – in natura e, sem dúvida, também aquela aditivada – e óleo
diesel, além de gás, para encher tanques veiculares ?
Haveria de ser algo
como um consórcio de empresas para fabricar pitos de barro, pios de codorna
ou pavios de lampião. O empreendimento do século talvez, porém seguramente
o suprassumo do ridículo.
Em preâmbulo, e a seguir, o edital anuncia o fim da
etapa de lances, com hora marcada. Ora, como isso é possível se o
encerramento é aleatório, e se o pregoeiro apenas dá o sinal para o sistema
eletrônico encerrar o certame quando quiser, desde então até em 30 minutos ?
Fica-se a seguir sabendo que o edital tem 9 (nove)
anexos. Possivelmente nem todas estas atuais concorrências para privatização
de rodovias federais têm tantos. Alguém, nunca nós, diria: é o capeta, rapaz !..
Depois de repetir umas três ou quatro vezes que o
edital é de pregão eletrônico para aquisição
de combustíveis e que será
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processado pela internet, prossegue o insólito ato convocatório a informar que
os licitantes deverão informar o valor do litro de cada combustível, e o valor
total da contratação. Ora, pelas barbas de Anaximandro se pergunta como
poderiam fazê-lo, se nenhum deles sabe quanto combustível venderá ao cabo
do contrato ?
Um item do edital dita quais poderes deve ter o
procurador de cada licitante. Como pode determiná-lo, se quem constitui,
como quer, o procurador é o licitante, e não o ente público ?
As consultas sobre o edital, prossegue o documento,
deverão ser formuladas até 3 (três) dias úteis antes do início do certame. É
muita restritividade, porque todos devem poder perguntar o que quiserem
quando quiserem.
O edital exige cadastramento do licitante num site
da Caixa Econômica Federal e em um da Prefeitura, para obter senha
provisória; a seguir receberá pela internet seu código de acesso que lhe
permitirá a obtenção da senha definitiva, com a qual poderá elaborar a
procuração necessária à certificação da empresa, ou da líder do consórcio.
E depois de tudo o licitante ainda terá de
comparecer a uma agência da CEF, munido dos documentos mencionados
neste edital,
para, possivelmente após enfrentar alguma fila, efetivar sua
certificação – fazer fila no banco, neste pregão que é todo eletrônico e virtual!..
Será
enfim
o império da grande besta do
apocalipse ?
Parece que o edital se olvidou de preconizar a
aplicação de chicotadas e ferro em brasa
ao licitante
que deixar de
providenciar algo disso elencado. O calvário seria mais suave, e bem mais
humano. E igualmente curioso é que alguém precise prover a tudo isso sem
mesmo ter contra si alguma sentença penal transitada em julgado. A este pobre
escriba parece mais fácil beber gasolina.
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Edital de licitação não é corrida de obstáculos, nem ninho de ratos
Estes subtítulos se devem apenas à necessidade de
não perder a oportunidade de falar algumas verdades, porque o edital segue
com suas impropriedades múltiplas, a rigor e de resto inapropriáveis por
qualquer subtítulo.
Prossegue o sesquipedal documento informando
que empresas em consórcio precisarão apenas credenciar a líder, e que no
momento do credenciamento as micro e as pequenas empresas deverão
selecionar a opção de microempresa – mas a esta altura deve quedar-se o leitor
imaginando a configuração: um consórcio de microempresas ! Que raio de
diabo seria isso ? Para que serve, e de onde proveio uma semelhante ideação ?
Se o consórcio apenas existe para licitar grandes
objetos, e se na prática serve para reunir empresas com atestações diferentes e
que se complementam de modo a atender o edital, então será concebível
imaginar um consórcio de microempresas, sobretudo se constituído para
vender gasolina para uma Prefeitura ?
Por mais de uma vez, com idêntica redação em
negrito e sublinhada,
o edital a seguir informa que os apenados devem
apresentar no credenciamento a decisão judicial em seu favor, suspendendo a
pena. Ora, para quê ? Quem quiser impugnar a participação dessas empresas
que o faça, e somente então aquela apresentação seria exigível, pena de
exclusão das apenadas. Para quê bulir com quem está quieto ?
Prossegue o bestiário mandando o licitante informar
a condição de pagamento, o prazo de entrega e o local da entrega. Ora, pelo
óleo que escorre das barbas de Aarão, então deixou de ser o órgão público,
licitador, que deve determinar essas condições contratuais ?
O licitante,
agora, escolhe como vai receber seu pagamento, e onde e quando vai entregar
o produto ?
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Prossegue o roteiro informando que a proposta deve
ser encaminhada em impresso padrão, segundo a sugestão de modelo anexa ao
edital. Pergunta-se, então: o impresso é padrão, portanto obrigatório, ou é mera
sugestão ? Decida o licitante, e seja muito feliz.
A seguir o documento estabelece uma regra a
respeito da equipe de apoio – no pregão eletrônico, que não tem equipe de
apoio ! Quem precisa de apoio psicológico é, portanto, o autor do edital.
Na seqüência, pela sétima ou oitava vez o edital
informa que o critério de julgamento é o do menor preço – quando todo e
qualquer pregão é sempre, invariavelmente, de menor preço, de modo que nem
uma só vez isso precisaria ter sido dito. Quantas vezes o edital precisa repetir
uma regra para que valha ? Dezessete ? Cento e vinte e quatro ? N fatorial ?
Prosseguindo, o edital menciona preço melhor, e
dá ensejo a perguntar: melhor para quem ? Para o licitante é o maior, para o
poder público é o menor. Por que introduzir, então, o adjetivo melhor, que
neste caso é sempre o pior ?
Edital não é balaio de gato nem festa do caqui, nem a casa da mãe Joana
A quem imagina que as barbaridades cessaram,
recorde Dante Alighieri: lasciate ogni speranza.
O edital informa, num item de três números (_._._),
sobre quem não se enquadrar na condição do caput... e o leitor se põe a
imaginar que caput seria esse, se o anterior item de dois algarismos, se o de um
só...
Quanto à habilitação, essa precisará ser em papel,
por correio ou por entrega em mãos. Existe algo mais imbecil ?
Se o pregão é todo eletrônico, e se os documentos
de habilitação constam da internet, ou podem constar em arquivos próprios e
adequados – sempre sob as penas da lei e risco de cometimento de crime contra
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a Administração -, então será que faz algum sentido desvirtuar tanta eletrônica
e tanta gloriosa virtualidade até o ponto de obrigar ao vencedor eletrônico
postar papeis no correio, para que só então o certame prossiga ? Não é isso o
suprassumo da estupidez burocrática e institucional, que faz corar de vergonha
um ogro medieval ?
Para quê, então, eletrônica, web, internet, senhas,
acessos, cadastro eletrônico, criptografia, encerramento randômico, e tantas
outras bugigangas, trastes e quinquilharias que só deveriam servir a moleques
de férias em casa, os mesmos que aos poucos estão perdendo a capacidade de
falar e de escrever o próprio idioma ?
Não seria mais razoável o pregão presencial, em
que ao menos as pessoas estão ali presentes à sessão e não são possíveis
fantasmas ou abantesmas por detrás de telas e de senhas, e de licitantes
vencedores que, na hora h, quando devem contratar, podem simplesmente não
existir, deixando o ente público tal qual canídeos domésticos que despencaram
do caminhão de mudança ?
Se eletrônica serve para isso, para um semelhante e
interplanetário festival do ridículo, talvez então seja preferível regressar à fase
anterior.
Não se guerreia aqui a eletrônica, nem a internet,
nem a virtualidade, jamais e em tempo algum, porque isso seria de todo insano;
combate-se apenas a extraordinária burrice que ela, curiosamente, suscita nas
pessoas quanto a certos assuntos, como parece ser, por excelência, o pregão
eletrônico. Certas pessoas parecem escudar-se na eletrônica, e na internet, que
são verdadeiramente extraordinárias, para dar-se o direito de desligar o cérebro,
talvez imaginando que a rede mundial supra o desligamento.
Edital não pode ensejar retrocesso à idade da pedra
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A parte deste edital relativa à habilitação do
vencedor das propostas é uma tragédia à parte. Exige até 26 (vinte e seis)
documentos – atenção: estamos num pregão eletrônico para uma Prefeitura
comprar combustíveis.
O
festival
de
ignorância,
de
nonsense,
de
irracionalidade sobre irracionalidade, de incultura, de primitivismo, é neste
momento insuperável.
A insegurança do autor é tamanha que ele julga que
é preciso exigir tudo que as misturadas e baralhadas regras legais que o edital
erradamente invoca como fundamento – e que de direito e em verdade seria
apenas um decreto, meus amigos, um simples decreto ! – permite exigir, sem
mandar exigir coisa alguma, sendo que por vezes, neste específico caso, nem
mesmo permite !...
Num semelhante cenário verificam-se documentos
contraditórios entre si, como documentos de sociedades civis – que não
vendem gasolina -, ou de empresas estrangeiras – que não podem participar
deste pregão nacional, dentre outras bárbaras estupidezes que envergonham um
onagro, e que não se reportam por desnecessidade e para não somar atrocidade
a atrocidade.
O bom humor do início cede vez, agora, ao péssimo
humor ao se constatar, ainda uma vez, que setores da Administração pública
insistem em permanecer no escuro cósmico, na selvageria institucional, na
negação da engenhosidade humana, na mão avessa à da evolução, quais cegos
que não querem ver, quais seres ignaros que se ufanam dessa condição, quais
coisas medíocres que disso garbosamente se orgulham.
O país, em sendo assim, institucionalmente precisa
ser péssimo como está e como em definitivo parece que é: não há meio de ser
diferente.
Será mesmo esse nosso final destino ?
condenados a algo parecido ?
Estaremos de fato
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Confiemos nos próximos quinhentos anos.
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edital de licitação não é provação iniciática.