30 Quinta-feira 4 de dezembro de 2014 Jornal do Comércio - Porto Alegre Geral Prevenção não é mais prioridade Suzy Scarton [email protected] Semelhança entre expectativa de vida de infectados e de não infectados serve como impulso para o descuido Os números são altos, mas já foram maiores. A doença ainda assusta, mas já foi sinônimo de sentença de morte. De acordo com o Ministério da Saúde, nos primeiros 21 anos da epidemia no Brasil, entre os anos 1980 e 2001, o número de casos de Aids registrados foi de 275.850. No Estado, foram 21.577. Já nos 11 anos seguintes, entre 2002 e 2013, foram registrados 481.192 casos no País. O Rio Grande do Sul, no mesmo período, contabilizou 54.735 diagnósticos de HIV. Percebe-se que não houve queda no número de ocorrências. Ao contrário, em 11 anos (2002 a 2013), o número de novas infecções é 74,4% maior do que nas duas décadas anteriores (1981 a 2001). O fato curioso é que foi exatamente nesse período, mais especificamente a partir de 1996, que o Brasil garantiu o acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, mesmo com mais atenção na rede pública, as infecções não cedem. Com a disseminação do tratamento com antirretrovirais, as pessoas infectadas pelo HIV vivem mais. E vivem bem. Em outubro deste ano, 398,4 mil indivíduos estavam em terapia antirretroviral, o equivalente a 54% das pessoas que viviam com o vírus no Brasil. O número é bastante superior aos 125 mil beneficiados em 2002. No entanto, ainda é preciso levar em consideração que, somente em 2013, 35,2% dos casos de Aids deixaram de ser notificados ao Ministério da Saúde. O sub-registro questiona a qualidade do serviço de controle e vigilância, uma vez que deixa alguns infectados à mercê da própria sorte. Dessa forma, a evolução do combate à doença foi boa, mas não ótima. De acordo com a coordenadora do programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil, Georgiana Braga-Orillar, existe, agora, uma fadiga na questão da prevenção. O assunto saiu da pauta. Os jovens de hoje não acompanharam o desespero dos ídolos de outrora, que enfrentaram e padeceram diante da enfermidade. A Aids é quase vista como uma peste negra, que foi perigosa no passado, mas não representa ameaças no presente. É por isso que os novos casos ainda são preocupantes. A camisinha, principal método preventivo contra a infecção, é deixada de lado. O tradicional comportamento inconsequente dos jovens aparece como possível justificativa para o desleixo com relação à proteção durante relações sexuais. Quanto aos idosos, avanços na medicina proporcionaram um aumento na expectativa de vida. Sendo assim, pessoas na terceira idade ainda mantêm uma vida sexual ativa e precisam, naturalmente, se prevenir. Em 2002, houve 995 casos de Aids em pessoas com 60 anos ou mais notificados no Brasil. Em 2013, o número passou para 1.978. “Os idosos, principalmente as mulheres, têm vergonha de assumir que são sexualmente ativos. Têm vergonha de entrar em uma farmácia e comprar preservativo”, relata Georgiana. Para que essa situação mude, a coordenadora argumenta que é preciso trabalhar na sensibilização dos profissionais da saúde para identificar o idoso como público-alvo. Sensação de segurança contribui para o aumento no número de casos nos últimos anos Para o coordenador da Área Técnica HIV/AIDS e Hepatites Virais da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre, Gerson Winkler, os avanços médicos que dizem respeito ao tratamento e à assistência dos pacientes e a constatação de que os infectados vivem com uma qualidade de vida igual à dos não infectados certamente contribuíram para o afrouxamento das medidas preventivas. “Perdemos o contexto de visibilidade com relação ao HIV. Chegamos a pensar que seria preciso ressignificar questões acerca da prevenção e do uso da camisinha”, argumenta. Porto Alegre é a capital brasileira que apresenta maior incidência de novos casos no País. Winkler acredita que fatores que dificultam o acesso ao serviço de saúde pública e à informação contribuem para que esse número seja tão alto. A SMS trabalha com especial atenção na Vila Cruzeiro e nas regiões da Lomba do Pinheiro e do Partenon, na zona Leste, que possuem alta incidência da doença. Além de prestar atendimento às escolas da região, a pasta, em parceria com a Secretaria Municipal da Educação, elaborou o “Galera Curtição”, um projeto que propõe diálogo com as escolas através de programas de auditório e gincanas. A SMS estabeleceu, também, um acordo com proprietários de estabelecimentos noturnos, como bares e boates, para que disponibilizem gratuitamente camisinhas masculina e feminina e géis que facilitam a prática sexual entre idosos. Quem tem mais de 60 anos também está no foco de ação da secretaria. “Os idosos se reúnem nas unidades de atendimento à saúde, então trabalhamos para que a discussão sobre a prevenção esteja mais presente no cotidiano deles.” De acordo com o último relatório da Unaids, divulgado em julho, entre 2005 e 2013, as mortes por Aids caíram 1/3 no mundo. No Brasil, os novos casos cresceram 11%. Para Georgiana, coordenadora do programa no País, esses números causam suspeitas de que a epidemia esteja voltando. Ela atribui parte do aumento das incidências ao silêncio da sociedade, da mídia e dos órgãos governamentais com relação aos perigos da Aids, uma vez que um falso sentimento de segurança possa ter se espalhado e provocado novas infecções. Estado tem preocupação com grupos vulneráveis A preocupação do Estado com relação à doença é basicamente a mesma demonstrada pelo município. De acordo com o coordenador da Política Estadual de DST/Aids, Ricardo Charão, a pasta vem trabalhando, desde 2011, de modo a aperfeiçoar a qualidade das ações preventivas e de tratamento aos gaúchos infectados. “Oferecemos apoio a organizações não governamentais que trabalham especialmente com as populações mais vulneráveis à infecção, como homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e usuários de drogas, que por vezes se contaminam devido à troca de seringas”, descreve. Segundo Charão, entre 2012 e 2014, cerca de R$ 5 milhões foram investidos no trabalho dessas ONGs. Além disso, R$ 15 milhões do tesouro estadual foram aplicados em ações de prevenção e na redução de prejuízos originados devido à ausência de investimentos em governos anteriores. Charão também destaca o distanciamento da geração atual do peso nefasto da doença. “Quem já alcançou a casa dos 40 anos, lembra bem do momento em que a epidemia se espalhou, relembra o sofrimento do cantor Cazuza e de outras figuras públicas que não sobreviveram à luta contra a Aids”, comenta. Hoje, com a universalização do tratamento e a distribuição gratuita dos medicamentos para a prevenção e cuidados, torna-se cada vez mais rara a morte de alguém vitimado pela doença. “É algo que afeta o comportamento, diferentemente das gerações anteriores, que passaram a usar preservativos e tomar muito cuidado porque temiam os riscos.” O coordenador destaca que, embora a educação sexual nas escolas seja importante para ensinar que a sexualidade é boa para o ser humano, a ideia de cuidado e de responsabilidade no uso de preservativo precisa ser igualmente difundida. A atenção dispensada ao combate à infecção deve ser diferenciada para evitar um recrudescimento da epidemia. O Estado apresenta uma grande concentração de grupos vulneráveis. Contudo, há aqueles fora desse espectro que também contraem a doença. De acordo com Charão, o perfil dos adultos infectados mudou nos últimos anos e atinge grupos que não eram julgados vulneráveis, como homens heterossexuais entre 20 e 45 anos. Mesmo que, nos últimos três anos, o Rio Grande do Sul tenha investido no combate, Porto Alegre ainda é a capital com a maior incidência. Para Charão, o quadro não mudará tão cedo. “Estamos captando, agora, casos antigos de infecção. Ainda seremos, por muito tempo, a capital com maior número de casos.” Número de pacientes em terapia antirretroviral no Brasil FONTE: MINISTÉRIO DA SAÚDE 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 85.078 93.414 113.191 125.175 139.868 156.670 164.547 174.270 180.640 192.535 231.146 257.037 284.390 313.175 354.519 * até outubro 398.477