OS VAZANTEIROS DE PAU DE LÉGUA E SUA TERRITORIALIDADE¹
CAMILA BRAGA SILVA
Graduada em Ciências Sociais pela UNIMONTES
[email protected]
THAÍS DIAS LUZ BORGES SANTOS
Graduanda do 8º período de Ciências Social pela UNIMONTES
[email protected]
INTRODUÇÃO
Os símbolos, os discursos e as práticas sociais se consolidam na memória e nas
representações sociais a partir do território e do lugar. O conceito de território permite a
análise das representações presentes no Sertão do Rio São Francisco, Norte de Minas,
buscando entender a mobilidade e as diferenças entre o lugar de origem e de destino.
Brandão e Paula (2008), afirmam que:
As modificações no campo e na cidade que introduzem novas formas
de contextualização do campo e da cidade, provocando a mobilidade
espacial de milhares de famílias que sem muitas esperanças no campo
seguem para a cidade em busca de algo que não sabem aonde
encontrar, mas sabendo que não podem aguardar no meio rural.
Incessantemente, permanecem chegando e partindo na procura de
trabalho, de bico, de alguma forma de sobreviver. Não escolhem
ocupações, aceitam qualquer tipo de serviço. O espaço se transforma
através da práxis dos homens, que são totalmente alienadas ao capital,
através da ideologia de uma sociedade urbana, mundializada,
tecnificada e ilusoriamente “promissora”. (BRANDÃO; PAULA,
2008, p.02)
A preocupação com a proteção da biodiversidade e o compromisso com as origens das
alterações no ambiente e seus respectivos efeitos sociais e econômicos, faz despontar
movimentos políticos no século XX, que criticam a moderna sociedade industrial e
trazem a tona a temática ambiental, em âmbito internacional na intenção de impedir a
degradação dos ecossistemas e recursos naturais do planeta.
Este artigo busca à partir da análise de conflitos ambientais e do conceito de
territorialidade, trazer à tona o que se passa com os vazanteiros da comunidade Pau de
Légua.
¹ Trabalho realizado à partir de pesquisa de Iniciação Científica.
DESENVOLVIMENTO
A comunidade vazanteira da Ilha de Pau de légua encontra-se à margem
esquerda do rio São Francisco, pertencente ao município de Matias Cardoso no Norte de
Minas Gerais, e está distante cerca de mil metros dessa cidade.
O sertão do Norte de Minas Gerais, também é conhecido como Região Mineira
do Nordeste. Paula (2003) afirma a partir de dados da Fundação João Pinheiro que o
Norte de Minas é composto de três regiões: “1-Bacia do São Francisco, que envolve
sete unidades da federação (alguns municípios do Norte de Minas); 2-Vale do São
Francisco, que abrange parte da região Nordeste, parte do Polígono das Secas e parte da
região Sudeste; 3- Semi-árido Brasileiro, que compreende o Polígono das Secas.(7)”.
Segundo a autora a formação do Norte de Minas se deve “a expansão da pecuária
bovina e a disponibilidade de terras livres”.
Na época da Mineração, durante o séc. XVIII, o Norte de Minas era fornecedor
de alimentos para a região das Minas. Mas somente com a Ferrovia instalada em seus
territórios no séc. XX é que a região teve contato com o Brasil em geral e povoou terras
novas.
No final dos anos 50, começou a intervenção efetiva do Estado,
através do investimento no problema da seca. (...)Com a criação da
SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste- e a
implementação de planos diretores começou uma expansão capitalista
impulsionada pelo Estado. (...) Os governos Municipais, estadual e
federal foram parceiros nos incentivos de produção e reprodução do
capital no Norte de Minas, expandindo as empresas rurais e urbanas e
explorando a força de trabalho humano. Na década de 70 o governo
mineiro concedeu muitas áreas de propriedade estatal para empresas
reflorestadoras, o que contribuiu para o êxodo rural. (PAULA et al,
2006, p.5)
O rio São Francisco possui grande importância às comunidades
nortemineiras, porque, suas águas possibilitam as comunidades enfrentarem as
adversidades que assolam a região periodicamente, como as secas. Dessa maneira, essas
comunidades se reproduzem simbólica e materialmente, desempenhando práticas a
partir dos ambientes formados pelas águas do Norte de Minas. Nesse sentido, a
dinâmica do rio, possibilita o surgimento de grupos diferenciados denominados povos
ou comunidades tradicionais. Caracterizados por (BRANDÃO, 2010) como:
(...) pequenas áreas de rede de sítios, de bairros rurais, de quilombos,
arraiais, pequenos povoados e, no limite, de pequenas cidades de vida
e economia predominante agro- pastoril. [...] Ao contrário do que
posamos pensar a comunidade tradicional não se opõe as sociedades
modernas, as cidades, mas emergem como um lugar diferente, que
existe em função da cidade, estas próximas ou distantes, constituem-se
como cenários de referência para os povoadores de comunidades
tradicionais. Existem qualitativamente para a cidade e são, como graus
bastantes variáveis “sociedades parciais com culturas parciais”. Por
isoladas e tradicionais que sejam as comunidades tradicionais
possuem mais formas apropriadas de vida do que formas próprias de
vida.
Às margens do Rio São Francisco,
a relação dos moradores com o rio é
fundamental para a compreensão do modo de vida no lugar. Os territórios são gestados
na compreensão da simbiose com o rio. A compreensão do rio como lugar de obtenção
do alimento do dia a dia provoca nos moradores a delimitação de normas e regras de
utilização do mesmo. Essa forma própria de utilização do rio provoca também a
territorialidade. Para entender esse processo usamos o conceito de território e
territorialidade de LITTLE (2002), onde:
A territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar,
usar, controlar e se identificar com uma parcela especifica de seu
ambiente biofísico, convertendo-a assim seu “território” ou
homeland (cf. SACK 1989: 19). Casimir (1992) mostra como a
territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja
manifestação explica depende de contingências históricas. O fato
de que um território surge diretamente das condutas de
territorialidade de um grupo social implica que qualquer território
é um produto histórico de processos sociais e políticos. Para
analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma
abordagem histórica que trata do contexto especifico em que
surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado.
(LITTLE, 2002: 3 apud MAZZETTO 2007: 222)
A reflexão sobre a territorialidade requer compreender e reconhecer a
realidade sociocultural presente na comunidade, onde os embates sociais, culturais e
econômicos modificam relações com o lugar, modificam modos de vida dos sujeitos
que partem e dos sujeitos que ficam, mas o sentimento de pertencimento com o rio e a
região não deixa de existir. A ocupação e utilização das margens do rio remontam antes
da chegada da colonização portuguesa, quando em seus ambientes já se encontravam
grupos indígenas que possuíam suas vidas reguladas pelos ciclos das águas deste o rio
(RESENDE & CABRAL, 2005).
(...) plantar em várzeas fluviais é uma atividade quase tão antiga
quanto a própria invenção da agricultura pelo homem. Estas áreas de
vazante são escolhidas para serem cultivadas por vários motivos: por
serem altamente férteis e de fácil cultivo; em regiões áridas ou semiáridas por possibilitarem a irrigação; ou ainda pela facilidade de
complementação alimentar oferecida pela pesca.(RESENDE &
CABRAL, 2005,P.01).
Dentro dessa lógica, as águas dos rios proporcionavam diversos usos e
possibilidades de sobrevivência, o que, constituiu-se em fator atrativo para a ocupação
dos grupos humanos nas margens do rio São Francisco. Esses passaram então a
incorporar e organizar seus modos de vida e formar uma identidade específica a partir
da apropriação do lugar. Assim, o rio tem central importância na vida dessas
populações, que o vê muito mais do que um rio, na sua dimensão de natural. “O rio
configura vital importância social, cultural e econômica para os homens que se
instalaram, tomando suas beiras como morada, tornando o seu espaço de lugar e
vivência, sobrevivência e de interação com a natureza.” (DUMONT, 2007, P.31). É
nesse contexto que surgem a categoria dos Vazanteiros que como menciona LUZ DE
OLIVEIRA (2005, p.01):
[...] são as populações residentes nas áreas inundáveis das margens e
ilhas do rio São Francisco que se caracterizam por um modo de vida
específico, construído a partir do manejo dos ecossistemas
sanfranciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem
seu território, atividades de agricultura de vazante e sequeiro, com a
pesca, a criação animal e o extrativismo.
Luz de Oliveira (2005), acrescenta ainda que a categoria vazanteiros é uma
auto-denominação de populações do alto-médio São Francisco, sendo que existe outras
denominações que essas populações podem se identificar, como ilheiro, baranqueiro,
entre outras. A categoria vazanteiro
constrói-se no cotidiano em função do
reconhecimento de um modo de vida diferenciado de convívio com os espaços do rio
São Francisco.
A formação social e econômica do Norte de Minas retrata a desigualdade e
as conflitantes formas do processo de formação da estrutura agrária no Brasil. Nesse
contexto, não muito diferente de outras localizações do território nacional, na região
estudada, as dinâmicas de ocupação do território se deram a partir dos processos de
expropriação de terras, de usurpação de direitos de comunidades tradicionais, e da
negação do reconhecimento da ancestralidade de ocupação do lugar (CAMENIETZKI,
2011). O modo de vida vazanteiro, ainda sim se faz presente no território, que é
concebido como o espaço, concreto e simbolicamente apropriado por determinado
grupo social, cheio de significações (ROCHA, 2010). É ainda, visto como uma fonte de
reprodução das relações de reciprocidade e o principal fator de diferenciação e
identificação dos povos e comunidades tradicionais.
Nesse sentido, o processo de territorialização pode ser compreendido a
partir da conceituação de Santos (2001) e Oliveira (1999), reflete o vivido territorial, em
toda sua abrangência e em suas múltiplas dimensões – cultural, política, econômica e
social. Ela desenvolve-se a partir da existência comum dos agentes, exercendo-se sobre
um mesmo espaço geográfico. Oliveira (1999) caracteriza a territorialidade como um
processo de reorganização social em um determinado espaço social com implicações
nas diversas dimensões da vida, desde a criação de uma nova unidade sociocultural e/ou
uma identidade étnica diferenciada, passando pelo processo de constituição de
mecanismo político, por uma redefinição de controle sobre os recursos ambientais e, por
fim, à reelaboração da cultura em relação ao passado.
Embora, legalmente, na comunidade Vazanteira de Pau de légua, a
apropriação desses espaços de morada só aconteceu a partir da constituição de 1988,
que passou a afirmar e reconhecer a multiplicidade da Nação Brasileira e garantir
direitos constitucionais específicos a grupos sociais diferenciados. “Daí então tais
grupos passaram a reconhecidos como senhores de direitos ancestrais.” (BRANDÃO,
2010). O percurso de afirmação da tradicionalidade e etnicidade das comunidades
tradicionais tem sido pautado pela resistência e luta em busca da afirmação dos seus
direitos em contraposição a interesses que constantemente tem colocado em xeque os
direitos fundamentais destas populações.
E, sob essa análise, atualmente a comunidade de Vazanteiros de Pau de
Légua tem sobreposto a seu território tradicional o Parque Estadual da Mata Seca,
criado pelo decreto n° 41.479, de 20 de dezembro de 2000, sem consulta pública 1e em
“compensação ambiental” ao Projeto de Fruticultura Irrigada Jaíba (ZHOURI et al,
2008).
Na prática, as medidas compensatórias são proposições para a reparação dos
impactos socioambientais de empreendimentos e são ações necessárias para a concessão
do Licenciamento ambiental. Trata-se de um procedimento administrativo de exigência
legal do Estado em relação a atividades causadoras ou potencialmente causadoras de
impactos ambientais (ZHOURI et al, 2005).
O projeto de irrigação do Jaíba está localizado nos municípios de Matias
Cardoso/MG e Manga/MG, criado nos anos 1980, encontra-se na etapa II do projeto,
destaca-se por um lado pela implantação do cultivo irrigado e processamento de canade-açúcar para a produção de etanol e pinhão manso para óleo vegetal.
As condições climáticas adversas tem sido o discurso usado pelos políticos,
técnicos de diversas áreas como a causa do subdesenvolvimento do Nordeste (e Norte
de Minas). E, desde o final dos anos cinquenta, como lembra Rodrigues (1998) Celso
furtado efetuou diagnósticos, chamando atenção para importância do desenvolvimento
de ações que buscassem conviver com a seca da região. Por isso considerava importante
o desenvolvimento da agricultura irrigada, para estimular a produção de alimentos,
manter a regularidade da oferta de forma a atenuar da estiagem prolongada e a criação
de uma classe de agricultores regantes, organizados em unidades familiares. O projeto
Jaíba é então criado decorrente do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), para o
desenvolvimento do Noroeste e Norte de Minas Gerais (RODRIGUEZ,1998)
Já a criação da unidade de conservação integral
2
constituída como medida
de compensação ambiental, à implantação da fase II do projeto Jaíba, e, em geral a
criação de áreas protegidas constitui-se em uma importante estratégia de conservação
dos recursos naturais, já que nas últimas décadas, estes têm se tornado cada vez mais
escassos e tem sido também cada vez mais frequentes as catástrofes ambientais. No
entanto, apesar dos eventos ocasionados pelas imprevistas reações ambientais, pode-se
1
De acordo com a lei, a criação das unidades de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e
consulta pública, principalmente no que se refere as comunidades diretamente afetadas, além da
obrigação do Estado na elaboração dos Planos de manejo para áreas delimitadas.
2
São Unidades de Proteção Integral (UPI): Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional,
Monumento Natural e o Refúgio da vida Silvestre. E tem como lógica a preservação da natureza silvestre
sem a presença do homem.
considerar que a questão central em torno da consolidação dessas medidas,
principalmente, no âmbito institucional ou legal, constitui-se nas externalidades de um
modelo de exploração dos recursos naturais, uma vez que estes têm demonstrado os
seus limites que até não eram vistos pelo homem. Essa perspectiva se inscreve no
“ecologismo preservacionista”, que tem impulsionado mudanças de postura com relação
as políticas de conservação, como já comentado no capítulo anterior (ALIER, 2007) ,
propõem ainda a internalização das externalidades, que se realiza na prática, muitas
vezes a partir da criações de parques e reservas. Constituindo–se como um modo de
corrigir os danos ambientais causados por modelos de desenvolvimento, tal qual o
Projeto de Irrigação de Fruticultura do Jaíba.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os deslocamentos forçados das comunidades tradicionais em decorrência da
implantação da unidade de conservação integral ocasiona também a mudança nos seus
modos de vida, ocasionando tensões que colocam essas populações em condições de
vulnerabilidade.
Com uma área de 10.281,44 ha, sua implementação como unidade de
conservação integral vem comprometendo gravemente a soberania
alimentar e a reprodução sociocultural das 57 famílias vazanteiras, que
são impedidas de realizar suas práticas agroecológicas tradicionais e
acessar recursos naturais imprescindíveis ao grupo. (CAMENIETZKI,
2011, citado por, MAPA DOS CONFLITOS AMBIENTAIS DE
MINAS GERAIS. Disponível em: conflitosambientaismg.Icc.ufmg.br
,acessado em maio de 2012).
A anterioridade vazanteira e a expropriação da comunidade de Pau de
Légua por grandes fazendeiros da região, são desconsiderados pelo
IEF, bem como o processo de retomada de seus territórios tradicionais
a partir da década de 70. Ou seja, num período anterior a 30 anos da
criação do Parque Estadual da Mata Seca, os vazanteiros já se
encontravam em seus territórios. Entretanto, estes são criminalizados
pelo órgão ambiental, que utiliza do seu poder institucional
fiscalizador, para repreender, punir e coibir a ocupação tradicional da
área. A ação empreendida pelo órgão ambiental é de vigilância
ostensiva em relação aos vazanteiros e vazanteiras do Pau de Légua, o
que envolve intimidações, ameaças de despejo e notificações
constantes (Araújo,2010 & Camenietzki ,2011, citado por, MAPA
DOS CONFLITOS AMBIENTAIS DE MINAS GERAIS. Disponível
em: conflitosambientaismg.Icc.ufmg.br ,acessado em maio de 2012).
No Norte de Minas Gerais, existem muitos fatores que estão por trás dos
processos migratórios, sejam eles motivando a saída ou o retorno para o seu lugar de
origem. Passado, presente e futuro hora se confundem, ora se impõe, influenciando nas
decisões dos indivíduos. O que há de mais forte por trás dessa migração é a necessidade
de sustento.
Sendo assim, a desterritorialização “ocorre sem grandes preocupações do
setor público quanto as futuras condições de sobrevivência para os antigos moradores
que eram pequenos produtores” (PEREIRA, 2005, P.131).conflitos ambientais, em
decorrência da expansão dos agrocombustíveis se despontam, envolvendo grupos
sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território”
(ACSELRAD, 2004, p.26). “E as lutas por recursos ambientais, são assim,
simultaneamente lutas por sentidos culturais” (ACSELRAD, 2004, p.19).
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