Teatro 27+28 Nacional Out São João 2012 Atelier 200 Oficina/Leitura encenada direção Cristina Carvalhal, Nuno Cardoso, Nuno M Cardoso, Victor Hugo Pontes realização vídeo João Tuna produção TNSJ para a União dos Teatros da Europa sáb 9:30‑13:00 – 14:30‑19:00 dom 13:30‑20:00 Teatro Nacional São João Praça da Batalha 4000-102 Porto T 22 340 19 00 www.tnsj.pt [email protected] 1 Em As Troianas (415 a.C.), começamos por avistar as ruínas fumegantes da cidade de Tróia, mas avistamos também o conhecido aforismo de Platão, que lhe poderia servir ainda hoje de epígrafe: “Só os mortos conhecem o fim da guerra”. Em Atelier 200, projeto de envolvimento da comunidade com o universo teatral, um grupo de cidadãos reúne‑se para uma leitura encenada de excertos desta tragédia de Eurípides e da versão que Jean-Paul Sartre assinou em 1965, formando um coro expandido, sem protagonistas. Duzentas vozes orquestradas por quatro encenadores – Cristina Carvalhal, Nuno Cardoso, Nuno M Cardoso e Victor Hugo Pontes –, a que se junta o videasta João Tuna, que registará o evento. Concebido em 2010 pelo MC93 Bobigny (França), Atelier 200 chega este ano, com o patrocínio da UTE, a cinco outros teatros europeus: Schauspielhaus Graz (Áustria), Teatro di Roma (Itália), Teatro‑Laboratório Sfumato (Bulgária), Maxim Gorki Theater (Alemanha) e TNSJ (Portugal). O resultado destas oficinas, todas elas a trabalhar a partir de textos diferentes, será apresentado publicamente no final do ano sob a forma de uma instalação vídeo, de onde emergirá um coro de 1200 pessoas. Uma comunidade cívica capaz de interpelar a Europa a uma só voz. O teatro também serve para isto. PLANO DE TRABALHO 27 Out 2012 sáb 9:30‑13:00 – 14:30‑19:00 9:30 10:00 Acolhimento, distribuição de documentação e preparação dos participantes Apresentação, por Nuno Carinhas, do programa, dos encenadores e da peça As Troianas de Eurípides 11:00 Início do trabalho com o encenador Victor Hugo Pontes 13:00 Pausa para almoço 14:30 Continuação do trabalho com o encenador Victor Hugo Pontes 16:00 Pausa 16:30 Início do trabalho com o encenador Nuno Cardoso 19:00 Final do primeiro dia de trabalho 28 Out 2012 dom 13:30‑20:00 13:30 Receção 14:00 Início do trabalho com a encenadora Cristina Carvalhal 16:30 Pausa 17:00 Início do trabalho com o encenador Nuno M Cardoso 19:30 Conclusão 20:00 Despedida 3 As Troianas de Eurípides/Jean‑Paul Sartre Excertos selecionados por victor hugo pontes* Cena III hécuba, depois as troianas. hécuba (Tentando levantar-se.) De pé, pobre velha! Endireita a cabeça. A sorte desandou: aprende a ter paciência. De que valem lamentações? Para quê remar contra a maré? À deriva! À deriva! Se o destino te leva: deixa-te levar. (Falta-lhe a coragem. Deixa de procurar convencer-se.) Não posso resignar-me. Dor, ó minha dor, não há uma dor no mundo que não seja minha! Rainha, fui esposa dum Rei. Dei-lhe os mais belos filhos: a lança grega os matou, um a um. E Príamo, meu marido, meu Rei, eu estava lá quando o degolaram sobre os degraus do altar; vi a sua garganta aberta e o sangue que dela brotava. As minhas filhas, criei-as eu para os maiores Reis da Ásia: irão servir na Europa pérfidos senhores. Ó minha raça, vela, enfunada de glória, estalando ao Sol, o vento cessa e tu desabas. Eras apenas vento. (Pausa.) Falo demasiado, mas não posso calar-me e o silêncio não vale mais do que as palavras. Chorar? Já não tenho lágrimas. Pudesse deitar o meu corpo sobre a terra e cumprir o meu luto sem rumor, rolando dum lado para o outro, como um barco na tempestade. 4 (Vai a deixar-se cair no chão mas sustém-se e levanta-se.) Não. Os desgraçados estão sós no mundo, mas resta-lhes uma voz para cantar. Cantarei. Navios, belos navios, há dez anos qual era o vosso rumo? Os remadores esforçavam-se, as proas fendiam o mar violeta, de porto em porto, qual era o vosso rumo? Buscar a Grega infiel, Helena, esposa de Menelau, e trazer a morte aos Troianos. Navios, belos navios, chegados aos nossos portos, homens de ferro saltaram de vossas pontes. Há dez anos. Há dez anos. Hoje, ides de novo partir e convosco me levais, a mim, a Avó, com o rosto devastado, a cabeça rapada, servirei outro senhor. Seria necessário massacrar o meu povo, mergulhar as mulheres no pesado luto, precipitar-me a mim na abjecção pela glória de levardes aos Gregos a vergonha da Grécia? (Bate as mãos.) De pé! Viúvas troianas, virgens de Tróia, noivas dos mortos, olhai estas pedras que fumegam e enegrecem, olhai-as pela última vez e lamentemos a nossa sorte. (O primeiro coro sai das tendas.) o corifeu Os teus gritos trespassaram a tela das nossas tendas, e o medo, rasgando o nosso peito, chegou aos nossos corações. Que nos queres dizer, Hécuba? 5 hécuba Olhai os barcos na baía. uma mulher Os Gregos içaram as velas. uma outra Vejo homens que levam remos. todas Vão partir. o corifeu (Voltando-se para as tendas.) Vinde conhecer a vossa sorte. Os Gregos preparam o regresso. Deixai as tendas, desgraçadas, vinde todas! hécuba Não! Todas não. Todas, excepto Cassandra! Impedi-a de sair: está louca. Poupai-me, pelo menos, a maior das dores: corar diante dos Gregos. uma mulher Que vão eles fazer-nos? Matar-nos aqui mesmo? outra mulher Arrancar-vos à nossa terra, levar-nos sobre as águas? hécuba Apenas sei uma coisa: o pior será certo. (Fala consigo.) Escrava. De quem? Onde? Em Argos? Em Ftia? Numa ilha do mar? Velha miserável mais morta do que viva, inútil abelha num enxame alheio, para que posso eu servir? Ficarei dia e noite diante duma porta, 6 ou então guardarei crianças, ou farei, talvez, o pão. Farrapo, ó meu triste corpo, te cobrirão de farrapos, dormirás na terra nua. (Pausa.) E eu era a Rainha de Tróia! uma mulher Se voltar a fazer correr a minha lançadeira não será nunca mais nos teares de Ida. outra mulher Já não tenho família, a minha casa ardeu. Vejo as paredes queimadas pelo fogo e sei que pela última vez as vejo. Ai, ai, ai, ai! o corifeu Cala-te! Não gastes a paciência. Piores sofrimentos estão ainda para vir. uma mulher Há sofrimentos maiores? outra mulher Sim. Talvez um Grego uma noite te meta à força na cama. a primeira Essa noite maldigo-a já pelo horror que nas suas trevas oculta. uma mulher Desenraizada. Arrancada à Ásia, terei de viver e morrer na Europa. Isto é: no Inferno. outra mulher Talvez venha a ser aguadeira. outra mulher Se me coubesse em sorte ser escrava na Ática, 7 ou na terra fecunda do Peneu aos pés do Olimpo! Dizem que é bom viver ali, mesmo como escrava. uma mulher Tudo, menos as margens detestadas do Eurotas. Aí, verei Helena triunfante e terei de obedecer a Menelau, o carrasco de Tróia. o corifeu Atenção! Vem alguém! os outros Quem? o corifeu Um Grego. Como ele corre! Vem anunciar-nos o nosso destino. Pronto. Tudo está decidido. Ainda não deixámos a nossa terra e já lá longe, sobre a terra dória, somos escravos. Cena VI hécuba, o coro. o corifeu Hécuba! Caiu sem um grito. Como podeis abandoná-la? É ainda a Rainha Levantai-a! (As mulheres levantam-na.) hécuba Não desejava a vossa ajuda e não a agradeço. Queria abraçar estreitamente a terra e confundir-me com o inconsciente inerte. Porque nós estamos inertes, entendeis? Nada mais podemos fazer a não ser esperar e sofrer. Inertes, mas conscientes, infelizmente! 8 coro Rainha, imploremos aos deuses! hécuba (Irritada.) Não! São aliados suspeitos. Calemo-nos. coro O silêncio apavora. hécuba Então, deixemos as lamentações e lembremos o nosso último dia de felicidade. coro (Vozes alternadas.) Era ontem. O nosso último dia de ventura foi para Tróia o começo da morte. Do alto das muralhas, nessa manhã, vi a praia e o mar desertos a perder de vista: Os Gregos tinham queimado as tendas, a frota tinha desaparecido. Só, no meio da planície, havia um grande cavalo com quatro rodas, um cavalo de madeira com arreios de ouro cintilante. Todo o povo troiano, em pé, sobre a rocha da cidadela, gritava: “A guerra acabou, foram-se embora; – os Gregos levantaram o cerco – acabaram os nossos sofrimentos: colocai o ídolo de madeira na nossa Acrópole! Consagrá-lo-emos a Palas Atena, a nobre filha de Zeus que nos perdoou”. Toda a gente gritava e cantava e se beijava nas ruas. Os velhos e as virgens, nas ombreiras das portas, perguntavam: “Que aconteceu?” e nós respondíamos: “É a paz”. Ataram-se cordas ao ídolo para o içar até ao templo de Atena. Eu ajudei, como todos. 9 Empurrei, puxei, esforcei-me. O trabalho acabou ao fim do dia, e toda a noite cantámos vitória ao som de flautas lídias, e depois, uma a uma, se apagaram, nas casas, as candeias brilhantes, e as tochas fumegantes nas ruas. Nós, esgotados pela alegria, cantávamos ainda no escuro, em voz baixa: a paz! a paz! Assim acabou o último dia de Tróia, o nosso último dia de ventura! o corifeu Não há pior mentira do que a felicidade. Fascina na aparência e não deixa ver a besta imunda que oculta. Era meia-noite, as casas ainda repercutiam os nossos cantos, quando, do alto da cidade, até ao último casebre da cidade baixa o grito de morte irrompeu. Era a guerra e Palas não tinha perdoado. Os Gregos, saídos do seu esconderijo, degolavam os homens e as crianças do sexo masculino. Acabara-se o último dia de ventura. Começava o primeiro dia do nosso fim. hécuba Tróia não foi conquistada. Os Troianos não foram vencidos. Uma deusa, pérfida e rancorosa como uma mulher, os entregou. o corifeu Rainha, olha. Um carro! (hécuba fica imóvel.) 10 As Troianas de Eurípides Excertos selecionados por nuno cardoso** I hécuba Deixai-me ficar aqui tombada. Sofro, sofri e sofrerei ainda dores merecedoras de tais quedas. Da régia família que era, numa casa real me casei. E dessa união gerei filhos. Nenhuma mulher troiana, helena ou bárbara poderia gabar-se de ter criado outros assim. E a esses, vi-os cair sob a lança dos Gregos, e este meu cabelo cortei-o ante a sepultura desses mortos. Ao criador desta raça, a Príamo, chorei-o, porque o vi degolado no altar doméstico; e vi a cidade destruída. As jovens que criei para as honras do himeneu com homens valorosos, criei-as para outros, que das mãos me arrancaram. Já não resta esperança de ser por elas vista, nem eu jamais poderei tornar a vê-las. Já velha, parto para a Grécia, como escrava. Ah! Desgraçada de mim! Por causa das núpcias de uma só mulher, quantas desgraças sofri, e quantas sofrerei! 11 As Troianas de Eurípides/Jean‑Paul Sartre Excertos selecionados por nuno cardoso* II Cena VII hécuba, o coro, andrómaca, uma mulher. uma mulher Olha, repara. É Andrómaca, a tua nora, a mulher de teu filho Heitor. Traz Astianax nos braços. hécuba Desgraça! Ó desgraça! andrómaca Porque te lamentas? A desgraça é MINHA. hécuba É nossa. andrómaca Não. hécuba Não sois meus filhos? andrómaca Éramos. hécuba Eu trago o luto de todos os meus filhos. andrómaca Eu apenas trago o luto de Heitor. hécuba Eu choro a nossa cidade em chamas. andrómaca Eu choro a cidade de Heitor. hécuba Choro a nossa casa real. andrómaca E eu a casa onde me tornei mulher 12 e onde nasceu Astianax. hécuba Ela arde, ela arde, ela se desmorona. Tudo vai desaparecer. andrómaca Por tua causa. Deste a vida a Páris, o aventureiro. Os deuses sabiam que era um monstro. Ordenaram-te que o matasses. Tu não o fizeste. És castigada. E nós, inocentes, sem partilhar do teu erro, partilhamos do teu castigo. Podes orgulhar-te: por amor duma mulher teu filho fez cair Tróia. Palas ri de alegria: aos pés de sua estátua jazem os cadáveres dos nossos; sobre a Acrópole volteiam os abutres, e nós somos escravas! hécuba (Aterrada, esconde o rosto nas mãos.) Príamo, meu esposo, meu Senhor, sai do Hades, diz-lhe que mente! Vem proteger-me. andrómaca Heitor, meu homem de braços fortes que te sacrificaste por nada, nobre vítima dos crimes de teu irmão, vem salvar-me, ou vingar-me. (Contém-se. Mais docemente, mas sem ternura.) Polixena morreu. hécuba Morta! Morta! Como? andrómaca Degolada sobre o túmulo de Aquiles. 13 (Pausa.) Vi seu corpo, saí do carro para o cobrir com o meu véu negro. hécuba Degolada sobre um túmulo, como uma cabra, como um boi. Morte infame! andrómaca Infame, não. Morreu, é tudo. Eu sou mais infeliz porque estou viva. hécuba Que dizes, minha filha? A morte é o vazio – tu bem o sabes. Na vida mais miserável há pelo menos a esperança. andrómaca Que raiva de viver! E sabes que perdeste tudo: os teus filhos morreram e o teu ventre é demasiado velho para gerar outros. Não. Não há mais esperança. Melhor assim. Não te agarres às tábuas podres. Abandona-te; sofrerás menos. A morte é o vazio, é verdade. E o vazio: a calma eterna. Eu sofro e sei. Vivia apenas para bem desempenhar o meu papel de mulher e de mãe. Eu sabia oferecer ao meu Heitor uns olhos calmos e uma presença silenciosa. Apenas desejava para ele a felicidade e, para mim, o nome de esposa perfeita. Foi a minha glória que me perdeu! A fama da minha virtude chegou aos Gregos; o assassino de Heitor tem um filho, Neoptólemo, que me exige para o seu leito. Não quero. Não suporto que a face amada se apague da minha memória. 14 Sinto nojo por aquele que macular as primeiras lembranças da sua carne. Heitor, eu amava-te, amo-te; nunca conheci outro homem. Amava a tua força, a tua coragem, a tua sabedoria, amava as tuas mãos no meu corpo. Impede-me de gemer noutras mãos. Ah! feliz Polixena, assassinada mas virgem; leva-me, esconde-me, o meu corpo causa-me horror e piedade! (A hécuba.) Mentes! A vida é esperança, dizes tu? Eu vivo e a esperança morreu porque sei o que me espera. hécuba Heitor morreu, minha filha, as tuas lágrimas não lhe darão vida. Esquece-o. Com as mesmas virtudes que ele amava, e de que te orgulhas, tenta agradar ao teu novo marido. andrómaca És tu, a velha, tu, a mãe de Heitor, que me dás conselhos de alcoviteira? hécuba Faz o que te aconselho pelo teu filho, por Astianax, filho do meu filho, príncipe de Tróia e último da sua raça, para que um dia, para ele ou para os seus filhos, esta cidade morta renasça e nos vingue. O destino da nossa família está nas tuas mãos. (Entra taltíbio.) 15 Cena VIII Os mesmos, taltíbio. taltíbio (Vai junto de andrómaca.) Não me odeies. andrómaca Porquê? taltíbio Sou apenas um mensageiro. Comunico-te, contrariado, a nova decisão dos meus senhores. andrómaca Sê claro. Parece que tens medo de falar. taltíbio O teu filho… andrómaca Separam-nos? taltíbio Sim, de certa maneira… andrómaca Não teremos o mesmo senhor? taltíbio Ele não terá senhor. andrómaca Abandoná-lo-eis aqui? taltíbio Queria preparar-te. andrómaca Não quero saber dos teus escrúpulos. Vamos, servo, despacha-te! taltíbio Vão matá-lo. 16 (Silêncio. andrómaca aperta o filho contra ela e olha-o. taltíbio continua precipitadamente.) Foi Ulisses. (Pausa.) andrómaca Meu pequenino, vais deixar-me. Vais morrer. Sabes porquê? O teu pai foi demasiado grande, as suas virtudes serão a causa da tua morte. (Bruscamente.) Sai da terra, Heitor, retoma a tua lança. Massacra-os. Salva o teu filho! (Pausa.) Ele não virá, está morto. Estamos sozinhos os dois, meu tesouro; não sou suficientemente forte e não poderei resistir-lhes muito tempo. Vão pegar em ti, vão lançar-te do alto das muralhas, de cabeça para baixo. (Um grito.) Ah! (Pausa.) Corpo, corpo querido, tu ainda vives e cheiras tão bem! (Beija-o.) Tinha orgulho ao dar-te o meu leite. Se eu soubesse, ter-te-ia sufocado com as minhas mãos enquanto te beijava. Beija-me, aperta-me muito, cola a tua boca à minha. (Levanta-se.) 17 Homens da Europa, vós desprezais a África e a Ásia e chamais-nos bárbaros, creio. Mas quando a gloríola e a cupidez vos lançam contra nós, pilhais, torturais e massacrais. Quem são os bárbaros? E vós, Gregos, tão orgulhosos da vossa humanidade, onde estais? Eu vos digo: nem um só de nós ousaria fazer a uma mãe o que me fazeis a mim com a calma da boa consciência. (Violentamente.) Bárbaros! Bárbaros! Matais o meu filho por causa duma prostituta. (Os soldados arrancam-lhe o filho.) Que vergonha para mim: não ter forças para proteger um filho. Malditos sejam os filhos de Ulisses. (Levam andrómaca.) Cena IX hécuba, o coro. (Ao amanhecer.) coro (Depois duma pausa.) A Aurora! Pela segunda vez ela ilumina a nossa cidade em chamas. Pela segunda vez ela ilumina, nas nossas margens, os invasores vindos da Grécia para devastar o nosso país. Há muito nos invejavam as gentes da Europa. Odiavam há muito a nossa raça e chamavam-nos selvagens, eles, que não têm piedade. Já uma vez a sua frota ancorara nas nossas baías. 18 Já uma vez as nossas muralhas haviam sido queimadas e o rei de Tróia caíra sob os seus golpes. Mas, apesar disso, partiram sem conquistar as nossas províncias. Nesse tempo, éramos queridos dos deuses. As muralhas se reconstruiram e a prosperidade depressa voltou porque os deuses nos abençoaram. Aurora, doce Aurora. Eis-te, como ontem e como amanhã, leve e alegre. Os Gregos voltaram, as nossas casas ardem. Os nossos homens morreram. À roda das covas, onde amontoaram os seus cadáveres, volteamos como grandes aves de luto. Mas a tua bela luz suave, gentilmente acaricia as ruínas e os charcos de sangue. (Pausa.) Chegou o fim. A Aurora está horrivelmente bela e os deuses abandonaram-nos. 19 As Troianas de Eurípides Excertos selecionados por cristina carvalhal** poséidon Sou eu, Poséidon, que aqui venho, deixadas as profundezas salgadas do Mar Egeu, onde os coros das Nereides rodopiam em suas formosas danças. Desde o tempo em que em volta desta terra troiana Febo e eu dispusemos, com medida certa, as suas pétreas muralhas, não mais saiu do meu espírito o bem-querer à cidade dos Frígios. Mas ei-la agora fumegante: destruiu-a a argiva lança, que foi a sua perdição. Desertos, os bosques sagrados e os templos dos deuses escorrem sangue; perto dos degraus da base do altar de Zeus, protector do lar, Príamo tombou morto. Ouro em abundância e despojos frígios são carregados para as naus dos aqueus. Só aguardam o vento de popa para, enfim passado o tempo de dez colheitas, reverem mulheres e filhos com alegria – eles, os Helenos, os que marcharam contra a cidade de Tróia aqui presente. Quanto a mim, já que sou vencido pela deusa de Argos, Hera, e por Atena, que, em conjunto, ajudaram a derrotar os Frígios, vou abandonar a ilustre Ílion e os altares que me pertencem, pois, quando a desgraça da devastação se apodera de uma cidade, o culto dos deuses é afectado, e não quer aceitar honrarias. Louco entre os mortais é aquele que arrasar cidades, templos e túmulos, lugares consagrados dos que já partiram. Quem os devastar, mais tarde há-de perecer por sua vez. coro a Ai! Ai! Ai! Ai! hécuba Levanta-te, desventurada! Ergue do solo a cabeça e o colo! O que aqui está já não é Tróia, nem eu sou de Tróia a rainha. Aguenta a mudança da fortuna! coro b Ruma por onde puderes passar, ruma de acordo com a sorte, não voltes a proa do barco da vida contra as vagas, quando navegas ao sopro do destino. mulher 1 Pois porque não há-de gemer esta infeliz, A quem foge a pátria, os filhos, o esposo? 20 hécuba Que hei-de eu calar? Que hei-de não calar? Que hei-de chorar? Dói-me o corpo de jazer nesta desgraça. coro a Ai! Minha cabeça! Ai! Minhas fontes e meus flancos! hécuba Levam como escrava esta anciã para fora de casa, os cabelos devastados, em sinal de luto, de causar dó. Mas vós, esposas desditosas dos Troianos de brônzeas lanças, e vós, donzelas que não tereis desposórios, Ílion está a fumegar! Clamemos! mulher 1 Hécuba, que dizes? mulher 2 Porque gritas assim? mulher 3 A que se refere a tua fala? No meu reduto ouvi os gemidos que soltaste. coro masculino Dardeja o medo no peito das Troianas que, dentro destas tendas, choram a sua escravidão. hécuba Filhas, encaminham-se já para as naus Os remadores dos Gregos. coro a Ai! Que querem fazer? Irão já levar-me por mar, para longe da pátria terra? hécuba Não sei. Mas parece-me ser essa a nossa ruína. vozes Ai de mim! Ai de mim! 21 coro masculino Desgraçadas, que ides ouvir, ó Troianas, de vossas tendas arrancadas, as penas futuras. Os Argivos preparam o regresso. hécuba Ai! Ai! Tróia, miserável Tróia derrubada, miseráveis são os que te deixam, vivos ou já prostrados. coro b Ai de mim! A tremer, deixei de Agamémnon as tendas, para te escutar, ó Rainha! É intento dos Argivos matar esta desgraçada? Ou será que os nautas em seus barcos se aprestam a mover os remos? mulher 1 Veio já algum arauto dos Dânaos? coro a De quem serei, desventurada, a escrava? hécuba Perto estás da tiragem à sorte. coro b Ai! Ai! Quem, dentre os Argivos, levará esta desgraçada para a terra de Ftia ou para as ilhas, longe de Tróia? coro a Ai! Ai! Ai! Ai! Não mais farei passar de um lado a outro a lançadeira em teares troianos. coro b Pela última vez, pela última, contemplo a mansão paterna. coro a Penas mais fortes sofrerei, ou porque me aproxime do leito de um Heleno (maldita essa noite e esse destino!), ou porque vá buscar de Pirene as águas sagradas, 22 como escrava miserável. coro b Quem dera que fôssemos para a ilustre, bem-aventurada terra de Teseu! hécuba E nunca para os redemoinhos do Eurotas, morada mais que todas odiosa de Helena, onde, como escrava, encontraria Menelau, o destruidor de Tróia aqui presente. coro a Mas vejam! Aí vem o arauto do exército dos Dânaos, senhor de novos discursos, pondo termo aos seus passos velozes. coro a e b Que traz ele? Que diz? É que do país dos Dórios somos escravas desde já. 23 As Troianas de Eurípides/Jean‑Paul Sartre Excerto selecionado por nuno m cardoso* Cena V Os mesmos (hécuba, as troianas, taltíbio). cassandra. cassandra Chama, chama leve, levanta-te, dança viva e sagrada, ergue-te orgulhosa sob o céu negro, dança em volta da minha tocha, sobe direita e ágil nos ares! Himen, Himeneu! Bendito seja o esposo. E a mim, virgem do Sol, futura esposa dum grande Rei, ó deuses abençoai-me! (A hécuba.) Toma o facho, Mãe, conduz o cortejo. Mas que aconteceu? Quem choras? Ah! é verdade: meu pai e meus irmãos… Demasiado tarde: vou casar-me. Alegria! Alegria! Lágrimas de alegria! Toma! (Estende a tocha a hécuba.) Não queres? Pois bem. Serei eu a levar o fogo. Himen, Himeneu! Um grego vai desposar-me! Rainha da noite, acende as tuas estrelas. Tantas tochas: tudo arde! Sinto-me fascinada! Serão precisos mil sóis para me iluminar quando eu entrar, Virgem sagrada, no leito dum inimigo. Ergue-te, chama minha, mais alto, mais alto, 24 até ao céu. Evã, evoé. Este dia é mais belo que os mais belos dias do tempo de meu pai. Foibos, meu deus, conduz o coro. E tu, mãe, dança também. Vamos! A compasso! Dança para me agradares. Troianas, onde estão os vossos trajes de festa? É preciso gritar de alegria! Iu! Iu! Cantai comigo! Iu! Iu! o corifeu Segura, Rainha, segura a tua filha senão vai num salto direita à cama dum Grego. hécuba Dá-me esse facho, Cassandra, não o levas direito. coro Delira; a desgraça não lhe fez voltar a razão. cassandra Julgam-me doida! Ouve, Mãe: tens de te alegrar com as minhas bodas reais, e, se de repente a coragem me faltar, empurra-me para os braços de Agamémnon; que ele me leve para Argos. Ali, o nosso grande leito nupcial será o seu leito de morte. Por Helena morreram milhares de Gregos diante das nossas muralhas. Eu farei ainda pior. Cassandra será o seu flagelo. Vai morrer, o grande Rei, o bom Rei, por minha causa! Por minha causa, a sua casa ruirá. Destruirei a sua raça como ele destruiu a nossa. Pára de chorar: chegou o tempo de rir! De rir às gargalhadas! 25 Anuncio-te que meu pai e meus irmãos serão vingados! hécuba Por ti? cassandra Por mim. hécuba Minha filha, pobre escrava sem forças, como poderás tu… cassandra O machado! Ali! Mesmo no meio da cabeça! Não serei eu a segurá-lo, mas garanto-te que ele morrerá, o Rei dos Reis! Oh! Como ele vai sangrar! (Com alegria.) A mim, cortam-me o pescoço. Himen! Himeneu! (Pausa.) Muito tempo depois o filho matará sua mãe e fugirá corrido pelas cadelas. Ponto final nos Átridas! Nunca mais se falará deles. coro Cala-te, Cassandra! Enches-nos de vergonha, a tua mãe tem vergonha de ti. Diante dos Gregos, não, Cassandra! Diante dos vencedores, não! cassandra Para quê calar-me? Repito o que me disse o Sol. Eu poderia… Não! É demasiado sujo. Tendes razão: calar-me-ei. 26 (A hécuba.) Não chores. Os Gregos venceram; e depois? Vencida, incendiada, humilhada, a Tróia cabe a melhor parte. Nesta planície os nossos inimigos caíram aos milhares. Era para defender as fronteiras ou as muralhas da sua cidade? Não. Morreram por nada, no estrangeiro, não mais viram os filhos, nem os pais, velhos cobardes que não souberam impedi-los de partir. Para os Gregos nem sepultura nem libações funerárias! A terra troiana devorou-os indistintamente e as mulheres jamais encontrarão os seus ossos. Outros – que talvez eles odiassem – lhes educarão os filhos. Miseráveis! Engolidos mas não sepultados, nem sequer fantasmas sois. Aqui, comidos pelos vermes; na Pátria, pelo esquecimento. Esquecidos. Aniquilados. Quanto aos vivos, Apolo contou-me o que fazem as esposas e como Clitemnestra espera Agamémnon. Mas não o repetirei. Linda expedição! Para caçar uma infiel, deixaram as mulheres durante dez anos e o adultério instalou-se, tranquilo, em todas as casas da Grécia. (A taltíbio.) É a isto que chamais ganhar a guerra? Nós, nós perdemo-la, é certo, mas não me envergonho. Nem um só morto caiu em terra estranha. Todos morreram defendendo a nossa cidade. Enquanto vivos, todas as noites, depois dos duros combates do dia, voltavam para junto de nós. Quando no campo de batalha as vossas lanças os trespassavam, 27 mãos piedosas recolhiam os seus corpos. Aqui mesmo foram sepultados, com todas as honras, na terra dos antepassados. As suas mulheres puseram luto e Tróia inteira os chora. (A hécuba.) Agradece aos Gregos! Heitor era modesto e brando, foram eles que o obrigaram a ser Herói: com as suas próprias mãos matou tantos Gregos que os séculos futuros repetirão o seu nome. Glória aos defensores da Pátria! Mas os outros, os conquistadores, os que fazem uma guerra injusta e nela morrem, a morte é neles mais estúpida ainda do que a vida. (Para as troianas.) Levantai a cabeça e orgulhai-vos, deixai comigo o cuidado de vingar os vossos homens; as minhas núpcias serão as perdas dos seus carrascos. uma mulher Gostaria de acreditar em ti, Cassandra! Invejo-te esse riso de louca, esse ar de desafio. Mas olha para nós, olha para ti! Tu cantas, tu gritas, e de que vale isso? São apenas palavras. taltíbio Palavras que lhe custariam caro se ela não tivesse perdido a razão. (Para consigo.) É estranho! Veneramos os grandes, julgamo-los sábios, e afinal não valem mais do que nós. O Rei poderosíssimo de Argos 28 meteu-se-lhe na cabeça amar esta louca que eu, pobre diabo, nem por todo o ouro deste mundo quereria. Vamos, bela noiva, anda, segue-me. Ri, chora ou resmunga: ouviste o que disseram as tuas companheiras! Palavras! Só palavras. (A hécuba.) Prepara-te, virei buscar-te logo que Ulisses me ordene. Terás um bom lugar, na nossa terra, serás serva de Penélope, senhora muito honesta, segundo dizem. cassandra Serva? Não vejo aqui nenhum servo senão tu. Tu, lacaio de corte, impudente e servil! Sabes ao menos o que estás a dizer? Minha mãe não irá para Ítaca. Apolo disse-me que ela morrerá aqui. taltíbio O quê? Gostava de ver isso! Um suicídio punha-me… cassandra Quem falou em suicídio? taltíbio E como queres tu…? cassandra Como? Como? Eu sei, mas não to direi. Quanto ao sábio Ulisses das falas subtis, pobre homem, nem imagina o que o espera. Dez anos! Dez anos semelhantes aos que acabamos de viver, cheios de lama, cheios de sangue, antes que volte a encontrar Ítaca. Tudo está preparado. Esperam-no no Mar. Primeiro Ciclope, gigante canibal, que, do alto do rochedo, espreita a carne fresca. 29 Circe, que muda os homens em porcos, os comedores de lótus, e Caribidis e Cila, rochedos mortais. Que belas coisas ele vai conhecer! Oh! o gosto dos naufrágios, como ele o vai saborear! Escapará, por milagre, à morte, descerá finalmente aos Infernos, onde os nossos – podeis ter a certeza – o esperam. Como ele vai sofrer! Por mais de uma vez juro-vos, Troianas, há-de invejar as vossas desgraças. (Como se estivesse a ver.) Finalmente, volta do Hades e quando põe o pé na sua ilha, o seu lugar está ocupado. (A sua exaltação profética esvai-se.) Porquê falar de Ulisses, que tenho eu a ver com ele? (A taltíbio.) Por que esperas? Tenho pressa em unir-me ao meu noivo para o melhor e para o pior. Não: sempre para o pior. Himen, Himeneu! O nosso casamento será o inferno. Rei dos reis, generalíssimo, não esperes um enterro à luz do dia. A noite te engolirá; nem visto, nem achado. Lançarão teu corpo numa ravina, Himen, Himeneu, junto ao meu cadáver nu, e os abutres nos comerão aos dois: a ti, Rei, a mim, sacerdotisa de Apolo, unidos na morte pelas bicadas das mesmas aves. Adeus véus, adeus fitas e túnicas, vestes dos meus êxtases; 30 arranco-vos deste corpo enquanto está puro. Leva-os, brisa veloz, ao meu Deus de amor, ao Sol. Onde devo embarcar? Eu sou a morte, ponham a bandeira negra no mastro do navio que me levar. Adeus, Mãe, fica tranquila: não tardarás a morrer. E vós, irmãos que jazeis debaixo da terra, Pai que me deste a luz, eu vou já, não me farei esperar muito. Chegarei junto de vós vitoriosa, à cabeça do cortejo danado dos Átridas que vos mataram e que vão assassinar-se uns aos outros, Himen, Himeneu! (Levam-na.) Iu! Iu! Himen, Himeneu! (Vai-se. hécuba desmaia.) * A partir de Eurípides – As Troianas. Adapt. Jean-Paul Sartre; trad. Helena Cidade Moura. Lisboa: Plátano Editora, 1973. **A partir de Eurípides – As Troianas. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições 70, 1996. 31 As Troianas Sinopse* Tragédia do poeta trágico grego Eurípides (484‑406 a.C.), escrita em 415. Originalmente, esta era a terceira parte de uma trilogia que compreendia Alexandre e Palamedes e que devia terminar com um drama satírico intitulado Sísifo. As três tragédias (das duas primeiras não restam senão fragmentos) tinham por argumento três momentos de uma mesma lenda épica: a Guerra de Tróia. Foi a única vez que Eurípides procedeu desta forma, aproximando‑se intencionalmente das trilogias de Ésquilo. As Troianas retratam o instante crucial do imenso drama. A cidade foi tomada e destruída pelos Gregos: todos os homens morreram. As mulheres dos vencidos (representadas pelo Coro das Prisioneiras Troianas) aguardam a sua sorte no campo dos vencedores; a pouca distância, fumegam as ruínas da sua pátria. A ação inicia‑se com um prólogo no qual Poséidon, o deus que construíra as muralhas de Tróia e não tinha cessado nunca de defender a cidade, chora o desastre. Atena, que até esse momento tinha tomado o partido dos Gregos, sobrevém: sente‑se ofendida pelo ultraje feito a Cassandra, que foi levada do seu templo pela força, e jura que os vencedores pagarão por este sacrilégio no seio das tempestades que assolarão o seu caminho de regresso. A velha Hécuba, prostrada diante da sua tenda, chora pelo seu destino, ainda que tentando em vão resignar‑se; amaldiçoa Helena, a odiosa esposa de Menelau, responsável pela guerra. O Coro das Prisioneiras Troianas (divididas em dois grupos) entra em cena. As mulheres interrogam‑se no meio de lamentações sobre qual será a sua sorte e para que cidades da Grécia serão conduzidas como escravas. O arauto Taltíbio comunica‑lhes finalmente a decisão dos chefes helenos: Cassandra, a profetisa virgem, tornar‑se‑á escrava e concubina de Agamémnon; Policena será “consagrada” ao túmulo de Aquiles (perífrase que Hécuba não compreende ainda e que significa que a princesa será sacrificada às mãos do herói); Andrómaca, esposa de Heitor, servirá Pirro, filho de Aquiles; quanto à velha Hécuba, irá ser escrava de Ulisses. Subitamente, o clarão de um incêndio sai da tenda de Cassandra, que logo aparece brandindo uma tocha. Delirante, a profetisa rodopia numa dança desenfreada: canta, com um desespero que se aproxima de uma alegria frenética, as bodas que a vão unir ao ímpio Agamémnon, ela, a sacerdotisa consagrada aos deuses. Apaziguada, vaticina o infortúnio que o seu enlace causará e convida a sua mãe a regozijar‑se pela ruína dos destruidores de Tróia, que sobrevirá graças a si: sim, a cidade aniquilada terá menos a lamentar que os seus vencedores. Enquanto o arauto leva Cassandra, Hécuba reincide na evocação do seu passado funesto e chora o seu destino de escrava. Esta parte, dominada pela comovente figura de Cassandra, termina num lamento do Coro, que evoca os derradeiros momentos de Tróia, o fatal ardil do cavalo de pau e o saque da cidade. Os quadros seguintes são consagrados ao infortúnio de Andrómaca, que aparece em cena acompanhada do jovem Astianacte, seu filho, para anunciar uma triste nova a Hécuba: Policena, a filha da velha rainha, acaba de ser imolada no túmulo de Aquiles. Enquanto Andrómaca tenta acalmar a dor da sua sogra, Taltíbio regressa. A sua missão repugna‑lhe: tem de comunicar às duas mulheres a monstruosa decisão que os Gregos tomaram; aconselhados por Ulisses, decidiram desfazer‑se do jovem Astianacte, arremessando‑o do alto das muralhas. Extenuada, Andrómaca não resiste; separa‑se do filho chorando e lança a sua maldição sobre os vencedores, enquanto o Coro canta a dolorosa história de Tróia, duas vezes destruída. O terceiro episódio da tragédia coloca em cena Helena e Menelau. O rei de Esparta vem à procura da sua esposa, a fim de a levar de volta à Grécia e punir a sua traição com a morte. Hécuba aprova a sua decisão e aconselha‑o a não prolongar por demasiado tempo a sua relação com a infiel, com receio de que venha de novo a ficar fascinado pelo seu encanto. Helena aparece e suplica a 32 Menelau que lhe dê uma oportunidade de se defender antes de morrer; Menelau consente. Hécuba será ouvida em seguida na qualidade de testemunha da acusação. Seguem‑se os monólogos das duas mulheres, uma atribuindo os seus erros a Afrodite, deusa do amor, a outra negando a intervenção divina e tentando expor claramente a alma vã, vil e insensível de Helena. Menelau parece convencido pelos argumentos da velha rainha, mas pressente‑se que a sua atitude severa é falsa e que ele acabará por perdoar a culpada. No interlúdio que se segue, o Coro invoca Zeus, suplicando‑lhe que se debruce sobre as desgraças de Tróia, e que lance o seu raio sobre a nau de Helena e de Menelau. Na parte final da tragédia, vemos Taltíbio a entregar a Hécuba o corpo de Astianacte. Andrómaca já foi levada para a nau de Pirro e cabe à avó realizar as derradeiras cerimónias fúnebres devidas ao filho de Heitor. Hécuba chora a criança morta, evocando a sua beleza, as suas expressões ingénuas, e a esperança que nele havia deposto. Em seguida, manda buscar o escudo de Heitor e aí depõe os restos mortais que assim serão sepultados. Enquanto no céu se eleva um canto fúnebre, Taltíbio regressa para ordenar aos soldados gregos que deitem fogo ao que possa ter restado de Tróia. Hécuba, por seu lado, deve preparar‑se para embarcar na nau de Ulisses; juntando‑se ao Coro, entoa pela última vez um hino fúnebre em honra da sua pátria perdida para sempre. E enquanto o triste cortejo das cativas se vai afastando em direção ao seu destino, ao longe os templos da cidade ardem, o fogo incendeia as edificações sagradas de Pérgamo, que se desmoronam com estrondo. Esta tragédia, que coloca indefesas mulheres nas garras de uma Fatalidade inelutável, não tem, nem poderia ter, uma estrutura dramática propriamente dita: as censuras que os críticos antigos não deixaram de formular são portanto injustificadas. Estamos na presença de diversos episódios que refletem todos eles uma mesma catástrofe, cuja personagem central é sempre a mesma: Hécuba. Esta permanece sempre em cena e parece encarnar a Dor. A estrutura desta tragédia não podia ser a um tempo mais simples e genial; algumas cenas (nomeadamente o delírio de Cassandra) têm um estranho poder no seu inovador modo de expressão. Existe ao longo de toda a obra uma certeza profunda que o espectador não deixa nunca de pressentir e que confere unidade ao drama – o heroísmo dos vencidos e a sua imensa infelicidade ultrapassam em beleza a vitória aparente dos vencedores. * “Les Troyennes”. In Laffont‑Bompiani – Le Nouveau Dictionnaire des Oeuvres. [Paris]: Robert Laffont, 1994. p. 7328‑7329. 33 O Coro Patrice Pavis* 1. Evolução do Coro A origem do teatro grego – e, com ele, da tradição do teatro ocidental – confunde‑se com as celebrações ritualísticas de um grupo no qual dançarinos e cantores formam, ao mesmo tempo, público e cerimónia. A forma dramática mais antiga seria a recitação do corista principal (corifeu) interrompida pelo coro. A partir do momento em que as respostas ao coro passam a ser dadas por um, depois por vários protagonistas, a forma dramática (diálogo) passa a ser a norma, e o coro não é mais senão uma instância que comenta (advertências, conselhos, súplica). Na comédia aristofânica, o coro se integra amplamente à ação, intervindo nas parábases. Depois, tende a desaparecer ou a restringir‑se apenas à função de entreato lírico (como na comédia romana). Na Idade Média, assume formas mais pessoais e didáticas e atua como coordenador épico dos episódios apresentados, e se subdivide, no interior da ação, em subcoros que participam da fábula. No século XVI, em particular no drama humanista, o coro separa os atos (ex.: o Fausto, de Marlowe), torna‑se entreato musical. Shakespeare o personaliza e o encarna num ator encarregado do prólogo e do epílogo. O clown e o bobo, que prenunciam o confidente do teatro clássico francês, são sua forma paródica. O classicismo francês, em ampla escala, renuncia ao coro, preferindo a iluminação intimista do confidente e do solilóquio (exceções marcantes: Ester e Athalie de Racine). Foi usado pela última vez na forma clássica por Goethe e Schiller. Para este último, o coro deve provocar a catarse e “despsicologizar” o conflito dramático, elevando‑o de seu ambiente banal a uma esfera altamente trágica da “força cega das paixões”, e “desdenhar a produção de ilusão”. No século XIX realista e naturalista, o emprego do coro entra nitidamente em declínio para não chocar a verosimilhança; ou, então, se encarna em personagens coletivas: o povo (Büchner, Hugo, Musset). Uma vez ultrapassada a dramaturgia ilusionista, o coro faz, hoje, sua reaparição como fator de distanciamento (Brecht, Anouilh e sua Antígona), como desesperadas tentativas de encontrar uma força comum a todos (T.S. Eliot, Giraudoux, Toller) ou na comédia musical (função mistificadora e unanimista do grupo soldado pela expressão artística: dança, canto, texto). 2. Poderes do Coro A) Função estética desrealizante Apesar de sua importância fundante na tragédia grega, o coro logo parece elemento artificial e estranho à discussão dramática entre as personagens. Torna‑se uma técnica épica, muitas vezes distanciadora, pois concretiza diante do espectador um outro espectador‑juiz da ação, habilitado a comentá‑la, um “espectador idealizado” (Schlegel). Fundamentalmente, este comentário épico equivale a encarnar em cena o público e seu olhar. Schiller fala, sobre o coro, exatamente o que mais tarde dirá Brecht a respeito do narrador épico e do distanciamento: “Separando as partes umas das outras e interferindo em meio às paixões com seu ponto de vista pacificador, o coro devolve a nossa liberdade, que de outra forma desapareceria no furacão das paixões” (“Do Emprego do Coro na Tragédia”). B) Idealização e generalização Elevando‑se acima da ação “terra a terra” das personagens, o coro substitui o discurso “profundo” do autor; garante a passagem do particular para o geral. Seu estilo lírico eleva o discurso realista das personagens a um nível inexcedível, o poder de generalização e de descoberta da arte nele se encontra multiplicado por dez. “O coro deixa o estreito círculo da ação para estender‑se 34 ao passado e ao futuro, aos tempos antigos e aos povos, ao humano em geral, para extrair as grandes lições de vida e exprimir os ensinamentos de sabedoria” (Schiller). C) Expressão de uma comunidade Para que o espectador real se reconheça no “espectador idealizado” que constitui o coro, é preciso necessariamente que os valores transmitidos por esse último sejam os mesmos que os seus e que com eles possa se identificar completamente. O coro, portanto, só tem probabilidade de ser aceite pelo público se este se constituir em uma massa solidificada por um culto, uma crença ou uma ideologia. Deve ser aceite espontaneamente como um jogo, ou seja, como um universo independente das regras conhecidas de todos nós, às quais não questionamos, uma vez que aceitamos a elas nos submeter. O coro é – ou deveria ser – segundo Schiller “uma parede viva com a qual a tragédia se cerca a fim de se isolar do mundo real e para preservar seu solo ideal e sua liberdade poética”. A partir do momento em que a comunidade franqueia os limites dessa fortaleza ou revela as contradições que a atravessam, o coro passa a ser criticado como irrealista ou mistificador e está fadado ao desaparecimento. Pelo fato de nem todas as épocas possuírem o dom de “figurar o caráter público da vida” (Lukács), o coro por vezes cai em desuso, particularmente a partir do momento em que o indivíduo sai da massa (nos séculos XVII e XVIII) ou toma consciência de sua força social e de sua posição de classe. D) Força de contestação O caráter fundamentalmente ambíguo do coro – sua força catártica e de culto, de um lado, e seu poder distanciador, de outro – explica que ele se tenha mantido nos momentos históricos em que não mais se crê no grande indivíduo sem conhecer (ainda?) o indivíduo livre de uma sociedade sem contradições. Assim, em Brecht ou Dürrenmatt (cf. A Visita da Velha Senhora), ele intervém para denunciar o que ele teoricamente deveria representar: um poder unificado, sem discussões internas, presidindo os destinos humanos. Nas formas “neo‑arcaicas” de comunidade teatral, ele não representa este papel crítico; ele encobre o costume do grupo solidificado, e que celebra um culto. É o caso dos happenings, das performances que apelam à atividade física do público ou das comunidades teatrais (o Living Theatre é o exemplo típico de uso contínuo, embora invisível, de coro no espaço cénico e social). * Excerto de “Coro”. In Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 73‑75. 35 Cristina Carvalhal A ideia de ver 200 pessoas atuar num palco como o do TNSJ é, utilizando a expressão favorita de Hilde Wangel, a menina‑mulher criada por Ibsen para fazer renascer a capacidade de sonhar do construtor Solness, “terrivelmente excitante”. Licenciada em Teatro‑Educação pela Escola Superior de Teatro e Cinema, iniciou a sua atividade como atriz em 1987, no teatro, experimentando posteriormente o cinema e a televisão. Mais recentemente, criou a sua própria estrutura de produção teatral, Causas Comuns (www.causascomuns. net), e tem dirigido inúmeros espetáculos, entre os quais destaca Exactamente Antunes (2011), em parceria com Nuno Carinhas, no TNSJ. Nuno Cardoso Duzentas vozes conseguem ser uma multidão e uma só voz. Conseguem ser um lamento e um grito. Duzentas vozes são duzentas almas por palavra. Pode ser interessante! Iniciou o seu percurso teatral no CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra. Como ator, integrou o elenco de espetáculos encenados por, entre outros, Paulo Lisboa, Nuno M Cardoso, João Garcia Miguel e João Paulo Seara Cardoso. Foi um dos fundadores do coletivo Visões Úteis. De 1998 a 2003, foi Diretor Artístico do Auditório Nacional Carlos Alberto. No Teatro Nacional São João, assumiu a Direção Artística do Teatro Carlos Alberto entre 2003 e 2007. Como criador residente no TNSJ, encenou, entre outros, O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind (2004), e Woyzeck, de Georg Büchner (2005). Das suas últimas encenações, realizadas para o Ao Cabo Teatro, destaque para A Gaivota, de Tchékhov (2010); As Três Irmãs, de Tchékhov (2011); Desejo Sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill (2011); Medida por Medida, de Shakespeare (2012); e Porto S. Bento (2012). Nuno M Cardoso A Guerra de Tróia é uma das histórias (acontecimentos?) mais marcantes da civilização e cultura ocidentais. E é no final dessa guerra, junto às troianas perdedoras, que serão feitas escravas, que é profetizada a vingança. 200 vozes a materializarem um discurso histórico e profético do fim de uma guerra, do fim de uma civilização e do início de uma nova era. Encenador, professor e ator. Em teatro, dirigiu obras de Albert Camus, Samuel Beckett, Boris Vian, Stig Dagerman, Peter Handke, Bernard‑Marie Koltès, Falk Richter, Alberto Miralles, John Milton, J.W. Goethe, F. Schiller, G.E. Lessing, Jean‑Paul Sartre, B. Brecht, Neil Gaiman, James Jones, Ingmar Bergman, William Shakespeare, Heiner Müller, Sheila Callaghan, Al Berto, Fernando Pessoa, Miguel Torga, Luís de Sttau Monteiro, Pedro Eiras, Mickael de Oliveira, José Maria Vieira Mendes, Tiago Rodrigues, António Pedro, Hugo Curado. Trabalhou com os encenadores Ricardo Pais, Manuel Sardinha, Nuno Cardoso, Giorgio Barberio Corsetti, Claudio Lucchesi, Jean‑Louis Martinelli, Marcos Barbosa, José Carretas, Paulo Castro, Rogério de Carvalho, António Lago, e com os realizadores Manoel de Oliveira e Saguenail Abramovici. 36 Victor Hugo Pontes “À deriva! À deriva! Se o destino te leva: deixa‑te levar.” Replicar as palavras de Hécuba no Atelier 200 será um exercício para encontrar o fio condutor de As Troianas: de Eurípides a Sartre até ao Portugal ‑na‑Europa‑e‑no‑mundo do século XXI. Que corpo será este formado a partir de tantos? Que voz será esta, a que se ergue da multidão? Nasceu em Guimarães, em 1978. Licenciado em Artes Plásticas/Pintura pela Faculdade de Belas Artes do Porto. Frequentou a Norwich School of Art & Design e concluiu os cursos profissionais de Teatro do Balleteatro e do TUP, bem como os cursos de Pesquisa e Criação Coreográfica (Forum Dança) e Encenação de Teatro (Fundação Calouste Gulbenkian). Em 2006, frequentou o curso do Projet Thierry Salmon – La Nouvelle École des Maîtres, dirigido por Pippo Delbono, na Bélgica e em Itália. Como intérprete, trabalhou com os encenadores e coreógrafos Nuno Carinhas, Isabel Barros, Clara Andermatt, Charlie Degotte, David Lescot, Joana Craveiro, entre outros. Como coreógrafo/encenador, as suas criações já foram apresentadas em França, Alemanha, Itália, Espanha, Áustria, Brasil e Rússia, tendo obtido alguns prémios. João Tuna Fotógrafo e realizador, nasceu em 1967. Estudou fotografia e cinema na Escola António Arroio e na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, e dramaturgia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Iniciou em 1990 o seu percurso na área da fotografia, dedicando‑se em exclusivo ao retrato e à fotografia de cena para teatro ou cinema. Realizou curtas ‑metragens, versões vídeo de espetáculos e vídeos institucionais. 37