Coerência
Professora: France Lima
Observe o texto que segue:
Havia um menino muito magro que vendia amendoins numa esquina de uma das
avenidas de São Paulo. Ele era tão fraquinho, que mal podia carregar a cesta em que
estavam os pacotinhos de amendoim. Um dia, na esquina em que ficava,um motorista,
que vinha em alta velocidade, perdeu a direção. O carro capotou e ficou de rodas para
o ar. O menino não pensou duas vezes. Correu para o carro e tirou de lá o motorista,
que era um homem corpulento. Carregou-o até a calçada, parou um carro e levou o
homem para o hospital. Assim, salvou-lhe a vida.
Esse texto, uma redação escolar, apresenta uma incoerência: se o menino era tão
fraco que quase não podia carregar a cesta de amendoins, como conseguiu carregar
um homem corpulento até o carro?
Quando se fala em redação, sempre se aponta a coerência das idéias como uma
qualidade indispensável para qualquer tipo de texto. Mas nem todos explicitam de
maneira clara em que consiste essa coerência, sobre a qual tanto se insiste, e como se
pode consegui-la.
Coerência deve ser entendida como unidade do texto. Um texto coerente é um
conjunto harmônico, em que todas as partes se encaixam de maneira complementar
de modo que não haja nada destoante, nada ilógico, nada contraditório, nada
desconexo. No texto coerente, não há nenhuma parte que não se solidarize com as
demais.
Todos os elementos do texto devem ser coerentes. Vamos mostrar apenas três
dos níveis em que a coerência deve ser observada:
1) coerência narrativa;
2) coerência figurativa;
3) coerência argumentativa.
Vamos partir de exemplos de incoerências, mais simples de perceber, para
mostrar o que é coerência.
1) Coerência narrativa.
Resumidamente, vamos relembrar que manipulação é a fase em que alguém
é induzido a querer ou dever realizar uma ação; competência, a fase em que
esse alguém adquire um poder ou um saber para realizar aquilo que ele quer ou
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deve; performance, a fase em que de fato se realiza a ação: sanção, a fase em
que se recebe a recompensa ou o castigo por aquilo que se realizou.
Essas quatro fases se pressupõem, isto é, a posterior depende da anterior.
Assim, por exemplo, um sujeito só pode fazer alguma coisa (performance ) se
souber ou puder fazê-la (competência). Constitui, portanto, uma incoerência
narrativa relatar uma ação realizada por um sujeito que não tinha competência
para realizá-la.
A título de exemplo, vamos citar um desses equívocos cometidos em
redação, relatado pela Prof. Diana Luz Pessoa de Barros num livro sobre
redação no vestibular:
“Lá dentro havia uma fumaça formada pelo cigarro e essa fumaça não
deixava que nós víssemos qualquer pessoa, pois ela era muito intensa.
Meu colega foi à cozinha me deixando sozinho, fiquei encostado na
parede da sala e fiquei observando as pessoas que lá estavam. Na festa havia
pessoas de todos os tipos: ruivas, brancas, pretas, amarelas, altas, baixas etc.”
Nesse caso, o sujeito não podia ver e viu. O texto tornar-se-ia coerente se o
narrador dissesse que ficara encostado à parede imaginando as pessoas que estavam
por detrás da cortina de fumaça.
Outros casos de incoerência narrativa podem ocorrer. Se, por exemplo, um
personagem adquire um objeto de outro, é claro que esse outro deixou de possuí-lo,
Assim, é incoerente relatar, numa certa altura da narrativa, que roubaram de uma
senhora um valiosíssimo colar de pérolas e, numa passagem posterior, sem dizer que
ela o tenha recuperado, referir-se ao mesmo colar envolvendo o pescoço da mesma
senhora numa recepção de gala.
Um outro tipo de incoerência narrativa pode
caracterização dos personagens e às ações atribuídas a eles.
ocorrer
em
relação
à
No percurso da narrativa, os personagens são descritos como possuidores de
certas qualidades (alto,baixo,frágil,forte), atribuem-se a eles certos estados de alma
(colérico, corajoso, tímido, introvertido, apático, combativo). Essas qualidades e
estados de alma podem combinar-se ou repelir-se, alguns comportamentos dos
personagens são compatíveis ou incompatíveis com determinados traços de sua
personalidade.
A preocupação com a coerência e a unidade do texto pressupõe que se
conjuguem apropriadamente esses elementos.
Se na narrativa aparecem indicadores de que um personagem é tímido, frágil
e introvertido, seria incoerente atribuir a esse mesmo personagem o papel de líder e
agitador dos foliões por ocasião de uma festa pública. Obviamente, a incoerência
deixaria de existir se algum dado novo justificasse a transformação do referido
personagem.Uma bebedeira, por exemplo, poderia desencadear essa mudança.
Muitos outros casos de incoerência desse tipo podem ser apontados.
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Dizer, por exemplo, que um personagem foi a uma partida de futebol, sem
nenhum entusiasmo, pois já esperava ver um mau jogo, e, posteriormente, afirmar
que esse mesmo personagem saiu do estádio decepcionado com o mau futebol
apresentado é incoerente. Quem não espera nada não pode decepcionar-se.
É incoerente ainda dizer que alguém é totalmente indiferente em relação a
uma pessoa e caiu em prantos quando soube que ela casou-se e viajou para o
exterior.
As incoerências podem ser utilizadas para mostrar a dupla face de um mesmo
personagem, mas esse expediente precisa ficar esclarecido de algum modo no decorrer
do texto.
2) Coerência figurativa
Suponhamos que se deseje figurativizar o tema “despreocupação”. Podem-se
usar figuras como “pessoas deitadas à beira de uma piscina”. “drinques
gelados”.”passeios pelos shoppings”. Não caberia, no entanto , na figurativização
desse tema, a utilização de figuraras como “pessoas indo apressadas para o trabalho”.
“fábricas funcionando a pleno vapor”.
Por coerência figurativa entende-se a articulação harmônica das figuras do
texto, com base na relação de significado que mantêm entre si. As várias figuras que
ocorrem num texto devem articular-se de maneira coerente para constituir um único
bloco temático. A ruptura dessa coerência pode produzir efeitos desconcertantes.
Todas as figuras que pertencem ao mesmo tema devem pertencer ao mesmo universo
de significado.
Suponhamos, a título de exemplo,que se pretenda figurativizar o tema do
requinte e da sofisticação para caracterizar um certo personagem. Para ser coerente, é
necessário que todas as figuras encaminhem para o tema do requinte. Pode-se citar,
ao descrever sua casa: a lareira, o tapete persa, os cristais da Boêmia, a porcelana de
Sèvres, o doberman ressonando no tapete, um quadro de Portinari e outras figuras do
mesmo campo de significado. Constituiria incoerência figurativa gritante incluir nesse
conjunto de elementos Agnaldo Timóteo cantando na vitrola um bolero
sentimentalóide. Essa ruptura se justificaria se a intenção fosse o humor, a piada, a
ridicularização, ou mostrar o paradoxo de que o requinte é apenas exterior.
Sem essas intenções definidas de denunciar o paradoxo ou de ridicularizar, as
figuras pertencentes a um mesmo tema devem articular-se harmoniosamente.
Um último exemplo. Suponhamos que se queria mostrar a vida no Pólo
Norte. Podem-se para isso usar figuras como “neve”, “pessoas vestidas com roupas de
pele”, “renas”, “trenós”, Não se podem, porém, utilizar figuras como “palmeiras”,
“cactos”, “camelos”, “estradas poeirentas”.
3) Coerência argumentativa
Quando se defende o ponto de vista de que o homem deve buscar o amor e
a amizade, não se pode dizer em seguida que não se deve confiar em ninguém e que
por isso é melhor viver isolado.
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Num esquema de argumentação, joga-se com certos pressupostos ou
certos dados e deles se fazem inferências ou se tiram conclusões que estejam
verdadeiramente implicados nos elementos lançados como base do raciocínio que se
quer montar. Se os pressupostos ou os dados de base não permitem tirar as
conclusões que foram tiradas, comete-se a incoerência de nível argumentativo.
Se o texto parte da premissa de que todos são iguais perante a lei, cai na
incoerência se defender posteriormente o privilégio de algumas categorias profissionais
não estarem obrigadas a pagar imposto de renda.
O argumentador pode até defender essas regalias, mas não pode partir da
premissa de que todos são iguais perante a lei.
Assim também é incoerente defender ponto de vista contrário a qualquer
tipo de violência e ser favorável à pena de morte, a não ser que não se considere a
ação de matar como uma ação violenta.
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