Wander Piroli 2
ilustrações
Lelis
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Certos espíritos dificilmente admitem que uma coisa simples
possa ser bela, e menos ainda que uma coisa bela é, necessariamente, simples, em nada comprometendo a sua simplicidade
as operações complexas que foram necessárias para realizá-la.
Ignoram que a coisa bela é simples por depuração, e não originariamente; que foi preciso eliminar todo elemento de brilho e
sedução formal (coisa espetacular), como todo resíduo sentimental (coisa comovedora), para que somente o essencial permanecesse. E diante da evidente presença do essencial, não o
percebendo, até mesmo fugindo a ele, o preconceituoso procura
o acessório, que não interessa e foi removido. Mais pura é a obra,
e mais perplexa a indagação: “Mas é somente isto? Não há mais
nada?”. Havia; mas o gato comeu (e ninguém viu o gato).
Carlos Drummond de Andrade, Confissões de Minas
Ladrões noturnos fazem
uma limpeza na Chácara
Vocês já viram uma casa de campo arrombada? Dá uma
sensação estranha, uma espécie de medo. Imagine: no
negrume da madrugada, gente passa pela cerca do terreno e, sem alarde ou o mínimo de barulho, arrebenta
uma porta com o pé-de-cabra.
Uma casa que você conhece toda arrumada, com cada
coisa em seu lugar, de repente você encontra revirada,
bagunçada. Sem televisão, sem rádio sem toca-discos.
Sem as roupas de cama, sem cobertores. Sem a balança
antiga e de estimação. Levaram até o relógio de parede,
que estava estragado há mais de ano.
E olha que, a menos de cinquenta metros de distância, o Joaquim mora com a mulher e os filhos. Dizem que
no meio do mato você percebe qualquer ruído, mesmo a
queda de um fruto, mas ele, o Joaquim, e dona Naílda e os
meninos, ninguém ouviu nada. Só no dia seguinte, cedo,
Joaquim notou a porta aberta e a casa assaltada.
A primeira coisa que ele fez foi ficar apavorado. Chamou
o vizinho e sua mulher para servirem de testemunha. Verificou as coisas que faltavam. Pegou a bicicleta e correu
até Neves. Telefonou para papai. Deu a notícia com a voz
tumultuada, misturando as marchas, embolando tudo.
Sentia-se responsável pelo arrombamento, tinha receio de
perder o emprego. Podia até ser preso como suspeito.
Papai tranquilizou-o, deixasse de bobagem, era empregado de confiança. Mas que ele não mexesse em nada. Esperasse apenas. Em seguida, papai discou para o serviço:
precisava matar o expediente da manhã. Falou novamente
com mamãe, mais preocupada com a perda das roupas de
cama e da balança. Tirou o carro da garagem, me chamou
para acompanhá-lo.
A chácara ficava perto da cidade, dentro de um condomínio fechado, com portaria e rondantes nas ruas. Desde o
princípio, há três anos, tínhamos um bom caseiro, e nunca
nos passou pela cabeça que ela pudesse ser assaltada. Papai não queria demonstrar, mas estava bastante chateado.
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Se tivéssemos cão, não
haveria o arrombamento
Joaquim aguardava inquieto na tronqueira, cheio de gestos e palavras. Papai ouviu com paciência, disse que estava
bem, arrancou o carro e estacionou-o debaixo do pé de
manga. Joaquim fechou a tronqueira e veio ligeiro ao nosso
encontro.
Vimos primeiro a fechadura arrebentada e as marcas
bem visíveis do pé-de-cabra na porta. Conferimos cômodo
por cômodo para ver o que haviam levado. Papai anotava
cada coisa num bloco escolar. Subitamente ficou possesso
e soltou uma expressão cabeluda: ele quase pisara num
monte de cocô feito pelo ladrão.
Papai sentou na mesa da cozinha e, bebericando uma
cachacinha, passou a limpo, com letra de imprensa, tudo
que faltava. Ele pretendia comunicar a ocorrência na Administração do Condomínio e deixar lá a lista dos objetos roubados. Conversou mais com Joaquim, fez especulações e
perguntas. As respostas eram sempre as mesmas. Joaquim
não sabia de nada.
Num ponto porém Joaquim insistia: se nós tivéssemos
um cachorro, um vira-lata qualquer, não teria havido o
arrombamento. Com cachorro, ladrão não entra. Se entra,
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cachorro dá logo sinal, avança, late. Toda chácara tinha um
ou mais cães, menos a nossa.
De fato, Joaquim sempre falara da necessidade de termos um cachorro. Sua casa ficava um pouco retirada da
sede e ainda por cima tinha muitas árvores no meio. Era
difícil tomar conta de tudo. Se papai concordasse, ele sabia onde arrumar um filhote. Papai não disse sim nem não.
Daria respostas depois.
Pai ficou de conseguir um
cachorro no serviço
Deixamos na Administração a lista de tudo quanto havia sido
roubado na Chácara. Lá eles aconselharam a mesma coisa:
precisávamos ter um cachorro. O caseiro poderia dormir à
noite mais tranquilo, ninguém ousaria passar pela cerca.
Papai afinal reconheceu a necessidade de um cachorro.
Falaria com o porteiro do escritório. Ele morava na Favela
da Antena, onde a coisa mais fácil era conseguir um vira-lata. Nada de cachorro de raça, papai falou. Vira-lata dá
menos trabalho e tem a vantagem de não adoecer.
Papai é um homem engraçado, fui pensando no carro.
Às vezes, por causa de uma ninharia, ele apronta o maior
barulho. Outras vezes, diante de uma desgraça, conserva
o sangue frio. Agora, por exemplo, está procedendo como
se não tivéssemos levado um grande prejuízo. Como se a
Chácara fosse de outra pessoa.
Em casa, mamãe esperava os detalhes do arrombamento,
o que fora roubado. Papai contou tudo. Era provável que
a lista entregue na Administração estivesse incompleta.
Mencionara apenas o que havia dado falta assim de cara.
Mamãe quis saber se ele achava que tínhamos alguma
chance de recuperar pelo menos uma parte dos objetos.
Papai enrugou a testa.
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De qualquer maneira vamos fazer o seguinte, propôs ele.
Joaquim ficou de consertar a porta e nós vamos lá no fim
de semana normalmente. Você leva a bagulhada de sempre.
Podemos levar também o meu rádio. Quanto à televisão e à
radiola, nós vamos esperar um pouco.
Falou com mamãe também sobre o cachorro. Sim, precisávamos ter um na Chácara. Podíamos deixar por sua
conta. O porteiro do escritório, a quem papai já fizera uma
série de favores, conseguiria um vira-lata na favela, de preferência um filhote.
Em vez de um, a família
arranja três de uma vez
A questão do cachorro para a Chácara ficou então por
conta do papai. Mas, por via das dúvidas, mamãe achou
conveniente dar um pulo na casa da lavadeira.
– Pode deixar, dona Stela, até amanhã sem falta eu arranjo um pra senhora.
Tomei a iniciativa de sair pelas ruas do bairro, perguntando aqui e ali se sabiam de alguém que tivesse um cachorro para dar. Em menos de uma hora, estava em casa
com um filhote no colo. Branco com manchas pretas.
Mamãe constatou logo que se tratava de uma fêmea.
– Seu pai não vai gostar – disse ela. – Fêmea não serve. Dá
problema. Eu já falei com a lavadeira. Vai lá e devolve.
Fiquei decepcionado, mas tive a sorte de contar com
a ajuda de Adélia, que havia chegado da aula. Pegou a cachorrinha, adulou-a, disse que era uma fofura. A cachorrinha sacudiu o rabinho e foi batizada prontamente com o
nome de Fofura. Mamãe não gostou.
À tarde, a lavadeira apareceu em casa, vitoriosa, com outro cachorro: um vira-latinha marronzado de péssima aparência. Mamãe achou que ele tinha os olhos inteligentes e
seria bravo, um ótimo tomador de conta para a Chácara.
Recebeu de Adélia o nome de Pinduca.
Nesse mesmo dia, à noite, vi da janela papai descer do
carro com a pasta na mão esquerda e um cachorro na outra. Era preto, quase o dobro do tamanho dos filhotes trazidos por mim e pela lavadeira. Corri para avisar minha
irmã. Esperamos apreensivos o momento em que papai
entraria pela porta com o terceiro cachorro.
Três é ruim, ainda mais com
uma fêmea no meio
Papai chegou, bem-humorado, com o cachorro no colo. Tivemos sorte – ele falou. Quando explicava para o porteiro
a situação da Chácara arrombada, um colega de serviço resolveu o problema na hora. Seu cunhado tinha uma fêmea
com dez filhotes de Fila. Ela é Dálmata, toda malhada. Poderiam ir lá no final do expediente.
O cachorro era realmente bonito, com o pelo muito
preto e apenas uma pinta branca no rabo. Mas o bom humor de papai durou pouco – o tempo de ele chegar na área
e ver os outros dois cachorrinhos dormindo em cima de
jornais velhos, ao lado de uma tigela com resto de leite.
Mamãe contou como havíamos procedido, ninguém tinha
culpa. Precisávamos de cachorro? Cada um tomou a iniciativa de conseguir um.
De qualquer maneira, depois do jantar, houve uma reu­
nião de família, todo mundo em volta da mesa. Papai foi
diretamente ao ponto: só queria saber de um cachorro na
Chácara – o que ele trouxera, claro. De raça, maior, melhor,
mais bonito. Mamãe concordou em parte. O Pinduca era um
vira-lata fora de série, vivo, inteligente, você vai ver, e tem a
vantagem de fazer companhia ao outro. Além do mais, a Chácara era muito grande. Necessitávamos de dois cachorros.
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