Preservação do Patrimônio Cultural Nesta breve apresentação pretendo trazer para discussão uma demanda prática sobre um possível tombamento federal da Igreja de São Pedro localizada na Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, do grupo Xocó, no Estado de Sergipe. A igreja de São Pedro está situada na parte mais central e elevada da ilha de mesmo nome, de frente para a nascente e destaca-se na paisagem típica de caatinga. A ilha localiza-se na margem direita do Rio São Francisco, próxima a divisa dos Estados de Sergipe e Alagoas, no município de Porto da Folha, no Estado de Sergipe. Essa Igreja encontrava-se interditada devido ao risco de desabamento da cobertura, uma vez que os moradores da ilha – os índios Xocó – a utilizavam para a realização de culto s religiosos (novenas e missas). Seu acesso foi impedido com base no relatório da Companhia Estadual de Habitação e Obras Públicas do estado (CEHOP). A igreja já havia sido tombada pelo Estado. Como se localizava em uma terra indígena que também é da União, o MPF chamou para si o encaminhamento da questão, solicitando à Secretaria da Cultura a elaboração de um diagnóstico sobre a situação da igreja e do projeto de reforma, o qual foi objeto de análise técnica do MPF. Durante a vistoria in loco, constatou-se que o projeto de restauração não levava em consideração o valor histórico e cultural do bem e nem o contexto etnográfico no qual a igreja estava inserida – na Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, ocupada pelo povo Xocó. O próprio grupo indígena não tinha interesse em projetos que descaracterizassem a Igreja, pois queriam preservá-la. Assim, foi solicitado ao IPHAN um diagnóstico e especificações para a licitação de um projeto de restauração pela FUNAI. Uma vez que a Constituição Federal de 1988 assegurou ao patrimônio cultural a proteção legal de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas, as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticas – culturais e os conjuntos urbanos e sítios de va lor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico e científico e tendo em vista que a igreja de São Pedro se enquadra nesse contexto, o Procurador da República sugeriu: “o processo de tombamento histórico e etnográfico do sítio, não somente da Igreja, mas de todo o contexto cultural em que ela está inserida, dado o seu peculiar valor como referência cultural de apropriação de território brasileiro por uma das etnias que formam a sociedade nacional, no caso o povo Xocó”1 . Qual a relação do grupo Xocó com a Igreja de São Pedro que teria sido erguida no século XVII pelos missionários capuchinhos da missão francesa? A história indígena Xocó começa no século XVI, junto com a colonização da região e com o início do registro das guerras e massacres indígenas, que vão deslocando os grupos do sul para o norte, até 1 In Ata de reunião de 03 de dezembro de 2002 – Inquérito civil Público nº 002/022, PR/SE chegarem às margens do São Francisco, onde são forçados à rendição militar. Desde esse primeiro momento, há referências sobre índios ocupando a Ilha de São Pedro, sob a chefia do guerreiro Pindaíba. A relação que o povo Xocó e os povos indígenas do nordeste estabelecem entre si e com a sociedade e o Estado brasileiro é uma conseqüência do processo de dominação, de imposição de uma ordem, mas também é resistência e possibilidade de recriação. Os processos de reelaboração cultural e reorganização social que estes povos desenvolvem atualmente são frutos dessa interação com a sociedade nacional e podem ser considerados como uma guerra simbólica, com conflitos de idéias e performances culturais, onde o que está em jogo é a conquista de espaços de afirmação para grupos sociais que durante muito tempo estiveram inviabilizados enquanto possibilidades sociais e considerados como etnias de existência imponderável no Brasil moderno. O índio era visto com um ser em transição da selvajaria à cultura, sem humanidade. Foi com base nesse ideário que as políticas indigenistas da Coroa Portuguesa foram pensadas e implementadas. Para que imensas áreas fossem liberadas para a ocupação e mão-de-obra abundante e barata fosse adestrada para as tarefas de produção colonial, é que se criaram as missões religiosas, cuja tarefa principal era civilizar os índios, por meio da fé católica e do trabalho santificado. Assim, cada etnia nativa foi transformada em uma massa de índios genéricos, trabalhadores do sistema colonial. Passaram a ser chamados de caboclos nos documentos oficiais, sem direito à identidade, língua ou religião próprias, misturados e confundidos entre si, e depois, com a população regional. Ainda em meados do século XVIII, esse processo de catequese foi substituído pela ideologia assimilacionista do Marquês de Pombal. Essa mesma linha política foi mantida pelo império e depois seguida pela República (SPI, Rondon), na qual o índio é visto como um trabalhador nacional que deveria ser integrado à nossa civilização. Com a Lei de Terras do século XIX, com a abolição da escravidão e com a falta de mão-de-obra para as frentes de expansão, as diversas vilas e terras de índios originários das missões vão ter seus territórios esbulhados pelas Câmaras Municipais de Governos Provinciais, não só no nordeste como em todas as áreas de colonização mais antigas. Esses índios deixam de existir como sujeitos históricos. Mesmo assim, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, os Xocó, às próprias custas e sacrifícios, empreendem várias viagens ao Rio de Janeiro em busca de algum tipo de reconhecimento e garantia de direitos sobre suas antigas terras nas missões . Em vários momentos tentam retornar às suas terras numa guerra silenciosa. A demarcação de uma terra indígena implica em uma negociação longa e tensa entre a população indígena, o poder local e regional e as várias instituições – FUNAI, INCRA e Institutos Estaduais de Terra. No caso específico do Nordeste, onde a regularização de um território tem relação direta com a constituição de identidades étnicas, estes índios constroem e resgatam sua identidade a partir de marcos físicos – rios, montanhas, vales, lagoas encantadas, nas quais estão presentes as forças sobrenaturais de seus antepassados, e principalmente, das antigas igrejas missionárias, pontos centrais de onde partiam as linhas demarcatórias das terras indígenas – a légua em quatro dos tempos coloniais – onde estão guardadas as imagens centená rias dos santos padroeiros de cada povo. Os Xocó retomam a ilha de São Pedro e a Caiçara das mãos dos fazendeiros e em dezembro de 1979 a Ilha é desapropriada em litígio e iniciam-se os trabalhos de identificação e delimitação pela FUNAI da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, que finalmente é registrada em Cartório no dia 31 de agosto de 1982. Os Xocó, para simbolizar sua resistência de permanecer na Ilha, a pertinência de seu direito às terras e a relação que mantêm com a Igreja de São Pedro, apesar da proibição imposta na época em que permaneceram em litígio com os fazendeiros de não poderem rezar na igreja e nem de mostrar a sua devoção por São Pedro, construíram uma estátua de um índio em posição corporal de lançar uma flecha em frente ao Cruzeiro da Igreja. Edificaram suas casas recuperando suas terras, légua por légua em quadro em torno da Igreja de São Pedro, fazendo proveito dos alicerces e ruínas erguidos na época das missões. A Igreja localiza-se num dos vértices, em posição de destaque, e as residências, que acompanham o curso do Rio São Francisco, formam um conjunto setecentista que se remete ao partido clássico do “quadrado” das missões jesuíticas. Existe ainda o cemitério, um pouco afastado, aos fundos da Igreja. A Igreja de São Pedro é um bem patrimonial porque tem um significado social simbólico no contexto da história do povo Xocó. Assim, esse bem cultural deve ser trabalhado como uma referência de identidade, valorizando não somente a obra em si, mas todos os elementos culturais associados ao sítio dentro de um amplo conceito de meio ambiente. A cultura dos índios Xocó é conseqüência do modo de como organizaram sua relação com os recursos naturais e de como resolveram os conflitos de interesses e as tensões geradas na vida social. Assim, a Igreja de São Pedro, as ruínas do hospício (hospedaria) e a disposição das moradias indígenas constituem um sítio que deve sofrer uma intervenção de restauro, pois é um bem com valores a serem preservados, o qual deve ser visto dentro do contexto cultural onde está inserido, onde missionários, índios e negros fundiram-se numa convivência complexa e traumática, para adaptarem-se ao meio e construirem a unidade política e social de um território. Ressaltamos que um possível tombamento deve ser objeto de criterioso estudo É necessário entender quais são suas implicações para a comunidade indígena. Os Xocó devem participar de todo o processo, pois são os atores centrais e portadores de testemunhos reais no referente à importância e ao valor cultural, étnico, histórico e espiritual da Igreja e, por conseguinte, à necessidade de sua restauração. Sua participação é testemunho vivo de mais um episódio da história brasileira no qual se deu o encontro de grupos étnicos diversos com resistência dos mesmos perante a presença do branco violento, sendo a Igreja de São Pedro, um marco dessa história. Nessa análise, a antropologia pode contribuir muito A etnologia desenvolveu ao longo de sua história instrumentos para estudar as relações que se estabelecem entre diferentes sociedade e mesmo entre diferentes grupos de uma mesma sociedade. Ela possui instrumentos para analisar os encontros e desencontros das diferentes culturas e as estratégias de dominação e de resistência que permeiam as relações entre os diferentes grupos humanos. O tombamento federal desse sítio (se esta for uma iniciativa também desejada, compreendida e valorizada pelos Xocó) torna visível e reconhece o seu valor cultural e simbólico. Seu resultado é o surgimento de uma consciência social quanto a importância da preservação e do envolvimento da comunidade indígena no cuidado com o bem tombado. O reconhecimento desse sítio vai fortalecer a cidadania e o sentimento de pertencimento do povo Xocó na sociedade nacional ao tornar visível seu valor histórico e simbólico, além de preservar para o futuro um testemunho da identidade desse grupo na formação da sociedade brasileira.