Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/
Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos.
Realização Curso de História – ISSN 2178-1281
RELIGIOSIDADE POPULAR E FOLIA DE REIS
Gabriela Marques Gonçalves1
RESUMO
Este artigo tem como objetivo debater a característica popular presente nas religiosidades
contemporâneas a partir das provocações de Renata Menezes e Eloísa Martín. A
argumentação será feita a partir de uma revisão bibliográfica de textos de vários
pesquisadores sobre o tema, tendo como referência também a Folia de Reis. Perguntar se seria
possível abandonar o conceito de popular para se trabalhar algumas manifestações religiosas
na contemporaneidade ajuda a nortear o esforço em se delimitar este campo de estudo, bem
como teorizá-lo, já que contribui substancialmente na compreensão das mudanças e
ressignificações que ocorreram e ocorrem na sociedade. A continuidade no uso do conceito de
religiosidade popular deve vir, portanto, acompanhada da clareza de que ele não é fixo e
imutável e, por isso, acompanha as mudanças sociais, políticas e culturais de cada
comunidade. E é a partir das possibilidades de vivenciar uma religião por determinado grupo
que o caráter popular deve ser destacado.
PALAVRAS-CHAVE: Religiosidade popular; Folia de Reis; Festa
Introdução
Este artigo tem como objetivo fazer uma explanação inicial sobre o tema da
religiosidade popular tendo como referência a Folia de Reis, a partir de uma revisão
bibliográfica. Para isso é importante ressaltar que o debate teórico a cerca do conceito e as
próprias características da festa na contemporaneidade exigem um olhar atento na tentativa de
não reduzir essas esferas a suas fundamentações mais tradicionais.
Ressalta-se, assim como Renata Menezes (2004), que todo o esforço para delimitar
este campo de estudo, bem como teorizá-lo, é de fundamental importância para a
compreensão das mudanças e ressignificações que ocorreram na sociedade e, logo, nestes dois
domínios que serão aqui abordados, a religiosidade popular e a Folia de Reis.
Por isso, não considera-se pertinente abandonar o conceito de religiosidade popular ao
se trabalhar teoricamente algumas manifestações, no entanto é preciso ter em mente que estas
já não possuem características idênticas àquelas de quando o conceito foi fortemente
delimitado e por isso já não abarcam algumas definições de maneira tão sistemática quanto
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Mestranda em Comunicação na Universidade Federal de Juiz de Fora, especialista em Produção e
Gestão de Projetos Culturais e bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de
Goiás. Email: [email protected]
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antes. Essas manifestações continuam sofrendo influências não só da fé de seus sujeitos e
interferências da Igreja, mas também da vida social, política, cultural e econômica como um
todo.
deveremos sempre situar as religiões que desejamos conhecer em seu contexto
histórico e social, buscando as razões de sua existência na nossa realidade. [...] como
conjunto de crenças e práticas sagradas professadas por determinados grupos
sociais. (OLIVEIRA, 1988, p. 107)
Assim, não se deve pensar a Folia de Reis e sua religiosidade popular a partir de uma
perspectiva de ingenuidade dos seus sujeitos, ou mesmo de uma supersticiosidade presente
nessas narrativas das interpretações do sagrado, mas sim por meio de construções simbólicas
que contribuem na (re)construção de discursos que envolvem inclusive disputas de
hegemonia.
… a ideia de uma religiosidade popular nos lembra que as religiões envolvem
questões de legitimidade e estão marcadas por disputas, configurando campo de
tensões entre seus membros ou fiéis, questões que devem ser incorporadas à análise,
isso significa não apenas reproduzi-las, num deslizamento ingênuo por sobre as
categorias nativas, mas tomá-las como um dos problemas a serem explicitados e
explicados. (MENEZES, 2003, p. 2).
Partindo dessa perspectiva pode-se, como sugere Heloísa Martín (2003), desconstruir
esferas fortemente delimitadas historicamente, como a própria religião. Com isso, o que antes
estava demarcado dentro do conceito de religiosidade popular, pode ser entendido como
constituindo uma rede complexa de elementos que compõem a própria vida, em sua
cotidianeidade, assim como já destacado por Bakhtin (1999) quando nos mostra as relações de
manifestações culturais como as festas, a literatura, a escultura e o teatro populares com a
própria prática cotidiana da vida.
... siguiendo Giumbelli, la religión en cuanto categoría ‘[d]essubstantivada e
perpassando todo o espaço social... ficaria disponibilizada tanto para ser tratada
através de seus usos nativos, quanto para sofrer reformulações conceituais e
propiciar empreendimentos teóricos’ (Giumbelli 2002: 428-429) [...] es necesario
analizar las prácticas – designadas como ‘religiosas’ y ‘populares’ a partir de lugares
empíricos específicos – a partir de los flujos que dan integridad a la red que organiza
lo social y que nos permiten dar cuenta de esos ‘híbridos’ de religión, política,
etnicidad, música, género, emociones que constituyen las prácticas nativas.
(MARTÍN, 2003, p. 5).
Dessa forma, será feito, primeiramente, um breve histórico sobre as origens da Folia
de Reis, tradicionalmente festejada entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro, que ainda
hoje vive processos de reconstrução a partir dos contextos e das comunidades nas quais está
inserida. Em seguida, se tentará fazer um debate a partir do diálogo entre os trabalhos de
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Brandão, Zaluar, Pedro Oliveira, Renata Menezes, Da Matta e Eloísa Martín sobre o que se
pode entender hoje da religiosidade vivida nessa manifestação e pelos seus sujeitos. Para em
seguida fazer não uma conclusão sobre o tema, mas uma síntese sobre o assunto proposto
neste artigo.
Folia de Reis
A Folia de Reis tem sua origem na Europa e remonta a passagem bíblica de Mateus
que conta a visita de alguns Magos a Jesus Cristo no seu nascimento. Guiados pela Estrela do
Oriente, eles encontraram a manjedoura onde estava o menino e ali lhe entregaram os
presentes que levavam: ouro, mirra e incenso. Mesmo com a rápida referência aos Magos, o
imaginário popular conseguiu construir ao longo dos séculos uma rica narrativa sobre a visita.
Os Magos foram então ganhando nome, idade, origem, quantidade e o status de Reis.
Mas antes de se tentar compreender a festa da Folia de Reis, é preciso conhecer o
próprio caráter festivo existente na Idade Média entre as sociedades que ajudaram a construir
a narrativa da visita dos Reis Magos, bem como o papel da Igreja na sua função de transmitir
os fatos bíblicos e suas interpretações. Assim, o próprio surgimento do teatro medieval em
muitos países europeus tem como base as encenações de textos litúrgicos principalmente
ligados ao Natal e à Páscoa (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 132). À medida que estas se
desenvolviam, agregavam mais elementos e enriqueciam as narrativas. Além disso, Bahktin
(1999, p. 66) mostra que a própria Igreja fazia coincidir as datas das festas oficiais cristãs com
as festas pagãs, a fim de cristianizá-las, sendo portanto inevitável as misturas e influências
mútuas.
Paralelo às encenações da Igreja, comemorava-se no ciclo natalino a Festa dos Loucos
ou Festa dos Foliões, “... ela acontecia geralmente no dia 1º de janeiro e dela tomavam parte
até mesmo padres piedosos e cidadãos ordeiros, sempre portando máscaras grotescas e
cantando modinhas insinuantes.” (FÉLIX e PESSOA, 2007, pg. 133). Nestas festas, a ordem
estabelecida já não tinha espaço e até membros da alta sociedade estavam sujeitos à sátira dos
foliões.
Dentre os diversos temas religiosos que eram alvos de sátiras, estava também a Festa
dos Reis Magos. E ela foi passada de 1 de janeiro para a Epifania, mas durava o ano
todo, sob o comando de um rei - que não era um dos Magos - eleito no início de
cada ano para comandar os festejos (Heers apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 133).
Tais manifestações se espalharam por grande parte da Europa e só perderam um pouco
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de sua força por volta do século XVI com influência direta da Reforma e Contrarreforma,
período marcado “pelo enrijecimento hierárquico, pela doutrinação paternalista das massas,
pela extinção da cultura popular, pela marginalização mais ou menos violenta das minorias e
dos grupos dissidentes.” (GINZBURG, 1987, p. 33-34).
Devido a essa grande difusão da festa pela Europa, às vezes se torna difícil definir
suas origens, mas no caso da Folia de Reis é possível reconhecer Portugal como a região onde
se originou a dança “Folia”. Já a tradição de se cantar os Reis, também conhecida como
reisadas2 ou janeiras, não era exclusividade deste país e, segundo Jadir Pessoa e Madeleine
Félix (2007, p. 139), na Alemanha estaria a provável origem desses cantares.
É a partir de todo esse contexto de influências e construções simbólicas acumuladas ao
longo de quinze séculos que a Festa da Folia de Reis chega ao Brasil junto com os padres
jesuítas no período da colonização portuguesa se incorporando “de maneiras diferenciadas às
diversas realidades econômicas e culturais do território brasileiro” (FËLIX e PESSOA, 2007,
p. 155).
Os primeiros registros da Folia de Reis no Brasil datam do século XVIII e desde então
a festa se difundiu pelos estados brasileiros tendo ainda hoje grande presença na zona rural. O
grande fluxo de pessoas vindas do campo para as cidades, principalmente a partir da década
de 1960, fez com que a celebração também tomasse forma nas áreas urbanas brasileiras, em
muitos casos com menos visibilidade e em outros com estilos próprios.
… expressões religiosas tradicionais que, sobrevivendo nas periferias das grandes
cidades, ganharam novas formas, devido às especificidades do grande contexto
urbano. Mesmo sabendo que essa população das cidades guarda muitas tradições de
origem rural, sabemos também que ela já tem um estilo de vida próprio, estilo este
que certamente influi nas suas práticas religiosas. (OLIVEIRA, 1983, p. 911)
Apesar de ser uma festa de caráter religioso e de ter sido trazida ao Brasil pelos
próprios jesuítas, é importante dizer que ela não dependia de representantes oficiais da Igreja
para ocorrer, além de carregar as próprias crenças vindas com portugueses pobres que não
tinham relação direta com o clero oficial ou mesmo com uma elite da Coroa. Assim, apesar
das boas relações com padres e párocos de regiões próximas às de realização das festas, elas
ocorriam de forma autônoma agregando valores próprios, bem como a parte profana das
danças e bebidas.
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Em alguns estados brasileiros a festa de Folia de Reis é conhecida como Reisado, como no estado de
Alagoas.
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É por isso que a própria divisão tradicional entre sagrado/profano elaborada por
Durkheim (MARTÍN, 2003, p. 2), não tem espaço garantido nas manifestações populares da
religiosidade, já que seus sujeitos não veem as danças e bebidas como um desrespeito ao
santo para o qual se está comemorando, mas como elementos a mais nessa forma de devoção.
O sagrado e o profano são assim parte de um mesmo ritual em uma dada comunidade.
Esta autonomia fez com que, da mesma forma como a Festa dos Loucos sofrera
interferência direta da Reforma e da Contrarreforma no século XVI, o processo de
romanização implementado pela Igreja Católica na segunda metade do século XIX e o
Concílio Vaticano II na segunda metade do século XX também atingissem diretamente a
realização das Folias de Reis no país já que, segundo Pedro Oliveira,
se a romanização não aboliu inteiramente as práticas religiosas tradicionais, é
entretanto inegável que ela contribuiu para retirar delas o seu caráter coletivo e
público, relegando muitas daquelas práticas para a esfera doméstica e privada.
(1983, p. 911).
Apesar disso muitos grupos de Folia de Reis conseguem manter sua devoção fazendo
o giro3 em pequenas cidades, fazendas ou pelos bairros das grandes áreas urbanas. Ainda hoje,
o comando das Folias seguem nas mãos de leigos, que por uma tradição familiar ou pelo
envolvimento e dedicação à festa, têm a legitimidade e o respeito da gente local para manterse à frente de sua organização. Atualmente, a função da Igreja na manifestação, quando existe,
é a de ser local de saída dos grupos na noite de 24 de dezembro ou a de receber uma grande
missa ao final do giro ou no domingo próximo ao dia 6 de janeiro.
Mestre, embaixador, tirador e capitão são os nomes mais empregados na designação
de uma mesma função, de enorme importância em qualquer Folia de Reis. Ele atua
decisivamente na organização de todo o ritual, posicionando vozes, direcionando o
giro, conferindo afinação de instrumentos etc. Mas, acima de qualquer dessas
tarefas, está a sua identidade maior, a de ser o depositário do conteúdo estruturante
do ritual – o ‘guardião do sagrado’ (Gomes; Pereira, 1995, p. 71). É ao embaixador
que se dirigem sempre para o esclarecimento de todos os fundamentos da devoção
(Pessoa, 1993). Ele deve saber o relato bíblico das origens, transformando-o em
versos ou em explicações práticas do andamento da folia... (FÉLIX e PESSOA,
2007, p. 207-208)
No caso das Folias de Reis, por exemplo, é possível encontrar muitos mestres que
sabem contar toda a narrativa sobre a viagem dos Reis Magos com detalhes e acréscimos,
mesmo sem terem lido a pequena passagem bíblica que narra o fato. Este conhecimento vem
3
Giro é a peregrinação feita pelos foliões que inclui um ponto inicial, a festa de partida, e um ponto
final, a festa de chegada. O percurso é composto pela visita a casas de devotos que recebem a bandeira dos
santos e lhes dão oferendas, fazem rezas de pedidos e agradecimentos. (FELIX e PESSOA, 2007, p. 8)
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do aprendizado 'de ouvido' e assim contribui para dar continuidade à tradição e até mesmo
enriquecer a história.
Um tipo de saber que vive de reconstituir, o que já é conhecido de todos; que vive de
recriar na memória de cada tipo de agente o repertório de crenças e ritos que fogem
da prisão da leitura de todos, logo, de um tipo secular de controle erudito sobre a
memória coletiva do popular. Ali é importante para o agente conhecer os segredos da
cultura da classe e da comunidade e fazer sobre ela o mundo da religião local.
(BRANDÃO, 2007, p. 308).
Apesar de todo esforço de interrupção das práticas de devoção mais festivas, a Folia
de Reis, assim como várias outras festas religiosas, consegue manter algumas de suas
características mais tradicionais. Segundo Alba Zaluar, as festas “são parte de um sistema de
reciprocidade com as divindades do cosmo construído socialmente pelos homens. Esse
sistema de reciprocidade, por sua vez, integra a própria visão de mundo dos agentes sociais.”
(1983, p. 80).
Nas festas em geral, essa reciprocidade está presente, por exemplo, por meio do que
Pedro Oliveira (1983, p. 913-914) chama de oferta de dom, forma de culto mais simples
existente no catolicismo, que pode ser uma oração, os enfeites da bandeira que carrega a
imagem do santo durante o giro e a oferta de esmolas ao santo, no caso da Folia de Reis.
Segundo o autor, estes elementos são considerados como agrados ao santo, mantendo assim
uma relação pessoal entre ele e seu devoto.
Fé e crenças na construção de uma religiosidade popular
Na bibliografia que discute a religiosidade popular parece lugar comum incluir nesta
categoria as promessas, festas, novenas, peregrinações, milagres, culto aos santos, etc. No
entanto, já não há um consenso quando se quer delimitar uma significação para o conceito de
popular na religiosidade presente nestas manifestações. Segundo Fernandes (apud Menezes,
2003, p. 2) o “popular” apresentaria pelo menos três sentidos diferentes nos estudos
produzidos até os anos 1980.
O termo pode significar ‘a maioria da população’, por oposição à minoria; algo
‘pertencente a extratos inferiores da população’, por oposição a práticas da elite; ou
ainda ‘extra-oficial’, no sentido de estar fora do controle ou da regulamentação da
autoridade instituída, por oposição a uma religião ‘oficial’. (MENEZES, 2003, p. 2)
Ao se pensar a Folia de Reis, por exemplo, têm-se as duas últimas características
presentes em sua manifestação, principalmente quando ela passa para o espaço urbano, onde
as relações de classe se complexificam e as diferenças sociais podem ser percebidas pela
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própria localização dos bairros nas cidades4. Na cidade de Juiz de Fora (MG), por exemplo,
todos os treze grupos de Folia em atividade atualmente são de bairros de periferia. Além
disso, como foi visto, a construção e consolidação das diversas manifestações religiosas
existiram sempre em espaços de disputas simbólicas, culturais, políticas, etc.
Assim, as relações entre a Igreja e o Estado ao longo da história fazem com que o
caráter oficial dessas instituições, que são políticas e sociais, influencie em uma diferenciação
mais facilmente demarcada com as religiosidades populares que conseguem manter-se de
forma autônoma, ainda que em diálogo com elas.
A variedade de elementos simbólicos empregados no culto aos santos, elementos
estes que extrapolam largamente o código da liturgia oficial da Igreja [...] não trazem
em si mesmos uma ruptura com o código simbólico católico, embora nem sempre
sejam bem vistos pelas autoridades eclesiásticas. São, muitas vezes, gestos
discrepantes dos gestos da liturgia oficial, mas não gestos divergentes ou
antagônicos a ela. […] Suas diferenças em relação aos gestos e orações da liturgia
oficial devem ser atribuídas às diferenças de classe social e de culturas, e não
interpretados como formas não-católicas de culto ao santo. Tanto assim que o povo
sente-se perfeitamente dentro da Igreja Católica, sem atribuir ao culto aos santos
uma conotação de contestação religiosa. Não se trata, pois, de um culto paralelo ao
culto oficial, e muito menos, de um culto contestador, antagônico ou substitutivo do
culto oficial; trata-se, sim, de um culto onde a liberdade expressiva dos devotos não
fica limitada ao código da liturgia oficial, assumindo por isso os traços próprios à
cultura de cada grupo ou classe social. (OLIVEIRA, 1983, p. 918-919)
Ao mesmo tempo, a própria autonomia que provoca reações às vezes mais agressivas,
como já mostrado anteriormente, por parte das religiões oficiais, faz com que essas
instituições repensem suas atividades, suas maneiras de agir para com outros grupos e
remodelem suas práticas em uma dialógica constante de trocas simbólicas entre o popular e a
elite (GINZBURG, 1987, p. 12-13). Isso consta nas próprias Diretrizes Gerais da Ação
Evangelizadora da Igreja no Brasil, que recomenda
que essas manifestações sejam
valorizadas e estimuladas já que elas têm grande importância na iniciação à vida cristã (2011,
p. 72).
No que se refere às crenças e fé desses sujeitos adeptos de uma religiosidade popular,
algumas características são comuns como a devoção aos santos, o pagamento de promessas, a
espera de milagres para casos de doenças e sofrimento e o pedido de proteção. Os Reis
4
Segundo o coletivo do Ponto de Cultura Escola Livre de Comunicação Compartilhada, “a questão
urbana no Brasil é um reflexo da questão econômica e social. Quer dizer, os padrões de crescimento e
estruturação da nossa sociedade e da nossa economia se refletem especial e espacialmente na cidade. Quer
dizer, a maneira como as cidades foram organizadas no país tem a ver com a maneira com que foram
organizadas
nossa
economia
e
nossa
sociedade.”
Disponível
em
http://www.ipiranga895.outraspalavras.net/site/home acesso em 10 de junho de 2012.
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Magos, assim como outros santos católicos, são objeto de três ações do devoto: o culto,
maneira de mostrar o apreço e carinho ao santo; a invocação, pedido de proteção, favores e
graça; e punição, quando o santo deixa de atender um pedido ou dar proteção aos fiéis
(OLIVEIRA, 1983, p. 913).
Tais características não são de exclusividade popular, mas se diferenciam de acordo
com os contextos nos quais estão inseridas. É por isso que Da Matta afirma que
todas as religiões em todos os tempos e sociedades sempre estiveram voltadas para
duas tarefas simultâneas: a de justificar a ordem social existente e a de dar sentido ao
sofrimento, ao acidente, à doença e à morte. A grande questão é que cada uma delas
faz isso de modo diverso. (1986, p. 141)
Se antes “tudo podia ser explicado, em última análise, pela manifestação da vontade
divina” (ZALUAR, 1983, p. 86), hoje os santos repartem essas responsabilidades com novas
crenças ou mesmo com a falta delas trazidas com os avanços científicos, por exemplo. Além
disso, no caso da Folia de Reis, alguns de seus membros participam hoje do giro não para
pagar uma promessa ou pedir proteção aos santos, mas pelo fato de fazer parte de um grupo
que muito vezes é visto mais pelo seu caráter artístico que religioso.
No entanto, outras características estão presentes nas festas até os dias de hoje,
consideradas um espaço de reforço dos laços da rede de relações da qual fazem parte seus
sujeitos, de “competição pelo prestígio e para expressar simbolicamente a unidade e os
conflitos inerentes a essas relações sociais estabelecidas” (idem, p. 95).
Da mesma forma, Pedro Oliveira afirma que “promover ou participar da festa do santo
é ao mesmo tempo promover ou participar do trabalho social de restauração e reforço dos
laços de solidariedade do grupo” (1983, p. 929). A própria preparação da festa já é ela mesma
“um ato coletivo de culto, com profundo sentido religioso” já que combina “diversos rituais
durante um período mais ou menos longo de preparação e na sua realização propriamente
dita” (idem, p. 921-922).
É por isso que, mesmo mantendo neste trabalho o uso do conceito de religiosidade
popular, devemos compreender sua complexidade, já que nos dias atuais até a fé e as crenças
partem de outros contextos e estão em processo dialógico constante com as ações de seus
sujeitos. Assim, “es posible pensar que puede haber un ‘sagrado’ fuera de los grupos definidos
como estrictamente ‘religiosos’ y que lo ‘religioso’ puede ser construido con elementos ‘no
sagrados’...” (MARTÍN, 2003, p. 5).
Logo, as práticas de pertencimento a uma dada religião podem mudar ao longo dos
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tempos, mas elas provavelmente vão acompanhar também as mudanças sociais vividas pelos
seus sujeitos e vice-versa, já que elas não são “apenas capazes de ‘dizer’ coisas sobre a ordem
social, mas também de influir nessa ordem e, num certo sentido, contribuir para construí-la e
reconstruí-la” (MENEZES, 2004, p. 28). Estas diferenças não significam dizer que uma
manifestação seja mais autêntica ou verdadeira que outra, mas apenas que elas fazem parte da
própria maneira de ver o mundo de cada um dos grupos sociais e assim a legitima.
Considerações finais
Todo esse debate sugere que mesmo com todas as mudanças vividas na sociedade
brasileira, por exemplo, é possível destacar a característica popular de determinadas
manifestações religiosas ainda que muitas de suas ações de fé e devoção não sejam
exclusividade de grupos populares. Essa afirmativa pode ser feita considerando-se que “há
várias maneiras possíveis de uma religião ser concretamente vivida” (MENEZES, 2003, p. 2).
E é a partir dessas especificidades que o caráter “popular” deverá ser delimitado em uma dada
religiosidade, já que cada grupo social mostra uma forma própria de viver a religião,
Por mais que haja normas e modelos a serem seguidos, cada grupo realizará seu giro
de Folia de Reis, por exemplo, à sua maneira.
De uma região para outra e até entre folias da mesma região, cada uma tem suas
características, detalhes que lhe são próprios, embora todas guardem o mesmo
objetivo. Isto se deve ao fato de ser cultura popular. Os grupos não têm forma rígida,
pois não há escola de formação de folião. É a continuação de uma cultura que teve
início há séculos e por povos originários de várias culturas. Conforme é a cultura
dos participantes, é a riqueza das participações (Vigilato, apud FÉLIX e PESSOA,
2007, p. 179).
Assim, a festa possui um caráter ambíguo da própria vida humana, pois ela consegue
ser ao mesmo tempo uma representação dos pensamentos e modos de vida das pessoas em sua
cotidianeidade, e também carrega seu caráter extraordinário por ser um espaço/tempo que
quebra as rotinas rígidas impostas ou apresentadas principalmente pelo trabalho, pelo sistema
oficial, bem como pelas relações hierárquicas. Aqui ocorre uma inversão da hierarquia social;
os sujeitos tidos como subordinados, passam ao status de líderes, principalmente pelos seus
conhecimentos relativos às crenças nos santos e à organização da folia.
A continuidade no uso do conceito de religiosidade popular deve vir, portanto,
acompanhada da clareza de que esse conceito não é fixo e imutável e, por isso, acompanha as
mudanças sociais, políticas e culturais de cada comunidade, já que, como lembra Brandão
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… uma formação social como a brasileira [...] opõe grupos, classes e etnias,
sobrevivendo das contradições entre eles, e soma diferenças sobre categorias de
pessoas dentro da classe e, sobretudo, entre as elas, multiplicando tipos diversos de
interesses e aflições para todas e para cada uma (2007, p. 277).
É por isso que os cruzamentos, fusões, similitudes e até mesmo as negações de um
pelo outro são constitutivos do próprio campo religioso brasileiro, mas não uma exclusividade
sua. Como aponta Sanchis (1997), o processo de sincretismo estende-se ao campo, genérico,
da cultura. O próprio reconhecer-se ou negar-se no outro produz de alguma forma
proximidades resultando em um processo contínuo de reconstrução de conceitos e campos de
estudos, estando aí o desafio de constante renovação na pesquisa acadêmica.
Segundo Bakhtin (1999, p. 43), a carnavalização da consciência ajudaria a destruir
“pretensões de significação incondicional e intemporal”, liberando o pensamento e a
imaginação humana para que fiquem disponíveis ao desenvolvimento de novas
possibilidades, necessárias ao campo da religiosidade, como vimos.
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11
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