II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte
13 a 15 de setembro de 2010 . Belém (PA)
GT 9 - Povos indígenas, territórios e conhecimento
CONDICIONANTES PARA DEMARCAÇÃO DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS: a
postura judicial do Estado brasileiro na afirmação dos direitos territoriais indígenas
Marlon Aurélio Tapajós Araújo – Universidade Federal do Pará
Belém . Pará
setembro . 2010
Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Condicionantes para demarcação de territórios indígenas: a postura judicial do Estado
brasileiro na afirmação dos direitos territoriais indígenas
Marlon Aurélio Tapajós Araújo1
Resumo: Remontam às invasões dos primeiros anos do Quinhentos o relacionamento entre
o Estado e os índios. Desde o princípio, foi algo sem alteridade. Ainda no primeiro século da
invasão portuguesa, os índios conheceriam a verdadeira face do embrião do Estado
português: a da violência. Cinco séculos depois da invasão, os herdeiros do Estado
português ainda sonegam direitos originários dos índios. Este texto analisará em que
medida o desfecho do conjunto de processos acerca do território indígena Raposa Serra do
Sol (Roraima) contribuiu mais para a violação dos direitos dos índios, no que se refere ao
território e direitos correlatos, do que para a afirmação dos direitos destes povos. Para tanto,
serão discutidos os conceitos de terra e território e avaliado como ambos, e seus
defensores, foram o nascedouro das 19 condicionantes. Proceder-se-á à avaliação das
condicionantes que violaram os Direitos Humanos dos povos e comunidades indígenas,
inseridos na Convenção 169 da OIT comprometendo a idéias de territorialidade e
identidade, inclusive porque há a perspectiva de constituírem parâmetros a serem
observados nas próximas demarcações de terras indígenas, em âmbito administrativo, ou
na resolução de questionamentos judiciais que tenham por alvo tais procedimentos
administrativos. Coligiremos dados sobre julgados ocorridos após a fixação das
condicionantes para saber em que medida se ativeram ou se afastaram destas balizas
judicialmente impostas pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil.
Introdução
1
Advogado. Especialista em Gestão Ambiental, pelo Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará
(NUMA/UFPA) Mestrando em Direitos Humanos e Meio Ambiente, do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Técnico em Direito da Procuradoria Geral do Estado do Pará
(PGE/PA).
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
A primeira impressão que se teve, quando ainda não havia sido concluído o
julgamento acerca de Raposa Serra do Sol, embora já estivesse solidamente formada a
maioria em favor dos indígenas, foi a de que estes povos acabavam de obter uma vitória
histórica no Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia, não foi bem assim, como já se vem
reconhecendo, ainda que sem um amplo debate.
A primeira impressão deve ser superada e deve-se avançar rapidamente na direção
de acumular debates e forças para enfrentar essa nova ofensa aos direitos dos povos
indígenas que são as condicionantes estabelecidas pelo STF para a demarcação de Raposa
Serra do Sol, mas que irão impactar em futuras demarcações.
O Ministro Presidente do STF, Gilmar Mendes, fez questão de registrar, em
entrevista, que todos, desde o Governo até à sociedade civil, deverão observar ou refletir a
partir dessa nova orientação estabelecida pelo STF para os processos de demarcação de
terras indígenas (MENDES, 2008).
Gilmar Mendes é um dos defensores mais proeminentes da idéia jurídica consistente
na transcendência dos motivos determinantes dos julgados a outros que não tenham sido
objeto do julgamento em que tais motivos foram declinados. Esta noção repercute
decisivamente, a partir do que ficou decidido no julgamento acerca de Raposa Serra do Sol,
nos casos que ainda deverão ser julgados pelo Tribunal ou pelos Tribunais inferiores, e,
mesmo, incidirá sobre o iter administrativo das demarcações.
Na prática, trata-se de uma nova reorientação da política de demarcação de
territórios indígenas, patrocinada por setores conservadores da sociedade civil, reavivando
antigo projeto colonial que pretendia, desde às missões religiosas, passando pela
Administração Pombalina da Amazônia, até à conformação militar da questão indígena, a
integração
(rectius:
aculturamento),
a
todo
custo
(especialmente
ao
custo
da
escravidão/submissão indígena), entre índios e brancos.
A novidade dessa renovada intervenção é sua feição judicial proativa, inscrita nos
marcos do ativismo judicial, que já marca indelevelmente a atuação do Supremo Tribunal.
Vimos desde a Constituição de 1988, o STF decidir questões que interessam diretamente a
muitos brasileiros, ou que, no mínimo, apresentam um grau de imediata repercussão social
com a qual o Tribunal talvez não estivesse acostumado a lidar antes do advento de nossa
última Constituição. Portanto, trata-se de uma missão que ainda colhe o Supremo nos
primeiros passos, o que pode vir a ser bom e, também, pode ser ruim.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Este artigo abordará a possível repercussão negativa desta nova maneira de julgar
do STF. Não atuando, mais exclusivamente, como legislador negativo, conforme o
mandamento doutrinário kelseniano, que tanto o influenciou, o STF arvora-se - em alguns
casos, com necessidade e propriedade - a legislar positivamente. Foi o que fez neste caso
de Raposa Serra do Sol ao estabelecer 19 (dezenove) condicionantes a serem observadas
nos processos judiciais e administrativos que tenham por objeto demarcações de terras
indígenas. Resta saber, se, com necessidade e propriedade.
Para tanto, será feita a exposição e análise da fundamental distinção, para este
tema, entre as categorias terra e território. Demarcar um território indígena sem ajuizar
destas categorias e de seu significado, inclusive e necessariamente para além do direito,
constitui temeridade e pode desaguar em resultado que destoa do projeto constitucional
imaginado para estes povos quando tiveram, em boa e já tardia hora, o reconhecimento não a constituição – dos seus direitos originários, dentre eles fundamentalmente o direito ao
território indígena, noção que utilizarei e em relação a qual registro a divergência acerca do
que semântico-politicamente expressa, divergência esta que ficará bem marcada a partir do
que foi defendido pelo Ministro Carlos Ayres Britto, relator da Petição 3388 (ação popular
que visava a nulidade da demarcação de Raposa Serra do Sol), em seu voto acerca da idéia
de territórios indígenas e noções correlatas.
Esta será, então, a base para saber se as condicionantes propostas pelo Ministro
Carlos Alberto Menezes Direito, em voto que se seguiu ao voto do Ministro Relator, violam
ou não direitos humanos dos índios, inclusive os previstos na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou, se revelam tão-somente, o exercício da
soberania brasileira.
Anote-se que no âmbito da Corte, houve divergência pontual acerca da edição
destas condicionantes. O Ministro Joaquim Barbosa rejeito-as e ficou vencido. Vencidos
também restaram, no entanto pontualmente, os Ministros Carlos Britto e Eros Grau e a
Ministra Carmen Lúcia, quanto à condicionante XVII, umas das mais polêmicas, senão a
mais polêmica, porque proporcionalmente mais violadora dos direitos dos índios, haja vista
cuidar do tormentoso tema da vedação de ampliação de terra indígena.
Vale o registro, finalmente, de que serão utilizados aqui os textos das condicionantes
tal como foram publicados pelo Supremo Tribunal Federal em 19 de março de 2009, no
Diário de Justiça, a título de dispositivo do acórdão. Assim se procede, pois há algumas
discrepâncias entre as versões dos textos publicadas no link das notícias do STF e partir daí
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
todas as veiculações produzidas pela mídia e também das versões dos textos dos quais se
valeram a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria Geral da República para o
preparo de seus memoriais com os quais combateram algumas das condicionantes
estabelecidas pelo STF e que serão aqui examinadas.
2 Terra e território: uma distinção necessária
A terra é, para o índio, uma relevante parte da vida (DALLARI, 2008), pois é a partir
da junção entre vida e terra que emerge o território. Impróprio dizer, então, que há terra
demais para índios em pequeno número. O território indígena é aquilo que deve ser de
acordo com os usos e tradições destes povos e tudo o que concorra para sua reprodução
física, social e cultural. Não se trata de uma relação de ocupação por metro quadrado, mas
de uma relação que se constitui à base da idéia de pertencimento àquele “pedaço de chão”
e não outro, àquele específico espaço com sua específica vegetação e não outra, condições
particulares que ligam o índio e o seu território por laços que talvez um dia já tenham
ocorrido ao homem branco, mas que hoje lhe fazem pouco sentido. Não se cuida de “terrameio de produção” (SEEGER e VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 104), mas de terra-vida;
território.
É exatamente este modo de vida próprio que a noção de território e mais
especificamente de territorialidade específica visa resguardar. Não se cuida da terra pela
terra, seja em quantidade maior ou menor. Trata-se de uma relação simbólica que reverbera
no dia-a-dia das comunidades indígenas. Desprovidas deste contexto territorial particular
perdem, elas, seu mundo, sua casa (se assim é permitido dizer); atentar contra o território
equivale a retirar-lhes a vida, tal como a entendem e deve ser respeitada pelos que com
elas se relacionam e são estranhos e estranham às suas cosmovisões.
Seeger e Viveiros de Castro (1979, p.104), em texto seminal sobre a diferença em
questão pontuam que:
É preciso sublinhar a diferença entre um conceito de terra como meio de produção,
lugar do trabalho agrícola ou solo onde se distribuem recursos animais e de coleta, e
o conceito de território tribal, de dimensões sócio-político-cosmológicas mais amplas.
Vários grupos indígenas dependem, na construção de sua identidade tribal distintiva,
de uma relação mitológica com um território, sítio da criação do mundo, memória
tribal, mapa do cosmos - como é o caso dos grupos do Alto Xingu e do Alto rio
negro. Via de regra, são os grupos que praticam formas de subsistência mais
sedentárias os que apresentam tal enraizamento simbólico com seu território.
Outros, como os Gê e os Yanomami, por estarem mesmo em processos de
expansão – muitas vezes de natureza guerreira – e por se apoiarem em adaptações
mais móveis ao meio ambiente, não parecem definir sua identidade em relação a
uma geografia determinada. Sua organização social, por assim dizer, se apresenta
em termos conceituais, antes que geográficos. Estas diferenças são básicas, pois o
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
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deslocamento dos grupos do primeiro tipo de seus territórios tradicionais têm
implicações mais que puramente econômicas. E ainda, a demarcação de áreas e
reservas indígenas, além de levar em consideração o uso efetivo dos recursos
naturais pelo grupo, deve perceber estes outros fatores.
Divisar as duas categorias desta maneira atesta que a diferença entre terra e
território não somente é relevante, mas também implica o próprio reconhecimento dos
limites aceitáveis na implementação deste direito dos índios ao território. Parece bastante
claro, que a lógica a presidir a política de demarcações não pode prescindir desta
importante diretiva: território indígena não é apenas terra ocupada tradicionalmente pelos
índios, território indígena é a terra e suas circunstâncias e relações simbólicas, políticas,
econômicas e ambientais.
Território indígena, nesta acepção, não é núcleo de movimento separatista, não é
estratégia de rompimento do vínculo jurídico-político com a nação brasileira, mas sem
dúvida é trincheira político-jurídica de resistência do indígena às investidas seculares do
homem branco contra direitos que já eram praticados sem qualquer regulamentação muito
antes de portugueses e outros povos aportarem no Brasil.
Gallois (2004, p. 39) arremata com precisão a distinção, já analiticamente exposta
por Seeger e Viveiros de Castro (1979) acima citada:
(...) Território não é apenas anterior à terra e terra não é tão somente uma parte de
um território. São duas noções absolutamente distintas.
Como expuseram vários estudos antropológicos, a diferença entre „terra‟ e „território‟
remete a distintas perspectivas e atores envolvidos no processo de reconhecimento
e demarcação de uma Terra Indígena. A noção de „Terra Indígena‟ diz respeito ao
processo político-jurídico conduzido sob a égide do Estado, enquanto a de „território‟
remete à construção e à vivência, culturalmente variável, da relação entre uma
sociedade específica e sua base territorial.
Oliveira Filho (1998, p. 9) enuncia o modo como se deve compreender e conduzir o
processo de demarcação de terras indígenas, oferecendo relevantes aportes para o tema
que se está a expor:
A criação de uma terra indígena não pode ser explicada por argumentos e
evidências etnohistóricas, nem se reporta apenas às instituições e costumes
tradicionais daqueles que sobre ela exercem a sua posse. Seu delineamento ocorre
em circunstâncias contemporâneas e concretas, cuja significação precisa ser
referida a um quadro sempre relativo de forças e pressões adversas,
contrabalançadas por reconhecimento de direitos e suporte político, não
correspondendo de modo algum à livre e espontânea expressão da vontade dos
membros dessa coletividade. Ademais tal manifestação jamais terá um caráter
estático e final, modificando-se segundo os contextos históricos e as conjunturas
políticas locais, variando inclusive em suas afirmações internas e de acordo com os
diferentes projetos étnicos ali desenvolvidos.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Dessas três noções, pode-se inferir que o conceito de território dialoga com a idéia
de grupo étnico tal como solidificado a partir da terminologia barthiana (BARTH 2000).
Outrossim, é pertinente conceber que essa noção de grupo somente se conforma
adequadamente desde a noção de fronteira étnica que estaria a definir o grupo e não o
conteúdo cultural que ela encerraria (BARTH, 2000).
A relação entre os grupos étnicos e os territórios que autoriza a visualização da
identidade étnica de um povo é a que indica ser não apenas a ocupação, mas o fazer
tradicional neste território voltado a demarcar a fronteira étnica entre os grupos com que
entram em contato (BARTH, 2000).
Com isto, elide-se de vez o argumento, bastante referido por defensores dos nãoíndios intrusos em Raposa Serra do Sol, acerca da fragilização da soberania nacional,
argumento este que influenciou não apenas os fundamentos dos votos dos ministros, como
o sentido da decisão a que se chegou no processo.
Perceba-se que quando o território indígena se conforma e se extrema por meio da
identidade étnica, resultado do fazer do índio sobre o território e da fronteira que se cria
entre a unidade deste fazer no território e o contato com não-índios, o território que se
almeja demarcar não ameaça a soberania, apenas indica que naquela ocupação indígena
nada há que se possa dizer homogeneizado, a ser identificado com o que se convencionou
chamar de nação brasileira. Nisto nada há de separatismo, nada há de disputa jurídicopolítica, conforme já se viu.
Barth (2000, p. 35) sintetizou bem este processo: “(...) a persistência de grupos
étnicos em contato implica não apenas a existência de critérios e sinais de identificação,
mas também uma estruturação das interações que permita a persistência de diferenças
culturais.”, o que no sistema teórico barthiano pode ser sustentado mesmo a despeito da
existência de território, porquanto para Barth a identidade étnica prescinde do território2
(BINDA, 1999).
2
Constituindo tal premissa, útil abordagem para os estudos de etnicidade (BINDA, 1999), não se pode negar-lhe,
porém, validade no reconhecimento do que vem a ser o território em tempos de globalização, onde a eventual
destruição do território poderia sugerir a aniquilação de povos tradicionais; no entanto pode constituir bússola
dos estudos que se dediquem a verificar como, mesmo sem território, comunidades e povos não deixam de
existir e continuam a travar lutas territoriais impregnadas de identidade étnica e política.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Esta diferença é exatamente o que nossa Constituição visou proteger em seu artigo
216:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Parece um truísmo dizer que o território indígena concorre para a formação desse
patrimônio que a Constituição reputou importante, e, por isso mesmo, quis por a salvo da
destruição e do esquecimento. Pródiga que foi nas afirmações conseqüentes de direitos,
nossa Constituição conferiu tratamento diferenciado a esse patrimônio do qual os índios são
os curadores mais fiéis e interessados. Assim, a cabeça e o parágrafo primeiro do art. 231
está assim redigido:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar
e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições.
Importa asserir, nesta perspectiva, que não se empresta ao termo constitucional
terras tradicionalmente ocupadas, o sentido que o Ministro Relator Carlos Britto conferiu ao
termo, em seu Voto, Britto (2008, p. 35-36), proferido no caso Raposa Serra do Sol. Ficou ali
averbado o seguinte:
(...) [a] Constituição, teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tãosó, em “terras indígenas”. É que todo território se define como parte elementar de
cada qual das nossas pessoas jurídicas federadas. Todas elas definidas, num
primeiro e lógico momento, como o conjunto de povo, território e governo (só num
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
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segundo instante lógico é que toda pessoa federada se define como o conjunto dos
seus órgãos de poder: Legislativo, Executivo e Judiciário, com a ressalva de que
este último não faz parte da estruturação do Município). Governo soberano,
tratando-se da República Federativa do Brasil; governo autônomo, cuidando-se de
qualquer das pessoas políticas de direito público interno. E já ficou demonstrado que
terra indígena e ente federativo são categorias jurídicas de natureza
inconfundível. Tal como água e óleo, não se misturam.
Conforme se vê, trata-se de entendimento do termo território que ignora os
contributos mais atuais da antropologia e da geografia que, modernamente, vinculam
semanticamente a este conceito, a noção de pertencimento, a partir do que se permite
falar em identidade étnica que, no caso das comunidades tradicionais, nelas insertas
os índios, decorre da atuação política destes sujeitos no território em que estão
enraizados e em defesa dele; atuação esta que não é jurídico-política, mas políticojurídica, no sentido de influenciar o direito e sua implementação a partir da arena de
disputas políticas, enquanto representação das liças diuturnas destas comunidades.
É nesta perspectiva que será aplicado o termo território indígena, com achegas que a
ele ainda aduzirei no tópico que virá, mas que de toda sorte é o termo que deveria ser
empregado no capítulo constitucional acerca dos direitos dos índios, reconhecidos pelo
legislador constitucional de 1988.
É importante remarcar, então, e tendo em linha de conta tudo o que já foi consignado
acima, neste tópico, que o termo constitucional “terras tradicionalmente ocupadas” merece
ser interpretado em conformidade com a realidade que visa tutelar. Nesse passo, não se
pode entender, tratar-se, aqui, meramente, de terras indígenas. Cuida-se, com efeito, de
territórios indígenas, com todos os aspectos declinados acima.
O Ministro Relator do Caso Raposa Serra do Sol, Carlos Britto captou bem a
essência, se assim se pode dizer, da idéia de território, porém recuou para assentar cuidarse tão somente de terra indígena, preso que ficou a dogmas contra os quais, vez por outra,
costuma insurgir-se. Veja-se esse trecho lapidar do voto do Ministro, que confirma esta
assertiva (BRITTO, 2008, p. 56-57):
Não basta, porém, constatar uma ocupação fundiária coincidente com o dia e ano da
promulgação do nosso Texto Magno. É preciso ainda que esse estar coletivamente
situado em certo espaço fundiário se revista do caráter da perdurabilidade. Mas um
tipo qualificadamente tradicional de perdurabilidade da ocupação indígena, no
sentido entre anímico e psíquico de que viver em determinadas terras é tanto
pertencer a elas quanto elas pertencerem a eles, os índios (“Anna Pata, Anna Yan”:
“Nossa Terra, Nossa Mãe”). Espécie de cosmogonia ou pacto de sangue que o
suceder das gerações mantém incólume, não entre os índios enquanto sujeitos e as
suas terras enquanto objeto, mas entre dois sujeitos de uma só realidade telúrica: os
índios e as terras por ele ocupadas. As terras, então, a assumir o status de algo
mais que útil para ser um ente. A encarnação de um espírito protetor. Um bem
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
sentidamente congênito, porque expressivo da mais natural e sagrada continuidade
etnográfica, marcada pelo fato de cada geração aborígine transmitir a outra,
informalmente ou sem a menor precisão de registro oficial, todo o espaço físico de
que se valeu para produzir economicamente, procriar e construir as bases da sua
comunicação lingüística e social genérica
Daí se infere, sem dificuldade, que não se trata unicamente de terra, mas de território
este a englobar aquela em uma relação marcada pela idéia de pertencimento, também
indicada pelo voto, tudo a corroborar o que o Ministro Carlos Britto tentou negar, contudo
sem sucesso retórico, ao menos.
A tentativa do Ministro Carlos Britto de oferecer às disputas em torno das noções de
terra e território indígena uma solução unificadora, escusando-se de compreendê-lo no
único sentido em que efetivamente significa alguma coisa às comunidades indígenas,
referendado pelas ciências sociais que se aplicam no estudo do tema, tendo em conta a
exclusividade de que gozaria o conceito jurídico-político de território, isto é, do ponto de vista
da soberania nacional brasileira, é uma expressão de duas tendências que se confirmaram:
a) adoção de condicionantes na demarcação de territórios indígenas e b) violação de
direitos
indígenas
que
já
estavam
assegurados
e
reconhecidos
pelo
Brasil
internacionalmente (Convenção 169 da OIT e Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas).
A literatura especializada, no âmbito da Geografia, sobre a noção de território nos
informa que, após estudar as várias ciências que chegam a formular uma concepção de
território, enfocando especialmente abordagens de suas áreas de interesse (Geografia,
Ciência Política, Economia, Antropologia, Sociologia e Psicologia), é possível agrupar estas
concepções em três vertentes básicas:
– política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico-política (relativa
também a todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida,
onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado através do qual se
exerce determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente –
relacionado ao poder político do Estado.
- cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão
simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.
- econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão
espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou
incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como
produto da divisão territorial do trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 2004, p. 40)
A lógica que os arrozeiros tentavam impor, patrocinados por políticos de alto escalão
da República, à demarcação do território indígena Raposa Serra do Sol apontava no sentido
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
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de desterritorializar os povos indígenas ali arraigados, muito antes de qualquer ente político
ou projeto econômico, ante o esforço concentrado no sentido de fazer prevalecer uma
perspectiva economicista de território nacional, que negava, por evidente, a perspectiva
constitucional de território indígena.
Vê-se, assim, que a disputa em torno da manutenção da demarcação contínua de
Raposa Serra do Sol antagonizou interesses que articulam visões de mundo informadas
pelas dimensões que os conceitos de território podem assumir, de acordo com esta
classificação da ciência geográfica política apresentada. Essa disputa nada mais é senão a
expressão de uma luta que se trava pelo exercício autônomo do poder no território, nacional,
nos caso dos arrozeiros, indígena, no caso dos índios.
A disputa a resolver era de projetos territoriais e a decisão elidente da divergência é
sempre uma decisão que se baseia em quem tem o melhor projeto para o território e assim
se encontra qualificado para desenvolvê-lo. Em Raposa Serra do Sol, os povos indígenas há
séculos mostram que seu projeto territorial é o melhor, o que foi reconhecido pela
Constituição de 1988 e secundado pelo ato administrativo de demarcação, parâmetros da
decisão do STF, que culminou com três diretrizes judiciais de importância, ao menos formal,
são elas:
1. A demarcação de terras indígenas deve ser feita de forma contínua;
2. A demarcação de terras indígenas, localizadas em Faixa de Fronteira, não põe
em perigo a soberania do país;
3. A demarcação de terras indígenas não compromete o desenvolvimento de
qualquer ente da Federação brasileira.
Contudo, se por um lado os juízes do STF conseguiram discernir entre as idéias de
terra e território indígena, avançando no sentido de consolidar parâmetros de julgamento
que se já existentes talvez não se tivesse prolongado tanto a definição sobre a demarcação
contínua de Raposa Serra do Sol, não se comprometeram em respeitar os desdobramentos
que destes dois elementos derivam.
A vitória sobre a posição que recomendava a demarcação do território em
arquipélagos foi, sem dúvida alguma, esvaziada pela edição de condicionantes, que, se não
avançam sobre a idéia mais que evidente de que a demarcação de território indígena tem de
ser contínua, ao menos limitam a eficácia dessa elementar diretriz. É dizer: de nada valerá
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
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demarcar um território indígena se o Estado puder, sem consultar os povos indígenas,
intrusar ali uma base militar ou coisa que o valha.
3 Do exame das condicionantes propostas pelo STF para orientar as demarcações de
territórios indígenas à luz da Convenção 169 da OIT
3.1 Uma nótula prévia de trabalho
Após o voto do Ministro Menezes Direito propondo as condicionantes em exame
neste trabalho, quatro memoriais foram apresentados aos Ministros do STF, especialmente
ao Ministro Relator Carlos Ayres Britto. O Memorial da Comunidade Indígena Socó, o
Memorial das Comunidades Indígenas Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e
Manalai, o Memorial da AGU e o Memorial da PGR. A marca que iguala todas as
manifestações diz respeito a não contestarem explicita e fundadamente todas as
condicionantes, haja vista que muitas delas são despiciendas, à vista de repetirem preceitos
do texto constitucional ou dele decorrem3.
Deste modo, não serão objeto do exame contrastivo que aqui se procederá, as
condicionantes em que não foram identificadas violações ao texto constitucional ou aos
Direitos assegurados às comunidades indígenas pela Convenção 169 da OIT.
3.2 Condicionantes que tratam das restrições ao usufruto
I. O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras
indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que
houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da
União, na forma de lei complementar;
3
É o caso das condicionantes de nº XIV, XV, XVI, XVIII e XIX, cujos textos seguem na íntegra: XIV. As terras
indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno
exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição
Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973); XV. É vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha
aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de
atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973); XVI.
As terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas
naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da
CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não
cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros; XVIII. Os direitos dos
índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º,
CR/88); XIX. É assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação
das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
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II. O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e
potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso
Nacional;
III. O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que
dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a
participação nos resultados da lavra, na forma da lei;
IV. O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se
for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira;
V. O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa
nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções
militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas
energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico,
a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa
Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades
indígenas envolvidas ou à FUNAI;
VII. O usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de
equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além
das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União,
especialmente os de saúde e educação;
VIII. O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a
responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
A Condicionante I (CND-I) estaria a depender de Lei Complementar para que tenha
aplicabilidade. Enquanto não sobrevier lei que disponha sobre relevante interesse público da
União a que se refere o texto da condicionante, não terá qualquer operacionalidade jurídica.
Registre-se que não se cuida de qualquer interesse, mas de relevante interesse público,
algo de monta, com espectro social, devidamente fundamentado, a impactar a sociedade
como um todo, o que afastaria a alegação de relevante interesse público secundário (do
Estado) a justificar a relativização em questão.
Não se pode esquecer que as condicionantes em questão são, como o próprio nome
denota, enunciados restritivos, que devem ser restritivamente interpretadas/aplicadas, isto é,
jamais se poderá aumentar seu raio de incidência ou aprofundar suas conseqüências. Uma
interpretação ampliativa das condicionantes somente é lícita quando eventualmente
garantam direitos às comunidades indígenas, a saber, o caso das condicionantes que não
serão objeto de análise neste texto, aí se insere.
O advento da Lei complementar a que se referem a Constituição e a CND-I ocorrerá
num lapso temporal em que o ordenamento jurídico brasileiro já não é o mesmo que o
legislador constituinte de 1988 conheceu. Desde 2004 deve ser observada no país a
Convenção 169, que assegurou diversos direitos territoriais aos Povos Indígenas,
especialmente no que concerne ao território tradicional.
13
Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Neste sentido, ainda que a CND-I possa ser extraída de uma interpretação
conjugada dos §§ 2º e 6º do art. 231 da Constituição Federal, não poderia a condicionante,
nem uma correta aplicação dos dispositivos constitucionais citados, prescindir da regra
inserta no art. 6º, itens 1 e 2 da Convenção 169 da OIT, acerca da necessidade de consultar
os povos indígenas em caso de ter lugar o relevante interesse público da União, após a
edição da Lei complementar. Veja-se a disposição convencional:
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e,
particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam
previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em
todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos
administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que
lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas
dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse
fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas
com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar
a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.
Os dois problemas fundamentais da condicionante I marcam também as demais
condicionantes que tratam do usufruto. Ou não observam o direito de consulta do qual são
titulares os povos indígenas a teor da Convenção 169, no ponto citado, ou tem sua
aplicação limitada pela edição da Lei complementar exigida pelo texto constitucional.
Além destas limitações, por si sós, suficientes a tornar inaplicáveis a condicionantes
em questão, outras podem ser apontadas.
No que concerne à condicionante IV (CND-IV), acerca da permissão de lavra
garimpeira, para garimpagem e faiscação, o regime jurídico desta atividade (art. 174 da
Constituição Federal e Lei 7.805/1989) não se aplica aos povos indígenas que estão
colhidos por Lei especial de tutela da questão, qual seja, art. 44 do Estatuto do Índio: “As
riquezas do solo, nas áreas indígenas, somente pelos silvícolas podem ser exploradas,
cabendo-lhes com exclusividade o exercício da garimpagem, faiscação e cata das áreas
referidas”.
Observe-se, ainda, que a Convenção 169, em seu art. 15, item 1, atualizou com
densidade especial a norma que figura no Estatuto e com espectro bem mais amplo, confirase: “Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito
desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos
mencionados.”
A riqueza sistemática desta disposição convencional articula-se finalisticamente com
a cabeça do artigo 231 da Constituição Federal já citado, pois tais preceitos cuidam de seus
núcleos normativos em ordem a organizá-los no sentido de garantir os direitos territoriais
indígenas em sua plenitude.
As diretrizes fornecidas por tais artigos permitem asseverar que a Condicionante V
(CND-V), além de violar a Convenção e a Constituição Federal nos pontos já indicados,
constituem retrocesso em relação ao julgado que assegurou a demarcação contínua do
território indígena, afastou o mito da fragilização da soberania brasileira decorrente de
demarcação de terra indígena em área de fronteira e elidiu definitivamente a noção de que a
garantia dos índios ao território amputaria o regular desenvolvimento de entes da federação
brasileira.
Neste sentido, observe-se que 8 dias após o voto do Ministro Menezes Direito no
julgamento de Raposa Serra do Sol, estabelecendo as condicionantes que se está
examinando, o Presidente da República editou o Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de
2008, que aprovou a Estratégia Nacional de Defesa. Esse plano militar não faz qualquer
menção aos índios, nem aos seus territórios, embora se trate de projeto que visa dar conta
do território como um todo.
A Condicionante VII (CND-VII) comete as mesmas violações que CND-V, porém a
pretexto de assegurar dois direitos fundamentais, saúde e educação e a prestação de
serviços públicos presume-se a índios e não-índios, ocorre que a ausência de consulta
acerca destas Construções viola o direito ao território que decorre da Constituição de 1988 e
da Convenção 169 da OIT.
Ademais, não revela qualquer fundamento constitucional, validamente manejável.
Não se encontra e não decorre de qualquer dos parágrafos do art. 231 do texto
constitucional, razão porque viola o texto e a Convenção, também sob esse prisma.
Registre-se, ainda, que não se pode falar sequer que estariam tais construções insertas no
conceito de relevante interesse público, pois este conceito é constitucionalmente inoperável,
ante à inexistência de Lei complementar que dele deve cuidar.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
A Condicionante VIII (CND-VIII) trata do tormentoso tema da sobreposição de
unidade conservação e território indígena. Sem dúvida é uma redação que apresenta
dubiedades. Veja-se. Atribui ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBIO) a responsabilidade pelo usufruto dos índios incidente sobre área (crê-se do
território indígena) afetada por unidades de conservação.
Parece que a responsabilidade deve estar ligada às unidades de conservação e não
ao usufruto. Se estiver se referindo a este, a gestão deve ser compartilhada entre as
Comunidades Indígenas “afetadas” e a FUNAI. Estes limites de competência administrativa,
a teor da Convenção 169, tem de ser pensados de maneira a conformar uma atuação
participativa das comunidades, do eventual órgão estatal que esteja destinando a colaborar
para a garantia de seus direitos, neste caso a FUNAI.
Essa necessidade de obedecer à Convenção é corroborada pelo texto da
Condicionante IX, que será a analisada mais à frente, pois no caso inverso ao que se dá
nesta condicionante (caso em que o território indígena é afetado por Unidades de
Conservação – hipótese da Condicionante VIII), quando a Unidade de Conservação é
afetada pela Demarcação de Território Indígena, estranhamente, as Comunidades serão
ouvidas. Essa cisão entre interesses que dialogaram secularmente não é boa e serve mais
dividir e conquistar do que para garantir direitos.
Percebe-se, até aqui, que a diretriz fundamental consistente em ouvir as
comunidades indígenas acerca de obras e projetos que possam afetá-las é absolutamente
importante para a garantia e o respeito ao direito ao território, sendo certo que não pode ser
relevada sem um excelente fundamento para tanto (o que não ocorreu com as
condicionantes ora examinadas, desprovidas que estão de um fundamento para afastar a
diretriz convencional). ANAYA; WILLIAMS JR (2001, p. 78, tradução livre4) anotam a
necessidade de ouvir as comunidades indígenas com fundamento em outros diplomas
internacionais:
Como demonstrado anteriormente, à luz da Convenção Americana, da Declaração
Americana e de outras fontes de direito internacional, os povos indígenas têm o
direito de proteção das terras que tradicionalmente ocupam e dos recursos naturais.
Dessa maneira, as normas de direitos humanos que protegem os povos indígenas
4
“As demonstrated above, under the American Convention, the American Declaration and other sources of
international law, indigenous peoples have rights to the protection of their traditionally occupied lands and natural
resources. At a minimum, therefore, the human rights norms that protect indigenous peoples‟ interests in land and
natural resources obligate states to consult with the indigenous groups concerned about any decision that may
affect their interests and to adequately weigh those interests in the decision-making process.”
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
garantem, no mínimo, interesses em terras e recursos naturais obrigam aos estados
a consultar com os grupos indígenas envolvidos sobre quaisquer decisões que
possam vir afetar os interesses e adequadamente pesar esses interesses no
processo de formação de decisões.
De todo modo, mesmo adequando a prática administrativa a essas diretrizes básicas
que decorrem da Convenção 169, a necessidade de garantir o direito ao território induz que
se proceda a um controle das atividades, uma vez que a validade de possível intervenção
do Estado neste território fica condicionada à minimização dos efeitos de tal intervenção, o
que também limita a validade da condicionante.
3.3 Condicionantes que tratam da circulação de não-índios no território indígena e
atuação governamental brasileira
VI. A atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito
de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às
comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;
IX. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela
administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra
indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas,
levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para
tanto contar com a consultoria da FUNAI;
X. O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área
afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
XI. Devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no
restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela
FUNAI;
XII. O ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de
cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das
comunidades indígenas;
XIII. A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá
incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos,
linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e
instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente
da homologação, ou não;
Inicialmente, as condicionantes VI, X e XI (CND-VI, CND-X e CND XI),
invariavelmente, atentam contra o direito que os povos indígenas tem de ser consultados
quando atividades a serem praticadas irão afetar o território indígena, violando portanto a
Convenção 169 da OIT e todas principiologia presente no caput do art. 231 da Constituição
Federal de 1988.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Essa intervenção não se poderá fazer de qualquer modo, pois a lógica do território
tradicional não é a lógica da habitação de não-índios, onde a idéia de imbricação com o
espaço de seus modos de fazer, viver e criar é quase nula (mesmo assim, há preceitos que
interditam a atuação de órgãos policias e judiciais, tais como o que diz respeito à
inviolabilidade da casa em situações específicas, ampliando mesmo o conceito de casa).
No que concerne às condicionantes de números XII e XIII (CND-XII e CND-XIII),
encerraram proibições que a Constituição não trouxe no capítulo que tratou dos índios e de
seu território e que cabem perfeitamente no conceito constitucional de usufruto, haja vista
que o turismo sustentável pode validamente ser praticados em tais territórios, o que vem a
gerar renda em virtude das potencialidades ambientais do território que os índios ficariam
proibidos de usufruir. Ora, as comunidades tradicionais indígenas contribuem para a
conservação dos ecossistemas em que se estabelecem, quando não são premidas, à guisa
de sobreviver e pela mais variada gama de razões, a desflorestar, degradar... Não seria
justo que não pudessem cobrar pela exposição e usufruto do resultado de séculos de
conservação ambiental, onde o homem branco permitiu ou não foi possível que chegasse
face a luta das comunidades.
3.3 Condicionante que trata dos territórios e direitos correlatos
XVII. É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada
Umas das mais polêmicas e controversas, senão a mais polêmica e controversa das
condicionantes propostas pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito é a que se tem
epígrafe. De enunciado simples, porém de efeito devastador sobre o direito ao território
indígena. Pressupõe a infalibilidade da atuação do Estado, o que não parece ser verdade já
que a própria AGU (2009, p. 15) contestou por meio de seu memorial a referida
condicionante trazendo dados que constam daquele documento e asserindo que: “(...)
atualmente, existem 195 (cento e noventa e cinco) terras indígenas com os procedimentos
administrativos de regularização ainda não concluídos, sendo que cerca de 50 (cinqüenta)
delas, ou seja, quase 25 % do total encontra-se em processo de revisão.” (destaque do
original).
Traz acoplada, também, uma presunção: a de que os habitantes originários disto que
hoje chamamos Brasil agirão com má-fé e postularam uma ampliação artificial de territórios
indígenas. Ninguém assumirá publicamente a presunção, a não ser os que estavam com
18
Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
elas comprometidos, os arrozeiros e seus defensores. No entanto, é preciso pensar sobre
essa premissa, sua validade e alcance, além do reflexo que terá sobre a Política Indigenista
do Estado brasileiro, se tiver de ser seguida pelos órgãos mais diretamente implicados com
tal questão, FUNAI e Ministério de Estado da Justiça.
Não ampliar uma terra indígena não é somente um erro de procedimento que se
poderá corrigir pela via da anulação, nos termos da Súmula 473 do STF ou da Lei nº
9.784/1999 ou um vilipêndio contra o patrimônio do Estado. Inegável sua perspectiva
pragmática do ponto de vista da proteção dos direitos dos índios, omitem, no entanto, o
fundamento último por meio do qual se deveria combater a condicionante em análise: ter
direito ao território não é ter direito a um determinado número de hectares de terra, significa
ter direitos à terra e suas circunstâncias, como diria José Ortega y Gasset, direito ao
território, em suma.
E este direito tem um fundamento que parece ter sido esquecido quando da proposta
e assunção destas condicionantes: o indigenato.
Com efeito, BENATTI (2008), fundado nas lições de João Mendes Júnior – que cita
expressamente - demonstra que, a partir do Alvará Colonial de 1 de abril de 1680,
confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, o ordenamento jurídico imperial e brasileiro
constitucional atual e o anterior a 1988 estão fundados no instituto jurídico do indigenato. A
propósito do instituto, assevera João Mendes Júnior (apud BENATTI, 2008, p. 93-94):
Desde que os índios já estavam aldeados com cultura e morada habitual, essas
terras por elles coupadas, si já não fosse delles, também não poderiam ser de
posteriores posseiros, visto que estariam devolutas: em qualquer hypothese, suas
terras lhes pertenciam em virtude do direito a reserva, fundada no Alvará de
1.4.1680, que não foi revogado (...).
Claro está, então, que ampliar territórios indígenas não significa manipulação artificial
de limites, mas reconhecimento e apenas declaração de direitos que já haviam sido
reconhecidos secularmente aos índios.
Como parece evidente, mais uma vez esta condicionante não passará no que já se
vem denominando teste de convencionalidade, isto é, não passa no contraste que se deve
fazer entre o texto das condicionantes e a Convenção 1695.
5
Neste sentido, deve-se anotar, que, tendo sido a Convenção 169 ratificada, aprovada e promulgada pelo Brasil
antes da Reforma Constitucional de 2004, que inseriu por meio da Emenda Constitucional nº 45 o parágrafo
terceiro no artigo 5º do Texto Constitucional, a referida convenção tem natureza de texto normativo supralegal,
consoante entendimento recentemente vencedor no Supremo Tribunal Federal (HC 87585; RE 349703; RE
466343). Cuidando a Convenção 169 de Direito Culturais e Sociais, mas estando fora do regime constitucional
de 2004, possui natureza supralegal. Assim, está acima das Leis Ordinárias (e decisões judiciais que não retiram
seu fundamento da Constituição justamente porque a ofendem) e abaixo da Constituição. Idéia semelhante se
pode colher em Valério MAZZUOLI: O controle de convencionalidade das leis Disponível em: <
http://www.parana-online.com.br/canal/direito-e-justica/news/348659/>. Acesso em: 2.4.2009.
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
No caso em comento, a condicionante em questão discrepa do disposto no artigo 19,
alínea “a”:
Os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados
condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins
de:
a) a alocação de terras para esses povos quando as terras das que dispunham
sejam insuficientes para lhes garantir os elementos de uma existência normal ou
para enfrentarem o seu possível crescimento numérico;
Não parece haver muitos sentidos em que se possa entender o preceito
convencional. Trata-se evidentemente de garantir aos povos tradicionais o território tal como
lhes seja imprescindível à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e
tradições. A condicionante em questão viola este preceito, que figura no capítulo de terras
da Convenção 169. Revela-se eloqüente, então, a infrigência pela condicionante em
questão do direito ao território de que são titulares os índios.
A definição de territórios com marcos geográfico-geodésicos são “invenções” do
homem branco desde e tal como entende os povos indígenas: como um conjunto de seres
a ser “incluído” na sociedade nacional que abandonaria seu modo particular de viver e todas
as suas ligações com o território. Ora, isso não aconteceu nem sob a violência mais brutal
do colonizador português, porque haveria de se materializar em um Estado com matizes de
democrático de direito?
Esta condicionante expressa muito bem a assertiva que se consignou acima acerca
da vinculação entre a ausência de uma compreensão da distinção entre terra e território
indígena ou da devida aplicação que se lhe deveria conferir e a proposta e aprovação
destas condicionantes.
Levada a sério a distinção em questão, assim como ocorreria com todas as
condicionantes aqui analisadas, talvez se as tivesse rejeitado integralmente, como fez o
Ministro Joaquim Barbosa.
4 Considerações Finais
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Condicionantes para demarcação de territórios indígenas
Tapajós Araújo, 2010
Há uma distinção imprescindível entre terra e território indígena, que deve ser
assimilada pelo Estado brasileiro e deve pautar a política indigenista brasileira em ordem a
garantir a este povos seus direitos étnico-territoriais. Tal distinção conta com amplo debate
no âmbito das Ciências Sociais que deve ser incorporado às estratégias brasileiras de
garantia aos direitos dos índios, inclusive em respeito à Convenção 169 da OIT.
A maioria das condicionantes propostas pelo Ministro Carlos Alberto Menezes Direito
que deveriam orientar a decisão de Raposa Serra do Sol e sua consequente execução,
além de constituir norte administrativo e judicial para encaminhamento e solução de
questões que decorram nestes âmbitos estão marcadas por defeitos que as tornam
imprestáveis à tutela da situação para a qual estavam preordenadas.
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