O exílio
Ao subir a bordo do Prinz Regent Luitpold, o navio alemão que liga a
Europa à Austrália, Helena Rubinstein sentiu-se imediatamente
flutuando.
Livre.
Embora pressentindo que a aventura será difícil, ela aproveita cada
segundo da milagrosa viagem sem pensar muito no que a espera por lá.
Compreendeu que, deixando seu país, vai poder mudar de vida e finalmente sentir-se realizada. Como? Por que meios? Ela não sabe. Não
hesitou, contudo, quando sua família lhe sugeriu o exílio. Apesar dos
perigos reais ou supostos que a espreitam — naufrágios, acidentes, febres malignas, sem contar os maus encontros —, aceitou partir sozinha,
a milhares de quilômetros de sua Polônia natal, para se encontrar com
três tios que nunca tinha visto na vida.
Estamos em maio de 1896. Helena tem 24 anos, 1,47 metro de
altura, coragem para dar e vender, uma velha mala por companhia. Certos dias, seu peito se enche de desejos esperançosos, a ponto de ter a
impressão de que o coração vai explodir. Ela gostaria de abrir bem os
braços e abraçar o mundo.
Apesar da angústia que a domina desde o embarque em Gênova, o
presente a fascina. Pela primeira vez na vida, o que sente se assemelha à
felicidade. Quando o tempo permite, se põe no convés e contempla o
oceano, fascinada pelos reflexos do mar cujas nuances ela gostaria de
capturar. Seu temperamento nervoso, sujeito a enxaquecas, se acomoda
sem dificuldade a essas horas de imobilidade.
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O exílio
Se o vento sopra com força, ela explora as coxias da segunda classe,
para na sala de música, ou à porta do fumódromo, examina as obras da
biblioteca. No bar, pede um chá, um bolo de frutas secas, saboreia o
prazer de beber em porcelana chinesa, de utilizar talheres de prata. Em
seguida, afunda em canapés de veludo para ler ou bordar. Não pensa
uma única vez nos parentes que ficaram em Kazimierz, o subúrbio da
Cracóvia onde cresceu. Não sente saudade; pelo menos, ainda não.
Por sorte, não sofre de enjoo, mal que prende os passageiros ao
leito. Sedenta de descobertas, chegou a ir ao porão, escapando da vigilância dos rígidos stewards que proíbem a passagem de uma classe para
a outra. O espetáculo de dezenas de imigrantes, homens e mulheres
misturados, amontoados no deque, deitados uns sobre os outros, gemendo ou vociferando, vomitando as tripas no chão, perturbou-a. O
cheiro de corpos mal lavados, de gordura de cozinha e de combustível a
nauseou. Com o coração acelerado, subiu correndo, como se tivesse
roubado um lugar na ponte superior, e que, ao descobri-la embaixo,
fossem obrigá-la a ficar lá. Era uma reação mesquinha. Depois, zangou-se consigo mesma.
Naquela manhã, debruçada na amurada, com uma sombrinha protegendo
a pele frágil — o sol, inimigo mortal das mulheres! —, se apaixonou pelo
espetáculo oferecido pelo porto de Bombaim, no qual o navio a vapor
aportou. Na multidão que se comprime nas docas, fervilhar de humanidade estrangeira, a miséria lhe parece familiar, ainda mais crua sob o sol do
que no rigor do inverno polonês. Seu olhar evita os mendigos estropiados,
os cules vestidos com tangas de algodão, os moleques esfarrapados correndo atrás dos brancos, e se pousa sobre as indianas enroladas em sáris de
sedas vivas, nas inglesas abotoadas até o queixo apesar do calor, repreendendo os carregadores curvados sob o peso das bagagens.
Antes de Bombaim houve Nápoles, Alexandria, Ádem, Porto-Said.
Todas as vezes, primeiramente ela observou a multidão e em seguida se
deixou tentar por um curto passeio no porto, cambaleando como se
ainda estivesse a bordo. Cercada de vendedores ambulantes, parou para
examinar a pacotilha. Com o olhar sério, a testa franzida como se toda
a sua vida dependesse daquilo, pechinchou com segurança, contando
nos dedos para se fazer compreender, e depois comprou, pelo preço que
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A mulher que inventou a beleza
ela estipulou, miçangas, bétel, pigmentos, pomadas e maquiagem, almíscar, âmbar, essências, chá, lantejoulas, alguns tecidos brilhantes.
Em todos os lugares observou as mulheres, fascinada por sua beleza
múltipla, inalcançável. As italianas louras e pálidas da Ligúria, as napolitanas gordinhas, as egípcias e as iemenitas de quem só se vê o olhar
ardente sob o véu, as etíopes de finos traços, as asiáticas de rostos suaves.
Todas, as velhas, as jovens, as feias e até mesmo as menininhas grudadas
nas mães, possuem um encanto particular, uma atitude, com os olhos
pintados de khol, os dentes cintilantes que tornam as peles morenas
ainda mais escuras, as joias volumosas em volta do pescoço, dos braços
e dos tornozelos, as roupas vistosas, os perfumes tão inebriantes que
chegam a ser enjoativos.
Habituada às névoas do Leste, Helena pisca os olhos. Luz demais,
barulho demais, multidão demais e cores fortes demais, que ela absorve,
contudo, com sofreguidão, e armazena para mais tarde.
No navio, à jovem não faltam admiradores. Primeiramente, os dois rapazes italianos que não compreendem polonês, ou ídiche e, todas as noites,
a convidam para dançar à força de mímica. O pouco de alemão que ela
arranha consegue aproximá-los. Depois, o inglês de bigode que se expressa como se tivesse uma batata quente na boca. Quando ele lhe dirige a
palavra, sua face vermelha parece pegar fogo. “Oh! Miss Helena, you’re so...
So pretty”, Ó senhorita Helena, a senhora é tão... Tão bonita.
Miss Helena não era exatamente uma beleza; seu charme, contudo,
age imediatamente. Com seu tamanho minúsculo, mais parece uma
criança empoleirada em saltos altíssimos. A perna, porém, é fina; o busto, avantajado; os anos ainda não envolveram a silhueta. Os cabelos
negros são presos num coque baixo, deixando livres a testa e as orelhas.
Os traços são regulares; as maçãs do rosto, altas; os lábios, bem desenhados e a pele, translúcida de tanta palidez. O que se observa de imediato
são os grandes olhos afastados, aveludados de tão escuros, ora pensativos, ora inquiridores. “O olhar mesmo da precisão, da observação; um
olhar que se percebe pronto tanto para calcular, observar os dossiês,
examinar os números, estudar fórmulas, quanto para sonhar incansavelmente sobre as coisas belas.”1 Por vezes, eles também fuzilam. Suas sete
irmãs a apelidaram de “A Águia”.2
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O exílio
Desde o início ela deixa seus pretendentes intrigados. Uma jovem
que viaja sozinha, sem parecer assustada, é uma raridade na época; quase uma incongruência. Somente as aventureiras se deslocavam sem
acompanhante. Mas seus silêncios, seu jeito reservado, a dureza do
olhar, rapidamente fizeram com que compreendessem que não é uma
aventureira.
Helena gosta de se divertir, mas imediatamente impõe seus limites.
A timidez também a impede de ir adiante. Além disso, o que a mãe
pensaria? Os severos princípios de Gitte, seu pudor, sua noção de virtude, estão bem ancorados nela. “Cada beijo me parecia imoral e, para
mim, os mistérios do sexo ainda eram... mistérios.”3 Vai demorar até
que eles se esclareçam. No navio, ela foi pedida em casamento três vezes,
e três vezes recusou, sorrindo, como se se tratasse de uma brincadeira de
rapazes. Não é acorrentada a um homem que ela imagina o seu futuro.
Todas as noites, depois de algumas polcas no salão de baile, os jovens a cercam. Os cinquenta passageiros que compõem a segunda classe
rapidamente se aproximaram. Iniciaram-se namoros. E também uniões
que se querem sólidas, mas que ao final da viagem vão se desfazer. Os
homens são investidores, exploradores, garimpeiros, oficiais franceses,
diplomatas britânicos, missionários; as mulheres pertencem à sociedade, matronas, são esposas de alfandegários, de altos funcionários. Há até
mesmo uma trupe de teatro em turnê. Helena simpatizou com duas
inglesas que, como ela, vão para a Austrália. A primeira, Lady Susanna,
viaja com o marido, ajudante de ordens de Lorde Lamington, governador do Queensland. Estão voltando das férias na Inglaterra. A outra,
Helen Mac Donald, que mora em Melbourne, vai se casar. Antes de
deixar o navio, Helena anotou o endereço delas. Já possui aptidão para
fazer amizades convenientes.
No salão, o calor é massacrante apesar dos ventiladores. Helena
saboreia um chá gelado para se refrescar. Seus olhos deslizam pelos lambris, pelas mesas de jacarandá, pelos aparelhos de prata e de porcelana,
pelos lustres de cristal, pelos altos espelhos cintilantes que refletem seu
rosto. Todo esse refinamento a encanta. Depois, volta para o pequeno
grupo que conversa alegremente. Seu olhar de ave de rapina registra
cada detalhe. As roupas das mulheres, a pose, o penteado, o modo como
seguram os leques, como riem ou se calam.
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A mulher que inventou a beleza
Durante o dia, ela as observa disputar uma partida de tênis ou de
whist, esforçando-se para memorizar as regras. Sabe tão pouco desse
mundo em que tudo parece fácil, que tira proveito das menores coisas
colhidas aqui e ali. O desconhecimento dos códigos, dos modos, da arte
da conversação também explica sua mudez. Implicitamente, existe — e
sempre existirá, não importando o que ela faça — o medo de ter suas
origens julgadas. Mesmo que aprenda na prática, e aprende depressa,
algumas lacunas vão ficar. A fortuna, o bom gosto ou as mentiras que
embelezam o passado não bastarão para preenchê-las.
Durante sua longa existência, realizará muitas outras travessias, navegará de um continente a outro. Em seu império, o da beleza, o sol
jamais se põe. Mas essa primeira viagem vai ser fundadora; vai dar a ela
o gosto da aventura, do luxo, da beleza. Para obter o que deseja, trabalhará sem se poupar; isso não a assusta. Sua educação foi severa. Ainda
não sabe que caminho seguir, mas recusa com todas as forças a mediocridade à qual sua condição poderia forçá-la.
A natureza a dotou de todas as qualidades necessárias para o sucesso: audácia, energia, obstinação, inteligência. Falta-lhe apenas a sorte,
que ela prometeu a si mesma buscar. Ela não avalia muito bem os obstáculos que terá de vencer, mas acredita no destino. Não aceita que ele
a decepcione.
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