ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema O romance A promessa, de Friedrich Dürrenmatt, e sua versão para o cinema, de Sean Penn: duas obras ROCHA, Ivan Sousa. (Universidade Federal do Paraná – UFPR) RESUMO: A presente comunicação tem como objetivo analisar a transposição do romance policial A promessa (1958), do dramaturgo e romancista suíço Friedrich Dürrenmatt, para o filme de mesmo nome (2001), dirigido pelo ator e diretor norte-americano Sean Penn. O que se procura neste estudo não é uma comparação, para se concluir sobre qual das duas obras seria ‘melhor’, e sim perceber, considerando as diferenças entre as linguagens literária e cinematográfica, se a transposição do romance para o cinema foi bem sucedida. Tendo isso em mente, o trabalho pretende mostrar a maneira como as duas obras tratam da caracterização e da subjetividade dos personagens, bem como seus temas principais. Em um primeiro momento, serão tratados alguns temas concernentes à adaptação, do ponto de vista teórico. Em seguida será tratado o romance (enfocando-se suas características mais relevantes) e por fim o filme (com ênfase igualmente em suas características principais). Será dado destaque às diferenças de foco narrativo entre as duas obras, o que altera de forma significativa a ênfase dada aos elementos da história. Também serão tratadas certas características típicas do cinema comercial norte-americano que se encontram no filme, e até que ponto elas têm influência na estrutura da narrativa. Com isso, espera-se chegar à conclusão de que, embora o filme tenha se baseado no romance, estes são duas obras que possuem significados distintos e até certo ponto complementares. PALAVRAS-CHAVE: Literatura e cinema; adaptação; romance policial europeu; cinema norte-americano. ABSTRACT: This paper analyses the adaptation of the detective novel The pledge (1958), by Swiss playwright and novelist Friedrich Dürrenmatt, to the equally titled film (2001), directed by North American actor and director Sean Penn. What we do seek is not to compare, concluding which of these two works would be “the best one”, but to perceive, considering the differences between literary and cinematographic languages, whether the novel transposition to cinema was well succeeded. Having said that, this paper intends to show how these works treat the characterization and subjectivity of the characters, as well as his main themes. Firstly, it will be studied some themes concerning adaptation, in a theoretical point of view. Then, it will be studied the novel (focusing its most important aspects) and finally the film (emphasizing equally its most important aspects). It will be given special importance on the differences of narrative focus (point of view) between the two works, which alters significantly the emphasis given to certain elements in the story. Certain typical aspects of North American commercial cinema found in the motion picture will also be discussed, and to what point they influence the structure of the narrative. We wish to conclude that, although the film is based on the novel, these two works of art have different meanings, meanings which are, to a certain extent, complementary. KEY-WORDS: Literature and cinema; adaptation; European detective novel; North American cinema. Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema INTRODUÇÃO No presente artigo propõe-se uma análise da transposição do romance A promessa: réquiem pelo romance policial (Das Versprechen: Requiem auf den Kriminalroman, 1958), do escritor suíço Friedrich Dürrenmatt, para o filme de mesmo nome (2001), dirigido pelo norte-americano Sean Penn. O que se procura não é uma comparação, para se concluir sobre qual das duas obras seria ‘melhor’, e sim perceber, dadas as diferenças entre as linguagens, os objetivos e os significados, se a transposição da obra literária para o cinema foi bem sucedida. Nesse sentido, o trabalho pretende mostrar a maneira como as duas obras tratam da subjetividade dos personagens, bem como seus temas principais. Nas palavras de Anelise Reich Corseuil (2003, p. 295): “Dentro dessa perspectiva, tende-se a definir a complexidade e a validade do filme a partir da forma como ele vai representar certos temas, significados e questões formais que já se apresentavam na obra literária.” Em um primeiro momento, serão tratados alguns temas concernentes à adaptação, do ponto de vista teórico. Em seguida será tratado o romance (sem adentrar em uma análise literária, enfocando apenas suas características mais relevantes) e por fim o filme (sem adentrar em discussões ideológicas, também com ênfase em suas características principais). ADAPTAÇÃO Desde há algum tempo a adaptação de romances para o cinema é considerada uma importante área de interesse. Isso tanto para a indústria de cinema, que nela vê uma possibilidade de lucro ao contar histórias consagradas, quanto para os teóricos e a crítica literária, que procuram analisar as semelhanças e diferenças entre as linguagens literária e cinematográfica, assim como a transposição de uma para a outra. O estudioso do cinema Brian McFarlane (1996, p. 6-7) coloca essa idéia da seguinte forma: As soon as the cinema began to see itself as a narrative entertainment, the idea of ransacking the novel – that already established repository of narrative fiction – for source material got underway, and the process has continued more or less unabated for ninety years. Film-maker’s reasons for Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema this continuing phenomenon appear to move between the poles of crass commercialism and high-minded respect for literary works. No estudo da adaptação, é importante ter em mente as diferenças entre as duas linguagens em questão, ou seja, a linguagem literária (eminentemente verbal), e a linguagem cinematográfica (que possui elementos visuais, sonoros e verbais). Entretanto, as diferenças vão além dessa percepção. Para Randal Johnson (1982, p. 28), que utiliza conceitos da semiótica de Peirce: “Uma palavra ou seqüência de palavras comunica principalmente através de uma relação simbólica com sua referente; uma imagem, principalmente através de uma relação icônica e analógica”. Para Christian Metz, a imagem não é mais realidade física do que a palavra, embora ela forneça a ilusão de realidade; posteriormente, trabalhando com os conceitos de expressão e significação, o crítico francês coloca o problema nos seguintes termos: Há no entanto a este respeito uma diferença importante entre a literatura e o cinema. A expressividade estética se enxerta, no cinema, numa expressividade natural, a da paisagem ou do rosto que nos mostra o filme. Nas artes do verbo, ela não se enxerta numa verdadeira expressividade primeira, mas numa significação convencional amplamente inexpressiva, a da língua. [...] Semelhante ao livro ainda e diferente da frase falada, o filme não pressupõe resposta direta por parte de um interlocutor presente que possa responder imediatamente e na mesma linguagem; nisso também o filme é expressão mais que significação. (METZ, 1977, p. 95 e 101) Para se entender essas idéias, é preciso fazer a distinção entre os conceitos de filme e de cinema. Para Christian Metz (apud JOHNSON, 1982, p. 21): “O filme é uma unidade do discurso localizável, um objeto significante já determinado [...] O cinema, por outro lado, além de ser o conjunto de códigos cinematográficos, é um complexo com três aspectos: o tecnológico, o econômico e o sociológico”. Daí vem a associação que ele faz do cinematográfico com a linguagem (um conjunto de códigos), e do fílmico com a escrita (um trabalho feito a partir desses códigos). E. Ann Kaplan (1995, p. 39) fala sobre o conceito de código: O discurso está estruturado em um conjunto de regras ou convenções às quais os semióticos dão o nome de código. O cinema usa um sistema complexo de códigos pertencentes a seus heterogêneos níveis de expressão: códigos de representação e edição, atuação e narrativa, som, música e Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema diálogo. Alguns desses códigos são específicos do cinema (p. ex., edição), enquanto outros pertencem também a outras formas de arte e comunicação. Os códigos extra-cinematográficos são assim classificados por McFarlane (1996, p. 29): language codes, visual codes, non-linguistic sound codes e cultural codes. Com relação aos códigos cinematográficos, tem-se a classificação que Metz (1980, p. 73-74) faz entre códigos gerais como sendo “as instâncias sistemáticas [...] a que serão atribuídos os traços que não apenas caracterizam propriamente a grande tela, mas, além disso, são comuns [...] a todos os filmes” (ver exemplos no parágrafo acima), e códigos particulares, que “agrupam os traços de significação que aparecem somente em certas classes de filmes (no que são particulares), mas que, contudo, só se manifestam em filmes (no que são cinematográficos)”. O crítico fornece como exemplo os filmes de um determinado gênero, de uma mesma época ou de um mesmo cineasta. Ele conclui definindo a linguagem cinematográfica como o “conjunto de todos os códigos cinematográficos particulares ou gerais”. (METZ, 1980, p. 80) No estudo da adaptação, uma abordagem que durante muito tempo foi adotada pelos críticos é a de se buscar no filme uma suposta fidelidade em relação à obra literária que o inspirou. Tal posição é atualmente criticada por ser subjetiva, além de não levar em conta as características específicas das duas linguagens. McFarlane (1996, p. 8-9) fala a respeito: Fidelity criticism depends on a notion of the text as having and rendering up to the (intelligent) reader a single, correct “meaning” which the film-maker has either adhered to or in some sense violated or tampered with. There will often be a distinction between being faithful to the ‘letter’, an approach which the most sophisticated writer may suggest is no way to ensure a ‘successful’ adaptation, and to the “spirit” or “essence” of the work. […] Since such coincidence is unlikely, the fidelity approach seems a doomed enterprise and fidelity criticism unilluminating. Uma noção mais produtiva é o que Haroldo de Campos entendia como recriação; a nova obra, além de reelaborar os significados, “é também uma leitura crítica da obra original”. (apud JOHNSON, 1982, p. 6). Essa posição, ou seja, da adaptação cinematográfica como recriação ou releitura da obra literária, também é defendida por Manoel Francisco Guaranha (2007, p. 26-27): Mas o que é adaptar? Adaptar significa ajustar ou acomodar uma coisa a outra. Todavia, como cada linguagem corresponde a uma necessidade Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema específica de comunicação, a um sistema de signos socializado e portanto inserido em um contexto específico, não é possível, nem necessário, tentar simplesmente transportar um livro para uma película cinematográfica. A possibilidade que se apresenta como saudável, tanto para a obra literária original como para o produto cinematográfico que se extrai dela, é recriar, fazer nascer, a partir do objeto artístico escrito, um novo objeto artístico filmado. Haja vista que a obra literária já é produto de uma leitura da realidade, o filme é uma leitura da obra literária. Tais pensamentos assemelham-se ao que atualmente se conhece como intertextualidade, que enfatiza a posição autônoma do filme em relação à obra adaptada. Tendo isso em vista, devem ser levados em consideração outros fatores que entram na produção do filme, tais como a ideologia do diretor e o contexto de produção em que o mesmo se insere (no caso em tela, este é o cinema norte-americano comercial). Anelise Reich Corseuil (2003, p. 298) coloca o assunto desta forma: Ao contrário de análises centradas na fidelidade do filme, na relação intertextual não ocorre uma hierarquização de valores, podendo o filme ser analisado em todas as suas modificações ideológicas, técnicas, críticas e interpretativas, partes integrantes de qualquer processo de adaptação. [...] É nesse processo intersemiótico que a adaptação necessita ser vista, não como obra segunda, necessariamente fidedigna a um romance ou a um texto histórico, mas como obra independente, capaz de recriar, criticar, parodiar e atualizar os significados do texto adaptado. Dentro das semelhanças entre as linguagens literária e cinematográfica, tem grande importância o código narrativo, que pode ser definido como um “código translingüístico, ou um código que pode ser manifestado em várias linguagens, tanto verbal como não-verbal”. (JOHNSON, 1982, p. 23). Em outras palavras, esse código representa a capacidade que tanto a literatura quanto o cinema possuem para contar histórias. Tal conceito leva à distinção feita por Tzvetan Todorov entre história (récit) e discurso (discours): a história “inclui os eventos, ou ações, que são narrados, e os dramatis personae que desempenham as ações”, enquanto que o discurso é “a maneira usada pelo narrador para relatar os eventos da história”. (apud JOHNSON, 1982, p. 23) Tendo essas categorias em mente, e utilizando ainda os conceitos que Roland Barthes formulou para as funções narrativas, Brian McFarlane desenvolve os conceitos de narrativa (narrative) e enunciação (enunciation), sendo que os elementos pertencentes à Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema primeira são ‘transferíveis’ (transfer) de uma linguagem para outra, enquanto que os pertencentes à segunda devem ser ‘adaptados’ (adaptation proper): (i) (ii) those elements of the original novel which are transferable because not tied to one or other semiotic system – that is, essentially, narrative; and those which involve intricate processes of adaptation because their effects are closely tied to the semiotic system in which they are manifested – that is, enunciation. (McFARLANE, 1996, p. 20) Tomando-se como exemplo um romance e um filme adaptado a partir dele, temos que os elementos ‘transferíveis’, relativos à história, são os que dizem respeito aos acontecimentos, aos dados objetivos (tempo, lugar), ao caráter dos personagens, entre outros. Por outro lado, os elementos que devem ser adaptados, relativos ao enredo (ou discurso), são os que dizem respeito ao mise-en-scène (escolha dos atores, locações, figurinos e outros elementos físicos) e aos códigos cinematográficos ou recursos utilizados (narração em voice over, iluminação, efeitos especiais e sonoros, edição, flashbacks, etc.) a critério do diretor. Isso é condizente ao que se disse anteriormente, sobre ser a adaptação de uma obra literária uma interpretação por parte do realizador do filme: Um plano nunca é neutro. Define-se por um certo número de elementos escolhidos pelo autor [...] Estas opções estéticas, a que se vêm juntar as numerosas possibilidades que a montagem oferece, pela justaposição de planos, criam um vastíssimo conjunto de convenções expressivas, com as quais o autor se define em relação ao assunto que trata, exprimindo deste modo a sua própria concepção estética e moral. O fato do mesmo assunto (principalmente no que se refere às adaptações de romances e peças célebres) poder dar origem a diferentes adaptações cinematográficas apesar de sua fidelidade ao enredo original, revela o grau de interpretação inerente ao trabalho de realização, assim como a variedade de opções estéticas que se oferecem a qualquer diretor. (GUBERN, 1979, p. 35) Por fim, no estudo da adaptação devem ser levados em consideração elementos extrínsecos ao cinema, tais como o lapso temporal que decorreu da publicação do livro até a produção do filme, a ideologia predominante nas obras, e no nosso caso em estudo, o chamado star system que caracteriza o cinema norte-americano contemporâneo (especificamente o produzido em Hollywood, em Los Angeles, Califórnia). Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema O ROMANCE O suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), embora seja mais conhecido por suas peças teatrais (como A visita da velha senhora e Os físicos), também escreveu contos e romances. Dentro destes últimos, situam-se seus romances policiais, que foram objeto de nossa dissertação de mestrado (ROCHA, 2009). A promessa é um desses romances, e foi por nós considerado como problemático, por não possuir as características dos romances policiais convencionais, como se verá adiante. A história do romance é contada em uma conversa entre o comandante da polícia cantonal de Zurich e um autor de romances policiais. O comandante, conhecido simplesmente como ‘Dr. H’, narra os acontecimentos que envolveram um subordinado seu, o inspetor Matthäi, um gênio da investigação criminal que enlouqueceu em seu último caso com a polícia suíça (ele havia sido requisitado pela polícia da Jordânia, e estava com a viagem marcada): a investigação da morte da menina Grítli Moser, que foi violentada e brutalmente assassinada. Ao assumir o caso, o inspetor Matthäi fez uma promessa à mãe de Grítli – a promessa que dá nome ao romance –, de que, “pela salvação de sua alma” (DÜRRENMATT, 1961, p. 22), descobriria o assassino. Inicialmente há um suspeito, o vendedor ambulante von Gunten, que tinha antecedentes criminais, mas que logo comete suicídio. Contudo, Matthäi – que não acreditava na culpa daquele – segue a pista deixada por um desenho da própria Grítli, que é interpretado pelo psiquiatra Locher, e fica obcecado em capturar o homem desconhecido que dava ouriços de chocolate à criança. O inspetor passa a viver em um posto de gasolina nas montanhas suíças, em companhia da prostituta Heller e da filha desta, Annemarie. Ele decide então usar a criança como isca para capturar o assassino em série. A emboscada é montada, mas o assassino não aparece, o que transforma a obsessão do inspetor em loucura. No final do romance, ficamos sabendo, pela narração feita por uma senhora em seu leito de morte ao Dr. H., que o assassino era seu marido, um perturbado mental chamado “Albertinho”, que tinha compulsão em matar meninas com vestidos vermelhos e havia morrido em um acidente de carro há vários anos, quando estava prestes a cometer outro crime (entende-se que ele morreu quando estava indo se encontrar com Annemarie). O que existe no cerne do romance é a discussão do Dr. H. com o escritor de romances policiais sobre a validade desse subgênero literário. Ou seja, como o próprio Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema comandante de polícia testemunhou uma história de investigação que não obteve um final satisfatório – e que além disso culminou com a alienação do investigador –, ele questiona o escritor em relação ao mecanismo das histórias policiais (que se assemelha a um jogo de xadrez), se eles encontrariam correspondente na realidade humana, que é dominada pelo acaso. Logo, o que encontramos no romance é uma história dentro de uma história, com a investigação do inspetor Matthäi servindo como pano de fundo para ilustrar a idéia do Dr. H. – e, em última instância, do autor – de que a lógica dos romances policiais convencionais, em que o detetive sempre descobre o criminoso, estaria superada. Daí o subtítulo do romance, o réquiem pelo romance policial. Como concluímos em nosso estudo (ROCHA, 2009), esse romance tem como base os policiais norte-americanos do início do século XX, chamados de romances noir ou hard boiled, de autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, que se contrapõem aos romances da época anterior, de origem inglesa, de autores como Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial surgiu, principalmente na Europa continental, uma série de autores que possuíam uma visão crítica da realidade e que produziam romances policiais que expressavam essa visão, como Georges Simenon e Leonardo Sciascia. Dürrenmatt sem dúvida se inclui entre estes últimos. Em termos de ambientação, vemos que o romance se passa em meados da década de 1950, no interior da Suíça – o autor era um grande crítico das instituições políticas e da ideologia de seu país. Em termos de foco narrativo, vemos que a história é contada na terceira pessoa; como o narrador é outro personagem, ele não é onisciente – uma vez que desconhece as motivações do inspetor Matthäi –, embora conheça todos os fatos narrados. Esses dados serão importantes para a comparação a ser feita posteriormente com a obra cinematográfica. O FILME O filme A promessa (The pledge, 2001), dirigido por Sean Penn (1960), mantém basicamente a mesma história ‘interna’ contada no romance. Aqui não há uma narrativa ‘externa’, que engloba a outra – como a do Dr. H. –, nem há o questionamento do gênero policial. O filme concentra-se na descrição dos personagens e na narração de uma Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema investigação policial que não somente não apresenta resultado, como termina com a loucura do policial recém-aposentado Jerry Black, desempenhado por Jack Nicholson. Percebemos que, dentro dessa história, o diretor mantém os elementos da narrativa (transferíveis) e reelabora os elementos da enunciação ou trama (adaptados). A primeira alteração sensível é o fato de a história se passar no interior dos Estados Unidos, no estado de Nevada. No dia de sua aposentadoria, o policial Jerry Black toma parte da investigação do assassinato de uma menina de sete anos, que foi achada morta em uma floresta perto da cidade. Uma testemunha afirma ter visto um homem saindo do local do crime, um índio chamado Toby Jay Wadenah (Benicio del Toro) – e aqui vemos mais uma alteração em relação ao livro. Como tinha problemas mentais, esse personagem se suicida pouco tempo depois de sua prisão. O inspetor designado, Stan Krolak (Aaron Eckhart), após esse suicídio, tem o caso como encerrado, mas Black decide ir mais a fundo nas investigações. Aqui, vemos uma característica bem ao gosto do cinema comercial norte-americano: o embate entre um policial mais novo, que acredita na técnica criminal e possui temperamento forte, e o policial velho e experiente, que se utiliza mais da sua intuição e da sua experiência, e que não se contenta com soluções fáceis. Após fazer a mesma promessa que se encontra no romance à mãe da garota (Patricia Clarkson), ele descobre um desenho em que a menina representava um homem alto vestido de preto dando-lhe pequenos ouriços de chocolate. Black leva esse desenho a uma psiquiatra (Helen Mirren) e esta o interpreta, mas também questiona as atitudes do detetive e insinua que ele pode estar ficando obcecado e perdendo sua sanidade mental. Por outro lado, vemos a inserção de duas passagens que não se encontram no romance, mas que servem para intensificar a dramaticidade da trama: as visitas que Black faz à avó da menina (Vanessa Redgrave) e a um pai cuja filha também foi morta, em um crime aparentemente conexo, e que agora se encontra em uma casa de repouso (Mickey Rourke). Como está aposentado, Black vai para o campo e decide comprar e morar em um posto de gasolina à beira da estrada. Lá, ele conhece e inicia uma amizade com Lori (Robin Wright Penn), uma garçonete que tem uma filha pequena. Após ser espancada pelo marido, Lori refugia-se com a filha no posto de gasolina de Black, e inicia com ele um relacionamento amoroso. Aqui encontramos outra alteração introduzida na história, e que também nos parece típica do cinema norte-americano: no romance, não havia envolvimento emocional entre Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema Matthäi e Heller, uma vez que seu relacionamento era apenas de conveniência (some-se a isso o fato de que Matthäi conhecia a prostituta da investigação de outros crimes). Assim, Black passa a expor a filha de Lori, deixando-a brincar na beira da estrada. Há um momento de suspense – que também não se encontra no romance – quando a criança desaparece; Black, transtornado, sai à sua procura, para descobrir que ela está em um culto religioso comandado por um pastor que aparenta ter tendências à pedofilia. Contudo, em uma conversa com a criança, Black descobre que ela se encontra às escondidas com um homem a quem chama de “o Mago” (the Wizard), que lhe dá ouriços de chocolate. Black promete que não contará nada a Lori, mas ao saber disso passa a tramar uma emboscada para capturar o assassino em série. O detetive aposentado convence seu ex-chefe (Sam Shepard) a mobilizar um contingente policial para capturar quem ele acredita ser o assassino. Os policiais seguem para o lugar indicado por Black e ficam escondidos, esperando a chegada do serial killer. Quando este não aparece, os policiais decidem remover o esquema e Lori aparece, leva sua filha embora e abandona Black, por ele ter usado as duas e colocado a criança em uma situação de perigo, apenas para conseguir seus objetivos. Enquanto isso, em outro plano, nos é mostrado um homem – cujo rosto nunca aparece – que trabalha em uma loja de souvenires repleto de objetos em forma de ouriços. Esse homem é identificado pelo fato de seu carro possuir um pequeno ouriço pendurado no espelho retrovisor, uma boa solução encontrada pelo diretor, uma vez que não há no filme a narração do final do romance, em que a mulher conta os crimes de “Albertinho”. Assim, o homem sai de carro e, logo após, nos é mostrado um caminhão vindo em sua direção. Quando os policiais estão retornando de sua campana, seu carro passa por um acidente na estrada, em que podemos ver o carro em chamas do suposto assassino. Dessa forma, ao final do filme nos é mostrada a situação em que se encontra o detetive Jerry Black, que vive em seu posto semiabandonado, entregue à bebida e à loucura. Com isso, vê-se que o filme é relativamente fiel ao romance, como exceção das partes mencionadas acima. Em diversos momentos – que não possuem uma relação forte com a trama –, percebem-se os toques de estilo do diretor Sean Penn, entre eles a cena em que Black se encontra com a mãe da menina assassinada, que acontece num criadouro de perus, em meio ao barulho das aves. Em outros momentos, o diretor insere cenas de natureza (procedimento que se repete em seu filme Na natureza selvagem, de 2008), para simbolizar o Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema estado de espírito dos personagens, como na cena em que Black se encontra pescando em um lago. Assim, pelo menos neste filme, o estilo de Sean Penn parece-nos ser comedido e direto, mais preocupado em simplesmente narrar a história do que com arroubos artísticos, o que o coloca ao lado de cineastas ‘clássicos’ como Clint Eastwood. Contudo, uma das principais diferenças efetuadas em relação ao romance, e que nos parece de grande significância, é a mudança do foco narrativo. Para Paulo Emílio Salles Gomes (2007, p. 107): Se retomarmos as diversas formas de situar a personagem no romance, às quais o Professor Antonio Candido fez referência em suas aulas, verificaremos que são todas válidas para o filme, seja a narração objetiva de acontecimentos, a adoção pelo narrador do ponto de vista de uma ou mais personagens, ou mesmo a narração na primeira pessoa do singular. Como se disse, o livro é narrado em terceira pessoa, enquanto que o filme possui uma narração ‘objetiva’, em que a câmera não interfere na narrativa da história; ou seja, não possui um narrador-personagem nem uma narração em voice over. Isso nos parece demonstrar a intenção do diretor, que é de simplesmente contar uma história policial que termina em obsessão e loucura. Essa é a principal preocupação do diretor, e por isso ele não coloca em seu filme os trechos da obra literária em que se encontra a discussão sobre a natureza do romance policial. Sean Penn se concentra na narrativa principal, e por isso nos aspectos mais convencionais da história – mas, como se disse, apenas aparentemente convencionais, pois essa história não segue a lógica das narrativas policiais comuns. Outro dado importante a ser considerado na análise do filme, é o fato de ele ter sido realizado dentro do star system hollywoodiano. Esse não chega a ser um fato que interfere na narrativa, mas é uma informação a mais que deve ser levada em conta na interpretação do filme enquanto obra de arte. Embora não seja um filme propriamente comercial, como filmes de sucesso mais convencionais no estilo blockbuster (principalmente nos gêneros de aventura e ficção científica), em A promessa encontramos participações especiais de várias “estrelas” do cinema, em momentos que pouco influenciam a história, como se disse acima, o que foi tratado de maneira jocosa pelo crítico Karl Williams (2009): “Look! It’s Mickey Rourke! There’s Helen Mirren!”. O próprio diretor Sean Penn, que iniciou sua carreira como ator, faz Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema parte desse sistema, o que pode explicar o fato de ele ter chamado esses atores, de forma a garantir-lhe maior credibilidade e servir de chamariz do público ao filme. Segundo o sociólogo Edgar Morin (1972), a era de ouro do star system de Hollywood – em que as stars eram vistas quase como semideuses – se prolongou das primeiras décadas do século XX até os anos 1950. A partir dos anos 1960, com a ascensão do chamado ‘cinema de autor’ (de movimentos como a Nouvelle Vague francesa e o cinema underground norte-americano), o star system entrou em crise, apesar de que isso não tenha resultado no fim das estrelas de cinema, como as conhecemos. Então, passou a haver uma interligação e uma influência mútua entre estes dois tipos de cinema, o artístico e o ‘de espetáculo’; sendo assim, parece-nos justificado dizer que Sean Penn faz parte desse meio, como dito anteriormente. Morin (1972, p. 156) continua, dizendo que os anos 1960 e 1970 assistiram a uma transformação na cultura de massa, que passou do ‘mito da felicidade’ à ‘problemática da felicidade’, o que se materializou no surgimento dos anti-heróis (ou heróis problemáticos) do cinema, que passaram a refletir esse novo mal-estar da civilização. Considerando isso, é sintomático o fato de o protagonista de A promessa – um ‘herói’ competente no que faz, com boas intenções, mas de caráter dúbio, pois coloca seu interesse acima do bem-estar de outras pessoas e não considera as conseqüências de seus atos – ser desempenhado por Jack Nicholson, famoso por interpretar anti-heróis (como em Easy Rider – Sem destino, 1969) ou heróis contestadores (como em Um estranho no ninho, 1975). Assim, ele é uma estrela, mas uma estrela fora do sistema. CONCLUSÃO Retomando o que foi discutido sobre a teoria, percebe-se no caso em estudo que na adaptação o trabalho de se conciliar duas linguagens pode ser altamente produtivo. As duas obras analisadas possuem propostas e objetivos diferentes, mas nem por isso pode-se falar que o filme não foi ‘fiel’ ao livro. Em nossa opinião, tal adaptação foi bem sucedida na medida em que o filme conseguiu manter o interesse e o suspense do romance, ao criar uma obra nova que dialoga com a original. Além disso, parece-nos possível dizer que o filme apresenta, de uma maneira mais ‘amigável’ – mas não diluidora –, uma obra e um autor pouco divulgados, ao mesmo tempo em que convida os espectadores a conhecê-los. Em termos de sentido das Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X Páginas 319-331 ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – LITERATURA NO CINEMA e III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema duas obras, ao optar por dar relevo à história do crime e de sua investigação, o filme complementa o romance, que possui significados mais profundos e não tão imediatos, ao questionar a própria natureza de um subgênero literário desgastado, mas não de todo morto: o romance policial. REFERÊNCIAS: CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e cinema. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EdUEM, 2003. DÜRRENMATT, Friedrich. A promessa: réquiem pelo romance policial. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961. (Biblioteca do Leitor Moderno, vol. 10) GOMES, Paulo Emílio Salles. 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