Nota de Repúdio à PEC 215
"(...) porque a terra, para cada um de nós,
é muito mais do que um pequeno pedaço
de terra negociável. Nós temos uma
relação espiritual com a terra de nossos
ancestrais. Nós não negociamos direitos
territoriais porque a terra, para nós,
representa a nossa vida. A terra é mãe e
mãe não se vende, não se negocia. Mãe
se cuida, mãe se defende, mãe
se protege." (Sônia Guajajara)
Junto dessa sábia e virtuosa manifestação do pensamento de Sônia
Guajajara, proferida durante a sessão de debate da Proposta de Emenda
Constitucional n° 215/00 realizada em 13/08/2013, na Comissão de Legislação
Participativa da Câmara dos Deputados.
Nós, juventude indígena e Povo Kaingang do atual estado do Rio
Grande do Sul, que nos reconhecemos como continuidade histórica da
resistência dos Povos indígenas originários deste país, vinculados a um
passado milenar, latente em nossas memórias, nas narrativas, nos cantos, nas
danças, nas nossas cores e nos símbolos que compõem nossas cosmologias e
nossa existência, viemos afirmar nossa postura ética nesse cenário marcado
pela ganância e assimetria de poder.
Viemos, portanto, a público expressar nosso repúdio e consternação
face às recentes declarações do deputado federal Valdir Colatto (PMDB/SC) na
plenária de reunião da pauta extraordinária de discussão e votação do parecer
da PEC 215 do dia 20/10/2015, na qual esse senhor afirma deliberadamente
que os indígenas do Sul comungam e são favoráveis a esta proposta normativa
inconstitucional e genocida.
Assim como repudiamos as declarações de outros parlamentares da
bancada ruralista que, nessa corrida insana e doentia para aprovar a PEC 215,
para atender aos interesses de latifundiários e o oligopólio vinculado ao
agronegócio, abertamente dizem que os Povos indígenas do Sul e sua
juventude, que gradativamente acessa os espaços de universidades no Sul do
Brasil, estão de acordo com essa normativa.
Senhores deputados da bancada ruralista, é apelativa, pretensiosa e
ofensiva de vossa parte declarações deste teor, especialmente sobre o Povo
indígena Kaingang com a 3° maior população de originários deste que
atualmente chamamos de Brasil, baseadas ao que sabemos em uma pseudo
reunião com algumas supostas lideranças, essas que não representam nem de
longe nossas pretensões como povo indígena, em reunião para negociarem,
sobre modelos produtivos; sim negociavam, afinal tudo para vocês é capital,
recurso e lucro, não é?
Não falavam sobre a resistência indígena no Sul do Brasil com essas
lideranças, não falavam das mazelas e estigmas que ficaram para nós da
herança maldita do violento processo de colonização, que materializam a
dívida histórica do Brasil com os Povos indígenas, não falavam que o
movimento das retomadas é o símbolo mais genuíno de nossa história, de
nossas narrativas e memórias que transcendem os milhões de reais que os
senhores enchem a boca nas suas declarações para afirmar suas intenções
em justificar modelos produtivos sem o mínimo de equidade ambiental e social.
E, sim, meus caros, sem a real representatividade dos mais de 33 mil
Kaingang do Planalto Meridional.
Suas declarações são completamente irrisórias, infundadas e sem
nenhum comprometimento real com a questão indígena, senão os seus
próprios interesses em expandir suas fronteiras e afirmar essa atroz normativa
que atenta contra os direitos indígenas constitucionalmente afirmados. Sem a
devida análise sociocultural, socioambiental, histórica e antropológica dessa
questão, querem mais é ter acesso a todos os recursos dos poucos redutos de
territórios conquistados com muita luta e resistência dos Povos indígenas,
assim como de nos privar do direito constitucional de reaver os territórios que
nos foram tirados através do esbulho, lugares que remontam e conformaram a
nossa humanidade que transcende o Brasil, a América Latina ou qualquer que
seja a denominação, onde existíamos há milhares de anos antes do presente,
absolutos, até chegada da dita "civilização".
Tolos vocês, pois como poderíamos em sã consciência estar de acordo
com uma proposta que atenta contra clausulas pétreas da Constituição Federal
de 1988, as poucas que conquistamos? Como poderíamos trair os princípios e
valores que orientam a lógica ameríndia do Bem Viver? Como poderíamos nós,
essa geração que tem o legado de continuar a luta pela dignidade que outrora
nos foi tirada?
Como poderíamos nós comungar com tal atrocidade ao direito
fundamental da Constituição sobre nossos territórios e esquecer do quão
iluminado e aguerrido foi o processo Constituinte, do levante social do Brasil
como um todo? Tendo na Constituinte o anseio e desfecho da postura ética
brasileira, contra a tirania e o autoritarismo da ditadura.
Como poderíamos nós esquecermos da atuação maciça e orgânica dos
Povos indígenas de todo o território brasileiro unidos em um momento épico
nesse processo que resultou nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal e
que reconheceu a diversidade cultural do Brasil? Para nós, hoje, os artigos
conquistados na Constituinte são um patrimônio de nossa história recente e
símbolo material da nossa existência no mundo contemporâneo,
caracterizando como direito adquirido e sagrando-se assim como clausula
pétrea da Constituição Federal de 1988.
Por fim, meus caros, nós, Povos e juventude indígena do atual estado
do Rio Grande do Sul, somos declaradamente contrários à PEC 215, e,
desse modo, não haveria cabimento, nem postura ética concernente aos
nossos princípios e valores morais abdicar de direitos fundamentais
conquistados e adquiridos como clausulas pétreas de nossa Constituição
Federal.
E, não, suas declarações e essas supostas lideranças não nos
representam. Não vai ser a partir de uma análise tão superficial e direcionada
aos interesses da bancada ruralista que vamos esquecer do núcleo de
identidade da Constituição de 88, esta que tem um compromisso visceral com
os direitos fundamentais como um todo, e não só com as liberdades individuais
clássicas, a Carta Magna. Não se trata de uma Constituição liberal-burguesa,
preocupada com a contenção do arbítrio do Estado nas deliberações.
Mas sim de uma Lei Fundamental que toma como tarefa essencial
promover e zelar pela dignidade humana em todas as suas dimensões,
sobretudo das minorias. Nós, Povos indígenas, como uma dessas minorias,
participamos com assiduidade da construção dos fundamentos originários da
Constituinte e não aceitamos que essa identidade da Constituição Federal de
1988 seja desconstruída em prol dos interesses da bancada ruralista.
E reiteramos que somos veemente contrários à intenção da PEC 215
de que a deliberação final sobre a demarcação de terras indígenas fique sob a
responsabilidade do parlamento. Ora, se a PEC 215 fosse aprovada - e não
vai ser -, a fruição do direito fundamental à terra indígena seria plenamente
condicionada à vontade da maioria política do Parlamento. Ao tornar a
demarcação das terras indígenas dependente de aprovação parlamentar, e
subordinar a inalienabilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade dos direitos
que incidem sobre estas terras à decisão política do Congresso, o constituinte
derivado afetaria o direito fundamental previsto no art. 231, comprometendo o
núcleo essencial do direito, anterior ao Estado brasileiro.
Fato é que o Parlamento Federal, com todo o respeito que a instituição
merece, é uma instância profundamente incutida pelo poder econômico, onde
se faz presente, com enorme força e poder toda a sorte de barganha. Assim
como uma ampla bancada ruralista, adversária histórica, ofensiva,
preconceituosa, ferrenha e implacável dos direitos dos Povos indígenas e do
meio ambiente.
Neste sentido, concluímos que atribuir ao Congresso Nacional a última
palavra sobre a demarcação de terras indígenas significaria, do ponto de vista
material e prático, quase o mesmo que revogar integralmente o direito
fundamental dos Povos indígenas ao território tradicionalmente ocupado. O
Supremo Tribunal Federal, no seu papel maior de guardião da Constituição e
dos direitos humanos das minorias, não pode permitir que tamanha tragédia se
consume. Assim como deve zelar pela sociodiversidade dos Povos indígenas
brasileiros, diversidade essa que repousa na demarcação e proteção das terras
indígenas e deve também lembrar de acordos internacionais firmados pelo
Brasil que o colocam no compromisso de assegurar o Bem viver dos Povos
indígenas.
O POVO KAINGANG DO RIO GRANDE DIZ NÃO À PEC 215
A JUVENTUDE INDÍGENA DO RIO GRANDE DO SUL DIZ NÃO À PEC 215
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