MULHERES DO BRASIL COLONIAL E O MITO DA DONA AUSENTE NO
ROMANCE DE ANA MIRANDA.
Diovana Ferreira de Oliveira Thiago1
Resumo:
Os papéis femininos idealizados no projeto colonizador e cristianizador
divergem nas práticas e nas circunstâncias dos lugares assumidos por elas no
cotidiano e na vida privada colonial. Esse contexto é explorado na narrativa
ficcional de Ana Miranda, a forma como ela inventa a mulher da colônia
desconstruindo o mito da dona ausente, este que esteve presente tanto na
literatura quanto nos relatos de viagem e documentos da colonização, nos
parece indissociável da forma como o tema aparece problematizado em nossa
historiografia após os anos 80.
Palavras-Chave: sujeitos, romance, concepção de história.
A experiência feminina na colônia é o tema que orienta a trama de
Desmundo, romance histórico de Ana Miranda, publicado em 1996. O trecho
da carta do jesuíta Manoel da Nóbrega ao rei solicitando o envio de
mulheres brancas à colônia, apresentado como epígrafe é o primeiro indício
de como a narrativa está fundamentada. Durante as primeiras décadas da
colonização a falta de mulheres na colônia era assunto que ultrapassava os
limites da vida privada, esse era também um assunto do Estado e da Igreja.
O contexto das grandes navegações gerou em Portugal um grande
contingente de viúvas e órfãs desprovidas de proteção, ‘frágeis e
suscetíveis’ ao pecado em sua ‘natureza feminina’, essas mulheres
necessitavam
então
de
adestramento,
assim
foram
criados
os
recolhimentos que seguiam o modelo de conventos e mosteiros. Essas
instituições eram mantidas pela caridade. Esperava-se que a mulher
recolhida se tornasse uma mulher virtuosa e devota, mas acima de tudo
esperava-se que aprendesse ser uma boa mãe e fosse educada dentro da
religião católica. Assim estaria ela pronta para servir aos homens, ao reino
1
Mestranda em História, Universidade Federal de Goiás - UFG. Bolsista [email protected]
e à colônia. Nesse contexto o mito da dona ausente que já acompanhava o
povo português nas aventuras de além mar assume variantes em terras
coloniais.
A’ El-Rei D. João
(1552)
JESUS
Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra ha de
mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de
Nosso Senhor, apartados dos peccados em que agora vivem,
mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas,
venham de mistura dellas e quaesquer, porque são tão desejadas
as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem à
terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do
peccado.
Manoel da Nobrega. (MIRANDA, 1996, s/p).
A órfã Oribela é a protagonista e também a narradora da obra. As
condições de viagem em ultramar, impressões da terra do Brasil e do
quotidiano da colônia, constituem o conteúdo histórico e o substrato sobre o
qual Ana Miranda inventa a trajetória da órfã Oribela, uma das órfãs
enviadas ao Brasil para desposar os colonos que aqui viviam e se
encontravam “em pecado” com as ‘negras da terra’. Era preciso preservar a
fé católica e o alvor da pele. É nesse contexto que nos deparamos com a
outra face da dona ausente. A mulher ideal, casta, devota e virtuosa
descobre que também é humana. O choque é imediato, Oribela resiste e
insiste em enxergar no outro todas as características próprias da concepção
européia do novo mundo. Em terra firme as imagens das lendas e criaturas
fantásticas que povoavam o imaginário dos colonizadores, confrontam-se
com o novo mundo e sua realidade.
Oribela, com sua visão mítica e espiritual da vida, ao encontrar-se
com o “Novo Mundo,” toma consciência de sua condição marginalizada
como a daqueles feros homens degredados na sociedade colonizadora e
descobre aos poucos os conflitos e a desordem que a travessia do Atlântico
significaria em sua vida e na de tantos outros que aqui aportaram. A vida da
personagem ilustra a condição feminina no seio da sociedade portuguesa
daquela época, criada para orar e obedecer, não lhe era permitido jamais
desejar em sua “existência mulheril”. Mau agouro nos navios, “baús cheios
de pedras muito grandes e pesadas” Isso porque a mulher era criatura fraca
de “alma tinhosa”, e deveria ser guardada e purgada para que não se
desviasse dos bons caminhos. “(...) aos pés da Senhora [imagem de santa]
me lancei em joelhos e lhe pedi pra proteger minha alma das coisas de fora
e das coisas de dentro, (...), pois o derramamento do pensamento ninguém
o pode vencer” (MIRANDA, 1996, p. 30). A mentalidade e a concepção de
mundo da personagem reproduzem o imaginário religioso e supersticioso
de Portugal no século XVI.
A menina havia sido entregue a um recolhimento ainda criança, a
mãe morrera no parto e o pai, por desgosto, pouco tempo depois. Oribela
nunca soube nem o nome da própria mãe por vergonha de perguntar ao pai
e achar-se indigna de dizê-lo.Além da devoção e da consciência de seu não
lugar no mundo, a pobreza de Oribela e das demais órfãs fica evidente em
diversos momentos, como nas descrições da travessia e do momento em
que a Senhora Inês aportou nas terras do Brasil. “Vieram no escaler nossos
sacos de coisas, pouco era o que tínhamos nosso, (...) Havia nesse mundo
tantos adornos que não eram feitos para nós, nem véu fino, nem colar, nem
cintura, Nem turvante ou luvas nem rufo.” (MIRANDA, 1996, p.24).
O Brasil, com as notícias de seus encantos naturais e riquezas, era
promessa de nova vida, quisera ela fosse só isso, mas na chegada ao novo
mundo Oribela reconhece seus piores medos. Tudo lhe parecia fora do
lugar nesta terra. Mesmo sonhadora e sensível, Oribela se mostra
inconformada com seu destino. Apegada aos costumes e à terra natal,
causaram-lhe estranhamento o clima, as culturas que aqui se misturavam, a
comida, os animais “um ave verde que sabia falar palavras humanas, a qual
conhecera eu por lenda, sendo esta mais pequena e mais aborrida.”
(MIRANDA, 1996, p. 45) e as gentes do lugar que, com seus modos, sendo
brancos ou naturais pareciam tão distantes de Deus. Tal estranhamento
revela quão pequeno e limitado era o mundo que Oribela vivera até então.
As descrições do lugar e das pessoas evidenciam o olhar estrangeiro
impregnado de preconceitos, as imagens da ruína e da luxúria e da pobreza
assombram ao mesmo tempo em que a paisagem natural encanta.
A feição das gentes cristãs era escura, de ser cozida pelo sol a
pele, todos pareciam donos da terra e do nariz, por não estarem
aqui nem o rei nem a rainha nossa mãe. Degredados eram uma
gente sem temor nem conhecimento de Deus e que diziam
heresias como podia fazer qualquer animal bruto se soubesse
falar porque eram homens sem sangue, sem lei, nação, língua,
reino, sem terra e servos, o que se via claramente em sua obras,
eram praga contagiosa, peçonhenta e em sua habitação, fosse
nos montes bravios ou no mais distante, na serra dos vazios ou
na linha do horizonte, iriam bramir de noite com as feras silvestres
da sua mesma vil natureza. (...) quase todos num pouquíssimo
trato de suas pessoas e nos seus vestidos, por onde entendi não
ser esta terra tão provida de vaidades e não matava a todos de
gentilezas, o corpo deles mortificado por feridas, quedas,
mordidas, larvas entre a carne e a pele, rosto roído pelo tempo,
lacerado por gravetos, espinhos e umas abelhas que sugavam o
sangue. Escravas amamentavam suas crias, tendo parido filhos
que de rosto saíam brancos, mas tisnados em brasa, filhos dos
cristãos que delas se enamoravam, na solidão destas terras
desabafadas. (MIRANDA, 1996, p.26).
Em sua existência desamparada a órfã depara-se com a brutalidade
de uma sociedade marcada pela intolerância religiosa, pela ambição e pela
miséria que a lança em um ‘desmundo’ povoado de encantamentos e
terrores. A colônia era lugar desamparado e desprovido do luxo e das
aparências da corte conhecidos até mesmo entre os mais pobres. Aqui as
edificações eram precárias, as acomodações eram rústicas, os ornamentos
eram raros, e a riqueza tinha outra feição. As pessoas no Brasil eram ricas
em sua ambição, em sua liberdade, em seu destemor.
Não bastassem os conflitos do mundo exterior, os mistérios de sua
própria sexualidade, reprimidos até então na clausura do recolhimento,
seriam para ela tão estranhos e insubordináveis quanto os costumes
daquela terra de natureza quase intocada e gentes tão diferentes dela.
Sabia das conveniências do projeto social de colonização portuguesa, que
traduzia nos papeis femininos as inter-relações de gênero, status, religião e
cor. Muito devota, seu primeiro desafio é dominar os próprios desejos.
Criada dentro da moral portuguesa e dotada ao mesmo tempo de virtude e
pecado, Oribela entra em conflito consigo mesma, oscila entre o medo e a
coragem, seu corpo e sua alma, entre ficar e partir, transgredir e obedecer.
Dentro do projeto civilizatório da colônia a mulher deveria ser a escrava do
lar, seu adestramento fazia parte do sistema, esse era o modelo a ser
seguido. É nas fimbrias desse sistema que emergem a as mulheres que,
assim como Oribela ousaram desafiar a ordem imposta pela sociedade
colonial.Rebelde e determinada, em sua experiência cotidiana no ambiente
da colônia, a jovem vai experimentando novas sensações e dando outra
face à mulher colonial.
Não é intenção da autora, reproduzir a mulher branca ideal livre dos
desvios e descaminhos, a dona perfeita que todos desejavam “cá”. Apesar
de sua condição social submissa, Oribela desafia o destino que lhe fora
imposto. Queria tornar ao reino, pela fuga ou por misericórdia e bondade
daqueles que tinham poder sobre ela. É a partir daí que ela passa a
questionar sua identidade, suas convicções e o sentido de sua existência.
Seu primeiro ato transgressor da ordem que lhe tinha cortado a vida é
rejeitar um pretendente, homem de posses, que mostrou gratidão a Deus e
aos soberanos por enviar mulheres a essa terra. O pretendente era
Francisco de Albuquerque, homem bom e principal como diziam, sobrinho
de Dona Brides de Albuquerque, o que nesta terra significava muita coisa,
“um senhor nesse ermo estrangeiro”. Mesmo o tendo rejeitado, Oribela
torna-se esposa de Francisco.
Numa espécie de leilão foram escolhidas as órfãs por seus
pretendentes, além do alvor da pele a virgindade era uma espécie de
tesouro do qual o marido deveria desfrutar, era o dote daquelas que não
eram donas nem do próprio corpo. Bem tratadas na noite do casamento,
celebradas como rainhas, as órfãs sentem-se esperançosas, teriam, pois,
arranjado marido bom.No dia seguinte ao casamento Oribela é levada para
o engenho de Francisco, a paisagem aos poucos vai se transformando
“cada vez mais longe se metia a vila e cada vez mais triste estava eu.”
(MIRANDA, 1996, p. 81). Ao chegar ao engenho, Oribela é apresentada à
mãe de Francisco Dona Branca e à sua filha-irmã Vigilanda, razão pela qual
Francisco se metera cada vez mais sertão adentro. Vigilanda era o retrato
daquela terra sem lei, sem limites, sem temores de Deus onde era natural
um filho deitar-se com a mãe, o que, mais uma vez, causou estranhamento
à órfã.O engenho de Francisco é palco de uma das guerras, que eram
comuns pelo domínio do território, pelo apresamento dos índios, ou pela
resistência das tribos à escravidão. Diante do conflito Oribela tem a
oportunidade de fugir, não era a primeira vez que tentara, mas desta vez
contou com a ajuda do mouro, homem por que a jovem é tomada de
paixão,Ximeno Dias dá refúgio à jovem em sua própria casa na vila.Durante
o tempo que passa em sua casa, a jovem desconstrói mais um de seus
tantos preconceitos e se rende ao mouro, revelando-se mulher de alma e de
corpo.Havia muitas crendices em Portugal sobre os mouros, que viviam em
pecado, que eram desonestos e misteriosos “homens capazes de fazer
coisas que não se podiam pagar com nenhum ouro (...) e mesmo quando
eram de boa feição aquilo só encobria a verdade de sua maldade bruta, sua
ferocidade, sua rudeza de amimais selváticos, feito cafres e faziam a
mulher parir sapo, fosse cristã.” (MIRANDA, 1996, p.31).E o fruto de sua
paixão cresceu em seu ventre. Francisco de Albuquerque acreditava ser
dele o filho, e tinha a intenção de recuperar sua família, mas o menino
nasceu com cabelo de fogo dando prova de ser do mouro.
Tentei demonstrar aqui, de forma sucinta, a forma como Ana
Miranda inventa Oribela e reconstrói o cotidiano da colônia. A trama leva o
leitor a pensar nas situações e nas experiências que fogem ao projeto
idealizado para a sociedade colonial. Em Desmundo a mulher branca não é
só virtude, devoção e obediência.
Figura recorrente na literatura Portuguesa a dona ausente está
presente nos versos dos poetas e na lembrança dos viajantes, assim como
nos documentos oficiais, nas missivas entre membros da Igreja e do Estado
português desde o início das grandes navegações. O mito que se constituiu
no ambiente da expansão ultramarina esteve presente na mentalidade
colonial, assumindo aqui diversas variações tanto populares quanto
eruditas.Históricos ou alegóricos, o fato é que os estereótipos das grandes
damas tiveram função normativa na sociedade colonial, nas ações de
povoamento e formação social. O mito da dona ausente que coloca as
brancas em posição hegemônica diante da negra e da natural traduz a
ordem que se queria impor, mas que pela ambivalência estrutural de uma
sociedade excludente revelou outras faces à mulher de alva cor.
Multiplicaram-se as mulheres pobres, as desprotegidas de desamparadas
que o sistema era incapaz de absorver e elas foram obrigadas a improvisar
a própria existência.
Nos anos 80 a historiografia brasileira se ocupou dos temas da
colônia por uma perspectiva até então não experimentada entre nós. Surgia
uma nova historiografia nacional que, embora tenha se configurado mais
tarde e de forma diversa da renovação historiográfica ocorrida Europa,
permitiu uma nova perspectiva sobre a história do país, principalmente em
relação os estudos coloniais. Os temas do imaginário, da religiosidade e
das práticas mágicas, assim como o a história das figuras menores, das
camadas socialmente desclassificadas e anônimas, seus modos de sentir, a
sexualidade, seu trabalho e sobrevivência à margem do sistema passam a
ocupar historiadores brasileiros.
Em seu Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX
(1984),Maria Odila Leite Silva Dias se dedicou à história social das
mulheres e dos grupos marginalizados do poder. No terceiro capítulo da
obra a autora discute o lugar da mulher na especificidade histórica do
processo de colonização do Brasil a partir do mito da dona ausente,
Nas várias e sucessivas conjunturas de povoamento, foi
ganhando historicidade o mito da dona ausente, entranhado nos
cronista e nos documentos oficiais, através de referências que se
coloriam de tonalidades racistas, com maior ou menor violência,
conforme a intensidade do processo de mestiçagem. Já era
implícito nos textos de jesuítas e de paulistas, que conviviam com
a “indiada da terra”, mas tomou sem dúvida coloração mais nítida
entre os contemporâneos da sociedade da mineração. (DIAS,
1984, p.64).
A autora analisa a distância do lugar idealizado para a mulher no
interior do sistema social e o lugar muitas vezes ocupado por mulheres que
sobreviveram às margens da sociedade em um quotidiano de transgressões
e desordens desde os primórdios da colônia.Os portugueses tentavam
atacar a desordem para preservar seus privilégios na administração da
colônia. De acordo com Dias (1984) integrar a mulher na história da
sociedade brasileira pressupõe estudos de diferentes conjunturas regionais
sem perder de vista os valores ideológicos que as identifica com o projeto
colonizador além de captar suas conjunturas quotidianas e sua atuação
social constantemente improvisadora.
Segundo Souza (1986), a feitiçaria era mais um entre os tantos
desvios coloniais e mostrava-se estreitamente ligada às necessidades do
dia-a-dia, na busca da resolução de problemas concretos. Mas também se
achava próxima da religião vivida pela população, às práticas mágicas
misturavam-se as orações a Deus e aos santos. A procedência diversa da
população com inúmeros credos fizera da religiosidade e da feitiçaria parte
estrutural da colônia. As visões paradisíacas e infernais se alternavam no
imaginário do colonizador. O paraíso fazia referência à natureza e ao
universo econômico enquanto que as imagens relativas ao inferno estavam
sempre relacionadas aos homens, aos índios, aos negros, e por fim aos
colonos.É no domínio da religiosidade e das práticas mágicas que a mulher
aparece.
As praticas mágicas trazidas da Europa estavam associadas à
sobrevivência
material
e
reuniam
ritos
de
adivinhações,
curas,
e
benzeduras, no sentido de atender as necessidades diárias, eram
realizadas tanto por homens como por mulheres, muitas vezes realizava-se
tais práticas a bordo, para sobreviver às condições da vida ultramarina.
Muitas mulheres brancas que ficavam longos períodos à espera de seus
cônjuges marinheiros realizavam pactos demoníacos para que seu amado
retornasse. Acreditava-se ser o mar domínio de satã. Acreditava-se ainda,
haver desde a Idade Média demônios especializados em afundar barcos, as
fontes atestam que as bruxas coloniais não afundavam barcos, mas podiam
interferir no seu percurso. Ocorre que muitas dessas feiticeiras já haviam
sido condenadas na Europa, e um dos castigos era o degredo para o Brasil,
sentiam saudades do reino, queriam voltar e algumas afirmavam ser
capazes de atravessar o oceano em uma só noite. Mas entre as mulheres
eram mais comuns os feitiços com fins amorosos. Feitiços para prender o
amante ou conquistar um pretendente.
Em face da dona ausente nos é apresentada Celestina, que de
acordo com Caro Baroja ilustra um arquétipo de feitiçaria criada por
Fernando de Rojas comum nos meios urbanos da Espanha e da Itália na
época do Renascimento, Celestina “é mulher de má reputação, mercenária
do amor na juventude, que a idade transformou em alcoviteira e conselheira
de um bando de prostitutas e de rufiões é hábil perfumista que fabrica
cosméticos e outros produtos de beleza. Mas também pratica feitiçaria,
sobretudo a erótica.” (SOUZA, 1986, p.227).
Segundo a autora, a feitiçaria para fins amorosos é uma prática
muito antiga, logo, é possível que os juízes e inquisidores se baseassem
nisso para tratarem dos processos de feitiçaria relacionando-os à
sexualidade e enxergando as feiticeiras como prostitutas. Punições contra
feitiçaria, adultério e comportamentos sexuais inadequados estavam
frequentemente associados. É possível ainda que a partir desse imaginário
que mistura religiosidade, feitiçaria e sexualidade tenha se construído o
estereótipo da mulher como criatura que precisa ser vigiada, adestrada e
dominada devido à “natureza demoníaca” feminina. A mulher criada para
orar e obedecer, a dona ausente tão preciosa e desejada na colônia é
idealizada para livrar o homem do pecado, das Celestinas e das bruxas.
Em 1993 Mary Del Priore publica a obra Ao sul do Corpo: Condição
Feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. Essa talvez seja
uma das obras que melhor se encaixe na problematização do estereótipo
da dona ausente entre os estudos do tema pós 1980. A autora vai aos
arquivos em busca da condição feminina colonial. A mulher ideal que se
traduzia na figura da dona ausente e que, na colônia, se transformou em
“santa mãezinha”, em função de um violento processo normativo nos é
apresentada por outra perspectiva. É à luz do múltiplo caráter colonial
influenciado por diversas culturas, marcado pelo escravismo e, sobretudo
pelas normas da metrópole que a condição feminina é discutida nesta obra.
Havia na sociedade portuguesa, e também da colônia, uma visão diabólica
da mulher, por isso era preciso dominá-la, para que não se perdesse em
pecado e em sua ‘natureza dotada de abominação’.
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