Universidade Federal do Rio de Janeiro ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980) Thiago Laurentino de Oliveira 2014 ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980) Thiago Laurentino de Oliveira Dissertação Programa de de Mestrado apresentada Pós-Graduação em ao Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Regina dos Santos Lopes Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 ii ENTRE O LINGUÍSTICO E O SOCIAL: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980) Thiago Laurentino de Oliveira Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Língua Portuguesa. Examinada por: ____________________________________________________________ Presidente, Profª Dr.ª Célia Regina dos Santos Lopes – UFRJ ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Lennertz Marcotulio – UFRJ ____________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Rosane de Andrade Berlinck – UNESP ____________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Christina Abreu Gomes – UFRJ (Suplente) ____________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Márcia Cristina de Brito Rumeu – UFMG (Suplente) Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 iii Oliveira, Thiago Laurentino de. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de 2ª Pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980) / Thiago Laurentino de Oliveira. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2014. xxi, 166f. 1v. il. Orientadora: Célia Regina dos Santos Lopes Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas, 2014. Referências bibliográficas: f. 161-166 1. Dativo de 2ª pessoa. 2. Pronomes pessoais. 3. Sociolinguística histórica. I. Lopes, Célia Regina dos Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pósgraduação em Letras Vernáculas. III. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de 2ª Pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980). iv Esta pesquisa foi financiada por uma bolsa FAPERJ v OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980). Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2014. RESUMO A gramaticalização do pronome você desencadeou, no português brasileiro (PB) uma forte variação na representação da 2ª pessoa do singular, visto que o paradigma do antigo pronome tu não desapareceu. Essa variação na posição de sujeito tem sido amplamente estudada (cf. MACHADO, 2006; RUMEU, 2008, 2013), cabendo às investigações futuras analisar outras posições sintáticas da sentença. Nesta dissertação, investigamos as diferentes formas pelas quais o complemento dativo pode manifestar-se, em 2ª pessoa: através dos clíticos te e lhe, dos sintagmas preposicionados a ti, para ti, a você e para você, e ainda do objeto nulo (sem realização fonética). Chamamos de dativo o argumento interno dos verbos de dois ou três lugares com papel semântico de alvo ou fonte e substituível por lhe. Neste estudo, buscamos identificar fatores linguísticos e extralinguísticos que atuaram no (des)favorecimento de cada variante dativa durante a inserção do você no sistema do PB, por volta dos anos 1930 (cf. DUARTE, 1995). Além disso, descrevemos também a combinação do clítico te com o sujeito você em construções como “Você leu o livro que eu te dei?”. Tal combinação, interpretada tradicionalmente como “ruptura” da uniformidade de tratamento, é uma construção amplamente aceita e sem estigma social no PB atual (BRITO, 2001). O corpus constitui-se de 318 cartas particulares escritas por cariocas e fluminenses no período de um século (1880-1980). Como aparato teórico-metodológico, conciliamos os pressupostos da sociolinguística variacionista laboviana (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968; LABOV, 1994) com a sociolinguística histórica (CONDE SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012). Utilizamos o programa estatístico GOLDVARB-X como ferramenta para a análise quantitativa dos dados. Os resultados gerais deste estudo revelam que: o clítico te é a variante dativa mais recorrente na escrita carioca/fluminense do período analisado, independentemente do tratamento na posição de sujeito (você ou tu); o clítico lhe confere caráter de formalidade, marcando baixo grau de intimidade entre os interlocutores; as formas preposicionadas registram baixa frequência de uso, havendo a substituição das formas a ti e para ti por a você e para você ao longo do tempo; os subgêneros de carta particular, o núcleo social dos missivistas e o grau de domínio sobre os modelos de escrita são fatores que condicionam o uso das variantes. Palavras-chave: complemento dativo, pronomes de 2ª pessoa, cartas particulares. vi OLIVEIRA, Thiago Laurentino de. Entre o Linguístico e o Social: Complementos Dativos de 2ª pessoa em Cartas Cariocas (1880-1980). Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ. 2014. ABSTRACT The grammaticalization of the form você has unleashed in Brazilian Portuguese (BP) a strong variation in the representation of the 2nd person singular, since the old pronoun paradigm tu has not disappeared. This variation in subject position has been widely studied (cf. MACHADO, 2006; RUMEU, 2008, 2013), and future research should study other syntactic positions. In this work, we investigate the different achievements of dative complement that can manifest itself, in the 2nd person, through the clitics te and lhe, the prepositional phrases a ti, para ti, a você, para você, and the null object (without phonetic achievement). We call dative the internal argument to verbs of two or three places with semantic role of goal or source and that can be replaced by lhe-clitic. In this study, we seek to identify linguistic and extralinguistic factors which favor or disfavor the use of each dative variant during insertion of você in BP system, around the years 1930 (cf. DUARTE, 1993). In addition, we describe also the combination of the te-clitic with você-subject in constructions like “Você leu o livro que eu te dei?”. Such combination, traditionally interpreted as “break” the uniformity of treatment, it is a widely accepted construction, without social stigma on current BP (BRITO, 2001). The corpus consists of 318 private letters written by people who lived in the state of Rio de Janeiro over a century (1880-1980). As theoretical-methodological apparatus, we combine the assumptions of Labovian variationist sociolinguistics (WEINREICH, LABOV & HERZOG, 1968; LABOV, 1994) with the historical sociolinguistics (CONDE SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012). We use the statistical program GOLDVARB-X as tool for the quantitative analysis of the data. The overall results of this study show that: the te-clitic is the recurrent dative variant in writing of the period analyzed, regardless of treatment in subject position (você or tu); the lhe-clitic confers character of formality, scoring low grade intimacy between the interlocutors; prepositional phrases record low frequency of use, occurring the replacement of the a ti and para ti by a você and para você over time; the subgenres of private letter, the social core of the writers and the degree of dominance on standardized writing are factors that influence the use of variants. Key words: dative complement, 2nd person’s pronouns, private letters. vii A Lucas Laurentino de Oliveira, meu irmão, meu espelho, meu “pequeno linguista” e agora meu universitário. viii AGRADECIMENTOS O espaço desta seção é muito curto para que seja possível agradecer a todos que, de algum modo, me ajudaram ao longo desses dois anos de mestrado. Mesmo assim, tentarei fazê-lo, desculpando-me desde já por uma eventual e infeliz falha na memória. Em primeiro lugar, agradeço à minha mãe, Maria de Fátima Laurentino de Oliveira, e ao meu pai, Adir Carvalho de Oliveira; pela criação, pelo carinho e pelos ensinamentos constantes. Nunca me iludiram dizendo que o caminho seria fácil, porém nunca disseram também que eu não conseguiria caminhar. Muito do que eu sou hoje devo a vocês! Agradeço aos meus avós maternos, Josefa e Raimundo e aos meus avós paternos, Neyde e Álvaro por toda a sabedoria e vivência a mim transmitidas da maneira mais simples e didática, coisa que faculdade nenhuma seria capaz de ensinar. Vocês são, com toda a certeza, os grandes precursores que, a duas gerações, vieram preparando o caminho. Agradeço também, de uma forma geral, a todos os membros da minha família – tios, tias, primos, primas etc – pelo apoio e incentivo constantes, sempre os maiores entusiastas das minhas conquistas. Um agradecimento muito especial para a minha “mãe acadêmica” Célia Lopes, por todo empenho, atenção, dedicação e respeito com que sempre me orientou, desde os tempos de Iniciação Científica até o término deste trabalho. Você é um exemplo que procuro seguir, admiro muito a maneira como você sabe tratar o profissional sem se esquecer do humano. Este trabalho não sairia sem sua acurada revisão, seus preciosos comentários e seu senso crítico constante. Meu muito obrigado! Agradeço a todos os magníficos professores da Faculdade de Letras da UFRJ, que muito contribuíram não só na minha formação acadêmica, como também no amadurecimento do meu senso crítico. Agradeço especialmente aos professores de língua portuguesa Humberto Soares, Mônica Nobre, Marcia Machado, Violeta Rodrigues, João Moraes, Dinah Callou, Afrânio Barbosa, Silvia Cavalcante, Maria Eugenia Duarte, Carlos Alexandre e Aparecida Lino, pelas aulas maravilhosas nos cursos de graduação e pós-graduação. Com todos vocês, aprendi e entendi que um verdadeiro professor é, na verdade, um grande, eterno e apaixonado pesquisador. Agradeço ao professor, pesquisador e colega de projeto Leonardo Marcotulio. Primeiramente, por aceitar o convite para ser membro da minha banca; e, além disso, pelas ix orientações e sugestões, sempre muito enriquecedoras para o meu trabalho. Obrigado, Léo! Considero você um modelo a ser seguido. Agradeço às professoras Rosane Berlinck, Márcia Rumeu e Christina Gomes, por também aceitarem o convite para participar da minha banca. Agradeço à professora Vera Paredes Silva, por ceder tão gentilmente as cartas utilizadas em sua tese de doutorado. Esse material foi imprescindível para que eu pudesse concretizar o meu projeto de análise. Muito obrigado! Agradeço também a todos os meus amigos que a Faculdade de Letras me deu: Giselle e Victor (o “engenheiro letrado”), Eduarda, Mariana, Fernanda, Carol Lucques, Camila Maciel, Larissa, Anne Karenine, Carmem, Jorge, Rafael, Carlos Eduardo, Silvia, Vivian e tantos outros. Obrigado pelo carinho, pela amizade. Juntos fomos e somos mais fortes! Um agradecimento especial à minha amiga, colega de graduação, “filha da amiga da minha tia”, colega de iniciação, companheira de viagens, congressos, apresentações, trabalhos, colega de mestrado e irmã que a UFRJ me deu Camila Duarte de Souza. Nunca precisamos de beijinhos, abraços e muitas demonstrações exageradas de afeto para termos certeza da solidez de nossa amizade. Sempre que um precisou, o outro esteve ali para ajudar. Sempre que era necessário (poucas vezes, é preciso dizer), um “puxou a orelha do outro” e isso não abalou nossa amizade. Termino o mestrado com a mesma garantia com que terminei a graduação: não vamos perder o contato! Nossa amizade é para a vida inteira e tenho muito orgulho de ser seu amigo. Você é uma excelente pessoa e te admiro muito! Agradeço ao meu amigo Murilo, por me ouvir falando da faculdade, da pesquisa e do mestrado sem nunca ter reclamado disso. Obrigado por me acompanhar nessa caminhada com uma paciência incrível! Não é para qualquer um! Estendo, ainda, meu agradecimento a todos meus demais amigos, pela força e parceria de sempre! Agradeço aos meus colegas de pesquisa e de pós-graduação Carolina Lacerda, Érica, Janaína, Rachel, Elaine, Caio, Stephanie, Karine, Diogo, Maria, Patrícia e Núbia. Nossa convivência e companheirismo deixam, sem dúvida, o trabalho menos pesado e mais prazeroso. Agradeço à FAPERJ, pelo auxílio financeiro, de extrema importância para que este trabalho acontecesse. Termino agradecendo aos meus alunos da Letras, por, em tão pouco tempo de convivência, me tratarem com muito respeito e carinho. Ler os comentários de vocês sobre o x meu trabalho como docente na internet foi surpreendente e me deixou imensamente feliz. Desejo a todos, sempre, que sigam em frente e atinjam seus objetivos. Por fim, termino agradecendo a todos os futuros leitores desta dissertação. Espero que o meu trabalho possa contribuir de alguma forma com a pesquisa daqueles que se dispuserem a lê-lo. xi “Três cegos rodeiam um elefante e tentam achar uma definição para o bicho. Um palpa suas pernas e diz que o elefante é uma coluna cilíndrica, rígida, imóvel. Outro palpa a cauda e concorda com o primeiro, exceto no quesito da imobilidade. O terceiro palpa a tromba e discorda dos dois no quesito da rigidez. Qual deles tem a razão? Nenhum e todos ao mesmo tempo, pois cada um fez uma descoberta válida por si mesma, ainda que incompleta. Estudiosos das línguas e dos fenômenos sociais são como os cegos da fábula. Estão sempre pesquisando, e sempre produzindo resultados incompletos.” Ataliba de Castilho1 1 In: Nova Gramática do Português Brasileiro. 1.ed., São Paulo: Contexto, 2010, p. 41 xii “Na Faculdade você vai conhecer milhões de pessoas, boas ou más, mas que a cada dia te ensinarão lições de vida, porque é vivendo que se aprende a viver melhor.” O dado mais sábio desta dissertação. xiii SINOPSE Estudo da variação entre as formas você e tu na posição de dativo-objeto indireto. Análise da escrita informal epistolar produzida entre as décadas de 1880 e 1980 por cariocas de diferentes categorias sociais. Investigação dos condicionamentos linguísticos e extralinguísticos favorecedores das diferentes estratégias dativas de 2P. xiv SUMÁRIO 1. Introdução ................................................................................................................20 2. Os dativos: revisando a literatura linguística .......................................................24 2.1. O caso dativo no latim .......................................................................................24 2.2. Dativos versus Oblíquos ....................................................................................27 2.3. Caracterização geral do dativo em português ....................................................31 2.3.1. Clítico dativo, sintagma preposicionado e objeto nulo: as possibilidades de realização em análises linguísticas ................................................................................32 2.3.2. Traços semânticos: animacidade e multiplicidade temática ........................................................................................................................................36 2.4. Tipologia dos dativos em português ..................................................................43 2.5. Síntese do Capítulo ............................................................................................50 3. Os pronomes de 2ª pessoa no português brasileiro ..............................................52 3.1. A prescrição das gramáticas normativas: conservadorismo e preservação da uniformidade de tratamento ...........................................................................................52 3.1.1. Os manuais didáticos e o ensino dos pronomes ........................................................................................................................................56 3.2. A descrição dos estudos linguísticos: variação e ausência da uniformidade de tratamento ......................................................................................................................58 3.2.1. Representação pronominal de 2ª pessoa: correlação entre formas de tratamento? ....................................................................................................................58 3.2.2. Formas pronominais de tratamento nas posições de objeto: mescla de paradigmas .....................................................................................................................65 3.3. Conclusão do capítulo .......................................................................................69 4. Pressupostos teóricos e metodológicos ...................................................................70 4.1. O problema da constituição do corpus ..............................................................71 4.1.1. Os problemas acerca do corpus propriamente dito ....................................72 4.1.2. Informantes de sincronias passadas e a validade social e histórica ........................................................................................................................................73 4.1.3. Representatividade e validade empírica dos dados ...................................75 xv 4.1.4. Invariação e a ideologia do padrão ............................................................76 4.2. Princípios e conceitos teórico-metodológicos da Sociolinguística histórica ........................................................................................................................................77 4.2.1. Princípio do Uniformitarismo ....................................................................77 4.2.2. A importância da História Social ...............................................................79 4.2.3. O estilo e a reconstrução do contexto de produção................................79 4.2.4. O modelo de Koch e Oesterreicher ............................................................81 4.3. Um estudo de caso para o português brasileiro: a variação pronominal em cartas pessoais .........................................................................................................................83 4.3.1. A análise pronominal em cartas pessoais ................................................84 4.3.2. A constituição do corpus: problemas e soluções ....................................85 4.3.3. A correlação entre os fatores linguísticos, históricos e sociais: a emergência de uma norma brasileira ................................................................................................87 4.4. Metodologia .......................................................................................................89 4.4.1. O corpus, suas fontes e informantes .........................................................89 4.4.2. Os dados ....................................................................................................98 4.5. Conclusão do capítulo .......................................................................................98 5. Descrição e análise dos dados ...............................................................................100 5.1. As variantes de dativo e os grupos de fatores ................................................100 5.2. Resultados gerais .............................................................................................107 5.3. Análise variável do fenômeno .........................................................................139 5.3.1. Variantes dativas mais produtivas: clítico te vs. dativo ø ..................140 5.3.2. Variantes dativas de origens distintas: clítico te vs. clítico lhe ..........143 5.3.3. Variantes conservadoras e inovadoras: clítico te vs. sintagmas preposicionados ...........................................................................................................147 5.4. A Uniformidade de tratamento: retornando à questão ...............................153 6. Considerações finais ..............................................................................................158 Referências bibliográficas .........................................................................................161 xvi Índice de Esquemas Esquema 2.1: Hierarquia de animacidade (adaptado de Givón, 1995 apud Company, 2006) ..............37 Esquema 2.2: O continuum dos papéis temáticos do OI ........................................................................41 Esquema 2.3: Gradação semântica das categorias distintivas do dativo ...............................................50 Índice de Gráficos Gráfico 2.1: Objeto indireto nulo segundo a pessoa gramatical (adaptado de Berlinck, 2005, p. 139) ................................................................................................................................................................35 Gráfico 3.1: Porcentagens do uso não uniforme dos pronomes objetos de 2P nos dois corpora (BRITO, 2001, p. 101) ...........................................................................................................................64 Gráfico 3.2: Correlação entre as estratégias de acusativo e as localidades (OLIVEIRASILVA, 2011) ................................................................................................................................................................68 Gráfico 3.3: Correlação entre as estratégias de dativo e as localidades (OLIVEIRASILVA, 2011) ............................................................................................................................................................... 68 Gráfico 5.1: Percentual de ocorrência das variantes dativas nas cartas cariocas e fluminenses (18801980) ....................................................................................................................................................107 Gráfico 5.2: Percentual de ocorrência das variantes dativas na diacronia analisada (1880-1980) .....................................................................................................................................................132 Gráfico 5.3: A frequência do clítico te nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) ......................................................................................................................... 154 Gráfico 5.4: A frequência do clítico lhe nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) ..........................................................................................................155 Gráfico 5.5: A frequência do sintagma preposicionado para você nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) ................................................................156 xvii Índice de Quadros Quadro 2.1: Categorias distintivas (extraído de Berlinck, 2005, p. 131) ..............................................49 Quadro 3.1: Pronomes pessoais do português segundo a perspectiva tradicional (adaptado de Cunha & Cintra, 1985, p. 270) ..............................................................................................................................52 Quadro 3.2: Distribuição dos 3 subsistemas dos pronomes pessoais de 2ª pessoa pelas regiões brasileiras (LOPES & CAVALCANTE, 2011, p.39) ............................................................................60 Quadro 3.3: Flexão de caso dos pronomes na norma padrão do português (LUCCHESI & MENDES, 2009, p. 473) ..........................................................................................................................................61 Quadro 3.4: Flexão de caso dos pronomes pessoais na norma culta brasileira (LUCCHESI & MENDES, 2009, p.475) .........................................................................................................................61 Quadro 4.1: Parâmetros determinantes do grau de imediatismo/distância comunicativa dos textos escritos (OESTERREICHER, 2006, p.255) ..........................................................................................82 Quadro 4.2: Corpus analisado e suas fontes ..........................................................................................97 Quadro 5.1: Valores semânticos dos verbos que selecionam complemento dativo ............................115 Quadro 5.2: Grupos de fatores selecionados nos cruzamentos entre o clítico te e as demais variantes ..............................................................................................................................................................139 xviii Índice de Tabelas Tabela 3.1. A distribuição das formas pronominais em função de complemento verbal (MACHADO, 2011, p. 152) ..........................................................................................................................................63 Tabela 3.2. Correlação das formas acusativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIXXX.(LOPES & CAVALCANTE, 2011, p. 53) ......................................................................................66 Tabela 3.3. Correlação das formas dativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIXXX.(Fonte: LOPES E CAVALCANTE, 2011, p. 56) ...........................................................................67 Tabela 3.4. Distribuição das estratégias de complemento verbal em roteiros cinematográficos (Fonte: Adaptado de OLIVEIRA SILVA, 2011, p. 27) .....................................................................................68 Tabela 5.1. Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas como complemento dativo .............................................................................................................................108 Tabela 5.2. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à estrutura argumental do verbo predicador ............................................................................................................................................112 Tabela 5.3. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto ao valor semântico do verbo predicador ...........................................................................................................................................116 Tabela 5.4. Correlação entre as variantes de complemento dativo e a forma do objeto direto em estruturas bitransitivas .........................................................................................................................123 Tabela 5.5. Correlação entre o subgênero da carta e as estratégias utilizadas como complemento dativo ..............................................................................................................................................................126 Tabela 5.6. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à seção da carta ....................129 Tabela 5.7. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 1º período (1880-1905) .............133 Tabela 5.8. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 2º período (1906-1930) .............134 Tabela 5.9. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 3º período (1931-1955) .............136 Tabela 5.10. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 4º período (1956-1980) ...........137 Tabela 5.11. Análise multivariada das formas dativas te x zero (Valor de Aplicação: clítico te) .......140 Tabela 5.12. Análise multivariada das formas dativas te x lhe (Valor de Aplicação: clítico te) .........144 Tabela 5.13. Análise multivariada das formas dativas te x SPreps (Valor de Aplicação: clítico te) ..............................................................................................................................................................148 xix 20 1. INTRODUÇÃO A variação entre as formas pronominais tu e você na posição de sujeito constituiu-se, nos últimos anos, em um notável objeto de investigação, explorado por estudiosos sob diferentes enfoques e perspectivas (cf. LOPES & DUARTE, 2003; MACHADO, 2006, 2011; RUMEU, 2008; SOUZA, 2012, entre outros). A alternância das formas dos paradigmas de tu e você em outros contextos sintáticos encontra-se, contudo, praticamente inexplorada com poucos estudos já realizados, dentre os quais mencionamos Brito (2001), Lopes & Cavalcante (2011), Lopes, Rumeu & Marcotulio (2011) e Lopes, Souza & Oliveira (2011). Diante desse quadro, a presente dissertação objetiva investigar a variação pronominal de referência à segunda pessoa do singular na posição sintática de complemento verbal dativo. Entendemos por dativo o argumento interno dos verbos de dois ou três lugares que recebe papel semântico de alvo ou fonte e pode ser substituído por um clítico, como ilustram os exemplos a seguir: (01) João telefonou (a ti / para ti / a você/ para você) → João te/lhe telefonou. (02) Maria mandou um presente (a ti / para ti / a você / para você) → Maria te/lhe mandou um presente. Ao consultarmos diferentes gramáticas tradicionais, observamos que, nas seções destinadas à abordagem dos pronomes pessoais, os autores consideram apenas o tu atua como pronome pessoal de 2ª pessoa, sendo o você descrito ora como pronome de tratamento, ora como 2ª pessoa indireta (formalmente de 3ª pessoa, porém semanticamente de 2ª). Os gramáticos estendem essa possibilidade de referência às outras posições sintáticas, advogando que teríamos apenas o pronome átono te para os objetos direto e indireto; para o objeto indireto, haveria ainda a forma ti, encabeçada por preposição. Um dos problemas em descrever o paradigma “tu–te–ti” como única possibilidade é a larga utilização do você combinado ao te, como em “Você leu o livro que eu te dei?”, no português brasileiro atual, falado ou escrito. Os gramáticos tradicionais tentam “resolver” o problema através da chamada “uniformidade de tratamento”, segundo a qual prescrevem que, uma vez escolhida a forma de referência à 2ª pessoa (tu ou você), os usuários da língua deverão estender as formas correlatas desse paradigma a todas as posições, como objeto direto, objeto indireto e possessivos. Sendo assim, para o uso uniforme do você, recomendam o uso, por exemplo, do clítico lhe para o dativo-objeto indireto. 21 Adotando uma abordagem sociolinguística variacionista laboviana, Gomes (2003), ao analisar dados de língua falada em uma amostra do dialeto carioca, identificou as seguintes formas pronominais empregadas como dativo de 2ª pessoa: os clíticos te e lhe e os sintagmas preposicionados a você e para você. A descrição gramatical não corresponde, pois, ao que pôde ser verificado em dados linguísticos concretos, nem mesmo entre os falantes cultos. Sabemos, ainda, que no dialeto carioca é adotado um subsistema de tratamento misto em posição de sujeito (tu/você)2. Por que, então, as gramáticas tradicionais insistem na descrição dos pronomes de 2ª pessoa pautada apenas no paradigma do pronome tu? Haveria uma razão/herança histórica permeando essas descrições? A uniformidade de tratamento seria uma realidade concreta que regulava a escrita em outras sincronias? Quantas e quais eram as formas de representação da 2ª pessoa na posição sintática de dativo? Diante desses questionamentos, traçamos os objetivos norteadores da pesquisa, a saber: (i) identificar e analisar as formas variantes dativas de 2ª pessoa bem como os fatores linguísticos e extralinguísticos que atuaram no (des)favorecimento de uma estratégia em relação às demais no período de um século (entre as décadas de 1880 e 1980); (ii) observar a manutenção/ruptura da chamada uniformidade de tratamento na escrita dos missivistas, a fim de discutir a validade desse conceito; (iii) discutir a influência exercida pelas variáveis sóciohistóricas sobre as amostras de dados linguísticos, a fim de destacar a validade e a representatividade dessas para o estudo diacrônico. Para tanto, analisamos cartas particulares escritas por cariocas e fluminenses no período mencionado. Como referenciais teóricos e metodológicos, adotamos a sociolinguística variacionista laboviana e a sociolinguística histórica (cf. WEINRECH, LABOV, HERZOG, 1968; LABOV, 1994; CONDE SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012) Formulamos, com base em estudos anteriores, algumas hipóteses a serem verificadas nos dados do corpus analisado. Em primeiro lugar, supomos que o clítico dativo te seja a forma pronominal mais recorrente na escrita carioca/fluminense, independentemente da forma empregada na posição de sujeito, você ou tu. O dativo nulo – isto é, o objeto não realizado formalmente –, embora não costume ser apontado como uma variante possível, registra uma frequência considerável de uso, passando a ser mais utilizado após a inserção do você (cf. LOPES e CAVALCANTE, 2011). As formas preposicionadas sempre apresentaram baixa recorrência na representação do dativo de 2ª pessoa do singular; com o uso mais frequente de 2 Lopes e Cavalcante (2011, p.37) postulam que, no PB, atualmente, coexistem pelo menos três subsistemas de tratamento na posição de sujeito – (i) você, (ii) tu e (iii) você/tu. Embora predomine, em algumas localidades, o uso do você e, em outras, o uso do tu, identifica-se, segundo as autoras, a variação entre as duas formas na maior parte do território brasileiro. Retomaremos essa questão no capítulo 3 desta dissertação. 22 você no português brasileiro, contudo, os sintagmas a você e para você foram substituindo gradativamente os sintagmas a ti e para ti na variedade carioca. Ainda nessa variedade, o uso do clítico lhe confere caráter de formalidade, marcando, pois, baixo grau de intimidade (cf. GOMES, 2003). Outras hipóteses, de um viés extralinguístico, também fazem parte da presente dissertação. O gênero “carta particular” apresenta subdivisões condicionadas pelo grau de intimidade e pela finalidade/tema da mensagem; tais subgêneros interferem diretamente no uso de determinadas formas de dativo. A uniformidade de tratamento não constitui uma realidade na escrita epistolar, consistindo em uma artificialidade da gramática normativa. O núcleo social dos missivistas assim como o grau de domínio destes sobre os modelos de escrita de sua época são fatores que (des)favorecem o uso de certas variantes em relação às demais. Para responder aos questionamentos anteriores, cumprir os objetivos norteadores e verificar a validade das hipóteses apresentadas, estruturamos a presente dissertação em seis capítulos. Além desta introdução (capítulo 1), apresentamos no capítulo 2 a primeira parte da revisão bibliográfica sobre o tema; tratamos especificamente do conceito de dativo discutindo seu emprego na língua latina. Abordamos, também, a difícil missão que tem sido definir e diferenciar dativo de oblíquo, devido a várias semelhanças formais e semânticas existentes entre as duas funções. Ainda no capítulo 2, reunimos uma caracterização geral do complemento, finalizando com a tipologia para o dativo português, proposta por Berlinck (1996). O capítulo 3 traz a segunda parte da revisão bibliográfica, focalizando o quadro dos pronomes pessoais no PB, especialmente a 2ª pessoa do singular. Confrontaremos o sistema de pronomes pessoais presentes nas gramáticas normativas e nos manuais didáticos de língua portuguesa, carregados de conservadorismo linguístico, com os estudos linguísticos sobre o tema, destacando, dentre outras coisas, a problemática da uniformidade de tratamento. Apresentaremos, ainda, os resultados de trabalhos sincrônicos e diacrônicos que examinam a variação entre você e tu nas posições de complemento verbal. Os pressupostos teóricos e metodológicos adotados nesta pesquisa são expostos no capítulo 4. Neste, referenciamos alguns autores e estudos importantes para a Sociolinguística, como o clássico trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (1968), Empirical Foundations for a Theory of Language Change. Além dos postulados variacionistas, dedicamos a maior parte dos pressupostos à sociolinguística histórica (ROMAINE, 1982; CONDE SILVESTRE, 2007; HERNÀNDEX-CAMPOY & CONDE SILVESTRE, 2012), área ainda timidamente 23 desenvolvida nos estudos linguísticos brasileiros. Discutimos, dentre outras coisas, o problema de elaboração do corpus na pesquisa sócio-histórica, assim como os princípios e conceitos teóricos que podem solucioná-los. Em seguida, relacionamos esses problemas e conceitos ao corpus adotado. As decisões metodológicas tomadas no desenvolvimento da análise fecham o capítulo. No capítulo 5, descrevemos os grupos de fatores elaborados para a análise das variantes de dativo, bem como os resultados obtidos após as rodadas no programa estatístico GOLDVARB-X. Iniciamos com os resultados globais, mostrando o comportamento e a distribuição das variantes segundo os fatores linguísticos e extralinguísticos controlados. Ainda dentro de uma análise quantitativa, apresentamos os pesos relativos das variantes, a fim de refinar os resultados obtidos na rodada geral. Encerramos o capítulo retomando a discussão a respeito da correlação entre as formas utilizadas nas posições de sujeito e dativo e relacionando-a aos resultados obtidos na pesquisa. As considerações finais estão reunidas no capítulo 6. Retomando o assunto estudado, recuperamos as hipóteses e os objetivos do trabalho a fim de confrontá-los com os resultados significativos da análise. 24 2. OS DATIVOS: REVISANDO A LITERATURA LINGUÍSTICA Neste primeiro momento da revisão bibliográfica, exploraremos o conceito de dativo, visto que as características inerentes a essa categoria sintática interferem na realização dos pronomes-complemento de segunda pessoa do singular, objeto central desta dissertação. Apresentamos, a seguir, uma breve discussão acerca do caso dativo na língua latina e da difícil tarefa de definir essa categoria, além de mostrar as diferenças entre dativo e oblíquo (outra categoria igualmente complexa de ser formalizada). Na sequência, propomos uma caracterização geral da função dativa e, por fim, concluímos com uma tipologia para o dativo português. 2.1. O Caso Dativo no Latim Em latim, a função sintática dos substantivos, adjetivos e pronomes dentro da sentença era indicada por uma desinência específica, chamada de marca de caso. O caso é, segundo Faria (1958, p. 59), a “forma tomada por uma palavra declinável para indicar precisamente qual a função que desempenha na frase”. Havia na língua latina seis casos, dentre os quais figurava o caso dativo. Faria (1958, p. 62) aponta que o dativo “é principalmente o caso da atribuição, indicando a pessoa ou coisa a quem um objeto é destinado e, daí, no interesse de quem se faz alguma coisa”. Ainda de acordo com o autor, o emprego mais corriqueiro e geral do dativo era indicar a função do objeto ou complemento indireto da oração. A multiplicidade semântica do dativo existente em português e nas outras línguas românicas já estava presente no latim. Faria (1958) lista em sua gramática nove tipos: dativo de objeto indireto, dativo de contato ou aproximação, dativo de interesse, dativo de posse, dativo de referência, dativo ético, dativo de agente ou de obrigação, dativo de destinação e dativo de direção (exemplificados3, respectivamente, abaixo). O autor observa que todos esses tipos relacionam-se com a significação básica e geral do caso dativo de atribuição ou interesse. Para ele, “esta ideia fundamental de atribuição explica o emprego do dativo como complemento não só de verbos, como também de substantivos e adjetivos (...).” (FARIA, 1958, p. 348-349). 3 Os exemplos (1-9) foram extraídos de Faria (1958). A marcação em itálico pertence ao original; os termos dativos sublinhados são nossos. 25 (03) Hirtio cenam dedi (Cíc., Fam., 9,20,2) “dei uma ceia a Hírtio” (04) dextrae iungěre dextram (Verg., En., 1,408) “unir a minha destra à tua destra” (05) non tibi sed patrĭae natus (Cíc., Mur., 83) “nascido não para ti, mas para a pátria” (06) nullum esse nobis seruom (Plaut., Amph., 385) “não temos escravo algum” (07) non tibi ego exēmpli satis sum? (Ter., Heaut., 920) “não sou para ti um exemplo bastante?” (08) nunc amīci anne inimīci sis imāgo mihi sciam (Plaut., Cas., 515) “agora saberei se me és a imagem do amigo ou do inimigo” (09) tibi cauēndum censeo (Plaut., Cas., 411) “penso que te deves acautelar” (10) dies conloquio dictus est (Cés., B. Gal., 1,42,3) “foi marcado o dia para a entrevista” (11) it clamor caelo (Verg., En., 5,451) “vai um clamor ao céu” Van Hoecke (1996, p.6), também assinala que os gramáticos latinos consideravam, de fato, o dativo como um dativus casus – expressão advinda do grego, dotikê ptôsis – ou casus dandi (do verbo dare, “dar”), ou seja, como o caso da atribuição: “ele indica a pessoa a quem alguma coisa é dada (dare), dita, enviada, trazida etc.” (VAN HOECKE, 1996, p. 6). Contudo, o autor discorda da interpretação do dativo como um caso de atribuição: (...) em latim o dativo não é realmente um ‘dativo’, um casus dandi, que indica atribuição. (...) O nome dativus provavelmente pode ser explicado pelo caráter prototípico da construção dare aliquid alicui (‘dar algo a alguém’), mas isso dificilmente representa o valor fundamental do caso. (VAN HOECKE, 1996, p.18) O estudioso ressalta também a existência de um número de construções com o dativo bastante variadas na língua latina e reconhece que tais construções “assumem valores aparentemente muito distintos” (VAN HOECKE, 1996, p. 5). Embora liste nove tipos de dativo, Van Hoecke (1996) afirma que, em latim, o dativo constitui um caso bastante homogêneo. Ele utiliza a noção de “polo de orientação” como um denominador comum que permite tratar dos diferentes usos do caso dativo: (...) [o dativo] indica o polo para o qual a ação ou o processo referido pelo predicado se orienta. Adotando outra perspectiva, podemos dizer também que o dativo serve como o limite do predicado no sentido que indica o último termo para o qual tende a ação ou processo referido. Este valor básico pode, contudo, adquirir nuances específicas segundo o contexto no qual o dativo aparece. (VAN HOECKE, 1996, p.31) 26 Não objetivamos discutir e analisar detalhadamente os diferentes tipos de dativo no latim, como muito bem o faz ambos os autores citados. Interessa-nos tão somente deixar registrada a multiplicidade semântica do dativo, verificada na língua latina, e a consequente multiplicidade de construções e contextos nos quais se pode identificar a presença do mesmo. Concordamos com Van Hoecke (1996), contudo, no que se refere ao significado básico que atravessa todos os tipos da categoria em questão: o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da sentença. Ainda que essa conceituação seja demasiadamente genérica, ela nos parece suficiente para o estudo que pretendemos desenvolver nos próximos capítulos. Antes de encerrar as considerações sobre o caso dativo no latim, é preciso comentar um último aspecto. A língua latina valia-se de marcas morfológicas para expressar os diferentes casos, dentre eles o dativo. Esse sistema de marcação morfossintática proporcionava, entre outras coisas, uma sintaxe relativamente livre da sentença e a ligação direta dos substantivos a verbos ou a outros substantivos. Essas possibilidades, entretanto, inexistem nas línguas românicas. Tarallo (1994, p. 118) afirma que, na passagem do latim ao português, houve um processo de mudança encaixada: processos fonológicos que caracterizavam o latim vulgar (língua falada), tais como a perda da quantidade das vogais e obscurecimento das consoantes finais, acarretaram perdas no sistema morfológico. Uma dessas perdas foi, justamente, a marca desinencial de caso. Tais perdas no nível morfológico foram compensadas dentro do sistema linguístico com ganhos sintáticos. Ainda de acordo com Tarallo (1994, p. 134), “O uso das preposições no latim clássico era, pois, restringido a dois casos: o acusativo e o ablativo”. O autor comenta que, em português, o único caso que sobreviveu foi o acusativo. Portanto, de acordo com sua análise, “(...) as preposições a ele começaram a se juntar a fim de estabelecer as mais variadas relações.” (idem). Dito de outra maneira, um dos mecanismos sintáticos que passou a ser utilizado para substituir a antiga marcação casual foi o emprego mais amplo das preposições; estas sofreram, nas línguas românicas, um notável enriquecimento funcional, haja vista que a elas cabe a tarefa de relacionar os substantivos a outros substantivos e alguns verbos aos seus complementos. Nesse contexto, podemos destacar como uma inovação das línguas neolatinas a possibilidade de representar o dativo – nominal ou pronominal – por meio de uma estrutura de Sintagma Preposicionado (SP). Na língua portuguesa, coube à preposição a o papel de marcar morfologicamente o elemento da sentença que apresenta o caso dativo. Tal preposição indicava, em latim, direção no sentido de adjunção. Segundo Tarallo (1994, p. 136), “(...) 27 houve ampliação de a para indicar interioridade no lugar de in no latim clássico que regia acusativo, indicando movimento até, e entrada em algum espaço (...)” [grifos do original]. Sendo assim, ao compararmos o dativo no latim e no português, é pertinente afirmar que, neste último, a marca desinencial foi substituída pela preposição a4, como podemos notar no exemplo (12) que retoma (03): (12) Hirti-o cenam dedi (Cíc., Fam., 9,20,2) “dei uma ceia a Hírtio” À título de fechamento da presente seção, podemos fazer duas observações com base no que foi apresentado. Em primeiro lugar, vestígios de marcas casuais foram preservados nos pronomes pessoais, ainda que de maneira débil. Isso pode ser ilustrado na distinção entre as formas de sujeito (tu), de complemento acusativo de 2a pessoa (te) e de complemento dativo e/ou ablativo (ti). As distinções não apresentam a mesma força da língua latina, porém, se comparadas aos substantivos, nos quais não existe qualquer resquício das marcas de caso latinas, a diferença é nítida (a distinção entre um SN sujeito e um SN complemento acusativo, por exemplo, é feita apenas pela posição sintática em relação ao verbo). A estrutura formal dos pronomes pessoais latinos, contudo, já se modificou e continua se modificando dentro das línguas românicas. No âmbito do dativo, a combinação entre uma preposição e uma forma pronominal para expressar o referido caso é legítima: “Pedro enviou uma carta a ti”. Tal estrutura inexistia no latim. Concluímos que o sistema pronominal em vigor nas línguas românicas (ao menos no português brasileiro) é uma conjugação entre aspectos conservadores, que preservam resquícios da estrutura do latim, e aspectos inovadores, que emergiram e continuam a emergir nas diferentes línguas-romance. 2.2. Dativos versus Oblíquos Conforme demonstrado na seção anterior, a perda da marcação morfológica de caso que havia no latim generalizou o uso das preposições. Como resultado, passa a haver em português um número bem maior de constituintes nominais encabeçados por preposição do que havia em latim. Isso faz com que, formalmente, o complemento dativo se apresente da mesma maneira que outros elementos constituintes da sentença. Esses constituintes, no 4 Estudos recentes como o de Gomes (2003) atestam que, no português brasileiro, a marcação do dativo é variável entre as preposições a e para, com clara evidência de que a última está substituindo o uso da primeira. Trataremos dessa questão em seção oportuna. 28 entanto, exibem uma ampla gama de valores semânticos que se afastam em boa medida dos valores semânticos verificados para o dativo. Diante dessa similaridade estrutural, diversos autores apresentam critérios que buscam distinguir os sintagmas preposicionados dativos dos sintagmas preposicionados ditos oblíquos. A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), documento publicado pelo Ministério da Educação em 1959 que propôs a uniformização e simplificação da terminologia adotada nas gramáticas brasileiras, não aponta nenhuma diferença entre os complementos verbais preposicionados. Seguindo essa orientação, todas as gramáticas ditas tradicionais publicadas no país, desde então, apresentam como complementos verbais o objeto direto (doravante OD) e o objeto indireto (doravante OI). No primeiro caso (OD), o complemento não é preposicionado, ligando-se diretamente ao verbo e, no segundo (OI), os complementos se ligam ao verbo por intermédio de uma preposição5. De acordo com essa classificação, nas sentenças em (13) e (14) os constituintes sublinhados são igualmente rotulados como OI: (13) O João deu um presente para a Maria. (14) O João sonhou com a Maria. Rocha Lima (1985), contudo, é uma exceção à regra. Em sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa, é o único gramático tradicional pós-NGB a separar os complementos verbais preposicionados com classificações distintas. Segundo o autor, o OI “é o complemento que representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p. 219). Percebemos que essa definição se aproxima-se claramente àquela oferecida por Faria (1958) para o dativo latino. Rocha Lima (1985, p.219) apresenta três características que identificam o objeto indireto: Apontem-se-lhe os seguintes caracteres típicos: a) o ser encabeçado pela preposição a (às vezes, para); b) o corresponder, na 3ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe, lhes; c) o não admitir – salvo raríssimas exceções – passagem para a voz passiva Aos demais complementos verbais preposicionados, Rocha Lima (1985, p. 221-222) nomeia complementos relativos (doravante CR). De acordo com a explicação fornecida pelo autor, complemento relativo é aquele que se une ao verbo por determinada preposição (tais 5 Essa diferenciação entre OD e OI é, por si só, meramente formal e pouco consistente. As mesmas gramáticas tradicionais que adotam tal classificação, também afirmam que o OD pode ser preposicionado em alguns contextos. 29 como a, com, de, em etc) e que integra a predicação de um verbo de significação relativa com o valor de um objeto direto. Como critérios de diferenciação entre CR e OI, o gramático aponta que o primeiro “não representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p. 222); em vez disso, o CR denota o ser que sofre a ação, tal como o OD. O CR também não pode ser pronominalizado por lhe(s) na 3ª pessoa, como ocorre com o OI, admitindo apenas a substituição pelas formas tônicas ele, ela, eles, elas encabeçadas por preposição. Aplicamos em (15) os critérios de diferenciação expostos por Rocha Lima (1985) aos exemplos (13) e (14). Como podemos ver, de fato, os complementos preposicionados não poderiam ser analisados como pertencentes à mesma categoria: (15) O João deu um presente para a Maria. → O João deu-lhe / lhe deu um presente. Um presente foi dado (por João) para a Maria. O João sonhou com a Maria. → *O João sonhou-lhe / lhe sonhou. O João sonhou com ela. No âmbito dos estudos linguísticos mais recentes, Duarte (2003) oferece argumentos sintáticos e semânticos que diferenciam os complementos OI dos complementos a que denomina oblíquos (OBL). De acordo com a autora, o OI é uma relação gramatical central no português: “O constituinte com esta relação gramatical é tipicamente o argumento interno de verbos de dois ou três lugares com o papel semântico de Alvo ou Fonte” (op. cit., p. 289). São destacadas como propriedades típicas do OI: a animacidade do argumento, isto é, o constituinte OI é, na maioria dos casos, [+animado]; quando o OI é um pronome pessoal, exibe a forma clítica de dativo lhe. Duarte (op. cit.) também fornece dois testes para identificação do OI: (i) Pode substituir-se o constituinte com a relação gramatical de objecto indirecto pela forma dativa do pronome pessoal [...] (ii) Pode formular-se uma interrogativa sobre o constituinte objecto indirecto segundo o esquema a quem / a que é que SU V (OD)?, consoante se trate de um argumento [+hum] ou [-hum], constituindo o objecto indirecto a resposta mínima não redundante (...). (DUARTE, 2003, p. 290) No que se refere ao oblíquo (OBL), Duarte (2003) afirma que não se trata de uma relação gramatical central. Sendo assim, “têm relações gramaticais oblíquas tanto argumentos obrigatórios (...) e opcionais (...) do predicador verbal (i.e., complementos do verbo) como 30 adjuntos (...)” (p. 294). Como teste para a identificação de complementos oblíquos, a autora aponta que (...) Os constituintes com relações gramaticais oblíquas que são complemento do verbo não podem ocorrer numa interrogativa segundo o esquema O que é que SU fez OBL? / O que é que aconteceu a SU OBL?, sendo a resposta mínima não redundante o SV constituído pelo verbo e pelos respectivos complementos (...). (DUARTE, 2003, p. 294) Aplicando o teste da pronominalização pelo clítico dativo lhe e o teste das interrogativas aos exemplos (13) e (14), temos, respectivamente, os seguintes resultados em (16) e (17): (16) a. O João deu um presente para a Maria. → O João deu-[lhe]OI / [lhe]OI deu um presente. b. O João sonhou com a Maria. → *O João sonhou-lhe / lhe sonhou. (17) a. Para quem o João deu um presente? R.: [Para a Maria]OI. b. *O que é que o João fez [com a Maria]OBL? R: Sonhou. A agramaticalidade de (16b) e (17b) comprova que o constituinte preposicionado [com a Maria] é um oblíquo e, portanto, conforme explicitam os testes de identificação, possui uma natureza diferente de um dativo como [para a Maria]. A formalização apresentada por Duarte (2003) para a diferenciação entre complementos dativos e oblíquos é a mais adotada e difundida entre os linguistas que estudam tais complementos nas variedades da língua portuguesa. Castilho (2010), no entanto, faz algumas ressalvas importantes. Primeiramente, o autor lembra que boa parte da complicação na qual se envolvem o OI e o OBL deve-se ao fato de ambos serem sempre preposicionados, e, por isso, precisarmos decidir “se tais complementos foram selecionados pelo verbo, ou se foram selecionados pela preposição ela mesma” (CASTILHO, 2010, p. 305). Os cinco critérios apresentados pelo autor acompanham a análise de Rocha Lima (1985) e Duarte (2003) discutidas acima. Ele destaca, porém, que as preposições a e para introdutoras do sintagma preposicionado dos OI são selecionadas pelos verbos. Company (2006), ao discutir teoricamente a categoria do OI no espanhol, afirma que esta é uma categoria paradoxal e, em boa medida, contraditória. Segundo a autora, “o OI mostra um status fronteiriço entre um objeto ou função direta e um oblíquo ou função indireta” (COMPANY, 2006, p. 484). Tal afirmação deve-se, essencialmente, à natureza formal e semântica instável do objeto indireto, conforme pontua a autora: 31 Formalmente parece oblíquo, mas semanticamente parece uma função direta. Sua manifestação como FP [Frase Prepositiva, isto é, sintagma preposicionado] o aproxima a um complemento circunstancial ou oblíquo, mas o fato de poder carregar vários papéis semânticos o aproxima a uma função direta ou argumental e o distancia dos circunstanciais, já que estes se sujeitam às restrições semânticas impostas pelo significado da preposição, e têm, consequentemente, em geral um único papel semântico. Também, a possibilidade de aparecer como pronome átono é uma propriedade típica dos argumentos ou das funções nucleares, embora a preposição lhe confira aspecto externo de oblíquo. (COMPANY, op. cit., idem) De acordo com o excerto anterior, notamos que a autora interpreta o OI como um elemento nuclear, argumental dentro da sentença, ainda que mencione aspectos segundo os quais os OI podem ser confundidos com os OBL. Embora os testes e critérios comentados nesta seção tenham demonstrado uma eficácia satisfatória e possam dar conta de um grande número de dados, vale frisar que eles não são decisivos e suficientes. Há uma quantidade considerável de casos em que não é tão simples e prático arrolar o complemento preposicionado aos dativos/objetos indiretos 6 ou aos oblíquos; isso porque, desde a língua latina, existem verbos cuja transitividade e/ou semântica é extremamente variável. Esses casos, sempre que surgirem, merecerão observações e comentários extras, justamente por destoarem do conjunto considerado mais prototípico. 2.3. Caracterização Geral do Dativo em Português A heterogeneidade inerente ao complemento dativo exige, quase sempre, que se faça uma delimitação dessa categoria tanto em termos formais, quanto em termos semânticos. Tendo por base os estudos já realizados sobre a caracterização do dativo stricto sensu, apresentamos a seguir um breve levantamento acerca das propriedades desse complemento. Enfatizaremos de que maneira essas propriedades se manifestam no dativo pronominal do português brasileiro, foco central deste estudo. 6 Doravante, utilizaremos livremente os rótulos “dativo” (DAT) e “objeto indireto” (OI) como sinônimos, uma vez que já esclarecemos quais tipos de OI são interpretados como “dativos”. 32 2.3.1. Clítico dativo, sintagma preposicionado e objeto nulo: as possibilidades de realização em análises linguísticas Tratemos, agora, da configuração formal, sintagmática, da representação do OI. Podemos afirmar que existem, ao menos para o português brasileiro, três maneiras gerais de o dativo se apresentar na frase: i) como pronome oblíquo átono, isto é, um clítico; ii) como sintagma preposicionado; iii) como objeto nulo, ou seja, não realizado foneticamente. Passemos às considerações referentes a cada uma dessas possibilidades. A respeito da forma clítica dos dativos, Company (2006) tece o seguinte comentário: A manifestação recorrente do OI como clítico (...) confirma uma característica tipológica básica dos DAT na maioria das línguas, que é o fato de que estes fazem referência a entidades facilmente identificáveis e recuperáveis no discurso, isto é, carregam informação conhecida, previamente apresentada no texto, compartilhada por falante e ouvinte, o que confere aos DAT persistência referencial e um elevado caráter de tópico (...). (COMPANY, 2006, p. 493) Seguindo a linha de raciocínio da autora, a categoria dativa está estreitamente vinculada à classe dos pronomes, devido a essa propriedade de recuperar entidades já mencionadas no discurso. Um argumento de base fonológica é utilizado por Company (2006, p. 493): como os dativos veiculam informação “velha”, é natural que se elejam preferencialmente unidades com baixo peso fonológico, ou seja, os clíticos. Sendo assim, a utilização da forma clítica é favorecida por ser uma estratégia com menor peso fonológico e, ao mesmo tempo, maior acessibilidade referencial. Os estudos sobre o português, entretanto, apontam para um quadro diferente. Ao menos no que se refere à terceira pessoa, diversos trabalhos têm demonstrado uma queda progressiva no emprego das formas lhe, lhes7 (cf. BERLINCK, 1996; FREIRE, 2000; GOMES, 2003, 2007; TORRES MORAIS, 2010; dentre outros). Freire (2000), analisando as variantes de dativo anafórico na língua falada culta do português brasileiro e europeu, não contabilizou um único dado de clítico na variedade brasileira, ao passo que a variedade portuguesa registrou uma frequência de 88%. Berlinck (2005, p. 127, 139), ao examinar diacronicamente as variantes de OI anafórico no português brasileiro, observou que, enquanto a estratégia clítica registrou índices entre 70 e 80% nos séculos XVIII e XIX, os dados de tal estratégia não atingiram 30% no século XX. 7 Alguns dos estudos citados mostram ainda uma alteração na relação gramatical desempenhada pelo clítico lhe: em algumas variedades, esse clítico passou a indicar a função acusativa de 2ª pessoa do singular. No próximo capítulo, comentaremos com mais detalhes essa alteração. 33 Vale relembrar, contudo, que esses estudos focalizaram principalmente a 3ª pessoa do singular. Ainda não se tem um quadro bem delineado acerca das frequências de uso dos pronomes clíticos dativos de primeira e segunda pessoa no português brasileiro. Os poucos estudos existentes sobre o tema (BRITO, 2000; DALTO, 2002; OLIVEIRA SILVA, 2011) apontam para uma manutenção dos clíticos nessas pessoas gramaticais, fato que poderia ser justificado pelo seu caráter dêitico, inerente a tais pessoas. A segunda manifestação possível do dativo a ser considerada é a de sintagma preposicionado (SP). Company (2006, p. 495) relembra que, quando o OI assume a forma de SP, é introduzido pela preposição a. Segundo ela, essa marca preposicional tem origem em uma mudança sintática compartilhada por todas as línguas romances, com exceção do romeno. Nas palavras da autora, Trata-se de uma extensão analógica do significado da preposição latina ad, mediante a qual o sentido etimológico original desta preposição, de direção para uma meta locativa (...), se estende para marcar uma entidade que é de alguma maneira alcançada pela ação do verbo, isto é, um OI, meta da transitividade. (COMPANY, op. cit., p. 495) Company (op. cit.) também destaca que as primeiras documentações de OI preposicionado correspondem a pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa. Tal construção podia ser encontrada com a preposição ad junto ao pronome dativo (ad mihi, ad tibi), ou ainda com ad junto ao pronome acusativo (ad me magna nuntiavit, “ótimo para mim, disse”; Plauto, Truc., IV.I.4). No que tange à língua portuguesa, observamos uma importante diferença na estruturação do dativo SP: de um lado, na variedade europeia, há a plena utilização da preposição a, tal qual ocorre no espanhol, por exemplo (TORRES MORAIS, 2010; COMPANY, 2006); de outro lado, na variedade brasileira, há o uso da preposição a variando com o emprego da preposição para. Esse fenômeno tem sido analisado por muitos estudiosos; boa parte deles afirma que tal variação aponta para um processo de mudança, ou seja, para a substituição de a por para. Gomes (2003), investigando dados de fala do Rio de Janeiro coletados nas amostras Censo 1980 e Censo 2000, constata a expansão no uso da preposição para: nos dados de 1980, a frequência dessa preposição estava em torno de 50% contra aproximadamente 40% de frequência da preposição a; já nos dados de 2000, os índices de para ultrapassam os 80%, ao passo que os índices de a não atingem 20%. A autora conclui que “a implementação se dá em todas as faixas etárias e também no efeito de fatores de natureza estrutural” (GOMES, 2003, 34 p. 96). É apontado como fator favorecedor à propagação da preposição para o seu caráter neutro frente à preposição a, vista como mais formal, e à variante sem a realização da preposição, estigmatizada socialmente. Gomes identifica ainda uma direcionalidade no emprego de para: (...) a direcionalidade observada no uso de para, codificando relações semânticas que vão num continuum do [+concreto] ao [+abstrato] (...) indica que o uso da preposição para se expande para contextos inicialmente preferenciais ou exclusivos ao uso da preposição a. (GOMES, 2003, p. 96) Torres Morais (2010), partindo de uma perspectiva formal, argumenta que as diferenças no uso da preposição do OI observadas entre o PE e PB são de natureza categorial. O OI dativo é uma classe estrutural distinta, identificada morfologicamente por um marcador dativo: a preposição a. Os objetos dativos são obrigatoriamente introduzidos pelo morfema a (a-DP8) e realizados, na forma pronominal, pelos clíticos lhe/lhes. A autora defende, ainda, que (...) no PE, o argumento dativo é um argumento extra, adicional, introduzido na sintaxe pelo núcleo funcional denominado aplicativo, que o licencia sintática e semanticamente. O núcleo aplicativo estabelece uma relação de posse entre dois indivíduos: o DPdat e o DP-tema. Os diferentes significados que os argumentos dativos expressam decorrem, pois, da posição estrutural em que são gerados. (TORRES MORAIS, 2010, p. 174). Dentro dessa linha de análise, o OI no PB seria uma função oblíqua no contexto dos verbos transitivos. A gramática brasileira não mais selecionaria o núcleo funcional aplicativo, responsável por licenciar argumentos dativos na sentença. As evidências dessa perda seriam: a baixa produtividade dos clíticos e o aumento no uso da preposição para, em detrimento da preposição a. Os exemplos abaixo 9 ilustram a proposta de Torres Morais (2010), diferenciando uma construção aplicativa de uma construção ditransitiva preposicionada: (18) a. O João enviou uma carta à Maria DAT / enviou-lhe uma carta. [vP O João [v’ v [VP enviou [ApplP à Maria/lhe [APPL’ Ø [DP uma carta]]]]]] b. O João enviou uma carta para a Maria OBL. [vP O João [v’ v [VP enviou [PP uma carta [P’ para [DP a Maria]]]]]] 8 9 DP, do inglês Determinant Phrase, que pode ser traduzido como sintagma determinante (SD). Exemplos extraídos do texto da autora mencionada. 35 Podemos dizer, a partir dos exemplos, que a distinção de sentido indicada por Torres Morais (2010) – a saber, OI-OBL como beneficiário e OI-DAT como recipiente intencional do OD – sobrevive apenas na variedade europeia. No PB, (18a) e (18b) seriam interpretadas da mesma maneira, pois o a que aparece nas construções brasileiras não é o morfema marcador de caso, mas sim uma preposição 10. A terceira manifestação do dativo a ser comentada é o objeto indireto nulo (Ø), também chamado em alguns trabalhos de categoria vazia (CV). Tal estratégia, diferentemente das outras já discutidas, implica a não realização fonética do OI; este é identificado a partir da grade dos verbos de dois e três argumentos que selecionam um OI (dar, enviar, servir, obedecer etc). A diferença que se observa entre as variedades do português em relação a essa estratégia diz respeito à frequência com que é utilizada: os estudos comparativos entre o PB e o PE verificam que o objeto nulo é mais produtivo na variedade brasileira, embora também ocorra na variedade lusitana. Berlinck (2005) analisou na diacronia do PB a manifestação do OI nulo segundo a pessoa gramatical: 100% 89% 80% 71% 60% 53% 40% 40% 21% 20% 10% 8% 1ª pessoa 2ª pessoa 18% 16% 13% 5% 20% 25% 3ª pessoa 16% 9% 0% 1730 1790 1840 1890 1987 Gráfico 2.1. Objeto indireto nulo segundo a pessoa gramatical (adaptado de Berlinck, 2005, p. 139) Como podemos visualizar no Gráfico 2.1, há um crescimento da frequência de uso do objeto nulo de 1ª e 3ª pessoas, principalmente após o século XIX; em contrapartida, verifica-se um uso diferenciado do OI nulo de 2ª pessoa, que registra índices altos nos corpora setecentistas, especialmente nos textos mais antigos, enquanto que, nos últimos anos, 10 Não é nosso objetivo discutir nesta dissertação o estatuto das construções de OI no PB. Apresentamos o trabalho de Gomes (2003) e Torres Morais (2010) a fim de registrar duas diferentes interpretações para o processo de mudança da preposição introdutora dos SP dativos. 36 apresenta taxas mais baixas. Segundo a autora, a explicação para essa diferença está no gênero textual analisado: A formalidade, que marca o tom da maior parte dos documentos, leva à preferência pelas formas de tratamento indicadoras de respeito e que marquem, de modo inequívoco, o status do destinatário e a postura humilde do remetente. Assim, o que se vê nos dados são casos de sintagmas preposicionados que incluem expressões como Vossa Excelência, Vossa Reverendíssima, Vossa Majestade.” (BERLINCK, 2005, p. 129) Diante dessa constatação, Berlinck (2005) conclui que “o objeto nulo, na sua neutralidade camaleônica, adota o valor de seu antecedente; nesse caso, além dos traços de pessoa e número, empresta e expressa um grau alto de formalidade” (p. 129). Confrontando esse traço de neutralidade com os clíticos, Berlinck (2005, p. 130) demonstra que “os dados parecem indicar que o clítico dativo não serve do mesmo modo a essa finalidade, podendo marcar, por sua vez, um grau intermediário de formalidade/intimidade”. É interessante perceber também que, nos resultados de diferentes estudos, o dativo nulo, a depender da pessoa gramatical, é a estratégia mais frequente ou a segunda mais frequente, concorrente direta da primeira. Assim como Berlinck, acreditamos que a ampla utilização do OI nulo está relacionada ao seu caráter neutro; em nenhuma variedade do português, a estratégia sofre estigma social. Além disso, o usuário da língua, ao empregar o dativo nulo, elimina o problema do grau de formalidade/intimidade, principalmente em relação à 2ª pessoa e sua gama de variantes (as quais analisaremos detalhadamente no capítulo 5 deste trabalho). Pontuados os aspectos formais do objeto indireto relevantes à presente dissertação, passemos, a seguir, aos aspectos de natureza semântica. 2.3.2. Traços Semânticos: animacidade e multiplicidade temática Em relação aos traços semânticos do complemento dativo, dois pontos podem ser destacados: a forte associação que existe entre essa categoria e o traço de animacidade, e a problemática em torno dos papéis temáticos que o complemento pode desempenhar. É praticamente unânime entre os estudiosos que a animacidade consiste em um dos traços semânticos básicos caracterizadores da categoria dativa. Company (2006, p. 505) relembra que “a humanidade já era um traço caracterizador do DAT na língua-mãe” e “(...) 37 também é a propriedade referencial não marcada da maioria dos DAT em muitas línguas”. A autora opta inclusive pelo rótulo “humanidade” no lugar de “animacidade”, pois, segundo ela, A referência a humanos é tão central como traço do OI que geralmente se afirma que “os complementos indiretos que se referem a coisas são extremamente excepcionais” (Niueuwenhuijsen 1998:39). Inclusive quando se identificam OI inanimados, algumas gramáticas supõem que se dá um processo metafórico de personificação (...). (COMPANY, 2006, p. 504-505, nota 18) Ao analisar os dados diacrônicos do espanhol, a autora conclui que o traço de animacidade/humanidade é o eixo construtor do espaço estrutural do OI, contrastando-o com o OD. Em oposição à animacidade do primeiro, o último ocorre de maneira mais frequente e não marcada com traço [-animado]. Company afirma ainda que tal constatação deve-se ao fato de que os dois objetos situam-se em zonas opostas da “hierarquia de animacidade” (GIVÓN, 1995, p. 46, 92): o OI localiza-se prototipicamente no lugar mais alto dessa hierarquia, ao passo que o OD encontra-se no lugar mais baixo, conforme ilustrado no esquema a seguir: HUMANO > OUTRO ANIMADO > FORÇA INANIMADA > INANIMADO ↓ ↓ OI OD Esquema 2.1. Hierarquia de animacidade (adaptado de Givón, 1995 apud Company, 2006) Além de distanciar o OI do OD, o caráter essencialmente humano daquele o aproxima, segundo Company (2006, p. 508), ao nominativo/sujeito, tendo em vista que este também é prototipicamente animado. Além disso, ambas as categorias – mais o nominativo do que o dativo – apresentam traços de topicalidade e são entidades ativas com volicionalidade e agentividade. O traço natural de [+animado/+humano] dos dativos seria responsável ainda, na visão da autora, pela estreita relação que se observa com os pronomes pessoais (em especial, os dêiticos): (...) as 1ª e 2ª pessoas ocupam de maneira natural uma posição mais alta que a 3ª, são mais importantes e se constituem mais frequentemente que esta em centro de interesse e atenção discursiva. A seleção referencial de pessoa que o OI realiza está estreitamente associada a outros traços lexicais, individuação, determinação e animacidade, constantes na configuração semântica da datividade. (COMPANY, 2006, p. 500) 38 Embora a língua portuguesa careça de estudos que confirmem os resultados obtidos por Company para o espanhol, não acreditamos que eles sejam uma particularidade deste último, mas sim um aspecto universal, inerente à categoria dativa. Como evidências empíricas da animacidade/humanidade atrelada aos OI, mencionamos: i) a definição/caracterização básica e geral apresentada para o OI; ii) os exemplos recolhidos nos manuais. Bechara (1978, p. 207), ao apresentar os “sentidos do objeto indireto”, afirma que este pode expressar: a) a pessoa ou coisa que recebe a ação verbal; b) a pessoa ou coisa em cujo proveito ou prejuízo se pratica a ação; c) a pessoa ou coisa que, vivamente interessada na ação expressa pelo verbo, procura captar simpatia ou benevolência de outrem; d) a pessoa possuidora; e) a pessoa a quem pertence uma opinião. Em síntese, nos cinco sentidos expostos pelo gramático, a possibilidade de haver uma pessoa foi assinalada; nos casos em que se pode ter pessoa ou coisa, aquela foi apontada como a primeira opção. A exemplificação11 de Bechara confirma o que é pontuado na descrição mencionada: (19) a. Escrever aos pais. b. Trabalha para o bem geral da família. c. Não me venham com essas histórias d. Tomou o pulso ao doente. e. Antônio pareceu-me tristonho. Cada um dos exemplos anteriores corresponde a um dos sentidos comentados pelo gramático. Mesmo no exemplo (19b), em que aparentemente não há animacidade – “o bem”, núcleo do constituinte, pode ser considerado uma “força inanimada” dentro da hierarquia de animacidade apresentada anteriormente –, podemos depreender um traço [+animado/+humano] implícito; em uma relação metonímica, o “trabalhar para o bem geral da família” pode ser interpretado como o próprio “trabalhar para a família”, ou ainda, “para as pessoas da família”. Como se vê, a animacidade também é uma marca semântica sensível do OI em português, confirmada ainda, por exemplo, pelo verbo “dar”, prototípico da categoria: alguém-SUJ dá algo-OD a/para alguém-OI. Duarte (2003) é de igual opinião no que diz a respeito à relação OI e animacidade. Consoante o que já referimos na seção 2.2, a autora frisa que “o constituinte com a relação gramatical de objecto indirecto é, tipicamente, um argumento [+anim]” (p.289). A mesma 11 Bechara, 1978, p. 207. 39 restringe ainda a ocorrência de OI [-animado] a dois casos específicos: i) com predicadores de dois lugares, como obedecer e sobreviver (obedecer ao regulamento, sobreviver ao massacre); ii) com os verbos dar ou fazer acompanhado de um OD cujo núcleo seja um nome deverbal, tais como nos exemplos abaixo 12: (20) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI. b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI. Sobre os exemplos, Duarte (2003) destaca também que essas construções aceitam que o constituinte OI possa ocorrer como OBL: (21) a. A Maria deu [uma pintura]OD [nas estantes]OBL. b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [na casa]OBL. Estendendo a análise da autora, podemos afirmar que esses casos de OI seriam menos prototípicos, casos que Company (2006) considera como fronteiriços com os oblíquos. Acreditamos que um dos fatores dessa aproximação aos OBL seja justamente o traço [animado] dos OI exemplificados em (20). Outra peculiaridade desses casos de OI é a possibilidade de que eles apareçam, com certa facilidade, sobre a forma de OD. Em relação aos verbos de dois lugares, não é raridade encontrarmos, por exemplo, “obedeça o regulamento”, “agradou o pai”, em que há uma leitura evidente de um complemento direto. Quanto às perífrases com os verbos dar e fazer – também conhecida na literatura linguística como construções com verbos leves ou verbos suportes (DUARTE, 2003; MACHADO VIEIRA, 2010) – é possível converter a estrutura em uma sentença do tipo SUJ – Vpleno – OD: (21) a. A Maria deu [uma pintura]OD [às estantes]OI. → A Maria pintou [as estantes] OD. b. Eles fizeram [uma enorme limpeza]OD [à casa]OI. → Eles limparam [a casa] OD. Se a associação do dativo ao traço de animacidade/humanidade é algo de comum acordo entre os estudiosos, o mesmo não acontece com relação aos papéis temáticos que tal categoria desempenha na frase. As divergências decorrem dos múltiplos contextos em que o OI pode aparecer e, consequentemente, dos diferentes sentidos que assume junto ao verbo que o seleciona. De maneira geral, os linguistas listam entre dois a cinco papéis temáticos para o 12 Exemplos retirados de Duarte (2003), p. 289. 40 dativo: receptor, alvo/meta ou fonte, possuidor, beneficiário e experienciador. Abordaremos, a seguir, o posicionamento adotado por alguns autores que já abordaram a questão em seus estudos. No âmbito da tradição gramatical, Rocha Lima (1985) – ainda que não utilize a nomenclatura técnica de papel temático – diz que o OI “representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza” (ROCHA LIMA, op. cit., p. 219). Adaptando a caracterização do gramático para a terminologia linguística, o OI pode assumir os papéis temáticos de alvo/receptor ou beneficiário. Duarte (2003, p.289), ao tratar do objeto indireto, restringe tal constituinte a dois papéis semânticos apenas: alvo ou fonte. Já Castilho (2010, p. 305) afirma que “o papel temático do objeto indireto é, em geral, /beneficiário/”, não elencando os papéis de alvo e fonte como possibilidades (o autor os menciona apenas para os oblíquos). Lucchesi & Mello (2009, p.429-430) também consideram o papel temático de beneficiário como o principal do dativo; contudo, os autores advertem: “(...) nem sempre o constituinte que se classifica como OI expressa um papel temático de BENEFICIÁRIO”. Os autores analisam o fenômeno da alternância dativa13 e observam a impossibilidade de haver alternância quando o OI expressa um papel de meta, além da possibilidade relativa de ocorrer quando o constituinte OI expressa relação de finalidade (não há especificação do papel temático para o último caso). Torres Morais & Berlinck (2007) reconhecem que o argumento dativo se realiza no português em uma ampla gama de contextos morfossintáticos e que disso decorrem as múltiplas leituras que se pode fazer desse argumento. As autoras mencionam cinco interpretações possíveis para o OI no português, a saber: recipiente, fonte, experienciador, possuidor e afetado. Além disso, citam dez tipos de verbos aos quais os argumentos dativos podem se relacionar: verbos transitivos de atividade direcional (enviar), verbos transitivos de criação (fazer), verbos transitivos de atividade não direcional (lavar), verbos transitivos estativos (admirar), verbos inacusativos psicológicos (agradar), verbos inacusativos de mudança ou movimento (chegar), verbos inacusativos existenciais (faltar), verbos causativos (abrir), verbos incoativos (abrir-se) e verbos inergativos (cair). Os exemplos a seguir são apresentados pelas autoras. Entre parênteses, o papel temático recebido do verbo pelo OI: 13 “(...) tem sido denominado de alternância dativa, línguas [que], como o inglês, dispõem de duas construções para realizar a estrutura de dativo, a construção de dativo preposicionado (CDP) (...) e a construção de objeto duplo (COD) (...)” (LUCCHESI & MELLO, 2009, p. 430). Exemplos apresentados pelos autores: a) I gave the rose to the beautiful girl. (CDP) ; b) I gave the beautiful girl the rose. (COD) 41 (23) a. O José enviou uma carta à Maria / enviou-lhe uma carta. (recipiente) b. O José roubou o relógio ao Pedro / roubou-lhe o relógio. (fonte) c. O vinho do Porto agradou aos convidados / agradou-lhes. (experienciador) d. O José admirou a paciência à Maria / admirou-lhe a paciência. (possuidor) e. O José abriu a porta aos convidados / abriu-lhes a porta. (afetado) Torres Morais & Berlinck (2007), entretanto, assinalam que as sentenças utilizadas para ilustrar as interpretações do argumento dativo “referem-se aos usos cultos do PE escrito e falado. No PB, a maioria delas está restrita à língua escrita mais formal, principalmente quando se emprega na forma clítica” (p.70, nota 10). Company (2006, p.520) atesta a existência de cinco papéis temáticos para o OI a partir do corpus diacrônico do espanhol: receptor, experienciador, possuidor, meta/fonte e beneficiário. Segundo a autora, a caracterização desses papéis tem a ver com o grau de envolvimento da entidade OI no significado do verbo e no evento em geral. Sob uma perspectiva funcionalista, Company afirma que esses cinco papéis semânticos constituem um continuum de envolvimento ou de afetação: (...) o receptor seria o OI mais envolvido, o beneficiário o menos envolvido, e dentro do continuum se estabeleceriam fronteiras internas nem sempre bem delimitáveis, já que com certa frequência pode-se atribuir mais de um papel semântico a uma mesma entidade OI em uma mesma oração por vez. (COMPANY, 2006, p.520) A autora observa também que é possível cindir esse conjunto dos papéis temáticos do OI em duas grandes classes, tendo por base o grau de envolvimento. Assim, receptor, experienciador e possuidor formam a classe dos papéis temáticos de maior envolvimento com a semântica do verbo; já os papéis de meta/fonte e beneficiário, compõem a classe de menor envolvimento. A autora ressalta, contudo, que “todos os papéis semânticos do OI compartilham e estão ligados pelo valor semântico geral de locus, ou meta final da transitividade” (COMPANY, 2006, p. 520). +integrado -integrado RECEPTOR – EXPERIENCIADOR – POSSUIDOR – META/FONTE – BENEFICIÁRIO Esquema 2.2. O continuum dos papéis temáticos do OI Dos estudiosos cotejados nessa seção, Company (2006) é a que fornece uma descrição mais completa acerca dos sentidos assumidos pelo OI, não se restringindo apenas a mencioná-los e exemplificá-los. Abaixo, apresentamos as definições dos cinco papéis 42 temáticos analisados pela autora, os verbos que selecionam cada um deles e alguns exemplos no português. (24) A. RECEPTOR Entidade que se envolve em um processo de transferência e, normalmente, recebe ou se converte no novo possuidor do OD, de maneira que o OD entra no domínio do OI. Requer consciência e certa volicionalidade da entidade OI para tal recepção. A transferência pode ser física ou metafórica. Verbos que o selecionam: dar, entregar, outorgar, comprar, vender, pagar, dizer, remover. B. EXPERIENCIADOR Entidade OI que, devido ao significado do verbo, sofre uma modificação, leve ou forte, de seu estado anímico, mental ou sensorial. Aparece normalmente em situações estativas. Selecionado pelos verbos chamados psicológicos (agradar, desagradar, satisfazer) e os de experiência existencial (acontecer, ficar, faltar, passar). C. POSSUIDOR A Entidade OI já é a possuidora do OD antes da transitividade do verbo se exercer; não existe, portanto, transferência do OD, e nesse sentido não é um receptor, embora haja estreita afinidade semântica entre ambos os papéis. A autora não lista exemplos de verbos que selecionam OI desse tipo. D. META/FONTE Entidade a que algo ou alguém chega ou toca, ou se origina se é fonte; pode haver deslocamento ou transferência de uma entidade, porém o OI não exerce volicionalidade para se constituir em receptor, pode tê-la, mas na oração somente se põe em relevo o caráter de destino desse OI. Verbos como chegar, enviar, mostrar, sair, vir selecionam OI meta. E. BENEFICIÁRIO Entidade que recebe para seu proveito o significado na oração. Denomina-se “maleficiário” se, em vez de benefício, o OI obtém dano ou resultado negativo. Entidade alheia, no limite da estrutura argumental, à margem das relações gramaticais contraídas pelos outros constituintes da oração. Papel semântico fronteiriço a constituintes de outras naturezas. Uma vasta gama lexical de verbos pode selecionar um OI beneficiário. (25) A. Os alunos entregaram os trabalhos ao professor. B. O discurso do réu não satisfez ao juiz. C. As lembranças lhe cortavam o coração. D. O rei enviou felicitações aos visitantes. E. O sol nasce para todos. 43 É destacado ainda por Company (2006) que o papel semântico de receptor não só é o prototípico do OI como também é o mais frequente em todas as línguas. Além disso, os quatro primeiros papéis temáticos estariam ligados diretamente ao significado do verbo, enquanto que o beneficiário se liga ao significado geral do evento, e não do verbo em si. Por fim, a autora conclui que os cinco papéis são semanticamente heterogêneos, podendo exibir diversos matizes e compartilhar dois ou mais papéis temáticos. São listados como fatores que ajudam a matizar o valor semântico do OI: a classe lexical do verbo que o seleciona, o tipo lexical do OD e do sujeito, e a coocorrência de complementos circunstanciais. A possibilidade de o OI exibir mais de um papel temático simultâneo também é assinalada, como se pode ver no exemplo dado pela autora: (26) Fernando comprou os bilhetes a Pedro[BENEFICIÁRIO / FONTE / POSSUIDOR] Vimos, nessa seção, que do ponto de vista semântico, o complemento dativo é prototipicamente [+animado], fator que o diferencia do complemento acusativo-OD e o aproxima ao nominativo-SUJ. Além disso, o dativo pode desempenhar diversos papéis temáticos, dada a variedade de contextos morfossintáticos em que figura. Esses papéis diferentes podem, todavia, ser vistos como nuances semânticas de um significado mais geral: locus ou meta final da transitividade, segundo Company (2006), ou ainda – retomando Van Hoecke (1996) – o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da sentença. 2.4. Tipologia dos Dativos em Português As seções anteriores já demonstraram o quanto é heterogênea a categoria dos dativos, seja em relação aos aspectos formais, seja na configuração semântica. Contudo, para que se possa empreender uma análise linguística acerca desses elementos, é mister organizá-los segundo alguns critérios. Nesta seção, expomos uma tipologia dos dativos em português que será utilizada como parâmetro para o capítulo 5, em que os dados da pesquisa serão analisados14. 14 Em razão da existência de inúmeras listas de papéis temáticos para o dativo, conforme demonstramos na seção anterior, optamos por controlar o valor semântico a partir da referida tipologia, a ser exposta nessa seção. Evidentemente que essa tipologia não resolve, em definitivo, o problema da pluralidade semântica desses constituintes; no entanto, julgamos que, para os objetivos desta pesquisa, o uso dessa tipologia seja mais precisa e adequada. 44 A tipologia que adotaremos foi proposta por Berlinck (1996), em um estudo clássico da expressão dativa em língua portuguesa. A partir da utilização de critérios de identificação – SP introduzido pelas preposições a/para (em casos raros, em e de), possibilidade de substituição por lhe e impossibilidade de ser sujeito gramatical de uma sentença passiva – a autora elabora uma tipologia para o dativo baseando-se nos contextos em que o mesmo ocorre. Tal tipologia considera dois fatores principais: o tipo de verbo ou construção verbal com o qual o complemento dativo pode coocorrer e o tipo de relação que ele mantém com o verbo ou com a sentença. Berlinck (1996) assinala ainda que essa tipologia foi proposta com base em uma outra, apresentada para o espanhol por Delbecque & Lamiroy (1996, mesmo volume). A autora justifica a adoção da mesma estrutura afirmando que “esta é mais compreensível, dada a proximidade das duas línguas. Entretanto, existem diferenças importantes entre elas. O uso de parâmetros similares para a tipologia permite uma percepção melhor desses pontos de divergência.” (BERLINCK, 1996, p. 128). Dentro da tipologia elaborada, a referida autora hierarquiza os constituintes dativos consoante o grau de previsibilidade desses pelo verbo ou pela construção verbal. Dentro da hierarquia que se estabelece, encontram-se três níveis. No nível 1 são reunidas as estruturas transitivas que envolvem verbos de transferência material (dar), de transferência verbal e perceptual (dizer), de movimento físico (levar), de movimento abstrato (submeter), de interesse (obedecer), de movimento (chegar) e de movimento psicológico (agradar). Completam o nível 1 as construções de dativo possessivo e as construções do tipo se lhe com predicado de três lugares. Nestas estruturas, o dativo faz parte do complexo verbal, sendo, portanto, um argumento selecionado pelo verbo. Ao nível 2, pertencem as estruturas de dativus commodi/incommodi e as construções se lhe com verbos intransitivos. O que diferencia este nível do anterior é justamente a previsibilidade do dativo, ou ainda o grau de vinculação à estrutura da sentença: enquanto no nível 1 os dativos são verdadeiros complementos, previstos na grade argumental do verbo, os dativos do nível 2 não são argumentos verbais, mas sim constituintes regidos por todo o predicado verbal (verbo + argumentos). No nível 3 encontra-se unicamente a construção de dativus ethicus, elemento de natureza não argumental, de uso irrestrito, podendo coocorrer com outro complemento dativo na mesma oração. Totalmente desvinculado do verbo e do predicado, esse dativo faz referência à oração como um todo, dotado de valor pragmático. Dos três níveis mencionados, destacamos os dativos pertencentes ao nível 1, que serão nosso objeto de investigação nessa pesquisa. Optamos por restringir a análise a esse 45 nível porque, como já foi dito, ele reúne os dativos que são verdadeiramente argumentos selecionados pelo verbo. Cabe agora pormenorizar os subitens que compõem o nível 1 da tipologia de Berlinck (1996). O primeiro subitem do nível 1 corresponde aos verbos de transferência material. Segundo Berlinck, esse grupo verbal expressa um conceito de transferência de algo material, concreto, representado prototipicamente pelo verbo dar. Conforme a representação genérica apresentada pela autora, ‘N0 faz com que N1 seja posse de N2 ’, em que N0 é o sujeito gramatical do verbo transitivo, N1 é o acusativo (OD) de um verbo transitivo e N2 é o dativo. São listados como verbos de transferência material: alugar, atribuir, confiar, dar, devolver, distribuir, emprestar, entregar, fornecer, legar, mandar, oferecer, pagar, passar, restituir e transferir. Berlinck (1996) destaca ainda que, dentro da semântica de transferência material, é possível haver o processo reverso ao descrito acima, isto é, N1, em vez de entrar no domínio de possessão de N2, é retirado do mesmo. É o que ocorre com verbos como arrebatar, arrancar, comprar, confiscar, cortar, emprestar, evitar, pedir, furtar, roubar, subtrair, suprimir, tirar, tomar. Devido a isso, o dativo não é interpretado como recebedor, mas como fonte da transferência expressa pelo predicador verbal. Sobre esses dativos, Berlinck comenta que Curiosamente, a maioria destes verbos ocorre com um complemento dativo introduzido pela preposição de. Nestes casos, o a-dativo é possível (embora não seja preferido), mas um complemento introduzido por para é impossível. Esta impossibilidade reside no fato de que, tendo um valor beneficiário (em uma visão ampla de ‘beneficiário’), o complemento dativo também é interpretado como ‘fonte’. ‘Fonte’ é tipicamente marcada pela preposição de em português, enquanto para implica uma leitura de ‘alvo’. (BERLINCK, 1996, p. 130). Sendo assim, a autora sumariza as propriedades distribucionais de construção do grupo de transferência material da seguinte maneira: [+/- animado]N0 + V + [(+)/animado]N1 + {a, para, de}[+/- animado]N2. Em geral, N1-OD não é expresso por uma oração subordinada completiva; N2 é cliticizável por lhe e, em algumas circunstâncias, pode ser correferencial com N0. Em (27), exemplificamos as estruturas de transferência material: (27) a. Não entregaram as mercadorias [ao comprador]DAT. b. Felipe pediu um chocolate [para o avô] DAT. c. Pedro tirou os livros [das mãos de Joana] DAT. 46 O segundo grupo do nível 1 reúne os verbos de transferência verbal e perceptual, cujo verbo prototípico é o dizer. Diferentemente do grupo anterior, não ocorre a transferência de uma entidade concreta, mas sim de algo abstrato; como efeito de um ato comunicativo, N0 faz N2 possuir determinado conhecimento, ideia ou percepção (N1). Nesse caso, o dativo será sempre [+animado], visto que somente uma entidade animada se envolve em um processo de transferência de conhecimento. Berlinck menciona como exemplos de verbos de transferência verbal e perceptual: aconselhar, anunciar, assegurar, augurar, confessar, contar, dizer, ensinar, escrever, falar, jurar, narrar, notificar, ordenar, perguntar, prometer, protestar, provar, repetir, responder, sugerir e telefonar. Como representação das propriedades distribucionais da construção, temos: [+/animado]N0 + V + [-animado]N1 + {a, para}[+animado]N2. O objeto direto (N1) é expresso frequentemente como uma oração subordinada completiva; N2 pode ser pronominalizado por lhe e ser correferencial com N0. Exemplos de estruturas com verbos de transferência verbal e perceptual: (28) a. Pedro disse [para seus colegas] DAT que o diretor estava doente. b. Ela [me] DAT ensinou a técnica de leitura. Berlinck (1996) destaca ainda as construções que veiculam a noção de movimento, uma extensão semântica da ideia de transferência. A autora separa essas estruturas em dois grupos. O primeiro deles corresponde aos verbos de movimento físico, nos quais há um deslocamento físico prototipicamente dirigido para um alvo, uma meta. Quando o OI é expresso por uma entidade [-animada], o alvo tem significado de locativo; quando, no entanto, esse OI é [+animado], depreende-se uma leitura de beneficiário além da interpretação de locativo. Construções com os verbos acrescentar, atirar, conduzir, dirigir, encaminhar, instilar, lançar, levar, pôr e trazer são consideradas de movimento físico. Em termos sintáticos e semânticos, Berlinck descreve a estrutura dessas sentenças como: [+/- animado]N0 + V + [+/- animado]N1 + {a, para, em, de}[+/- animado]N2; N1 não pode ser expresso por uma oração completiva (que) nem por uma oração infinitiva; N2 e N0 podem ser correferenciais; os casos de N2 [-animado] não são facilmente cliticizáveis. Além das estruturas com verbos de movimento físico, Berlinck apresenta também os verbos de movimento abstrato, nos quais está implícito algum tipo de deslocamento. Não há, porém, uma transferência em sentido lato, mas sim uma aproximação abstrata entre uma entidade e um estado, um sentimento, uma ideia, ou outra entidade. Como resultado, verifica- 47 se uma associação que, por vezes, implica o estabelecimento de uma hierarquia ou estado de subordinação. Figuram nesse grupo os verbos acrescentar, adaptar, anexar, atribuir, conferir, consagrar, dedicar, destinar, filiar, imputar, incorporar, juntar, pôr, sensibilizar, submeter, subordinar e trazer. A sentença de movimento abstrato exibe as seguintes características: [+/animado]N0 + V + [+/- animado]N1 + {a, para, em} + [+/- animado]N2; N1 pode ser correferencial com N0; N2 pode ser expresso por uma oração completiva ou por uma oração infinitiva, além de ser cliticizável. Exemplificamos em (29) e (30) frases cujos verbos expressam movimento físico e movimento abstrato, respectivamente: (29) Ele [te] DAT trouxe um vestido novo para o casamento. (30) Os trabalhos [lhe] DAT foram submetidos ontem. Os verbos de interesse assim como os verbos de movimento e movimento psicológico estruturam, de acordo com Berlinck (1996), construções intransitivas, que descrevem o estado de associação entre os argumentos do verbo – sujeito e dativo. Não há agente ou causa envolvidos nesses contextos. Com relação aos verbos de interesse, a referida autora destaca dois aspectos. O primeiro deles diz respeito ao envolvimento do referente de N1 no processo descrito: com alguns verbos, N1 é ativa e voluntariamente envolvido na associação (ou na negação dessa associação); já com outros verbos, não há envolvimento voluntário da entidade de N1, contudo ele participa de uma associação e/ou correspondência estática com N2. São exemplos do primeiro caso os verbos acudir, aderir, assistir, faltar, obedecer, renunciar, resistir e servir. No segundo caso, temos os verbos concernir, corresponder, equivaler, pertencer e sobrar. Em (30), apresentamos exemplos dos verbos do primeiro subgrupo; em (31), exemplos de construções com verbos do segundo subgrupo: (32) a. Aos dezoito anos, todos os jovens começam a servir [ao Exército] DAT. b. João sempre obedeceu [às regras do trânsito] DAT. (33) a. O edifício pertence [a um milionário do petróleo] DAT. b. O preço deste anel equivale [a dois anos do meu salário] DAT. O segundo aspecto assinalado por Berlinck (1996) acerca das construções intransitivas de interesse com complemento dativo é quanto à referencialidade de N 2. Nos dois subgrupos mencionados, N2 sempre tem uma interpretação referencial, mesmo se esta 48 não é claramente expressa na sentença. Em outras palavras, a ausência de N 2 explícito dá margem a uma interpretação arbitrária, podendo referir-se tanto à primeira, segunda ou terceira pessoa quanto a um “alguém genérico” ou a “todos”. Os exemplos (33) e (34) comprovam essa constatação. As características deste grupo são: [+/- animado]N1 + V + {a, para} + [+ animado]N2. Os exemplos de N1 [-animado] são, aparentemente, marginais; N2 sempre é cliticizável quando for [+animado]. (33) a. Quem é que se importa com o que [lhe]DAT aconteceu? b. Quem é que se importa com o que aconteceu? (34) a. O ‘Estado de São Paulo’ de domingo [me]DAT é muito útil. b. O ‘Estado de São Paulo’ de domingo é muito útil. Completam o quadro de construções com dativo pertencentes ao nível 1 da tipologia formulada por Berlinck (1996) os verbos intransitivos de movimento e movimento psicológico. Os verbos de movimento geralmente subcategorizam um complemento locativo ou direcional. Quando esse complemento é de caráter [+animado], adquire, além da interpretação locativa, um sentido de [+afetado]. Seu referente envolve-se, de certa maneira, no processo descrito, ainda que esse envolvimento seja involuntário. Pertencem a este grupo os verbos chegar, escapar, entrar, fugir, ir e vir. Esse tipo de construção apresenta as seguintes propriedades sintático-semânticas: [+/- animado]N1 + V + a + [+animado]N2. N2 é sempre cliticizável e preferencialmente expresso por um pronome clítico. Na categoria das construções de movimento psicológico encontram-se alguns dos chamados verbos psicológicos, tais como agradar, importar, interessar, repugnar e satisfazer. Esses verbos selecionam um N2 [+animado] que representa o “portador” do processo psicológico expresso pelo verbo. N1 representa a causa ou origem do processo. O grupo apresenta como características: [+/- animado] N1 + V 3ª p. + a + [+animado]N2; N1 pode ser expresso por uma oração completiva (que) ou por uma oração infinitiva; N2 é sempre cliticizável. Em (35) e (36) expomos, respectivamente, exemplos de construções intransitivas de movimento e movimento psicológico: (35) Alguns erros de ortografia [me]DAT escaparam. (36) [A eles]DAT não importa como você utiliza o seu tempo de trabalho. 49 Do nível 1 pertencente à tipologia para o dativo português de Berlinck, descartamos os dativos possessivos e as construções se lhe. O descarte é justificado pelo fato de esses dois grupos exibirem sempre a mesma configuração formal, isto é, se apresentam sempre sob a forma de um clítico. Tendo em vista o foco principal desta dissertação, em que pretendemos analisar a variação entre as formas de dativo de 2ª pessoa do singular, não caberia incluir junto às demais categorias, essas duas últimas, que não variam formalmente. O Quadro 2.1 reúne as sete categorias comentadas anteriormente: Categoria transferência material transferência verbal e perceptual movimento físico ‘movimento’ abstrato Interesse Movimento ‘movimento’ psicológico verbo prototípico Dar Dizer estrutura sintática geral N + V + N + {a, para, em} N Levar Submeter Obedecer Chegar Agradar N + V + {a, para} N Quadro 2.1. Categorias distintivas (extraído de Berlinck, 2005, p. 131) É possível perceber que as categorias da tipologia de Berlinck (1996) ilustram com clareza a definição de dativo sugerida por Van Hoecke (1996), segundo a qual esse argumento seria o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da sentença. Conforme comentamos brevemente nos parágrafos precedentes, o complemento dativo é, de maneira genérica, o ponto onde se encerram ou para onde se dirigem as transferências (materiais, verbais, perceptuais) e movimentos (físicos, abstratos, psicológicos) construídos pela semântica do núcleo verbal. Mesmo no caso das construções de interesses, nas quais o sentido de polo de orientação não é tão nítido, podemos notar que o processo de envolvimento aponta sempre para o argumento dativo. O esquema 2.3 a seguir é proposto a partir das categorias dativas da tipologia apresentada por Berlinck (1996). Seu objetivo é demonstrar representacionalmente a gradação semântica presente na classe dos argumentos dativos: 50 Esquema 2.3. Gradação semântica das categorias distintivas do dativo Na elipse nuclear das estruturas transitivas, estariam as construções de transferência material, mencionadas por diversos autores como a estrutura básica e prototípica de ocorrência do dativo; em um nível imediatamente seguinte, as construções de transferência verbal e perceptual, também bastante frequentes; em seguida, em “camadas” mais afastadas do “núcleo”, as construções de movimento físico e abstrato, que fecham as estruturas transitivas. As construções intransitivas de interesse, movimento e movimento psicológico estariam consideravelmente afastadas do núcleo da categoria dativa, fazendo fronteira com outras categorias sintáticas. Embora seja uma representação bem simplificada da complexidade semântica dos dativos, o esquema proposto será utilizado para verificarmos se essa gradação influencia na variação dos dativos de 2ª pessoa do singular. Dito de outro modo, verificaremos se o fato de o dativo analisado pertencer a uma estrutura de transferência material ou de movimento abstrato, por exemplo, (des)favorece a ocorrência de uma variante em relação às demais. 2.5. Síntese do capítulo Sumarizando as questões centrais discutidas no presente capítulo sobre a categoria dos dativos, podemos destacar: o significado básico de polo de orientação para o qual tendem as 51 ações/processos expressos pela predicação da sentença que permeia os múltiplos sentidos, construções e contextos nos quais podemos identificar esse complemento; a difícil distinção formal entre OI e OBL, atestada pelas diferentes propostas discutidas, o que justifica uma preocupação semântica e contextual na abordagem desses complementos; as marcas características da representação do dativo no português brasileiro sob a forma de clítico, sintagma preposicionado e objeto nulo, atestadas pelos estudos elencados; a animacidade como um importante traço semântico dessa categoria; a diversidade de papéis temáticos que o dativo pode assumir, que corroboram sua complexidade semântica; a possibilidade de hierarquização dos complementos dativos através de uma tipologia pautada no verbo predicador, como ilustra a proposta de Berlinck (1996), adotada nesta dissertação. 52 3. OS PRONOMES DE 2ª PESSOA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO O presente capítulo, que dá continuidade à revisão bibliográfica, abordará o quadro dos pronomes pessoais no PB, com foco central na representação da 2ª pessoa do singular. Na primeira parte, apresentamos o quadro pronominal encontrado nos compêndios de gramática tradicional, marcado pelo conservadorismo linguístico e pela defesa da uniformidade de tratamento. Assinalamos, também, como os pronomes pessoais e a questão da uniformidade de tratamento tem sido tratada nos manuais didáticos de língua portuguesa. No segundo momento, revisitamos alguns estudos linguísticos sobre o sistema de pronomes, principalmente aqueles que descrevem a variação entre as formas tu e você na variedade brasileira. Tais estudos evidenciam a artificialidade de se apregoar a correlação entre formas de tratamento no PB, ao mostrarem que a mescla entre as estratégias dos paradigmas pronominais de 2P e 3P é fato de longa data. Encerramos o capítulo apresentando resultados de pesquisas sincrônicas e diacrônicas que investigaram a variação da 2ª pessoa do singular nas posições de complemento verbal. 3.1. A prescrição das gramáticas normativas: conservadorismo e preservação da uniformidade de tratamento A maioria dos gramáticos tradicionais, com raríssimas exceções, tende a apresentar o seguinte quadro, ao tratar dos pronomes pessoais: Pronomes pessoais retos Singular Plural Pronomes pessoais oblíquos não reflexivos átonos Tônicos me mim, comigo 1ª pessoa eu 2ª pessoa tu te ti, contigo 3ª pessoa ele, ela o, a, lhe ele, ela 1ª pessoa nós nos nós, conosco 2ª pessoa vós vos vós, convosco 3ª pessoa eles, elas os, as, lhes eles, elas Quadro 3.1. Pronomes pessoais do português segundo a perspectiva tradicional (adaptado de Cunha & Cintra, 1985, p. 270) 53 Destacamos do Quadro 3.1 dois aspectos importantes: primeiramente, ele apresenta como única possibilidade para a representação da 2ª pessoa do singular no caso reto (função de sujeito) o pronome tu; para as funções oblíquas, são aceitas apenas as formas relacionadas ao paradigma de tu, o que nos leva a pensar que não haveria variação na referência a essa pessoa do discurso. Essa forma de apresentação do sistema de pronomes pessoais pelas gramáticas é notadamente marcada por uma rígida simetria, pressupondo haver sempre uma correlação entre as formas de determinado pronome, independentemente da função sintática que ele venha a exercer. Ao revisarmos, entretanto, a descrição apresentada por cinco gramáticas da língua portuguesa diferentes, verificamos que não um há consenso entre os próprios gramáticos quanto ao elenco de formas que compõem o quadro de pronomes pessoais, especialmente no que tange à 2ª pessoa do singular. Observamos uma oscilação por parte dos autores em considerar o você como pronome pessoal. Almeida (1980) segue a orientação tradicional, apresentando como formas de 2ª pessoa do singular – em posição de sujeito e de complementos verbais – os pronomes tu, te, ti e “tigo”. O gramático arrola a forma você aos pronomes de tratamento, classe na qual inclui, além das formas já tradicionais (Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Sua Majestade), outras pouco frequentes, como fulano, beltrano, sicrano e mesmo a forma a gente. No manual deste autor, encontramos ainda uma definição utilizada como justificativa para a separação entre tu e você no quadro de pronomes, tradicionalmente denominada de uniformidade de tratamento. Segundo Almeida (1980, p.174-175), É de regra, num discurso, em cartas ou em escritos de qualquer natureza, a uniformidade de tratamento, isto é, do pronome escolhido para a pessoa a que nos dirigimos. Se tratamos o interlocutor por vós, os pronomes oblíquos devem ser os que correspondem a essa pessoa, e o mesmo se deve dizer dos pronomes possessivos. Se o tratarmos por tu, usaremos os oblíquos te, ti, contigo e os possessivos teu, tua, teus, tuas (jamais seu, sua). Se o tratarmos por vossa senhoria, senhor, você, diremos o, lhe, seu, sua etc. Como podemos notar, o autor traça um paralelo de uniformidade de uso dos pronomes a partir do vós, do tu e das formas de tratamento. O autor não menciona em nenhum momento a possibilidade de combinação entre o você com formas do paradigma de tu, como o clítico te ou o pronome possessivo teu. Um fato interessante é que Almeida (1980) destaca, dentre diferentes gêneros textuais, a carta, gênero que consiste no corpus de análise desta dissertação. 54 Silveira Bueno (1968) também considera apenas o pronome tu e seu respectivo paradigma representante da 2ª pessoa do singular. O autor coloca o você no rol dos pronomes de tratamento, definindo da seguinte maneira essa subclasse: “Na língua portuguesa e, mormente, no Brasil, a segunda pessoa é sempre substituída pela terceira que se vê, assim, empregada duplamente. Quando a terceira se encontra em lugar da segunda, é sempre uma expressão de tratamento: o sr., a sra., você, etc.” (SILVEIRA BUENO, 1968, p.137). O referido gramático limita-se a frisar que os pronomes de tratamento pertencem à 3ª pessoa e isso justifica a concordância em 3ª pessoa com o verbo. Não é feito nenhum comentário explícito acerca da uniformidade de tratamento. Já Sacconi (1989) aproxima-se à orientação encontrada em Almeida (1980), prescrevendo que Quando escrevemos, principalmente, devemos observar a chamada uniformidade de tratamento. Significa que, escolhida uma das pessoas, não podemos mudar para outra. Se, por exemplo, começamos a tratar o nosso correspondente de você (3ª pessoa), devemos tratá-lo nessa pessoa em todo o escrito, e não passarmos para a 2ª, depois voltarmos para a 3ª, etc. (SACCONI, 1989, p. 130) O gramático oferece, ainda, exemplos de uniformidade de tratamento frente a outros, produzidos por “uma pessoa que não observa a uniformidade de tratamento” (p. 130), reproduzidos abaixo: (37) Você não imagina quanto eu a amo, Luísa. (38) Quero abraçar-te pessoalmente, Manuel, e dizer-te que estou disposto a resolver todos os teus problemas. (39) Você não imagina quanto eu te amo, Luísa. (40) Tu não imaginas quanto eu a amo, Luísa. (41) Quero abraçar-te pessoalmente, Manuel, e dizer-lhe que estou disposto a resolver todos os seus problemas. Rocha Lima (1985) formaliza a questão dos pronomes pessoais no capítulo 9 de sua gramática apenas considerando a forma tu como representante da 2ª pessoa do singular. Capítulos seguintes, ao tratar do “emprego do pronome” (capítulo 22), o autor afirma que “o pronome você pertence realmente à 2ª pessoa, isto é, àquela com quem se fala, posto que o verbo com ele concorde na forma da 3ª pessoa.” (ROCHA LIMA, 1985, p.282). Ainda assim, o gramático não inclui a forma você entre as “formas retas ou subjetivas”. É curiosa, 55 entretanto, a inserção da forma você e até mesmo do sintagma a você entre as formas oblíquas (objetivas diretas e objetivas indiretas), pondo estas ao lado de outras formas como os clíticos te, lhe e o/a. Tal organização só foi encontrada, dentre os compêndios analisados, na obra do referido autor. Quanto à uniformidade de tratamento, todavia, o gramático não escreve uma linha sequer sobre a questão. Kury (1972) mostrou-se como o autor mais incoerente, dentre os consultados, na descrição dos pronomes de 2ª pessoa do singular. Ele apresenta, no capítulo “Os pronomes”, a forma você como pronome pessoal: “(...) em ‘Tu não me sais da lembrança.’, ‘Você pode alcançar a liberdade.’, ‘O senhor vai desculpar.’, tu, você, o senhor representam diretamente a pessoa a quem se fala, a 2ª pessoa gramatical (...).” (KURY, 1972, p.132). Na mesma página, contudo, o autor separa tu e você, incluindo-o na “2ª pessoa indireta”, ao lado de o senhor e a senhora: “São de 2ª pessoa indireta os pronomes que, embora se refiram à pessoa com quem se fala, levam o verbo para a 3ª pessoa: você, o senhor, Vossa Senhoria, etc. Veja adiante, ‘Pronomes de tratamento’” (p.132). A mesma divisão – 2ª pessoa direta e indireta – é observada para as formas oblíquas. Dentre as formas oblíquas de 2ª pessoa indireta, o gramático lista as formas a você e com você. A incongruência na descrição continua: depois de apresentar o você como pronome pessoal, 2ª pessoa indireta, o autor classifica-o, em outra seção do mesmo capítulo, como pronome de tratamento: “Você, o senhor, Vossa Majestade são PRONOMES DE TRATAMENTO da 2ª pessoa que levam o verbo para a 3ª.” (p.134). Essa contradição na classificação de um mesmo item gramatical parece-nos fruto de uma “insegurança descritiva”, na qual, implicitamente, o autor reconhece a legitimidade do você como pronome pessoal; em contrapartida, o gramático vê-se “obrigado” a seguir a classificação retrógrada em nome de uma tradição gramatical, tradição essa em que seu compêndio se inscreve. Sobre a questão da uniformidade de tratamento, Kury (1972) tece a seguinte observação: A língua falada muitas vezes não tem ainda fixada uma preferência decidida entre os dois pronomes de tratamento íntimo (tu, você). Daí decorrem discordâncias e, na linguagem afetiva, mistura de tratamento, que devem ser evitadas na língua escrita, levando-se na devida conta o fato da existência de 2ª pessoa direta e 2ª pessoa indireta (KURY, 1972, p. 136). O autor, antes de expor seus exemplos, lembra ainda de que, em uma carta ou diálogo, o indivíduo precisa decidir a forma de tratamento a ser empregada (tu ou você), já que, a partir disso, “há todo um cortejo de concordância que se deve respeitar, além da forma 56 verbal” (p.136). Os exemplos que seguem ilustram a correção defendida pelo gramático. Cabe destacar, entretanto, que o próprio autor é “traído” pela mistura de tratamento no exemplo (43c), ao utilizar o clítico acusativo -lo associado ao verbo servir, que pede um complemento dativo: (42) a. Espero-te em casa domingo. b. Peço-te um favor. c. Terei prazer em servir-te. d. Procuram-te. (43) a. Espero-o em casa domingo. b. Eu a vi ontem. Não a vejo há muito. c. Terei prazer em servi-lo. d. Procuram-no lá em baixo. (44) a. Peço-lhe um favor. b. Agrada-lhe esta música? c. Fico-lhe muito grato. Ou: (Fico muito grato ao senhor, a V.Sª.). Diante desse sumário panorama, podemos dizer que tanto a representação da 2PSG quanto a questão da uniformidade de tratamento são casos mal resolvidos no âmbito da tradição gramatical. Os problemas refletem-se na abordagem dos pronomes-complemento, relegados, na maioria dos casos, a um segundo plano na descrição dos itens pronominais. Observamos certa dose obsessiva em correlacionar os itens pronominais quanto à forma, sem que haja preocupação com o sentido veiculado por eles. A insistência nessa correlação entre as formas de 2ª pessoa nas posições de sujeito e complementos não se sustenta nem mesmo no âmbito da norma culta, como veremos mais adiante. 3.1.1. Os manuais didáticos e o ensino dos pronomes A problemática detectada na tradição gramatical reflete-se no ensino de língua portuguesa no Brasil: ao analisar 14 livros didáticos de português aprovados pelo MEC utilizados no ensino fundamental e médio a fim de verificar como os pronomes pessoais têm 57 sido apresentados aos estudantes, Lopes (2012) constata que o paradigma tradicional de pronomes pessoais é reproduzido na maioria dos manuais didáticos. As novas formas pronominais, como você/vocês, encontram-se restritas a adendos feitos em notas e seções separadas, quase sempre atreladas à linguagem coloquial e informal. Tal maneira de abordar o tema não reflete a realidade linguística brasileira atual, haja vista que as “novas formas pronominais” já são consagradas pelo uso, sendo utilizadas independentemente do contexto situacional ou grau de formalidade, conforme explanaremos nas próximas seções do presente capítulo. O breve levantamento feito de Lopes (2012) mostra uma postura extremamente conservadora por parte dos manuais adotados nas escolas brasileiras do país. Nas palavras de Lopes (2012, p.116), A produção bibliográfica sobre o tema reúne quase uma centena de trabalhos sob diferentes perspectivas, mas muito pouco foi aproveitado em termos descritivos nas gramáticas tradicionais e nos livros didáticos utilizados no ensino de língua portuguesa no Brasil. Na síntese de sua análise, Lopes relata que Nesse breve levantamento, nota-se que a maioria dos livros didáticos (12 dos 14 analisados) apresenta o quadro tradicional de pronomes pessoais, deixando de fora o pronome vocês que já substituiu o arcaico vós de maneira inequívoca e excluindo as formas variantes consagradas pelo uso (você e a gente). Seguindo o mesmo modelo das gramáticas mais conservadoras, os manuais mencionam os pronomes você-vocês e, eventualmente, a gente nos comentários ou observações adicionais, relacionandoos sempre ao uso coloquial, registro informal ou uso não-padrão (...). (LOPES, 2012, p. 120) Quanto à uniformidade de tratamento, a autora observa que os autores dos livros didáticos referem-se ao uso uniforme como uma realidade do “padrão formal culto” ou da “variedade culta da língua”, desconsiderando o fato de que os pronomes tu e você são utilizados principalmente no trato pessoal – íntimo ou neutro – em situações de diálogo específicas, seja na modalidade oral, seja na modalidade escrita da língua. Por isso mesmo, não é pertinente lançar mão dos binômios “formal x informal”, “culto x coloquial” para tratar dessa questão. Ainda sobre a uniformidade, Lopes lembra de que A correlação entre as formas dos dois paradigmas (de tu e de você) está consolidada no quadro pronominal e ocorre de maneira bastante generalizada em todas as situações e níveis sociais. A condenação da “mistura de tratamento” presente nos manuais didáticos é improcedente por desconsiderar um pressuposto elementar dos pronomes pessoais (ou de tratamento): seu caráter eminentemente interlocutivo. O seu uso está condicionado a situações dialógicas e, obviamente, os pronomes você e 58 tu não aparecerão em qualquer contexto situacional ou mesmo em qualquer texto escrito. (LOPES, 2012, p.123-124) Nas conclusões do referido estudo, a pesquisadora também ressalta a incoerência interna que se cria nos manuais de português com a transposição de um quadro pronominal obsoleto das gramáticas normativas: em um primeiro momento, os estudantes são apresentados a um sistema de pronomes arcaizante, composto por formas pouco usuais; em seguida, nas demais seções, figuram os pronomes pessoais efetivamente utilizados pelos mesmos. Na opinião de Lopes, nem mesmo o argumento de que os alunos precisam estudar a norma culta se sustenta: No caso da temática abordada, não se pode defender, como se costuma fazer, que o alunado precisa conhecer a “norma padrão ou culta” por duas razões bem simples: pronomes pessoais são empregados nas situações de diálogo, são formas interlocutivas e mesmo os falantes mais cultos utilizam as novas formas e não mais as antigas. (LOPES, 2012, p.133) Fica evidente, portanto, que, ainda impera no ensino de pronomes pessoais a artificialidade da uniformidade de tratamento, forjada pela tradição gramatical brasileira, que inclui na sua descrição aspectos morfossintáticos característicos do português europeu, mas que não correspondem à realidade linguística brasileira. Quanto a isso, encontramos inúmeros estudos linguísticos, que expõem diferentes argumentos para demonstrar, de um lado, o status de pronome pessoal adquirido pelo você no PB; de outro lado, a invalidade de se defender a existência da uniformidade de tratamento, seja na língua falada ou escrita. Passemos, então, a esses estudos na seção que segue. 3.2. A descrição dos estudos linguísticos: variação e ausência da uniformidade de tratamento 3.2.1. Representação pronominal de 2ª pessoa: correlação entre formas de tratamento? No que diz respeito à representação da 2ª pessoa do singular, numerosos são os trabalhos que discutem a inserção de novas formas pronominais no português brasileiro, sobretudo a implementação do você (cf. LOPES, 2008, 2009; RUMEU, 2008, 2013; MACHADO, 2006, 2011, entre outros). Lopes & Duarte (2003), ao discutirem a 59 pronominalização de expressões nominais em peças brasileiras e portuguesas dos séculos XVIII e XIX, apontam que Em relação à forma você, originada do pronome de tratamento Vossa Mercê, o que se ressalta atualmente como diferença relevante é o seu emprego na interlocução. Em português europeu você está em distribuição com o(a) senhor(a) e tu, segundo o grau de intimidade estabelecido entre os interlocutores, o que revela que você ainda guarda traços de forma de tratamento. No português do Brasil, ao contrário, você já está perfeitamente integrado ao sistema de pronomes pessoais, substituindo tu em grande parte do território nacional ou convivendo com tu sem que o verbo traga a marca distintiva da chamada “segunda pessoa direta”. (DUARTE & LOPES, 2003, p. 61) Nessa mesma linha, Rumeu (2008), ao analisar a produção epistolar pessoal de uma família da virada do século XIX para o século XX, constata que o pronome Você era empregado para destinatários específicos e seu aparecimento como forma plena relacionavase, na maioria dos casos, à marcação de ênfase, contraste ou individualização. Contudo, a autora ressalva que (...) foi possível perceber que timidamente o pronome Você ocupa os espaços funcionais de Tu, como formas variantes, principalmente nas cartas femininas. O processo de pronominalização de Você parece evidenciá-lo, em fins do século XIX e na primeira metade do século XX, como um legítimo pronome de referência determinada à segunda pessoa do discurso (...). (RUMEU, 2008, p. 251) Lopes (2008), ao analisar amostras de sincronias diferentes (cartas de leitores de jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, para a o século XIX, e peças teatrais cariocas para o século XX), estende a discussão acerca da competição entre formas de referência à 2ª pessoa do singular: A mistura de tratamento já aparece prematuramente no século XIX com baixos índices percentuais e se configura como um prenúncio da inserção de você no sistema pronominal. O duelo entre você e tu não se dará de forma definitiva, pois a forma inovadora e gramaticalizada não se implantará em todas as categorias gramaticais da mesma maneira. Esse prenúncio já está anunciado nas primeiras fotografias do século XX, mas os contextos de resistência formal da segunda pessoa perduram até o século XXI. (LOPES, 2008, p.69) A autora destaca, ainda, que a competição entre você e tu como sujeito persiste até os dias atuais, sendo condicionada por fatores de ordem social, regional, etária etc. A partir desse cenário, Lopes aponta para a possibilidade de se traçar um paralelo entre a variação da 2ª pessoa que ocorre no português brasileiro com o voseamento hispano-americano: 60 Da mesma maneira que há diferentes sistemas de voseamento na América hispânica, teríamos no Brasil a coexistência de vários sistemas de tratamento. Se na Argentina, como aponta Fontanella (1977), a coexistência de dois subsistemas vos e tú nos séculos XVI e XVII gerou à fusão de ambos, resultando no surgimento de uma paradigma supletivo para o voseo, por que não podemos considerar a criação de um paradigma misto que estaria se constituindo ou se cristalizando no Brasil? (LOPES, 2008, p.69) A questão da coexistência de diferentes sistemas de tratamento no PB é retomada em Lopes & Cavalcante (2011): partindo da proposta de Scherre et al (2009), as autoras advogam a existência de, ao menos, três subsistemas de tratamento na posição de sujeito: o primeiro, em que vigora o uso exclusivo ou majoritário do você; o segundo, no qual o pronome tu prevalece concordando ou não com o verbo; e o terceiro, em que coexistem ambas as formas, tu e você, cujo uso é condicionado por diferentes variáveis. Reproduzimos, a seguir, o quadro apresentado pelas autoras: Quadro 3.2. Distribuição dos 3 subsistemas dos pronomes pessoais de 2ª pessoa pelas regiões brasileiras (LOPES & CAVALCANTE, 2011, p.39) Lopes e Cavalcante, op. cit., destacam a importância da identificação desses subsistemas de tratamento ao interlocutor no PB atual já que, dentre outras coisas, ela auxilia no entendimento de como se configurou a implementação do você em outros contextos sintáticos, como, por exemplo, nas posições de complemento verbal 15. Como podemos perceber, os trabalhos mencionados atestam uma renovação do quadro de pronomes pessoais do português brasileiro, principalmente no que diz respeito à 2ª pessoa do singular. Lucchesi & Mendes (2009), ao discutirem a flexão de caso dos pronomes pessoais em português e em línguas crioulas de base lexical portuguesa da África, afirmam que Considerando-se apenas os falantes urbanos com alto grau de escolaridade do português brasileiro (doravante PB), os falantes da chamada norma urbana culta, já é possível observar uma instabilidade no que concerne à flexão de caso dos pronomes pessoais. Desse modo, a norma culta brasileira revela uma realidade bem diferente 15 Neste mesmo trabalho, Lopes e Cavalcante (2011) investigaram diacronicamente a representação da 2PSG nas posições de acusativo, dativo e oblíquo. Mais adiante, aludiremos aos resultados obtidos pelas autoras para esses contextos. 61 da contida no que se pode chamar de norma padrão. (LUCCHESI & MENDES, 2009, p.472) O fato aludido pelos autores pode ser facilmente percebido se confrontarmos o quadro pronominal da norma padrão (discutido na seção anterior) com o quadro da norma culta brasileira, como vemos em 3.3 e 3.4, respectivamente: PESSOA DO DISCURSO CASO Reto 1ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular 3ª pessoa do singular 1ª pessoa do plural 2ª pessoa do plural 3ª pessoa do plural Eu Tu ele/ela Nós Vós eles/elas Oblíquo átono Me Te a/o, lhe, se Nos Vos os/as, lhes, se Oblíquo tônico Mim Ti ele/ela, si Nós Vós eles/elas, si Contrações comigo contigo consigo conosco convosco consigo Quadro 3.3. Flexão de caso dos pronomes na norma padrão do português (LUCCHESI & MENDES, 2009, p. 473) PESSOA DO DISCURSO 1ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular 3ª pessoa do singular 1ª pessoa do plural 2ª pessoa do plural 3ª pessoa do plural FUNÇÃO SINTÁTICA sujeito OD / OI Eu você ele/ela a gente ~ nós vocês eles/elas me você ~ te ~ lhe / se ele/ela ~ o/a ~ lhe / se a gente ~ nos vocês ~ lhes / se eles/elas ~ os/as, lhes / se complemento oblíquo/adjunto adverbial mim, comigo você, contigo ele/ela a gente ~ nós, conosco vocês eles/elas, si Quadro 3.4. flexão de caso dos pronomes pessoais na norma culta brasileira (LUCCHESI & MENDES, 2009, p.475) Sem grandes esforços, percebemos que o primeiro quadro é acentuadamente artificial ao apresentar formas indiscutivelmente extintas, como é o caso das formas pertencentes ao paradigma do vós. Além disso, a perspectiva tradicional negligencia a possibilidade de ocorrência de formas tônicas em posição de complemento verbal, mesmo nos casos em que isso não gera estigma social (o uso de você e a gente em posição de objeto e do pronome ele acompanhado de preposição, p. ex. “Comprei o livro para você/para gente/para ele”). Notamos, dentre outras coisas, que o quadro tradicional dos pronomes busca preservar a correlação formal entre as formas retas e oblíquas, correlação que não se verifica nem mesmo na norma culta. 62 Nesse sentido, o segundo quadro evidencia com clareza o “sincretismo” entre formas antigas e novas. Vale destacar a adoção irrestrita de você(s) em posição de sujeito e o crescente uso de a gente ao lado de nós (cf. LOPES, 1993, 1999; VIANNA, 2006, 2011). É interessante observar ainda que, no seio da norma culta brasileira, a possibilidade de combinação do você com as formas relacionadas ao paradigma de tu é aceita e registrada no quadro dos autores referidos. Evidentemente, a possibilidade dessa combinação surge com o aumento progressivo do você na posição de sujeito em competição com o pronome tu. Pesquisas anteriores (cf. DUARTE, 1995; MACHADO, 2011; SOUZA, 2012) afirmam que a partir dos anos 19201930 o primeiro suplanta o emprego do segundo. Entretanto, outros estudos baseados em documentação diacrônica revelam que a “uniformidade de tratamento” não constitui uma realidade linguística do português desde longa data. Marcotulio (2010, p.118), ao analisar as cartas escritas pelo 2º Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil entre 1769 e 1776, encontra dados do você ao lado de formas do paradigma de tu, conforme reproduzimos em 45 e 46: (45) “(...) Agora parece me, que basta Senhor Antonio ese-Voce quer mais Conversa, ouvenha para cá, ou espere, que eu possa estar na sua Companhia. Novamente repito os meus agradecimentos, por todoz osbeneficioz, que tens feito, aos que tetem prezentado Carta minha.” (Carta do Marquês do Lavradio destinada a Dom Antonio de Noronha, governador de Minas Gerais, em 12/05/1776) (46) “Eu continuõ anaõ té poder escrever mais largamente; pórem como tu medeves resposta dehuã grande Carta que te escrevi, quando Satisfizeres esta divida: eu mefarei novamente devedor. Fique voce embora com osseõ Sigarro emquanto eu cá vou uzando da minha agoá friá.” (Carta do Marquês do Lavradio destinada a Dom Antonio de Noronha, governador de Minas Gerais, em 26/11/1775) Além dos exemplos mencionados de Marcotulio (2010), cabe apontar outros trabalhos da perspectiva diacrônica que evidenciam a artificialidade da prescrição da uniformidade de tratamento. Em sua tese, Machado (2011) analisou as formas de tratamento ao interlocutor nas variedades europeia e brasileira do português a partir de 29 peças teatrais escritas ao longo dos séculos XIX e XX. A autora constatou que o uso de você sofreu uma elevação de frequência nos dados do português brasileiro na virada do século XIX para o XX, ficando o uso de tu restrito aos pronomes oblíquos e possessivos. 63 A Tabela 3.1, extraída de Machado (2011), ilustra os índices de pronomescomplemento de segunda pessoa do singular: Tabela 3.1. A distribuição das formas pronominais em função de complemento verbal (MACHADO, 2011, p. 152) Como verificamos na segunda coluna, a forma clítica te, pertencente ao paradigma de tu, registrou altos índices ao longo da diacronia analisada no estudo (1870 a 2003). Ao comentar os resultados, Machado (2011) assinala que “salta aos olhos (...) que, mesmo os índices da forma tu exercendo função de sujeito apresentando um drástico declínio a partir da obra de 1918 (...) observa-se a conservação de um uso expressivo do pronome oblíquo te” (MACHADO, 2011, p. 152). A autora destaca ainda que, à exceção de 1937, os índices de usos concretos vão de encontro às orientações normativas das gramáticas. Brito (2001), em seu estudo, investigou o “uso não uniforme” do pronome de 2ª pessoa em função de objeto, isto é, a combinação de você com formas do paradigma de tu, em especial, a associação do clítico te à forma você na posição de sujeito. A autora também adotou como corpora de análise peças teatrais, além de cartas pessoais, produzidas nos séculos XIX e XX. Brito (2001) verificou que o uso não uniforme do pronome objeto de 2ª 64 pessoa é condicionado por variáveis distintas a cada período.16 O Gráfico 3.1 apresenta seus resultados a partir da amostra de teatro e de cartas em diferentes períodos de tempo: Gráfico 3.1 Porcentagens do uso não uniforme dos pronomes objetos de 2P nos dois corpora (BRITO, 2001, p. 101) É notável a ascensão do “uso não uniforme” no quarto período, no qual os valores percentuais são praticamente os mesmos nos dois corpora. Há de se observar, entretanto, que já no 2º período assinalado, encontramos um índice próximo a 20% de ausência de uniformidade nos dados das cartas pessoais. A falta de uniformidade pode, de fato, ser associada à inserção de você, já que essa foi a forma mais favorecedora ao uso não uniforme dentre as demais estratégias de tratamento analisadas no referido trabalho. Brito (2001) aponta como um fator motivador para o uso do te com você-sujeito a perda da informação gramatical de pessoa. Os clíticos o/a (objeto direto) e lhe (objeto indireto), que deveriam ser empregadas, segundo as gramáticas normativas, com o você na posição de sujeito, podem gerar ambiguidade semântica, haja vista que também fazem referência às formas nominais e aos pronomes de terceira pessoa (ele/ela). No entendimento de Brito (2001), a ambivalência de o/a e lhe desfavorece-os como estratégia de segunda pessoa. Tal desfavorecimento evidencia-se pela utilização expressiva do clítico te, forma genuinamente de segunda pessoa do singular. 16 A autora dividiu a amostra em quatro blocos: 1ª metade do século XIX, 2ª metade do século XIX, 1ª metade do século XX e 2ª metade do século XX. 65 3.2.2. Formas pronominais de tratamento nas posições de objeto: mescla de paradigmas Atendo-nos, agora, estritamente à variação nas posições de complemento, e reiterando o que já foi apresentado até aqui, é indubitável dizer que a coocorrência dos pronomes inovadores – na posição de sujeito – com formas dos antigos pronomes – em posição de complemento verbal – é algo recorrente no atual sistema pronominal do PB. O aparecimento de novas estratégias de representação da 2ª pessoa do singular não anulou a utilização das estratégias vinculadas ao paradigma de tu, em específico, o uso do clítico te. A partir do sincretismo entre as formas pronominais de 2P na posição de complemento, podemos deduzir que o sistema passou a contar com, pelo menos, três estratégias de realização tanto do acusativo-OD quanto do dativo-OI: 1) o pronome átono te, vinculado ao paradigma de tu, idêntico para os dois complementos; 2) as formas átonas de 3ª pessoa do singular o/a e lhe, seguindo a orientação gramatical, que interpreta o você como uma forma de tratamento e se baseia na flexão do verbo que o acompanha; 3) a realização da própria forma você, que no dativo vem acompanhada pela preposição marcadora de caso a/para. Essa gama de estratégias amplia ao considerarmos o objeto nulo, isto é, a categoria vazia, que pode ocupar a posição de complementos direto e indireto. Além disso, cabe mencionar a reinterpretação por que passa o clítico lhe, fato destacado por Gomes (2003), ao comentar diferentes estudos que tratam das alterações verificadas na série de pronomescomplemento do PB: (...) a reorganização do paradigma não está restrito às formas do nominativo, tendo também afetado o subsistema de clíticos. O PB perdeu as formas clíticas de terceira pessoa tanto de acusativo (o/a/os/as) quanto de dativo (lhe/lhes). (...) Gomes (1999) e Freire (2000) (...) observam a ausência do clítico lhe como referência à terceira pessoa e seu uso não só como referência à segunda pessoa, como também na função de objeto direto. Ramos (1998) observa que a ocorrência do lhe com essas características é também marca da formalidade. (GOMES, 2003, p. 87) Com tantas alternativas para a representação da 2ª pessoa do singular nas posições de complemento, uma indagação é inevitável: todas elas apresentam a mesma distribuição, ou seja, ocorrem com a mesma frequência? Haveria estratégias mais produtivas do que outras? Quais seriam? 66 De uma perspectiva diacrônica, podemos retomar o artigo de Lopes & Cavalcante (2011), que analisa as consequências da inserção de você no sistema pronominal do PB no elenco de complementos verbais de 2P. As autoras verificam que, enquanto a forma você notavelmente ganhou espaço no contexto de nominativo, o clítico te permanece nas posições de complemento acusativo e dativo. Essa evidência é detectada em um corpus de cartas pessoais escritas entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. As autoras analisaram a correlação entre a forma utilizada na posição de sujeito e as formas empregadas como de acusativo, dativo e oblíquo. Em relação ao acusativo (objeto direto), Lopes & Cavalcante (2011) identificam quatro estratégias de referência à segunda pessoa: o clítico te, a forma lexical você, o objeto nulo (Ø) e o clítico de terceira pessoa (o/a). A tabela a seguir cruza os resultados de pronomes acusativos com as formas verificadas na posição de sujeito 17: Tabela 3.2. Correlação das formas acusativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-XX. (LOPES & CAVALCANTE, 2011, p. 53) Os dados de acusativo nos mostram que o clítico te era a estratégia majoritária, somando 90% das ocorrências. É digno de nota, ainda, que esta estratégia foi a mais frequente, independente da forma utilizada na posição de sujeito (tu, 97,2%; você, 75%; você/tu, 85%). O clítico a de terceira pessoa registra apenas uma ocorrência. Quanto ao dativo, as autoras registraram, além do clítico original de segunda pessoa te, o clítico lhe, o dativo nulo e os sintagmas preposicionados a/para ti e a/para você. Na Tabela 3.3, os dados de dativos pronominais aparecem correlacionados aos usos verificados na posição de sujeito: 17 Cabe salientar que, nesse cruzamento, as autoras aplicam a proposta da existência dos três subsistemas de tratamento, comentada em linhas anteriores. 67 Tabela 3.3. Correlação das formas dativas de 2ª pessoa e o sujeito em cartas dos séculos XIX-XX. (Fonte: LOPES E CAVALCANTE, 2011, p. 56) Embora apresente índices um pouco mais baixos se comparado ao acusativo, o clítico dativo te totalizou pouco mais de 50% dos dados levantados. Devemos considerar que, nesta posição, havia sete estratégias de realização concorrentes (contra as quatro verificadas no acusativo). Mais uma vez, o clítico te foi a forma mais frequente em contextos de “mescla”: 67 dos 98 dados de dativo de 2ª pessoa coletados em documentos em que havia alternância entre tu e você correspondem ao te. Nas cartas com uso exclusivo de você-sujeito, houve alta produtividade desse clítico: 15 dos 56 dados levantados, isto é, 25%. Se compararmos os dados do te dativo aos sintagmas preposicionados prep.+você – estratégia que, em tese, deveria coocorrer com você-sujeito – verificamos que estes últimos representam metade do que foi registrado para o clítico. Os resultados de trabalhos sincrônicos são bastante semelhantes ao que verificamos nos dados da diacronia. Oliveira Silva (2011), analisando roteiros cinematográficos produzidos em três metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), também detecta uma alta frequência do clítico te tanto como acusativo quanto como dativo. A tabela a seguir mostra a distribuição geral dos dados a partir dos 13 roteiros submetidos à análise: 68 2ª Pessoa TE LHE VOCÊ PARA VOCÊ A VOCÊ PARA TI TOTAL ACUSATIVO 151 4 31 - - - 186 81,2% 2,2% 16,7% 215 16 - 83% 6,2% 366 20 DATIVO TOTAL 33,5% 31 25 1 2 259 9,7% 0,4% 0,8% 46,6% 25 1 2 445 Tabela 3.4. Distribuição das estratégias de complemento verbal em roteiros cinematográficos (Fonte: Adaptado de OLIVEIRA SILVA, 2011, p. 27) Os resultados encontrados por Oliveira Silva (2011) ratificam, portanto, o que foi constatado por Lopes & Cavalcante (2011) na diacronia. Nos roteiros de cinema, há o predomínio quase absoluto do clítico te sobre as demais estratégias. Como acusativo, o clítico atingiu mais de 81% de frequência, seguido por apenas 16,7% de você e 2,2% de lhe. No dativo, os percentuais também são bastante elevados: 83% para te contra 9,7% de para você. A autora também distribui os dados regionalmente, a fim de perceber se haveria interferência do fator diatópico. Constata, entretanto, que o uso majoritário do clítico te como acusativo e como dativo ocorre independentemente da procedência dos roteiros, conforme ilustram os gráficos: 90 90 80 100 84 80 70 84 76 70 60 Te 50 Você 40 30 91 90 77 Lhe 22 Lhe 50 Para você 40 A você 30 20 14 10 Te 60 2 1 Para ti 20 7 0 3 10 15 8 1 4 5 6 7 3 0 RJ SP PoA RJ SP PoA Gráfico 3.2. Correlação entre as estratégias de Gráfico 3.3. Correlação entre as estratégias de acusativo e as localidades dativo e as localidades Fonte: Oliveira Silva (2011) Vale lembrar que, seguindo a proposta de Lopes & Cavalcante (2011) de que existem no PB três subsistemas de tratamento diferentes, as três localidades pertenceriam a subsistemas distintos: no Rio de Janeiro, coexistem tu e você na posição de sujeito; em São Paulo, o uso de você é praticamente categórico; em Porto Alegre, o emprego de tu é majoritário. Sendo assim, verificamos junto aos resultados de Oliveira Silva (2011) que, independentemente do subsistema de tratamento, os diferentes roteiros analisados, representativos das cidades mencionadas, mostraram que parece não haver um 69 comportamento diatópico distinto quanto ao uso do clítico te. Apesar da presença das outras estratégias de acusativo e dativo, esse clítico figura absoluto com percentuais acima de 70% nas três localidades, confirmando seu favoritismo como complemento verbal de 2ª pessoa do singular. 3.3. Conclusão do capítulo A título de fechamento do capítulo, podemos destacar como informações relevantes à nossa pesquisa os seguintes aspectos: o quadro de pronomes pessoais apresentado nas gramáticas tradicionais e reproduzido nos manuais destinados ao ensino de língua portuguesa é obsoleto e extremamente distante do estado atual em que se encontra a língua portuguesa falada e escrita no Brasil, principalmente no que tange à 2PSG; diversos estudos teóricos, pautados em diferentes materiais de análise, evidenciam a coexistência da forma você ao lado do pronome tu na posição de sujeito para a representação da 2PSG; como consequência dessa variação, apontam-se i) a existência de três subsistemas de tratamento, predominando, em dois deles, uma das formas variantes, além da coexistência de ambas no terceiro, e ii) o aumento no número de estratégias pronominais para as posições de complemento, que passam a contar com formas acusativas e dativas pertencentes ao paradigma de tu e você; também decorre da referida variação o desaparecimento da uniformidade tratamental, haja vista a alta frequência do você com formas pertencentes ao paradigma de tu, especialmente o clítico te. As questões concernentes à variação e mudança na representação da 2PSG em posição de complemento, especificamente do complemento dativo, são tomadas como hipóteses nesta dissertação e serão testadas no capítulo de análise dos resultados. 70 4. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS No âmbito das teorias linguísticas que emergem ao longo do século XX, o trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (1968) é visto como fundador do pensamento sociolinguístico de orientação histórica. A partir de Empirical Foundations for a Theory of Language Change, começa-se a propor uma observação e descrição da heterogeneidade ordenada inerente às línguas naturais como a peça-chave para compreender os processos de mudança linguística. Além de colocar a heterogeneidade no foco da pesquisa, os autores rompem com a tradição linguística que vigorava até então ao considerar fatores extralinguísticos, isto é, elementos externos ao sistema da língua que podem atuar nos processos de variação e mudança. Com isso, deixam de lado os modelos em que se trabalhava com uma língua abstrata, isenta de variações, para se adotar um modelo de língua concreta, condicionada por fatores de diferentes ordens. No plano histórico, Empirical Foundations modifica a perspectiva acerca da mudança linguística: não se trata a mudança, como em outras correntes, de maneira abrupta, em que um estado de língua A passa a um estado B devido a alterações internas ao sistema; para a orientação sociolinguística, fatores extralinguísticos também condicionam o progresso de uma mudança no sistema, seja ao acelerar, seja ao refrear o avanço da mesma. Diante dessa proposta, torna-se necessário o trabalho de constituição de corpora históricos e, consequentemente, a reconstituição dos “cenários” sociais de períodos históricos anteriores, a fim de compreender como as sociedades históricas estavam construídas e, principalmente, como sua estrutura pode ter afetado os processos de mudança linguística. Os trabalhos no campo da Sociolinguística histórica, contudo, não apresentaram largo desenvolvimento durante meados do século XX, se comparados à Sociolinguística dita sincrônica ou quantitativa. Devido às grandes dificuldades enfrentadas no trabalho com dados históricos, observamos maior avanço da Sociolinguística variacionista, desenvolvida por Labov, no que diz respeito à constituição de corpora, à metodologia de pesquisa, aos estudos de caso e à análise da variação e mudança linguística. A Sociolinguística histórica só viria a apresentar um notável crescimento na década de 1980, a partir dos trabalhos de Suzanne Romaine (1982, 1988). Ainda hoje, são muitos os questionamentos e críticas que esse campo enfrenta para se afirmar no quadro geral das teorias linguísticas. No Brasil, em específico, praticamente não há pesquisas cujos pressupostos teóricos e metodológicos pertençam estritamente à Sociolinguística histórica; o que temos são diversos trabalhos que conjugam 71 diferentes teorias a fim de analisar as mudanças ocorridas no passado 18. No âmbito da Sociolinguística, os estudiosos geralmente tentam transpor postulados e princípios variacionistas labovianos para as sincronias passadas. Veremos, entretanto, que essa postura não é a mais indicada para o tratamento de dados históricos. O presente capítulo estrutura-se, com exceção desta introdução, em quatro partes principais: na primeira parte, discutiremos a problemática do corpus na pesquisa sóciohistórica quanto à constituição do mesmo bem como os problemas em relação aos dados sobre os informantes, à representatividade da amostra, suas limitações de análise e ainda a validade de textos escritos para o estudo da variação; na segunda parte, comentaremos brevemente alguns princípios e conceitos teóricos que têm norteado os trabalhos em Sociolinguística histórica; na terceira, correlacionaremos os problemas e os conceitos apresentados nas partes anteriores com o corpus a ser utilizado (cartas pessoais) e o fenômeno em análise, os pronomes dativos de 2ª pessoa do singular; por fim, na quarta parte, delineamos nossa metodologia apresentando pormenorizadamente o corpus adotado, suas fontes e seus informantes, além de comentarmos de forma breve a natureza e a qualidade dos dados levantados para a análise. Objetivamos, com isso, propor as bases mínimas para um estudo sócio-histórico de variação linguística no Português do Brasil. 4.1. O problema da constituição do corpus Para o pesquisador em Sociolinguística histórica, os obstáculos no desenvolvimento da pesquisa surgem muito antes das etapas de análise: a constituição da amostra de dados é o primeiro desafio a ser vencido. A célebre frase de William Labov – “to make the best use of the bad data” (LABOV, 1972, p. 100 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.35) – é uma máxima constante. Pontuaremos, a seguir, os principais problemas enfrentados pelo sociolinguista histórico, desde os mais concretos até aqueles relacionados à metodologia de análise. 18 De um lado, temos a sociolinguística paramétrica, nascida das discussões propostas por Tarallo e Kato (1989) e adotada pelo grupo de pesquisadores ligados a eles (DUARTE, 1986, 1995; CYRINO, 1997; RIBEIRO, 1995; dentre outros), que associa os pressupostos da Sociolinguística Variacionista à Teoria de Princípios e Parâmetros; por outro lado, temos o grupo formado por orientandos de Mattos e Silva (cf. SOUZA, 2003) e por pesquisadores da UFRJ integrantes do projeto VARPORT, que aliaram a sociolinguística ao funcionalismo, dando origem ao sociofuncionalismo. 72 4.1.1. Os problemas acerca do corpus propriamente dito É inegável que muitos conceitos e métodos aplicados à Sociolinguística histórica – principalmente nos primeiros anos de desenvolvimento do campo – foram importados da Sociolinguística variacionista sincrônica. Porém, já na constituição da amostra a ser analisada, os estudiosos esbarram em um sério problema: a disponibilidade dos dados históricos. Como bem observou Conde Silvestre (2007, p.35), Em comparação com a diversidade, quantidade e autenticidade dos dados à disposição do investigador em sociolinguística sincrônica ou em linguística descritiva, a informação de que dispõe quem tenta desenvolver sua investigação no âmbito da linguística ou da sociolinguística histórica é fragmentária, escassa e dificilmente vinculável à produção real de seus falantes. De fato, quando o pesquisador em Sociolinguística sincrônica precisa aumentar o número de dados de determinado fenômeno, geralmente organiza novas entrevistas, realiza novas gravações, seguindo com rigor os parâmetros preestabelecidos para a coleta (número equilibrado de informantes quanto ao sexo, à idade, à classe social, à escolaridade etc.). Em contrapartida, a pesquisa sócio-histórica da língua não dispõe dessa possibilidade. É impossível ampliarmos o número de dados de informantes do século XIX, por exemplo, pelo simples fato dos mesmos não estarem mais vivos. Reproduzindo a expressão utilizada por Conde Silvestre (2007), o estudo em Sociolinguística histórica depende de um material enviesado, que sobreviveu por obra do acaso, “por azar”. É a partir do material de gerações passadas que resistiu às mais diversas ações do tempo que se desenvolve toda a pesquisa em Sociolinguística histórica. Os corpora linguísticos do passado apresentam dois problemas básicos, do ponto de vista empírico: a conservação por meio escrito e o caráter fragmentário das amostras. Ambos estão correlacionados. O primeiro diz respeito ao fato de os textos aparecerem de forma isolada, desprovidos do contexto e da situação em que foram produzidos. O segundo, talvez mais complexo, refere-se à constatação de que os textos do passado são restos textuais, mais amplos na origem, que sobreviveram até os nossos dias. Dada a incompletude e mesmo a escassez de materiais linguísticos históricos, a pergunta que fazemos é: como proceder? O que devemos fazer com esses “restos” que chegam até nós? Como manuseá-los? Os estudiosos propõem algumas respostas. Romaine (1988, p.1454 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.45) conclui de maneira axiomática que os dados históricos valem por si mesmos, independentemente de refletirem de 73 maneira fidedigna as circunstâncias originais de emissão ou, do contrário, afastarem-se delas. De fato, apesar dos dois problemas assinalados anteriormente, os materiais sobreviventes trazem consigo um pedaço do passado que não pode ser desprezado. Caberá ao pesquisador, utilizando diferentes ferramentas, tentar completar as peças do quebra-cabeça. Além disso, conforme afirma Milroy (1992, p.47), os linguistas históricos contam com uma vantagem que os sociolinguistas sincrônicos não possuem: em geral, as mudanças observadas no passado ou já foram completadas no percurso histórico da língua ou estão em um estágio mais avançado. Em outras palavras, os estudos em Sociolinguística histórica podem partir dos resultados atuais sobre os fenômenos para tentar descobrir o que aconteceu no passado da língua para que chegasse ao estágio atual. Nas palavras do próprio Milroy: Os problemas do material linguístico e social à disposição do investigador fazem que este deva projetar para o passado os resultados de investigações atuais; sua compreensão dos fatos linguísticos do passado deriva principalmente da observação do presente, de maneira que, analisando as relações entre variação ou mudança linguística e contexto social que se dão na atualidade – para o qual conta com dados confiáveis, autênticos e abundantes –, poderia entender de forma razoável o que ocorreu na história da língua (MILROY, 1992, p.47 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.40) 4.1.2. Informantes de sincronias passadas e a validade social e histórica Hernàndez-Campoy e Schilling (2012, p. 63) elencam sete problemas que consideram principais e inerentes à pesquisa em Sociolinguística histórica. Destes sete, pelo menos três estão relacionados diretamente aos informantes, isto é, aos indivíduos do passado que deixaram registros. São eles: a autoria, a autenticidade e a validade social e histórica. Em primeiro lugar, é de grande importância conhecer quem eram os indivíduos que escreviam na sociedade de uma determinada época e em um determinado lugar. Essa pergunta torna-se de difícil resposta quanto mais nos distanciamos do presente, ou seja, quanto mais antigo é o passado estudado. Um dos maiores obstáculos quanto à autoria dos documentos – quando são assinados – é saber se são autógrafos ou não. Muitos textos de sincronias passadas não eram registrados pelas mãos do seu autor. Além disso, a existência de diferentes cópias de um mesmo documento pode gerar dúvidas quanto à versão original. Esses problemas ocorrem principalmente porque, em períodos históricos antigos, a grande massa da população era analfabeta, mesmo nos estamentos mais elevados da sociedade. Era frequente que as famílias nobres dispusessem de um secretário exclusivamente para redigir documentos. Diante dessa constatação, surge a necessidade de saber até que ponto 74 a escrita desses terceiros – muitos deles anônimos – interferia no que era ditado pelos reais autores. Bergs (2005, apud BERGS, 2012, p.91) afirma que o texto ditado afetaria as variáveis fonológicas e grafológicas, mas interferia em grau bem menor nas variáveis morfossintáticas. O problema da autenticidade, de acordo com Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), diz respeito à pureza nos textos e aos usos autoconscientes que são feitos pelos falantes, como as hipercorreções. Tal problema levanta a questão sobre até que ponto podemos estudar as formas vernaculares a partir da língua escrita. Se há usos conscientes na escrita, possivelmente algumas formas próprias da língua falada são evitadas ou substituídas. Dito de outro modo e em consonância com os referidos autores, os textos refletem esforços em capturar uma norma padrão que nunca foi a língua nativa de nenhum falante. Cabe ao linguista, portanto, filtrar o que seria interferência de uma norma aceita socialmente do que seria mais próximo à esfera do vernáculo e, ainda, o que seria uma atitude autoconsciente do autor que, em um ato hipercorretor, cometeu um desvio tentando adequar-se a alguma regra. Conde Silvestre (2007) lembra, contudo, que nem mesmo a Sociolinguística sincrônica está isenta do problema da autenticidade dos dados: (...) o investigador em (socio)linguística histórica não enfrenta a priori as dificuldades derivadas do que Labov denomina paradoxo do observador: (...) o efeito que a presença de uma pessoa desconhecida, que utiliza material de gravação mais ou menos sofisticado, tem sobre a autêntica produção de fala real por parte de seus informantes, que, nesse contexto, podem se ver condicionados a emitir um discurso afastado da fala espontânea que o investigador queria conseguir. (CONDE SILVESTRE, 2007, p.36, nota 3) O terceiro problema que remete diretamente aos informantes é o da validade social e histórica. Como comentam Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), geralmente conhecemos muito pouco sobre a posição social dos autores e sobre a estrutura da comunidade onde eles estavam inseridos. Em outras palavras, as informações históricas e sociais sobre os escritores de períodos passados são escassas e isso pode enviesar a análise que pretende ser sóciohistórica. Além disso, é preciso que o linguista pesquise e compreenda também a sociedade a qual pertenciam seus informantes, pois alguns conceitos como classe social e gênero/sexo não podem ser interpretados a partir do sentido que possuem atualmente (tal equívoco caracteriza um anacronismo nos termos de BERGS, 2012, p.82-83). A tarefa de recuperar informação social necessária para interpretar padrões de variação em textos escritos, embora não seja fácil, é fundamental para a análise sócio- 75 histórica. Algumas disciplinas podem auxiliar nesse trabalho de reconstrução, em particular, a história social. 4.1.3. Representatividade e validade empírica dos dados Além dos problemas relacionados aos informantes, o investigador em Sociolinguística histórica enfrenta ainda problemas de natureza metodológica. A partir dos rótulos apresentados por Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), é preciso considerar o problema da representatividade e da validade empírica. Eles evidenciam a inadequação de transpor a metodologia da Sociolinguística sincrônica para o trabalho histórico e a consequente necessidade de elaborar uma metodologia de pesquisa própria, independente. O Princípio da Representatividade – ao lado do Princípio da Generalização – foi inicialmente mantido pelos linguistas da tradição laboviana como fundamental no rigor metodológico do procedimento sociolinguístico variacionista. Segundo este Princípio, todos os membros da comunidade devem ter chances iguais de serem selecionados como informantes representativos; além disso, os informantes devem ser selecionados preservando as características sociológicas e demográficas da população. Frente a essa definição, fica evidente a impossibilidade de aplicação do Princípio no trabalho de Sociolinguística histórica. Os dados históricos geralmente são irregulares, o que é consequência da preservação aleatória dos textos e da perda aleatória de outros. Sendo assim, é praticamente impossível construir uma amostra histórica que seja representativa de toda a população estudada. Na maioria das vezes, os documentos que sobreviveram foram escritos por pessoas das classes mais elevadas da sociedade e do sexo masculino. Os pesquisadores precisam ser extremamente criteriosos ao avaliar quais os tipos de informante, segmentos da população e de formas linguísticas suas amostras abarcam, visto que não há a possibilidade de remodelar os conjuntos de dados preexistentes. O problema da validade empírica está diretamente atrelado ao problema da representatividade. A Sociolinguística histórica conta, para o seu trabalho, com coleções de texto cujo tamanho – vale repetir mais uma vez – é inevitavelmente restrito. Isso implica, por vezes, a limitação (ou mesmo a impossibilidade) em realizar análises de cunho quantitativo e cálculos estatísticos. A limitação não se refere apenas aos dados linguísticos em termos de quantidade, tipo e cobertura, mas também aos dados socioculturais limitados que são obtidos através do estudo das comunidades atuais sobre o passado. Em síntese, a validade empírica de 76 uma amostra histórica não pode ser avaliada através dos mesmos parâmetros que avaliam as amostras contemporâneas. Sua sustentação enquanto corpus de análise depende de um minucioso trabalho por parte do investigador, que utiliza diferentes ferramentas para a realização da pesquisa. 4.1.4. Invariação e a ideologia do padrão Os problemas da “invariação” (ing. “invariation”) e da ideologia do padrão envolvem, talvez, o maior desafio para o sociolinguista histórico: estudar variação e mudança linguística a partir de dados da língua escrita. Dito de outro modo: depois de trabalhar na reconstrução e contextualização do material, a fim de obter informações sobre os autores, e de adaptar a limitada amostra para uma análise consistente, válida como estudo científico, o pesquisador terá o trabalho de rastrear dentro dos textos a variação, a inovação no passado. Nos termos de Hernàndez-Campoy e Schilling (2012), lidar com a invariação é vencer o uniformitarismo, o conservadorismo da língua escrita para estudar as variações que, muito possivelmente, estavam presentes na língua oral. Segundo os autores, é sempre provável ter havido mais variabilidade na oralidade, com padrões diferentes, do que os documentos escritos permitem visualizar. Isso deve ser entendido como um alerta para o pesquisador, que deve ser cauteloso com a aparente uniformidade linguística nos documentos, e mesmo com os padrões de variação observados. Por vezes, a variação presente nos manuscritos se dá devido a diferenças dialetais, demográficas e sociológicas, ou ainda devido a diferenças estilísticas entre os autores ou entre períodos cronológicos distintos. Eis então o ponto de interseção entre a invariação e o problema da ideologia do padrão: a norma tida como padrão de uma língua nem sempre foi estabelecida pelos mesmos critérios que temos atualmente. Em períodos mais antigos da história, por exemplo, cada comunidade ou região específica possuía seu próprio padrão de língua, aceito pelos moradores como a maneira certa de falar determinada língua. Esse padrão idealizado aparece refletido nos documentos escritos. A informação anterior confirma o argumento apresentado pelos autores de que ambos os pontos de vista, não linguístico e linguístico, em relação aos sistemas da língua e sua evolução, podem ser influenciados pela ideologia do padrão; ou seja, é comum que as sociedades humanas estabeleçam uma forma padronizada da língua e utilizem-na como referência daquela língua. Os estudos linguísticos acerca dos dialetos não padrão não estariam 77 imunes, pois, a essa ideologia, de maneira que, mesmo nos registros de informantes menos cultos, encontramos um “padrão” que tenta se adequar a alguma norma específica da língua (novamente, como ocorre nos casos de hipercorreção). Estes dois últimos problemas são advertências importantes para o pesquisador em Sociolinguística histórica, pois seu trabalho é, em certa medida, paradoxal: buscar registros de variação onde, em tese, não há variação. Respeitando a norma oficial da língua ou uma norma particular, constatamos que, nos textos escritos, sempre é preciso transpor a barreira da uniformidade aparente; por mais atento e conservador que seja o autor do texto, há sempre algum elemento linguístico que nos permite ver (ou, ao menos, nos aproximar) da língua que era utilizada no cotidiano, recheada de variações em diferentes níveis. 4.2. Princípios e conceitos teórico-metodológicos da Sociolinguística histórica Pontuamos, nas linhas anteriores, os problemas considerados principais na pesquisa em Sociolinguística histórica. Apresentaremos, agora, as “soluções”, isto é, os princípios, os conceitos teóricos e metodológicos, e as ferramentas de que o sociolinguista histórico dispõe para levar adiante o estudo da variação no passado das línguas. Comentaremos sobre: o Princípio do Uniformitarismo e sua aplicação na linguística histórica como base de sustentação para os estudos diacrônicos; a História Social, disciplina auxiliar da Sociolinguística histórica, e sua importância na correlação entre língua e sociedade do passado; o estilo 19, trabalho filológico que serve de ferramenta para a reconstrução do contexto social; o modelo desenvolvido por Koch e Oesterreicher (1985, 1994) que apresenta argumentos para validar o estudo da variação linguística através de textos escritos. 4.2.1. Princípio do Uniformitarismo Sem tradução precisa para o português e, por isso mesmo, podendo ser enunciado como Princípio do Uniformitarismo ou Princípio da Uniformidade Linguística, tal princípio é recorrentemente mencionado nos textos teóricos sobre Sociolinguística histórica e se revela 19 Dada a polissemia da palavra “estilo”, cabe explicitar com qual acepção a empregamos. Chamamos de estilo o “conjunto de características formais que distinguem e qualificam um objeto segundo o modo e a época em que foi produzido” (HOUAISS). Em termos linguísticos, trabalhar em cima do estilo de um texto para reconstruir o contexto social em que ele foi escrito significa analisar traços grafológicos, morfossintáticos e discursivos que permitem situar espacial, temporal e socialmente o autor desse texto. 78 basilar para as análises de natureza diacrônica. Bergs (2012, p.81) lembra que o Princípio do Uniformitarismo (doravante, PU) surgiu no âmbito da geologia, sendo apresentado pela primeira vez em Principles of Geology, de Charles Lyell. Foi então que os linguistas do século XIX, muito impressionados com os trabalhos dos geólogos, importaram o PU para a linguística. Diversos autores já formularam definições para o PU, todas elas, em essência, afirmando coisas parecidas. Nevalainen e Raumolin-Brunberg (2012, p.24) afirmam sucintamente que “os seres humanos, enquanto seres biológicos, psicológicos e sociais, permanecem praticamente inalterados ao longo do tempo”. Já Milroy (1992 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.41), ao definir tal princípio, inclui a questão da variabilidade: (...) este princípio supõe transladar a variação, como característica inerente da linguagem, do presente para o passado e entender que, do mesmo modo que as distintas línguas mostram esta qualidade hoje em dia, pode-se assumir que estavam submetidas à variabilidade em seu desenvolvimento histórico. Palavras bem semelhantes são utilizadas por Romaine (1988, p.1454 apud NEVALAINEN & RAUMOLIN-BRUNBERG, 2012, p.25), que complementa sua definição atentando para o fato de que o PU derruba a aparente invariação: As forças linguísticas que operam hoje e são observáveis ao nosso redor não são diferentes daquelas que operaram no passado. Este princípio é, de fato, básico para a reconstrução puramente linguística, mas sociolinguisticamente falando, não é motivo para acreditar que a língua não variou da mesma forma padronizada no passado como tem sido observado atualmente. Bergs (2012, p.80) segue a mesma linha de raciocínio, apenas chamando a atenção para o fator inverso: assim como tudo o que acontece hoje, possivelmente também aconteceu no passado, também o que é impossível de ocorrer atualmente, deve ter sido igualmente impossível no passado. Além disso, o autor ressalta que a análise do fenômeno histórico deve sempre partir das causas conhecidas, procurando explicá-las antes de tratar das causas desconhecidas. Ainda segundo Bergs, a aplicação do PU nas ciências humanas requer certa cautela, visto que não há, nos fenômenos humanos, uma correlação simples e clara com as leis da natureza. Lass (1997, p.28 apud BERGS, 2012, p.82) sumariza dois PU para a linguística. O primeiro, que rotula como Princípio da Uniformidade Geral, afirma que nenhum estado linguístico de coisas (seja estrutural, processual etc) pode ter sido caso único e isolado no passado. O segundo, denominado Princípio das Probabilidades Uniformes, postula que a 79 probabilidade (global ou interlinguística) de qualquer estado linguístico de coisas tem sido, grosseiramente, o mesmo como é hoje em dia; ou seja, haveria, segundo ele, uma probabilidade relativamente uniforme de se encontrar a mesma quantidade de fenômenos e processos no passado que encontramos atualmente. 4.2.2. A importância da História Social Uma das disciplinas auxiliares à Sociolinguística histórica, a História Social é de demasiada importância no trabalho de reconstrução da época em que viveram os escritores dos documentos de sincronias passadas. Nos termos de Burke (1980, p.35; 1992, p.2 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.63), a História Social trata da “conformação de distintos grupos sociais no passado, incluindo sua estrutura, as relações e conflitos entre eles”. Dentre os tópicos que interessam à História Social, podem ser citados os papéis sociais, as relações familiares, a estrutura e a mobilidade social, as relações entre os sexos, as relações de poder e de solidariedade e o desenvolvimento de ideologias e mentalidades. Não raro, os trabalhos em História Social contribuem para as pesquisas linguísticas ao fornecer dados estatísticos, históricos e demográficos. Richter (1985, p.57-58 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.64) ressalta que tal disciplina pode oferecer ao linguista partes da informação necessária para a reconstrução das variáveis independentes históricas, que poderiam ter relação com as variações e mudanças analisadas. Além disso, o sociolinguista que recorre aos dados de História Social evita o equívoco de transferir os modelos sociais do presente para o passado, eliminando, assim, o risco de anacronismo. 4.2.3. O estilo e a reconstrução do contexto de produção Grosso modo, podemos dizer que a investigação do estilo complementa o trabalho conjunto com a História Social na medida em que aquela segue o sentido oposto desta: se na História Social as informações extralinguísticas são aplicadas aos documentos, a investigação do estilo parte de elementos do próprio texto para reconstruir o contexto de produção original. Esse tipo de trabalho é necessário quando não há muita informação histórica disponível acerca dos documentos (cartas de pessoas não ilustres, por exemplo). Nas palavras de Conde Silvestre (2007), 80 (...) entende-se que a seleção de um estilo por parte do falante supõe que seus usos linguísticos se adaptam a algumas das possibilidades sociolinguísticas que se dão em sua comunidade, ou seja, que se pode estabelecer uma correlação entre a frequência de aparição de certos traços no estilo de um falante individual e os que caracterizam habitualmente a um grupo social concreto (BELL, 1984, p.151; MORENO FERNÁNDEZ, 1998, p.94-95; SCHILLING-ESTES, 2002, p.382). Traugott e Romaine (1985, p.28-29 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.59) definem o estilo como resultado de uma relação comunicativa entre os participantes em um ato de fala, os quais negociam cada ato de fala e o dotam de um ou outro em virtude de uma série de fatores pessoais e contextuais, e também em função de sua própria imersão na estrutura social da comunidade de fala, do desenvolvimento de funções socioprofissionais concretas e do estabelecimento de redes de relações pessoais mais além da interação comunicativa de que se trate. Moreno Fernández (1998, p.98-103 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.59) apresenta uma série de fatores que exercem influência no estilo verificado nos documentos. No primeiro grupo de fatores, de caráter pessoal, estariam (i) o falante e o controle que detém sobre a produção linguística, além das particularidades históricas, geográficas e sociolinguísticas as quais se submete; (ii) os interlocutores, quantos deles participam da interação (estabelecendo relações bilaterais ou multilaterais com o falante), e a atenção à mensagem (plena ou casual, segundo se trate de interlocutores interpelados diretamente ou não); e (iii) o tipo de relação estabelecida entre eles (íntima, formal, casual etc). No segundo grupo de fatores, de ordem não pessoal, o autor aponta (i) elementos discursivos como o tema (formal ou informal, pessoal ou não), o tipo de comunicação (monólogo, conversação dirigida, conversação livre) e o gênero discursivo (narrativo, expositivo, argumentativo); e (ii) elementos contextuais, como o local (familiar ou não), o momento da interação comunicativa (adequado ou não), e o tipo de atividade pública ou privada que se desenvolve. A partir desses fatores, dois objetivos podem ser formulados para a Sociolinguística histórica, associados à questão do estilo: o de reconstruir mudanças que afetaram as relações entre os componentes do ato de fala que definem os estilos nas diferentes comunidades históricas e o de identificar as próprias mudanças estilísticas, das funções e significados associados a eles, que surgiram, variaram ou desapareceram devido à modificação das relações entre os componentes do ato de fala (TRAUGOTT & ROMAINE, 1985, p.30 apud CONDE SILVESTRE, 2007, p.60). 81 Em síntese, o trabalho com base no estilo ajuda o pesquisador a separar elementos linguísticos inerentes do tipo de documento, do gênero textual em questão, daqueles elementos que seriam intervenções dos escreventes. Com base nessa distinção – sempre preocupada com a realidade histórica em que o texto foi produzido – o linguista pode chegar a identificar intervenções da língua falada pelo indivíduo ou pela comunidade na qual ele estava inserido em seus textos. Traçar o perfil estilístico dos autores é, em última análise, uma forma segura de neutralizar a interferência dos elementos discursivos na variação linguística propriamente dita. 4.2.4. O modelo de Koch e Oesterreicher É aceito pelo senso comum que o espaço da variação linguística é o da língua falada. Nela encontramos variação nos diferentes níveis, fato esse que é resultado da espontaneidade, traço marcante da modalidade oral. O tempo de planejamento da fala é bem menor do tempo dispensado, em geral, à elaboração de um texto escrito, haja vista que o contexto de produção e o contexto de recepção são simultâneos na oralidade. O falante dispõe também, na modalidade oral, de estratégias não linguísticas que o auxiliam a completar o sentido do que é dito (a expressão facial, por exemplo). Do mesmo modo, acredita-se que a língua escrita está em um polo oposto, pois nela há um grau de variação bem menor, fruto do planejamento e da estruturação mais elaborados no texto escrito. Essa separação tradicional, contudo, entre “língua falada” e “língua escrita”, na qual se associa a variação à primeira, é simplória e mesmo enganadora. A variação da língua não está restrita à fala e pode ser encontrada também em documentos escritos, como já demonstraram incontáveis estudos. Porém, como sustentar teoricamente esse ponto de vista, que vai de encontro à visão clássica e tradicional de “fala x escrita”? Koch e Oesterreicher (1985, 1994) propõem um modelo no qual essa problemática recebe uma teorização pertinente e adequada. Em primeiro lugar, os autores tratam de desfazer a dicotomia clássica e mostrar que, na realidade, a oposição existente se dá entre o meio de linguagem e a concepção de linguagem: falar em texto escrito e texto oral significa focalizar os meios da transmissão comunicativa (gráfico e fônico, respectivamente); sendo assim, não é a matéria textual em si que é contemplada, mas sim o material textual, o suporte físico pelo qual se estabelece a comunicação. O texto, stricto sensu, pertence, na visão dos 82 autores, à esfera da concepção de linguagem: a partir da proximidade ou distância da comunicação é que podemos traçar o perfil de um determinado texto. Baseados nas noções de imediato comunicativo e distância comunicativa, Koch e Oesterreicher (2007) apresentam os textos prototípicos do “imediatismo”, caracterizados pela oralidade, informalidade e falta de planejamento, e os textos prototípicos da “distância”, marcados pelo letramento, formalidade e planejamento. Uma conversa íntima é considerada um protótipo do texto imediatista, enquanto que um contrato jurídico seria um protótipo de texto distanciado. Os textos prototípicos formam dois polos de um continuum conceitual e entre eles estão distribuídos todos os diferentes gêneros textuais, que podem ser localizados segundo o grau de imediatismo ou distância comunicativa. Para avaliar conceitualmente os textos, os autores formulam parâmetros determinantes, em sua maioria de dimensões graduadas. São eles: (a) caráter privado da comunicação (a’) caráter público da comunicação (b) intimidade ou familiaridade dos interlocutores, (b’) ausência de intimidade ou de familiaridade maior conhecimento partilhado dos interlocutores, menor conhecimento partilhado (c) forte participação emocional (c’) falta de participação emocional (d) inserção do discurso no contexto situacional (d’) não inserção do discurso no contexto (e) referencialização direta (ego-hic-nunc) (e’) referencialização indireta (f) proximidade local e temporal entre os (f’) interlocutores (comunicação face a face) interlocutores (g) intensa cooperação (g’) fraca cooperação (h) dialogicidade (h’) monologicidade (i) espontaneidade (i’) reflexão (j) pluralidade temática (j’) fixação do tema distância local e temporal entre os Quadro 4.1. Parâmetros determinantes do grau de imediatismo/distância comunicativa dos textos escritos (OESTERREICHER, 2006, p.255) Para os autores, portanto, a distinção entre os polos conceituais é algo primário para a compreensão da “oralidade” e “escrituralidade” da comunicação; já o meio é secundário, haja vista que um texto escrito pode ser oralizado pela leitura e um texto falado pode ser transcrito a qualquer instante. A partir desse modelo, podemos descartar a dicotomia clássica “fala x escrita” que, evidentemente, se pauta apenas no meio e negligencia o fato de que há textos escritos que estão mais próximos ao polo conceitual do imediatismo e vice-versa. Diante dessa sucinta exposição, é possível estabelecermos uma ponte entre o modelo de Koch e Oesterreicher (2007) e o trabalho do sociolinguista histórico no que se refere ao 83 corpus. Além de atentar para aos problemas já discutidos anteriormente, considerar o Princípio do Uniformitarismo e utilizar no seu trabalho o estilo e a História Social, é importante que o pesquisador priorize, na formulação do corpus, textos que se aproximem ao polo do imediatismo comunicativo, pois neles é mais provável que se encontre variação linguística mais latente. Em termos de aporte teórico-metodológico, para a análise da variação pronominal de 2ª pessoa do singular na posição de complemento dativo em dados do português brasileiro, levaremos em conta: i) a natureza da fonte a ser analisada; ii) o perfil histórico dos remetentes das cartas no contexto social dos séculos XIX e XX; iii) a representatividade da amostra para o período focalizado. Por essa razão, discutiremos a seguir as vantagens e desvantagens do trabalho feito com base em cartas, tendo em vista os três aspectos mencionados. 4.3. Um estudo de caso para o português brasileiro: a variação pronominal em cartas pessoais Embora a análise a ser realizada nesta dissertação esteja inserida em uma história bastante recente (se compararmos aos trabalhos sócio-históricos em outras línguas, em que as análises atingem o século VIII!), muitas dificuldades listadas em 4.1 permanecem. A existência dessas dificuldades está estritamente relacionada ao contexto político e social do Brasil do fim dos oitocentos e de todo o período dos novecentos, o que de certa forma legitima a adoção da perspectiva sócio-histórica. Adotamos como corpus de análise cartas particulares. A escolha desse tipo de texto justifica-se por diferentes razões, esclarecidas a seguir. Além de analisarmos a variação pronominal de 2ª pessoa do singular na posição dativa, discutiremos as vantagens e desvantagens em trabalhar com um corpus de cartas pessoais, comentando os problemas enfrentados e as soluções propostas neste estudo. Depois disso, intentamos articular nosso objeto de estudo com alguns fatores de ordem histórica e social, a fim de caracterizar a emergência de uma “norma brasileira”, aludida por alguns linguistas. 84 4.3.1. A análise pronominal em cartas pessoais A principal motivação para a adoção do gênero carta pessoal como corpus de análise é sua própria estrutura discursiva. Devido ao caráter dialógico desse gênero, o remetente necessita utilizar formas pronominais para se referir ao destinatário dentro do texto. Tendo em vista que o fenômeno investigado restringe-se à 2ª pessoa do singular, o gênero epistolar revela-se como o melhor material para a obtenção dos dados. Além disso, vale ressaltar que o estudo empreendido nesta dissertação é de cunho variacionista: observamos o fenômeno da variação pronominal nas cartas dos séculos XIX e XX. Essa seria a segunda razão para a escolha do corpus. Investigamos a variação na realização das formas dativas de 2ª pessoa do singular a partir da inserção do pronome você no português brasileiro e a consequente variação que se desencadeia, a partir de então, entre essa forma e o antigo pronome tu. Evidentemente, não há materiais de língua falada que contemplem todo o período que pretendemos analisar. Nesse sentido, a análise e o levantamento de dados oriundos de cartas pessoais são de extrema importância, pois estas se aproximam ao polo do imediatismo comunicativo de Koch e Oesterreicher (1985, 1994) e são mais suscetíveis a apresentar variação linguística. Em outras palavras, estaremos trabalhando com um material que i) por sua própria natureza, está próximo ao imediatismo comunicativo, visto que pressupõe uma reprodução de uma “conversa à distância”; ii) apresenta maiores chances de conter variação no uso dos pronomes de 2ª pessoa do singular, haja vista o traço de dialogicidade que marca o gênero carta pessoal. Embora não possamos afirmar que, nas cartas particulares, os indivíduos escreviam tal como falavam à época, acreditamos que alguns fenômenos linguísticos em variação possam escapar à pressão normativa e aparecer nos textos, principalmente naqueles cujos autores detinham menor domínio sobre os modelos de escrita. Novamente, vale repetir, a transposição das relações sociais para o espaço discursivo é licenciado pelo gênero epistolar, como bem descreve Silva (2002, p.100): (...) nos eventos das cartas pessoais, onde se efetivam os contatos interpessoais entre aqueles que se encontram distantes e têm entre si um laço de afetividade, os sujeitos (tanto o remetente como o destinatário) trazem, à cena enunciativa, sistemas de crenças, de valores e de saberes, filiados a quadros das atividades de uma formação social, construídos no seio das práticas sociais reais da vida cotidiana, deixando assim entrever o papel/identidade social assumido por cada um deles ou, em outros termos, a posição identitária ali investida (cf. também Bronckart, 1999). 85 Em outras palavras, o indivíduo, ao redigir uma carta pessoal, tenta trazer para o seu texto elementos da vida cotidiana, de forma a reduzir, minimizar, a distância física existente entre os sujeitos, dado o caráter afetivo e emocional do gênero. Sendo assim, um dos recursos de que lança mão é justamente a adoção da linguagem que seria utilizada se o diálogo fosse estabelecido “face a face”. É com base nesse fator que almejamos capturar a variação pronominal dativa, respaldando-nos no seguinte argumento: se há variação linguística no texto da carta pessoal – por menor e mais discreto que seja – então essa variação deveria ocorrer de maneira mais acentuada na língua falada da época. 4.3.2. A constituição do corpus: problemas e soluções Conforme mencionamos acima, o recorte temporal investigado é recente: analisamos o período entre as últimas décadas do século XIX até os decênios finais do século XX (18801980). Essa proximidade temporal (estamos falando em dados do século passado) traz algumas vantagens como, por exemplo, a legibilidade do material encontrado, a possibilidade de se obter informações mais precisas acerca da sociedade na qual viveram os informantes e as transformações históricas pelas quais esta sociedade passou. Entretanto, há também problemas que não podem ser ignorados. Comentamos, a seguir, o problema da disponibilidade das cartas, da disponibilidade de informações acerca dos seus autores e o problema da representatividade da amostra constituída para o período em análise. O primeiro problema, referente à disponibilidade das cartas, traz novamente à tona um ponto já discutido em linhas anteriores: o fato de a Sociolinguística histórica lidar com “restos” materiais, isto é, com documentos que sobreviveram ao acaso e chegaram até os dias atuais. Esse quadro se agrava mais ainda em relação a documentos pessoais: por razões de valorização social (cf. ELPASS, 2012), era um hábito da sociedade de outros tempos que as pessoas se desfizessem ou destruíssem textos de ordem particular, pelas mais diversas razões. A falta de consciência para a preservação desses documentos é mais latente nas categorias mais baixas da sociedade. Silva (2012), em um estudo que traçou o perfil sociolinguístico do casal dos anos 1930 a partir das cartas trocadas entre ambos, fontes documentais que fazem parte do corpus desta dissertação, encontrou recorrentemente nas missivas da remetente pedidos como o que segue: (47) “Jayme manda-me dizer se tua mãe falou |alguma cousa com voce au meu respsito [...] eu pesso-te para rasgares a |carta” (M. 12/01/1937, grifos nossos) 86 O material que se encontra disponível nos arquivos públicos pertenceu a membros das classes mais elevadas, pessoas ilustres cujos parentes julgaram importante preservar os escritos, conservar a memória através dos documentos. Não raro, encontramos cartas de artistas, escritores e políticos, como o corpus da Família do ex-presidente da República Affonso Penna (1906-1909), situado no Arquivo Nacional-RJ, transcrito e editado no trabalho de Pereira (2012) e também utilizado parcialmente no presente trabalho. O segundo problema – a disponibilidade de informação sobre os autores das missivas – é mais acentuado, assim como o anterior, nas classes mais baixas da população. Mantendo a linha de raciocínio do problema anterior, os indivíduos das classes altas tinham interesse em preservar seus escritos e, consequentemente, o número de dados disponíveis para pesquisa acerca dos mesmos é maior; além disso, eram pessoas ilustres, com destaque na sociedade da época. Logo, haverá mais informações de ordem social para esses autores. Em contrapartida, os poucos documentos que restaram de indivíduos não ilustres, das classes baixas, trazem escassos dados biográficos, tornando seus autores praticamente anônimos. O pesquisador que lida com esses materiais fica restrito às informações do texto. Silva (2012) relata sua dificuldade de obter dados biográficos sobre o “casal dos anos 1930”: Essa documentação que serviu de base para esta análise, ao contrário de outros materiais utilizados em estudos linguístico-históricos, não foi localizada em nenhum acervo ou arquivo de acesso público, e sim recolhido, ao acaso, no lixo, no bairro de Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro. Por essa razão, todos os dados obtidos foram retirados das próprias cartas a fim de que se fosse possível fazer uma descrição acerca dos autores das mesmas. (SILVA, 2012, p.43) Devido à impossibilidade de obter informações através de registros públicos e arquivos históricos, a descrição do perfil sociolinguístico dos remetentes está respaldada somente nas missivas. (SILVA, 2012, p.47) O terceiro e último problema incide diretamente na questão da representatividade da amostra. Diferentemente da pesquisa em Sociolinguística sincrônica, o sociolinguista histórico não tem como obter mais dados a partir de novas gravações diretas com outros informantes da mesma época, com as mesmas características sociais. O trabalho está reservado ao que literalmente sobrou ao longo do tempo. Isso constitui um forte obstáculo para os estudos de cunho diacrônico, visto que a quantidade e a qualidade dos textos variam consideravelmente de um recorte temporal para outro. Souza (2012) analisou a inserção do pronome você na posição de sujeito através de cartas pessoais, estabelecendo, também, o período de um século (1870 a 1970) para a análise. A autora relata, ao apresentar os dados obtidos, a dificuldade concreta para equilibrar sua amostra em todos os períodos: 87 Tentamos equilibrar a quantidade de missivas por década, no entanto, esta tarefa não foi totalmente bem sucedida, devido à dificuldade de encontrarmos o mesmo número de cartas, com as mesmas características (escritas por moradores do Rio de Janeiro ou na cidade), durante todo o período de tempo analisado, em especial, na segunda metade do século XX. (SOUZA, 2012, p.89) Como bem salienta Souza (2012), é tarefa árdua – por vezes, impossível – obter uma quantidade razoável de dados cujos informantes possuam as mesmas características linguísticas e sociais a fim de comparar os dados entre si. Confrontar dados de diferentes sincronias obtidos de informantes com perfis sociolinguísticos díspares é algo problemático e pode distorcer os resultados da pesquisa. O pesquisador deve respeitar essas diferenças para não negligenciar os fatores sociais e externos que interferem nos usos linguísticos. Não há, infelizmente, soluções definitivas para os problemas aventados. O sociolinguista histórico precisa formular o melhor caminho para analisar seu objeto de estudo e tentar amenizar as diferenças e incompletudes em que fatalmente seu corpus histórico esbarrará. É preciso respaldar-se em diferentes conceitos e princípios no tratamento dos dados, além de extrair o maior número de informações possível que o corpus permitir. Além disso, a delimitação do tema precisa ser muito bem pensada, pois se o tema for demasiadamente específico, há o risco de não se encontrar uma massa de dados relevantes; se o tema for muito abrangente, a amostra se tornará acentuadamente heterogênea e aumentarão, com isso, os problemas quanto aos dados extralinguísticos. Baseando-nos nessa orientação, restringimos a análise das formas variantes dativas de 2ª pessoa do singular às cartas particulares escritas por cariocas/fluminenses entre as décadas de 1880 e 1980, perseguindo, assim, uma amostra menos heterogênea e mais equilibrada no que diz respeito aos traços sociolinguísticos dos informantes. 4.3.3. A correlação entre os fatores linguísticos, históricos e sociais: a emergência de uma norma brasileira De maneira global, podemos reduzir os objetivos da perspectiva sociolinguística na seguinte máxima: identificar os fatores linguísticos e extralinguísticos que aceleram ou retardam a variação e, principalmente, a mudança linguística. Dentro desse quadro teórico, elementos de ordem social são vistos como reguladores das inovações que surgem na língua. Portanto, após identificar os fatores paralelos à variação, cabe ao pesquisador estabelecer 88 possíveis correlações, isto é, mostrar de que maneira alterações de ordem histórica e social podem ter contribuído para propagação de uma variável inovadora no sistema linguístico. Numerosos estudos acerca do português brasileiro, em particular, os estudos sobre a mudança no quadro dos pronomes pessoais, apontam a década de 1930 como o período em que a forma você torna-se mais frequente na posição de sujeito, superando os índices do pronome tu. Segundo os estudiosos, essa e outras transformações verificadas no português brasileiro certamente foram condicionadas pelas diversas transformações que a sociedade brasileira sofreu na virada do século XIX para o século XX. Paul Teyssier (1997), ao tratar dos aspectos de ordem social no Brasil, comenta uma série de fatos históricos marcantes para o país: Independente em 1822, o Brasil vai, naturalmente, valorizar tudo o que o distingue da antiga metrópole (...). Alemães e italianos chegam em grande número, principalmente italianos. (...) o tráfico dos negros africanos cessou por volta de 1850, e (...) os índios se diluíram na grande mestiçagem brasileira (...). Em duas gerações, os novos habitantes aculturam-se e fundem-se na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, o polo de desenvolvimento desloca-se para o Centro-Sul. Finalmente, a urbanização e a industrialização transformam inteiramente a aparência do país. Com a explosão demográfica e o crescimento econômico, o antigo Brasil rural transformou-se (...) num “subcontinente”, onde zonas desenvolvidas de civilização urbana coexistem com regiões subdesenvolvidas. (TEYSSIER, 1997, p.96-97) De fato, em pouco mais de um século, o país deixa de ser colônia de Portugal para se tornar Império (1822) e República (1889). O centro político, econômico e cultural transfere-se da Bahia, no nordeste, para o Rio de Janeiro, no atual sudeste. Na virada do século XIX para o século XX, a sociedade brasileira passa por uma série de transformações que reordenaram as diferentes relações sociais. Dentre elas, cabe ressaltar a explosão demográfica e a industrialização, mencionadas por Teyssier, acompanhadas do êxodo rural. Segundo os dados dos Censos 1900 e 1940 do IBGE, a população do país aumenta, em um intervalo de quarenta anos, de 17.318.556 para 41.236.315 habitantes. Os “surtos” de industrialização nas primeiras décadas da República levam uma massa da população a se deslocar do campo para as cidades, do norte-nordeste para o sudeste do país. O desenho do espaço urbano é gradativamente remodelado, à medida que os migrantes se acomodam nas cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. A própria escola brasileira começa a se estruturar, a desenvolver um sistema educacional que atenda – ainda que precariamente – a população que chega às cidades (FÁVERO, 2009, p. 25). A história recente do Brasil é profundamente marcada por mudanças que remodelaram toda a estrutura social do país. Vale lembrar, ainda, que esse período historicamente efervescente que marca a virada do século XIX para o século XX coincide 89 com o surgimento do Brasil enquanto país propriamente dito (LEMOS, 2004, p. 255). País esse que, ainda no princípio do século XXI, tenta se colocar definitivamente nos trilhos do desenvolvimento político e econômico. A história é recente porque o país é recente: não podemos falar em uma sociedade genuinamente brasileira com grande segurança antes do século XX. Diante desse cenário, acreditamos que seria um enorme equívoco ignorar essas transformações históricas e sociais em nosso estudo. A sociedade mudou e, acompanhando-a, a língua também mudou. Brasileiros e brasileiras de diferentes regiões, com seus diferentes falares, se encontraram no cenário urbano a partir do século XX e as trocas linguísticas, certamente, foram inevitáveis. Evidenciamos o desejo de, ao fim das análises acerca dos dados obtidos a partir das cartas pessoais, conseguir interligar os elementos sociais com as formas dativas de segunda pessoa estudadas. Esperamos demonstrar que o quadro linguístico que hoje se apresenta no português brasileiro emerge em consonância com a formação da sociedade brasileira; em outras palavras, desejamos fornecer, com esse estudo, uma evidência da norma brasileira que foi sendo construída ao longo de todo o século passado. 4.4. Metodologia Após a exposição dos pressupostos teóricos de uma pesquisa sociolinguística histórica, é necessário delinear a metodologia construída para esta dissertação. Enumeramos nas seções anteriores os problemas enfrentados e as soluções encontradas para os mesmos. Na presente seção, apresentamos o corpus final utilizado na análise, destacando as fontes das cartas e os informantes que compõem as dez amostras. Finalizamos a seção comentando a natureza e a qualidade dos dados obtidos a partir do corpus. 4.4.1. O corpus, suas fontes e informantes As cartas particulares compiladas para o corpus desta dissertação são marcadas pela heterogeneidade não só no plano linguístico, mas também no nível social: reunimos nessa amostra desde documentos escritos por brasileiros ilustres, como o médico e sanitarista Oswaldo Cruz e o ex-presidente da república Affonso Penna até cartas trocadas por um casal de noivos, completamente anônimos, cujas cartas foram recolhidas do lixo. Julgamos que essa diversidade sociolinguística dos remetentes mais engrandece do que problematiza o nosso 90 estudo. Os dados obtidos, analisados no próximo capítulo, constroem um verdadeiro mosaico da representação da 2ª pessoa do singular na posição de complemento dativo. Através deles, foi possível verificar com clareza a dinâmica incessante das variantes em competição, em quadros e distribuições que se alteram significativamente ao analisarmos determinado período e determinada amostra. Para que fosse possível reunir um número relevante de dados, com informantes variados, precisamos recorrer a diversas fontes. Utilizamos, basicamente, três fontes diferentes: Acervos de pesquisa e documentação; Publicações de pesquisadores em obras de edição; corpora utilizados em teses e dissertações sobre pronomes. No que se refere à primeira fonte de pesquisa, consultamos dois acervos diferentes: o Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz (COC), situado na cidade do Rio de Janeiro, e o Corpus Compartilhado Diacrônico (CCD), disponível online no site do Laboratório de História do Português Brasileiro da Universidade Federal do Rio de Janeiro20. No DAD, pudemos ter acesso à série de documentação pessoal do médico Oswaldo Cruz e sua família. Com a autorização do responsável pelo setor, foi possível fotografar parte da documentação disponível, posteriormente transcrita, editada 21. Os Acervos Cupertino do Amaral, Affonso Penna Júnior, Land Avellar e Jayme-Maria “Casal dos anos 30” foram obtidos por meio do CCD. Na página da internet do Laborhistorico, há 10 amostras disponíveis para consulta em quatro versões para leitura, além de um léxico de edições: diplomática (HTML), modernizada (HTML), texto simples original e texto simples modernizado. Todo o material é fruto do trabalho de transcrição e edição de pesquisadores de Iniciação Científica, mestrado e doutorado da UFRJ que trabalham com linguística histórica e história do português brasileiro. Boa parte dos acervos, inclusive, é parte de teses e dissertações já defendidas, como é o caso do Acervo Affonso Penna Júnior, analisado por Pereira (2012), e Acervo Land Avellar, estudado por Silva (2012). Os documentos organizados em publicações, nossa segunda fonte, foram extraídos de duas obras: A norma brasileira em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899), organizado pelos professores Dinah Callou e Afranio Barbosa e publicado em 2011; Língua e Sociedade: A história do pronome “Você” no português brasileiro, da professora Márcia Rumeu, publicado em 2013. O primeiro título reúne 17 cartas endereçadas ao político e diplomata brasileiro Rui Barbosa, editadas e disponibilizadas nas versões fac-símile e diplomático-interpretativa. A obra de Rumeu (2013) consiste na publicação da tese de 20 21 <http://www.letras.ufrj.br/laborhistorico> Atualmente, as cartas da Família Cruz encontram-se disponíveis na página da web do CCD. 91 doutorado da autora, defendida em 2008. No livro, Rumeu apresenta ainda 170 missivas das Famílias Pedreira Ferraz e Magalhães, editadas pela mesma. A terceira e última fonte foi extraída dos trabalhos acadêmicos já defendidos que adotaram como corpus cartas particulares. Conforme já mencionamos, participam desse conjunto as dissertações de Souza (2012), Pereira (2012), Silva (2012) – disponíveis no site do Laborhistorico – e a tese de Paredes Silva (1988). As 70 cartas utilizadas na análise da tese Cartas cariocas. A variação do sujeito na escrita informal estão guardadas nos arquivos pessoais da professora Vera Lúcia Paredes Silva, que gentilmente nos cedeu para esta pesquisa22. Apresentamos, na sequência, alguns dados biográficos importantes acerca dos autores das missivas: i) Acervo Oswaldo Cruz (1891-1915): Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu em 1872, na cidade de São Luís do Paraitinga, no estado de São Paulo, e formou-se em medicina na Faculdade do Rio de Janeiro. Ficou internacionalmente conhecido por seus estudos sobre doenças tropicais e introduziu a medicina experimental no Brasil. Em 1900, fundou o Instituto Soroterápico Nacional, atualmente conhecido como a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Além da sua atuação na área médica, Oswaldo Cruz também era ligado à literatura e às artes em geral, tendo ocupado, inclusive, a cadeira de número 5 da Academia Brasileira de Letras. Foi casado com Emília da Fonseca, filha de um rico comerciante português. Juntos, tiveram seis filhos: Elisa, Bento, Hercília, Oswaldo, Zahra e Walter. A amostra reúne 42 cartas trocadas entre os membros da família do cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Há documentos de três remetentes: do próprio Oswaldo Cruz, de sua esposa, Emília Fonseca (tratada por “Miloca” nas cartas), e da filha mais velha, Elisa (“Lizeta”). Os textos são autógrafos, assinados e relatam, dentre outras coisas, as inúmeras viagens de Oswaldo Cruz pelo Brasil e pela Europa a trabalho. Encontramos, também, cartas trocadas pelo casal quando ainda eram noivos. Percebemos com clareza, ao ler as missivas, que os escreventes adotam um padrão linguístico bastante conservador, apresentando alto grau de letramento e domínio do registro escrito. Das 42 cartas analisadas, 27 estão disponíveis no CCD e o restante encontra-se em fase de edição. 22 Como o conjunto de cartas em questão não se encontra alocado em nenhum acervo público e/ou digital específicos, referimo-nos a ele como “Amostra de Cartas Cariocas – década de 1980”, rótulo criado neste trabalho. 92 ii) Acervo Cupertino do Amaral (1873-1895): Antônio Felizardo Cupertino do Amaral, nascido em 1852, no Rio de Janeiro, era filho do Comendador Antônio José Cupertino do Amaral e de Joana Cândida Melo do Amaral. Formado em Direito pela Faculdade de São Paulo, teve uma vida política bastante ativa nos últimos anos do Império: oficial de gabinete em 1880, subdiretor da Secretaria de Negócios do Império em 1887, subdiretor da 3ª Seção da Secretaria de Negócios do Exterior em 1890, diretor-geral do gabinete da mesma Secretaria em 1891 e secretário de gabinete do ministro da Justiça e Negócios Interiores entre os anos de 1897 e 1898. Colaborou no projeto e prontuário do código civil, de Clóvis Bevilacqua, em 1901 e publicou a obra “Sinopse da legislação brasileira” em 1903. Escreveu, ainda, “Prontuário do Código Civil Brasileiro”, “Índice do prontuário” e “Apontamento da legislação e Direito Civil”. Faleceu em 1906 no Rio de Janeiro. Os documentos originais estão guardados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, sob o título de “Família Antônio Felizardo Cupertino do Amaral”. 35 missivas foram coletadas por pesquisadores do Laborhistorico, estando disponíveis, atualmente, no CCD 23 documentos. O material consiste em cartas escritas no final do século XIX por Cupertino para a esposa Elisa e para a filha Marietta, e recebidas por ele de diferentes remetentes, como de sua mãe Helena, sua prima Anna Espinola e seus amigos Pedro e Alberto Fiacho. iii) Acervo Affonso Penna Júnior (1896-1926): A família Penna, oriunda da cidade de Santa Bárbara, no interior de Minas Gerais, teve como mais membro importante o ex-presidente da república Affonso Augusto Moreira Penna (1847-1909), que governou o Brasil entre 1906 e 1909. Affonso Penna era graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e foi um dos fundadores da “Faculdade Livre de Direito” de Minas Gerais, atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Casou-se com Maria Guilhermina de Oliveira, sobrinha do marquês do Paraná, com quem teve nove filhos. Seu filho primogênito, Affonso Penna Júnior (“Affonsinho”), formou-se em Direito na UFMG (1902), em Belo Horizonte, cidade onde também integrou grupos literários e cultivou a poesia simbolista. Foi professor de Direito na mesma Universidade, deputado estadual duas vezes por Minas Gerais e Ministro da Justiça e Negócios interiores do Brasil, reitor da Universidade do Distrito Federal (RJ), juiz do Supremo Tribunal Eleitoral e jornalista. Integrou a Academia Brasileira de Letras, ocupando cadeira número 7. Casou-se com Marieta Germano Pinto Penna, com quem teve sete filhos. 93 A amostra é formada por 79 cartas escritas no Rio de Janeiro pela mãe, pai, tia, esposa, irmãos, primos e amigos de Affonso Penna Júnior. Estão disponíveis no corpus do CCD, até então, 30 cartas. A maioria das cartas foi escrita por Maria Guilhermina ao filho Affonso Penna Júnior. iv) Acervo Land Avellar (1907-1917): Alarico Land Avellar, nascido em 1882 no município de Vassouras, Rio de Janeiro, era filho do comerciante e proprietário da Gazeta de Petrópolis, Sr. Júlio César Ribeiro de Avellar e de D. Helena Land Avellar, e tinha seis irmãos: Eurico, Maria Carolina, Waldemar, Tito, Edgar e Aluízio. Foi jornalista, Delegado Fiscal junto à Escola Normal Livre de Petrópolis e Diretor Secretário da Rede Ferroviária Federal. Casou-se com Rita Morgado Avellar. Sem deixar descendentes, faleceu no Rio de Janeiro em 1977, vitimado de pneumonia. Grande número de cartas dessa família tem como remetente a mãe de Alarico, Helena Land Avellar, que escreve sobre sua rotina em Petrópolis, problemas familiares e questões financeiras. Há também cartas do filho para a mãe, nas quais ele fala de negócios e da vinda dela para a cidade. Alarico escreve, ainda, ao pai, Julio Avellar, e aos irmãos Eurico, Waldemar e Maria Carolina (“Chuchinha”). O assunto principal das cartas destinadas ao pai é o irmão Waldemar, que só lhe escreve para falar de problemas. A amostra constitui-se de 29 cartas, disponíveis no site do CCD. Os originais manuscritos estão armazenados no Arquivo Nacional/RJ. v) Acervo Jayme-Maria “Casal dos anos 30” (1936-1937): As missivas do casal Jayme e Maria foram editadas por Silva (2012), que propõe alternativas digitais metodológicas para traçar o perfil sociolinguístico de remetentes. Os documentos pertencem a indivíduos não ilustres, associados a segmentos sociais mais baixos, e que, infelizmente, contêm dados biográficos escassos, o que torna seus autores praticamente anônimos. Todos os dados biográficos disponíveis foram extraídos das próprias cartas. Jayme Saraiva e Maria Ribeiro eram pessoas comuns, não ilustres: ele era residente do bairro de Ramos, na área do subúrbio do Rio de Janeiro e trabalhava no centro da cidade da antiga capital federal; ela morava em Petrópolis e era mãe solteira de uma menina, chamada Hilda. Ambos moravam com seus pais; a mãe de Jayme não gostava de Maria, e isso impedia o casal de se encontrar com frequência. Os encontros costumavam acontecer, 94 secretamente, na Igreja da Penha, aos domingos (Maria era muito religiosa) ou na Rua Uruguaiana, próximo ao trabalho de Jayme. Ambos, apesar de serem alfabetizados, detinham pouco domínio da cultura letrada (Jayme possuía, aparentemente, maior domínio da norma culta escrita, talvez em razão de trabalhar com comércio, o que gerava maior contato com a língua escrita, diferentemente de Maria, que estava restrita às tarefas do lar). A amostra é formada por 96 missivas, sendo 66 do noivo e 30 da noiva. Estão disponíveis no CCD 42 cartas, já transcritas e editadas, sendo 23 do Jayme e 19 da Maria. vi) Acervo Família Pedreira Ferraz-Magalhães (1879-1948): João Pedreira do Couto Ferraz (Conselheiro Pedreira, Dr. Pedreira ou Pai Pedreira) é o patriarca da família, nascido em 1826, no Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Academia de Olinda (1848), foi nomeado Moço da Câmara pelo Imperador Dom Pedro II, tendo sido promovido, posteriormente, a Veador da Casa Imperial. Chegou à função de Secretário do Supremo Tribunal Federal, exercendo tal cargo por mais de 50 anos. Casou-se em 1856 com Elisa Amália de Oliveira Bulhões, logo em seguida, foi morar no morro Inglês (bairro do Cosme Velho atualmente). Depois de alguns anos, o casal mudou-se para o Alto da Boa Vista (Tijuca), local onde criou os seis filhos: Maria Teresa, Zélia, João, José, Antonio, Guilhermina. Além de se corresponder com filhos e netos, o Dr. Pedreira também escrevia para o genro, Jerônimo de Castro Abreu Magalhães, casado com sua filha Zélia. Desse casal é que se formou a família Pedreira Ferraz-Magalhães. Jerônimo Magalhães, nascido em 1851, na cidade de Magé (RJ), foi levado para Portugal por seu pai após o falecimento de sua mãe, onde foi criado por uma tia materna. Estudou no Colégio dos Nobres em Lisboa e cursou Humanidades na Alemanha. Após se formar, Regressou ao Brasil. Em 1875, cursou Engenharia Civil, e, devido a isso, foi nomeado lente catedrático da Escola de Minas, de Ouro Preto pelo Imperador. Casou-se com Zélia Pedreira de Abreu Magalhães em 1876. Dessa união, nasceram treze filhos: Maria Elisa, Maria Rosa, Maria Leonor, Maria Bárbara, Maria Teresa, Maria Joana, Maria Amália, Maria de Lourdes, Jerônimo, Francisco José, Fernando, João Maria e Luis – dos quais faleceram ainda na infância os filhos Maria Teresa, Maria de Lourdes, Francisco José e Luís. As missivas versam, em geral, sobre a saudade que sentiam, já que os filhos de Zélia tornaram-se religiosos, o que tornava a distância algo constante na família. Outro assunto tratado nos textos dos irmãos é o falecimento dos pais, Jerônimo e Zélia; apesar de estarem ausentes quando a mãe faleceu, eles decidiram escrever uma biografia sobre a mãe, retratando 95 a devoção que ela tinha por sua família e pela religião. Das 170 cartas – cujos originais estão no Arquivo Nacional do RJ – coletadas e editadas por Rumeu (2008), 33 encontram-se no site do CCD23. vii) Cartas a Rui Barbosa (1893-1895): Como já adiantamos anteriormente, a amostra de “Cartas a Rui Barbosa” foi extraída do livro A norma brasileira em construção: cartas a Rui Barbosa (1866 a 1899), organizado por Callou e Barbosa (2011) e que reúne 17 cartas endereçadas ao político e diplomata brasileiro Rui Barbosa. Dentre elas, encontram-se 6 missivas de Carlos Nunes de Aguiar, as quais integramos ao corpus. Carlos Nunes de Aguiar nasceu no Rio de Janeiro em 1844. Foi major, coronel, Presidente de “A Imprensa” e Vice-presidente do Clube Frontão Brasileiro. Escrevia ao amigo, Rui Barbosa, dando notícias sobre sua vida, sua família e sobre a família de Barbosa no período em que este se encontrava exilado em Haia, na Holanda, e em Campinas. Carlos informava também sobre assuntos particulares, seus negócios e os de Rui Barbosa, principalmente sobre a casa desta, situada na Rua São Clemente, no bairro de Botafogo (RJ). Além disso, suas cartas tratam da situação geral do Brasil, sobretudo do cenário político da época (1894-1895). Fala, ainda, da imprensa no Rio de Janeiro, das barbaridades que ocorriam no tempo do então presidente da república Floriano Peixoto, da situação dos frontões e da repercussão na cidade do Rio de Janeiro. viii) Cartas da Família Brandão (1972-1973): Francisco de Carvalho Soares Brandão Neto nasceu em 1904 no Rio de Janeiro. Graduou-se pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro na primeira turma de bacharéis da Universidade do Rio de Janeiro; foi promotor e subprocurador fiscal de São Paulo. Anos depois, advogou para a Caixa Econômica do Rio de Janeiro, onde se casou com Maria Martins Penna, não deixando descendentes. Associado ao Colégio Brasileiro de Genealogia, dedicou-se aos estudos genealógicos, vindo a escrever o livro Glorioso passado – documento histórico. Para elaborar a obra, Brandão Neto contou com o auxílio de um grande amigo, Heitor Lyra, secretário de embaixada e embaixador do Brasil em Ottawa, em Lisboa e no Vaticano. 23 Em Rumeu (2013), estão disponíveis todas as cartas da família, editadas e reunidas em um CD-ROM que acompanha a obra impressa. 96 A amostra é composta por 13 cartas redigidas por Brandão Neto e destinadas ao embaixador Lyra. Os documentos originais estão guardados no Arquivo Nacional/RJ e, até o momento, ainda não foram disponibilizados no corpus do CCD (os mesmos encontram-se em fase de edição). Os assuntos das missivas relacionam-se à genealogia da família Soares Brandão, visto que Heitor Lyra era um grande especialista em História e Genealogia, chegando a chefiar, inclusive, o Instituto Histórico Brasileiro e o Instituto Genealógico Brasileiro. ix) Acervo Família Lacerda (1977-1979): A amostra da Família Lacerda é um material que chegou recentemente ao Laborhistórico/UFRJ, cedido por membros da referida família e que ainda está em fase de edição. Trata-se de uma família natural de Minas Gerais que, posteriormente, passou a residir na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. A maioria das cartas foi escrita no período em que uma das filhas do casal estudou no Rio e, posteriormente, nos Estados Unidos. Embora seja um precioso material de uma fase na qual começavam a emergir outros meios de comunicação – como o telefone, por exemplo – não utilizamos, na constituição do corpus, cartas de remetentes mineiros24. Dessa amostra, analisamos 12 cartas escritas por um amigo carioca da filha dos Lacerda, com quem ela manteve um relacionamento afetivo durante o tempo em que estudou no Rio de Janeiro. O rapaz escreveu as cartas no período em que a moça estava nos Estados Unidos. Dentre outras coisas, ele pede notícias dela, interessa-se em saber se ela estava gostando de alguém de lá, relata sua rotina de graduando em medicina e, muito discretamente, fala dos seus sentimentos por ela. As missivas são marcadas por um tom jovial, predominando assuntos descontraídos tratados com bom humor. x) Acervo de Cartas Cariocas – década de 1980: As 70 cartas que constituem a amostra de “Cartas Cariocas – década de 1980” não estão disponíveis em nenhum corpus ou arquivo público. Elas foram gentilmente emprestadas pela professora Vera Lúcia Paredes Silva, que controlou com extremo rigor sociolinguístico as informações relativas aos informantes. A amostra é formada por 42 informantes, todos cariocas, embora residissem em bairros diferentes da cidade do Rio de Janeiro. Paredes Silva 24 O subsistema de referência à 2ª pessoa do singular utilizado em Minas Gerais é diferente do subsistema carioca, sendo o pronome você a forma exclusiva na posição de sujeito (cf. LOPES & CAVALCANTE, 2011, p.37-39). 97 (1988) organizou-os segundo os critérios de faixa etária (jovens e adultos), escolaridade (a maioria possuía ensino superior completo), sexo (dos 42 informantes, 18 eram do sexo masculino e 24 do sexo feminino) e destinatário (a maior parte das cartas foi remetida a um destinatário feminino). A amostra de Paredes Silva (1988) foi integralmente obtida através de alunos e exalunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e são marcadas por um grau de relacionamento bastante estreito entre os correspondentes, haja vista que, ou eram parentes, ou amigos íntimos. Além disso, a maioria das cartas faz parte de uma correspondência mantida regularmente naquele período, o que atribui ao texto das missivas um caráter coloquial tanto no estilo quanto na temática. O Quadro 4.2, a seguir, sintetiza as informações principais descritas anteriormente: Título da amostra/família e período Nº de documentos analisados Fonte Oswaldo Cruz (1891-1915) 42 DAD – FioCruz Cupertino do Amaral (1873-1895) 23 CCD Affonso Penna Júnior (1896-1926) 30 CCD Land Avellar (1907-1917) 44 CCD “Casal dos anos 30” (1936-1937) 58 CCD Família Pedreira Ferraz – Magalhães (1879-1948) 20 Rumeu (2013) Cartas a Rui Barbosa (1893-1895) 5 Callou & Barbosa (2011) Cartas Família Brandão (1972-1973) 13 Souza (2012) Amostra de Cartas Cariocas (1979-1985) 71 Paredes Silva (1988) Acervo Família Lacerda (1977-1979) 12 CCD Quadro 4.2. Corpus analisado e suas fontes 98 4.4.2. Os dados O controle quantitativo dos dados foi o parâmetro adotado para estabelecer um equilíbrio na amostra. Estipulamos, para cada quarto do século analisado 25 (1880-1980), a média de 200 dados. Isso justifica, por exemplo, a maior ou menor quantidade de cartas e/ou informantes de determinada amostra em certo período. Após a leitura dos materiais documentais, destacamos os trechos que continham o fenômeno em análise e os transcrevíamos em um arquivo de dados. Depois do levantamento, as ocorrências foram etiquetadas com a codificação dos grupos de fatores elaborados para esta pesquisa. Em seguida, submetemos os dados codificados ao programa estatístico GOLDVARB-X, a fim de que pudéssemos obter as frequências das variantes segundo cada um dos grupos de fatores. A quantidade de dados obtida por carta não apresentou regularidade; houve cartas das quais extraímos um número entre 10 a 15 dados – quantidade notável para um fenômeno morfossintático tão específico –, enquanto outras renderam apenas 2 ou 3 (excetuando-se as cartas sem nenhuma ocorrência). Essa proporção também não estava vinculada ao tamanho da carta, isto é, ao número de fólios, pois várias cartas de 2 ou 3 fólios renderam muito mais ocorrências de estratégias dativas do que outras com 6, 8 e mesmo 10 fólios. Os fatores que se mostraram determinantes para o aparecimento ou não dos dados nas cartas são de ordem discursiva: o tema/assunto abordado pelo remetente (íntimo, familiar, social, político etc); o tom adotado pelo remetente (amigável, repressivo, autoritário, romântico); a implicação ou não do outro na cena discursiva, isto é, em cartas cujos assuntos restringiam-se a falar do remetente e do destinatário encontramos mais estratégias dativas de 2P do que naquelas cujos assuntos englobavam terceiros. 4.5. Conclusão do capítulo Em síntese, abordamos, no presente capítulo, os pontos-chave da discussão em torno da pesquisa sócio-histórica, destacando, principalmente, a constituição de corpora diacrônicos, os informantes de sincronias passadas, a representatividade e a validade empírica dos dados históricos. Elencamos, também, O Princípio do Uniformitarismo, a História Social, 25 Cabe destacar que os anos de 1880 e 1980, que vêm sendo mencionados até aqui e serão referenciados nas páginas seguintes, não devem ser tomados como um recorte cronológico preciso, haja vista que analisamos cartas de anos um pouco anteriores a 1880 e posteriores a 1980. Referimo-nos à diacronia analisada por essas datas procurando ressaltar, na realidade, as décadas que a envolvem. 99 o estilo e a reconstrução do contexto de produção como ferramentas importantes para o desenvolvimento do trabalho em sociolinguística histórica. Com base no corpus utilizado na pesquisa, discutimos as vantagens e desvantagens de se trabalhar com cartas pessoais, tendo em vista a natureza das fontes documentais, o perfil histórico dos remetentes e a representatividade da amostra para o período estudado. Na última seção do capítulo, explicitamos nossa metodologia de pesquisa, o corpus adotado, suas fontes e informantes, a natureza e a qualidade dos dados levantados para a análise. 100 5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Após todas as considerações de ordem teórica e metodológica feitas no capítulo anterior, cabe, agora, apreciar os dados levantados para esta pesquisa com o intuito de analisar as frequências e a distribuição das formas variantes de complemento dativo de 2ª pessoa na escrita epistolar de cariocas e fluminenses entre as décadas de 1880 e 1980. Para tanto, organizamos o presente capítulo de descrição e análise dos dados da seguinte maneira: na primeira seção, as formas variantes de dativo encontradas no corpus serão apresentadas e comentadas, bem como os grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos elaborados para a análise variacionista; em seguida, expomos os resultados globais, com as frequências registradas de todas as variantes localizadas no corpus; depois, analisamos os resultados relativos aos fatores estruturais e sociais controlados; por fim, apresentamos resultados de rodadas binárias, opondo a forma mais frequente te às demais estratégias identificadas para a identificação dos ambientes considerados mais favoráveis ao uso do clítico dativo te. Os valores mostrados foram calculados pelo programa estatístico GOLDVARB–X. Distribuímos tais valores entre tabelas e gráficos, adotando a forma de apresentação mais elucidativa do que queremos demonstrar. Todos os exemplos dados foram retirados do corpus em análise. 5.1. As variantes de dativo e os grupos de fatores No âmbito da representação pronominal da 2ª pessoa do singular, os complementos dativos encontrados no corpus apareceram sob a forma dos clíticos te e lhe, dos sintagmas preposicionados a ti, para ti, a você e para você. Além desses, houve ainda o dativo nulo, sem realização fonética, porém inferível pela estrutura argumental do verbo. Em outras palavras, todas as estratégias de realização possíveis para a posição sintática de dativo foram verificadas no material em questão. Em (48), seguem exemplos da ocorrência de cada uma dessas estratégias no corpus: (48) a. “Não te conto a maior, quero dizer te conto sim. Teu pai me chamou para voltar à sua casa quando eu pudesse.” [02-08-1978] 101 b. “Eu não apressei-me em escrever lhe falando no seu novo despacho porque a falar a verdade não fiquei contente com o lugar que lhe deram (...).” [14-11-1874] c. “Fora o que já ø contei, não tenho feito nada de extraordinariamente interessante.” [0805-1983] d. “(...) diz-se que Você é quem influe para que a revolução continue, enfim attribuem a ti tudo, nunca vi maior injustiça, espero que tudo isto desapareça e que venha a verdade.” [25-04-1894] e. “São 11 horas preciso dormir, se não fosse isso seria capaz de ficar a noite toda escrevendo para ti, dizendo tudo quanto sinto por ti, porque quando estou junto de ti a emoção embarga-me a voz, faz-me fugir as palavras, e fico mudo.” [02-03-1937] f. “Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e a você.” [04-04-1972] g. “Bia vou mandar prá você, como presente de aniversário, uma fita do grupo ‘Balão Mágico’. Espero que você a curta bastante, ok?” [24-10-1985] No que se refere aos grupos de fatores, elaboramos para a análise dos dados oito grupos, sendo quatro de natureza linguística e quatro de natureza extralinguística. São eles: a forma pronominal utilizada na posição de sujeito, o tipo de verbo quanto à estrutura argumental, as categorias distintivas quanto ao valor semântico do verbo, a forma do objeto direto, o período de tempo, o subgênero de carta particular, a seção da carta e a amostra do corpus na qual o dativo ocorreu. Vejamos a composição de cada grupo de fatores, seus objetivos e hipóteses: i) A forma pronominal utilizada na posição de sujeito tem como objetivo traçar um paralelo entre o sistema de 2ª pessoa predominante na posição de sujeito e as formas do complemento dativo, a fim de verificar se há ou não correlação no uso das estratégias nessas duas posições sintáticas. O principal intuito é mostrar a artificialidade da “uniformidade de tratamento” prevista na descrição gramatical para o PB. As possibilidades previstas por este grupo foram propostas em Lopes e Cavalcante (2011): remetentes com uso exclusivo do pronome tu como sujeito em uma mesma carta, remetentes com uso exclusivo de você como sujeito em uma mesma carta, remetentes com mescla de tratamento entre tu e você em uma mesma carta, além dos remetentes com uso de outras estratégias de referência à segunda pessoa (senhor, por exemplo). Esse controle tenta mostrar a variação dos paradigmas de 2P empregados no PB a partir da 102 observância dos três principais subsistemas de tratamento discutidos em Lopes e Cavalcante (2011): i) tu exclusivo; ii) você exclusivo; iii) tu e você (subsistema misto). A hipótese desse grupo de fatores é que apenas o uso do clítico te não seria condicionado pelas formas na posição de sujeito, visto que este apresenta uma produtividade significativa nos contextos de mescla de tratamento e mesmo nos contextos com uso exclusivo de você. (49) Subsistema I: Somente tu na posição de sujeito: “Eu soube que tu vinhas do dia 4 de Setembro. Ø pediste que tua mãe foste26 te buscar (...)” [24-09-1936] (50) Subsistema II: Somente você na posição de sujeito: “Não fique triste, porque não mandei nenhuma foto para você. É que eu não tive tempo de escolher quais você poderia querer, nem tive tempo de pensar em quais que eu gostaria que você mandasse para mim.” [08-05-1983] (51) Subsistema III: Variação entre tu~você na posição de sujeito: “Nunca Você me respondeu sobre a casa de Petropolis, que resolveram? O que me toca, pedi que o Padre Jerony-mo ponha com o d’elle, até que eu peça. (...). Não te Ø imaginas a penna que tive de não poder Jeronynho vir até aqui.” [18-01-1920] (52) “Penso (...) que o Senhor deve também prevalecer-se da moratória e não pagar, pois já consultei o nosso advogado e é ele desta opinião.” [19-08-1914] ii) O tipo de verbo quanto à estrutura argumental objetiva verificar se haveria condicionamento da estrutura predicativa do verbo sobre o uso das variantes dativas; em outras palavras, queremos investigar, com esse grupo, se o fato de o verbo projetar dois ou três lugares (des)favorece o aparecimento das estratégias clíticas, por exemplo. Por hipótese, acreditamos que os clíticos sejam mais recorrentes entre os verbos de três lugares, devido à presença do objeto direto. - Verbos de 2 lugares com argumento interno indireto: SU V OI 27 (53) “Se as condições financeiras o permitirem, é claro que eu te telefonarei.” [??-07-1983] 26 Interpretamos o vocábulo “foste” como um caso de hipercorreção para “fosse”, mais coerente com o contexto em que aparece. 27 SU= Sujeito; V= Verbo; OI= Objeto Indireto 103 “pro-curei o famoso Ramos, (...) mostrou se muito penalizado, disendo-me que deseja muito lhe servir etc. etc.” [25-04-1894] - Verbos de 3 lugares com argumento interno indireto ou ditransitivos: SU V OD OI (54) “De qualquer forma vou tentar te dar um número de telefone onde, em agosto, poderemos nos falar.” [??-07-1983] iii) A categoria distintiva quanto ao valor semântico do verbo foi um grupo de fatores pensado a partir da tipologia para os dativos em português proposta por Berlinck (1996, 2005) e já referida na presente dissertação no capítulo 2. Este grupo tem o intuito de observar se a semântica do verbo predicador é um fator condicionador de uso das diferentes formas estratégias de dativo. A hipótese aqui aventada é de que os verbos com a noção de transferência – prototípica para o dativo – vinculem-se mais fortemente às formas mais produtivas, ao passo que as formas de ocorrência mais restrita se encaixem, na representação do dativo, a outras noções semânticas. (55) Transferência material: “Papai comprou ontem á noite um título do Pro-English, não sei se você lembra, antes de você viajar vinham aqui em casa te oferecer um negócio deste.” [28-09-1980] (56) Transferência verbal e perceptual: “Contente que estou, resolvi fazer uma forcinha e escrever a voce esta coisa que se propõe a ser carta” (57) Movimento físico: “Assim que chegar a Paris vou dar immediato cumprimento a tua promessa e levar-te-ei uma imagem da N. D. des Victories” [24-12-1907] (58) Movimento abstrato: “tu sabes perfeitamente que eu dediquei todo o meu amor a você” [19-01-1937] (59) Interesse: “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai.” [02-08-1978] (60) Movimento: “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe chegam.” [28-05-1983] (61) Movimento psicológico: “Uma notícia que muito vai te agradar é esta hoje vou encher a proposta para o mês que vem entrar para a linha de tiro.” [25-09-1936] iv) A forma do objeto direto presente nos verbos de três lugares foi controlada com o objetivo de analisar se a manifestação desse complemento como clítico, sintagma (nominal, 104 pronominal ou oracional) ou objeto nulo interfere na forma do dativo 28. Nossa hipótese é que há interferência da manifestação de um objeto sobre o outro, principalmente quando o OD é um clítico; diferentemente do PE, o PB rejeita contrações do tipo “Dei-to”. Além disso, se a estratégia de realização do OD é uma forma “pesada” – um sintagma oracional, por exemplo – a concretização do dativo se daria por outra mais “leve” (um clítico, por exemplo). (62) OD = Sintagma Nominal: “Prometo que na próxima carta, mando umas fotos para você”. [08-05-1983] (63) OD Oracional: “Ontem à noite te prometi que iria hoje à casa de Dona Arminda, porém veja, meu bem, que minha dignidade manda que eu lá não vá (...)” [21-10-1889] (64) OD = clítico: “Todo o Trabalho que tiveste, que deve ter sido muito grande a julgar pela correção da biografia do [Padre Pio]. Esta ainda não apareceu; espero enviar-t’a este mês e escrever ao Frei Inacio”. [14-06-1933] (65) OD nulo: “fui obrigada a desprendê-la na compra de uma mesa devendo então pagar-te ø no fim do mês; caso essa quantia não te faça falta.” [19-02-1913] v) O subgênero de carta particular diz respeito a dois aspectos importantes para o estudo da variação pronominal: a temática predominante nas epístolas e o grau de intimidade entre remetente e destinatário. Percebemos que, dentro da amostra de cartas particulares havia subgêneros aos quais atribuímos os seguintes rótulos: a) cartas pessoais, trocadas geralmente entre amigos, em que geralmente havia pouca intimidade entre remetente e destinatário, com temáticas variadas; b) cartas familiares, trocadas entre membros de uma mesma família, geralmente enviando ou solicitando informações sobre os entes comuns, tratando de assuntos ou negócios familiares ou pedindo favores; nessas cartas, há um grau de intimidade mediano, pois, apesar da proximidade familiar, prevalecem relações interpessoais assimétricas (pais e filhos, tios e sobrinhos etc); c) cartas amorosas, trocadas entre casais de namorados, noivos ou amantes, em que predomina uma temática afetivo-emocional, tratando do relacionamento amoroso em si, com elevado grau de intimidade (SILVA, 2012, p. 42). Sendo assim, objetivamos, com esse grupo de fatores, examinar se os subgêneros arrolados exercem influência na escolha das formas de dativo feita pelos remetentes. Por hipótese, supomos que as cartas amorosas favorecem o uso de formas relacionadas ao pronome tu – os sintagmas a ti e para ti, principalmente – já que traz consigo um traço lírico-romântico típico do discurso 28 Evidentemente, houve a preocupação em separar os dados de dativo encontrados com os verbos de dois lugares. Neste grupo de fatores, os dados foram marcados com a etiqueta “não se aplica”. 105 amoroso. Além disso, acreditamos que o clítico lhe apareça quando há menor grau de intimidade entre remetente e destinatário, portanto, nas cartas pessoais. vi) A seção da carta foi o segundo grupo de fatores extralinguísticos controlados na pesquisa. Partimos do princípio de que o gênero carta particular constitui uma tradição discursiva 29 (KOCH, 1997; KABATEK, 2006) e, devido a isso, apresente fórmulas fixas, construções cristalizadas – principalmente nas saudações inicial e final. Tais fórmulas fixas podem atuar favorecendo, isto é, preservando determinadas formas dativas. A partir disso, optamos por dividir a estrutura das cartas em cinco seções frequentemente presentes (saudação inicial com captação de benevolência30, núcleo, seção de despedida, post-scriptum e outras diferentes destas) e marcar em qual dessas seções cada dado de complemento dativo ocorreria. Afirmamos, por hipótese, que as seções inicial e final constituam, de fato, fórmulas cristalizadas de cumprimentos e despedidas e que, por isso mesmo, cristalizem o uso de determinadas variantes. Abaixo, apresentamos exemplos das seções mencionadas, extraídos de uma carta escrita por Emília Fonseca, destinada ao esposo, o médico Oswaldo Cruz: (66) Saudação inicial com captação de benevolência: “Morta de saudades te escrevo estas linhas para saber se te succede o mesmo. Felizmente estamos todos bons e Bentinho afflicto para descer.” [17-10-1899] (67) Núcleo da carta: “Eu procuro me distribuir o mais possivel para não me lembrar que estas longe de mim! De dia coso muito, e de noute deito-me o mais cedo possivel. (...) Papae disse que quando quizeres o cavallo é só dizer na venda do Dyonisio que elle mandará o recado para cá” [17-10-1899] (68) Seção de despedida: “Adeus, Oswaldo recebe mil beijos e abraços d’esta que mais que nunca te estima e adora” [17-10-1899] 29 “Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.” (KABATEK, 2006, p. 512) 30 “Trata-se de uma seção relativamente fixa no gênero carta que ocorre no início da correspondência e serve para estabelecer o contato inicial entre remetente e destinatário antes mesmo de introduzir o assunto principal da carta.” (LOPES, 2011, p.365) 106 (69) P.S.: “P.S. Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e disse que ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para acceitar e apparecer. Elle parte para a Europa no dia 26 d’este mez” [17-10-1899] vii) O período de tempo tem, como objetivo geral, distribuir as ocorrências do corpus ao longo dos períodos em que as cartas foram produzidas. Além disso, queremos observar diacronicamente o comportamento da variação no século estudado. Para esse grupo de fatores, tomamos por hipótese que o clítico te seja a variante mais produtiva em todos os períodos, com percentuais relativamente estáveis, diferentemente das demais variantes, cujas oscilações de frequência seriam mais acentuadas. Diante disso, dividimos o período em questão em quartos de século, a saber: - 1º período (1880-1905); - 2º período (1906-1930); - 3º período (1931-1955); - 4º período (1956-1980). viii) Decidimos também codificar os dados segundo a amostra do corpus de onde foram extraídos. Julgamos importante saber a procedência de cada forma de dativo a fim de desfazer aparentes incongruências nos resultados; por vezes, resultados destoantes do conjunto (ou do esperado) só podem ser explicados a partir das características individuais dos missivistas, dada a forte heterogeneidade de ordem sócio-histórica existente entre os informantes das cartas. Embora não haja uma hipótese objetiva para este grupo, como apresentamos para os demais grupos, acreditamos que, não raro, aspectos de ordem social (grau de domínio sobre os modelos de escrita, categoria social a que pertence o indivíduo, círculo de convivência social etc) irão interferir na frequência e na regularidade de uso das variantes. Listamos, a seguir, as referidas amostras, já apresentadas no Quadro 4.2 do capítulo anterior: - Acervo da Família Cruz (1891-1915); - Acervo Cupertino do Amaral (1873-1895); - Acervo Afonso Penna Jr. (1896-1926); - Acervo Land Avellar (1907-1917); - Acervo Jayme e Maria “Casal dos anos 30” (1936-1937); - Acervo da Família Pedreira Ferraz-Magalhães (1879-1948); - Amostra de Cartas a Rui Barbosa (1893-1895); - Acervo da Família Brandão (1972-1973); 107 - Amostra de Cartas cariocas – década de 1980 (1979-1985); - Acervo da Família Lacerda (1977-1979). Apresentados os grupos de fatores, passemos à apreciação dos resultados obtidos nesta pesquisa: 5.2. Resultados gerais Dos 318 documentos analisados, obtivemos um total de 811 ocorrências de complemento dativo com referência à 2ª pessoa do singular. No Gráfico 5.1, expomos a distribuição das variantes em estudo. 2,7% 11,3% 0,4% 3,4% 2,6% te zero lhe 22,3% 57,2% a ti para ti a você para você Gráfico 5.1. Percentual de ocorrência das variantes dativas nas cartas cariocas e fluminenses (1880-1980) Como podemos observar, no gráfico 5.1, mais da metade dos dados de complemento dativo corresponde ao clítico te: 464 das 811 ocorrências levantadas no corpus, o que representa 57,2% da amostra. A segunda variante mais frequente foi o objeto nulo, com 22,3% (181 dados). O clítico lhe é a terceira forma mais produtiva, correspondendo a 11,3% das ocorrências (92 dados). Dentre as variantes de sintagma preposicionado, nenhuma atingiu 5% da amostra; contabilizamos 3,4% de para você (28 dados), 2,7% de a ti (22 dados), 2,6% de a você (21 dados) e 0,4% de para ti (3 dados). Observadas as frequências totais de ocorrência das variantes, passemos à distribuição das mesmas de acordo com os grupos de fatores linguísticos e extralinguísticos controlados: 108 - A forma pronominal utilizada na posição de sujeito A Tabela 5.1 apresenta a distribuição das formas dativas correlacionando-as ao tratamento de 2P utilizado na posição de sujeito. Na primeira coluna, indicamos o tratamento empregado numa mesma carta como sujeito: somente tu, somente você, tratamento variável de tu e você na posição de sujeito e outras formas tratamentais de 2P (o/a senhor/a). Nas demais colunas são apresentadas as formas dativas variantes identificadas em cada subsistema de tratamento. Os percentuais de frequência estão apresentados horizontalmente: Te zero Lhe a ti para ti a você para você TOTAL Somente 194 35 1 12 2 2 1 247 Tu 78,5% 14,2% 0,4% 4,9% 0,8% 0,8% 0,4% 30,4% Tu e Você 184 50 7 9 1 3 8 263 70,2% 19,2% 2,7% 3,4% 0,4% 1,1% 3,0% 32,4% Somente 85 80 75 1 - 16 18 275 Você 30,9% 29,1% 27,3% 0,4% - 5,8% 6,5% 33,9% Outras 1 16 9 - - - 1 27 Formas 3,7% 59,3% 33,3% - - - 3,7% 3,3% TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811 57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100% Tabela 5.1. Correlação entre o tratamento na posição de sujeito e as estratégias utilizadas como complemento dativo A tabela confirma a hipótese em relação a esse grupo de fatores: praticamente todas as estratégias de sintagma preposicionado assim como o clítico lhe são condicionadas pelo tratamento empregado na posição de sujeito. Apesar da baixa recorrência, 14 dos 25 dados de a ti e para ti ocorreram no contexto previsto, isto é, em cartas nas quais o missivista utilizou exclusivamente o pronome tu na posição de sujeito. Identificamos o mesmo resultado para as variantes a você e para você: juntas, totalizaram 49 ocorrências e, destas, 34 foram retiradas de documentos cujo tratamento na posição de sujeito era o você. As cartas com esse tipo de tratamento também foram as que mais registraram dados do clítico lhe, correspondendo a 75 das 92 ocorrências dessa variante. Abaixo, seguem exemplos dessas variantes: 109 (70) Sujeito tu exclusivo – dativo a ti: “Papai, Mamãe e Sinharinha mandam muitas lembranças a ti e a tua boa mãe a quem eu peço que me recomendes muito.” [19-041891] (71) Sujeito tu exclusivo – dativo para ti: “Peço-te que te não entristeças com a minha ausencia que será, está certa, a mais curta possivel. Passeia o mais possivel, compra cousas para ti, aproveitando os saldos d’agora Não deixes de ir com os pequenos ver os fantasmas tão falados.” [08-01-1915] (72) Sujeito você exclusivo – dativo a você: “(...) resolvi fazer uma forcinha e escrever a voce esta coisa que se propõe a ser carta, que apesar de terrivel e maçante voce não vai jogar fora e vai me perdoar pois uma coisa que não sei fazer, além de andar de skate, é escrever.” [30-01-1977] (73) Sujeito você exclusivo – dativo para você: “(...) vou me despedindo, mandando mil beijos para você, e desejando que você seja para sempre essa pessoa incrível que você é.” [??-03-1982] (74) Sujeito você exclusivo – dativo lhe: “Quincas enviou-lhe via maritima um livro sobre “Eça” do Gondim da Fonseca, lógo você receberá.” [20-04-1971] Fogem à “regra” o dativo nulo e o clítico te. O primeiro, por não estar associado a nenhum paradigma ou subsistema específico (de tu ou de você), evidentemente não estaria restrito a uma das possibilidades de tratamento controladas. Podemos perceber certo equilíbrio na distribuição dessa variante: dos 181 dados registrados, as cartas com uso exclusivo de você na posição de sujeito computaram 80 ocorrências, seguidas das cartas com uso variável entre tu e você no sujeito, com 50 ocorrências; entre as cartas com uso exclusivo de tu, foram computadas 35 ocorrências. As cartas menos favorecedoras à ocorrência de dativo nulo foram aquelas cuja referência à 2ª pessoa do singular na posição de sujeito foi feita por formas diferentes de tu e você: apenas 16 dados. Em (75)-(77), temos exemplos da ocorrência do dativo nulo com diferentes formas de tratamento no sujeito: (75) Somente você: “A sua conta eu ø mando depois vou ajuntar tudo o que você me deve não tenho pressa do cobre, enquanto estiver na sua mão não gasto eles (...)” [25-08-1907] (76) Tu e você: “Agradeço ø tudo o que me dizes; é para mim um consolo o receber noticias de meus queridos irmãos. Então você tem estado um pouco fraquinha, um pouco incommodada, pelo que me dizes, não é?” [20-02-1921] 110 (77) Somente tu: “Aqui no cartório existe a transcrição de um documento relativo a revolução de 42 que parece provar a traição de Joaquim Meis se quisseres ø mandarei cópia. [11-101907] O clítico dativo te apresentou uma distribuição curiosa: das quatro possibilidades de tratamento na posição de sujeito apreciadas (i- tu; ii-você; iii- você~tu; iv-o senhor), essa variante foi a mais recorrente em três delas: entre as cartas com uso exclusivo de tu – o esperado –, 194 dos 247 dados (78,5%); entre as cartas com mescla de tratamento tu/você, 184 dos 263 dados (70,2%); entre as cartas com uso exclusivo de você – o inusitado –, 85 dos 275 dados (30,9%). Esse resultado corrobora a afirmação dos estudiosos sobre o tema (cf. BRITO, 2001; RUMEU, 2008, 2013; LOPES & CAVALCANTE, 2011): o clítico te constitui a estratégia preferida para a expressão da segunda pessoa do singular em posição de objeto do verbo. Os exemplos ilustram essas ocorrências: (78) Somente tu: “Peço-te que não te esqueças de trazer a pérola quando vieres, sim? Pago aqui na Europa 50 libras a proporção que ele precisar, o resto quando eu puder no Rio.” [20-01-1915] (79) Tu e você: “Estimara que Você e todos os nosso queridos filhinhos tenham passado bem. depois que parti. Hei de escrever-te sempre ainda que sejam 2 linhas. Faz sempre que puderes o mesmo, pois já estou ansioso por uma carta.” [12-02-1886] (80) Somente você: “Tente resistir até o final (...), cabeçada a gente dá uma vez, tente resistir no tempo e no espaço pelo qual você vai permanecer aí. Se não conseguir, eu te aconselho a voltar.” [03-10-1980] Isso é nítido, principalmente, nas cartas em que o pronome tu varia com o você na posição de sujeito: é este o contexto que credencia o maior número de estratégias dativas, haja vista que conjuga no mesmo texto as formas de dois paradigmas. O clítico te, contudo, correspondeu a mais da metade dos dados desse tipo de documento no corpus em análise. O dativo nulo, segunda estratégia mais frequente no contexto de variação tu/você no sujeito, não contabilizou nem 20% dos dados (19,2%). Nas cartas em que há uso exclusivo de você, ainda que tenhamos verificado menor discrepância entre as frequências das variantes mais recorrentes – te, dativo nulo e lhe, contabilizaram aproximadamente 30% de ocorrências – a primeira apresentou leve vantagem sobre a segunda (30,9% contra 29,1%), em um contexto em que, hipoteticamente, deveria ser desfavorecido. 111 Ainda sobre a Tabela 5.1, vale ressaltar que, com outras formas na posição de sujeito estabelecendo referência à 2ª pessoa do singular, o uso de te é inexpressivo (3,7%). Nesse caso, a estratégia predominante foi o zero (59,3%), seguido do clítico lhe (33,3%). Esse forte desfavorecimento ao clítico te deve-se ao fato de essas outras formas de referência à 2ª pessoa relacionarem-se a um tratamento indireto, respeitoso; portanto, para marcar distanciamento, o uso de formas da 3ª pessoa é preferido frente à forma clítica de 2ª pessoa. Abaixo, temos ocorrências das variantes dativas mais frequentes com formas de tratamento na posição de sujeito: (81) Sujeito senhora – dativo nulo: “Espero que a senhora não descurará deste negócio, pois já deve estar farta de ser roubada. (...) Sem outro por hoje, peço ø queira aceitar com Papai e o Duddy muitas saudades e abraços (...)” [31-03-1917] (82) Sujeito senhora – dativo lhe: “Espero que ao receber esta, a senhora esteja passando melhor desta terrível moléstia que tanto a tem feito sofrer. (...) Conversei com o meu médico a seu respeito e (...) ele vai receitar e me dará depois para lhe remeter. [03-071917] - O tipo de verbo quanto à estrutura argumental Vejamos agora o segundo fator de natureza linguística, que diz respeito ao tipo de verbo quanto à estrutura argumental. Como mencionado anteriormente, controlamos, com base na proposta de Duarte (2003, p. 296), o número de argumentos que os verbos selecionam e a relação gramatical que esses argumentos desempenham. No caso do fenômeno em questão, interessa-nos apenas observar se os verbos com os quais o pronome dativo ocorre são ditransitivos, isto é, projetam dois argumentos internos, ou se são verbos de dois lugares com um argumento interno objeto indireto. No primeiro caso, estão os denominados pela tradição gramatical de transitivos diretos e indiretos. Estão, nesse caso, os verbos que selecionam um argumento externo, um argumento interno com relação gramatical de objeto direto e ainda um argumento interno relação gramatical de objeto indireto. Dentre os principais verbos ditransitivos estão: dar, pedir, enviar, dizer, mandar, desejar etc. como ilustrado a seguir: (83) “Diga ao Edgard que recebi a carta dele que não respondo porque a resposta é a que agora dou a você.” [13-05-1917] (84) “Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e a você.” [04-04-1972] 112 No segundo caso, os verbos de 2 lugares são tradicionalmente conhecidos como transitivos indiretos. São selecionados um argumento externo e um argumento interno objeto indireto. Dentre esses, figuram os verbos agradar, acontecer, pertencer, obedecer, suceder, interessar etc: (85) “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai.” [02-081978] (86) “Uma notícia que muito vai te agradar é esta hoje vou encher a proposta para o mês que vem entrar para a linha de tiro.” [25-09-1936] Os esquemas relacionais propostos para cada tipo são os seguintes (DUARTE, 2003, p. 296; 299): - Verbos de 3 lugares com argumento interno indireto ou ditransitivos: SU V OD OI31 - Verbos de 2 lugares com argumento interno indireto: SU V OI A tabela a seguir apresenta os resultados globais de todas as variantes dativas tendo em vista o número de argumentos internos do verbo predicador: Te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL Verbos de 24 1 6 7 - 2 3 43 2 lugares 54,6% 2,3% 13,6% 15,9% - 6,6% 6,9% 5,3% Verbos de 440 180 86 15 3 19 25 768 3 lugares 57,4% 23,4% 11,2% 2,0% 0,4% 2,3% 3,3% 94,7% TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811 57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100% Tabela 5.2. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à estrutura argumental do verbo predicador Em termos práticos, ainda não podemos dizer se nossa hipótese – clíticos são mais frequentes com verbos de três lugares – se confirma ou não. Na presente rodada com todas as estratégias dativas, como vemos na Tabela 5.2, os índices dos clíticos te e lhe, somados, representam mais da metade dos dados, tanto entre os verbos de 2 lugares (68,2%, 30 dos 44 dados) quanto entre os de 3 lugares (68,6%, 526 dos 767 dados). Será necessário, portanto, 31 SU= Sujeito; V= Verbo; OD= Objeto Direto; OI= Objeto Indireto 113 em outra etapa da análise, relativizar esse resultado, a fim de verificar os contextos que mais favorecem, de fato, o aparecimento de cada variante. Nos verbos de 3 lugares, a segunda estratégia mais frequente, além obviamente do te, é o dativo nulo com 23,4%. Esse resultado referenda uma possível hipótese de simplificação da estrutura verbal que se automatiza com um argumento externo e um interno apenas, daí o apagamento do OI. Comparativamente, sem levar em conta o número de dados brutos, mas os percentuais de frequência, os SPreps parecem favorecidos com os verbos de 2 lugares. Nesse caso, a segunda estratégia mais produtiva foi o SPrep a ti com quase 16% de frequência, seguido por a você e para você com 7% de produtividade cada uma, em termos aproximados. Os verbos de 3 lugares apresentaram índices baixos nos SPreps, com valores próximos de 3% ou abaixo disso. Expomos, a seguir, as 12 ocorrências das formas preposicionadas relacionadas aos verbos de 2 lugares. Voltando aos dados, identificamos que essas ocorrências estavam relacionadas aos verbos pertencer, referir, telefonar, ligar e corresponder: (87) “ (...) tu sabes que não pertenço a mais ninguém a não ser a você, tu sabes que todo o meu prazer é viver em teus braços, recebendo as tuas carícias e teus beijos, Oh quanto me sentiria feliz com isso.” [25-01-1937] (88) “O Visconde passou comigo uns 15 dias, sempre se referiu a você com muita amizades e tem você como um grande Historiador (...)” [07-06-1972] (89) “Nos dias que antecederam a minha saída de L.A. tentei telefonar p/você para me despedir, mas sempre durante o dia e nunca tinha ninguém em casa.” [s.d.-déc.1980] (90) “Hoje de manhã, mamãe e papai foram até a loja para ligar para você, por favor, desculpe de eu não ter ido, mas eu estava muito cansado.” [28-09-1980] (91) “Bom, estudei alemão e comecei a copiar o nosso trabalho. (...) Telefonei procê.” [??-??1982] (92) “(...) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu espero todo o meu ideal (...)” [22-09-1936] (93) “(...) recebe com amor muitos beijos deste teu apaixonado noivinho, que só a ti pertence.” [05-10-1936] (94) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937] (95) “Deste que tão somente a ti pertence aceita mil abraços, e o dobro de beijos, para que possas ser eternamente feliz (...)” [25-01-1937] 114 (96) “ (...) procurarei nos resto de dias de minha existência corresponder com o meu amor e o meu afeto, o amor que tanto me dedicas, portanto correspondo a ti, a altura que tu mereces.” [13-02-1937] (97) “ (...) desejaria escrever qualquer coisa que você gostasse. Apenas umas letrinhas dizendo que te amo muito, que tu és a flor de meus sonhos, (...) que és toda a minha felicidade, que a ti só pertenço, que ti és a rainha de meu coração (...)” [23-02-1937] (98) “(...) o futuro a ti pertence, os dias felizes virão, tenha confiança no teo destino” [05-031895] No caso dos verbos de 3 lugares, a diversidade de formas verbais foi notável: dentre as 62 ocorrências de sintagmas preposicionados levantadas, contabilizamos 23 verbos ditransitivos diferentes; os mais frequentes foram os verbos mandar (18 ocorrências), escrever (8 ocorrências) e dedicar (6 ocorrências). Os verbos levar, comprar e enviar somaram 3 ocorrências, cada um. Exemplificamos tais ocorrências em (99)-(104): (99) “Estou escrevendo da faculdade, sabe? Mande um abraço a seus irmãos e amigos. Mando a voce um beijo, cheio de saudades. Escreva-me se puder, tá?” [14-04-1977] (100) “Já não aguento mais falar com voce pela caneta. Não que não goste de escrever para voce mas porque prefiriria não precisar escrevê-las mais sim ditá-las ou dizê-las.” [2709-1978] (101) “(...) o meu coração terás eternamente em teu peito batendo dando-te vida, e o teu viverá em meu peito dando-me vida e alento para continuar dedicando a ti todo o amor que mereces (...)” [16-03-1937] (102) “Ela me pediu para lhe dizer que foi ao Correio levar 1kg de jornal para você, mas o prazo - mais de uma semana - e o preço: 1.100,00, não a animaram e ela desistiu.” [3108-1980?] (103) “(...) Passeia o mais possivel, compra cousas para ti, aproveitando os saldos d’agora” [08-01-1915] (104) “Basta meu querido Embaixador, Maria e eu enviamos um afetuoso abraço a Yolanda e a você.” [04-04-1972] Dando prosseguimento às observações gerais acerca da Tabela 5.2., percebemos que os verbos cuja estrutura prevê dois argumentos internos parecem favorecer a realização do complemento dativo em forma de clítico: dos 464 dados de te, 440 (94,8%) ocorreram com 115 verbos desse tipo. Com o clítico lhe, verificamos o mesmo quadro, tendo ocorrido 86 (93,4%) dos 92 dados dessa variante com verbos de três lugares. Em relação ao dativo nulo, o favorecimento dos verbos de 3 lugares – ou, vendo do ângulo inverso, a restrição dos verbos de 2 lugares – é bastante evidente: das 181 ocorrências no corpus, apenas 1 não foi com verbo bitransitivo. Nesse dado, extraído do núcleo da carta de um dos informantes do 4º período analisado (1956-1980) endereçada à sua mãe, o verbo de 2 lugares em questão é telefonar, reproduzido abaixo: (105) Você pensa essas coisas todas, e mais alguma coisa que você quiser, porque quando eu ø telefonar (provavelmente 4ª feira de manhã) você me dá as respostas todas. [17-121983] - A categoria distintiva quanto ao valor semântico do verbo A próxima variável linguística a ser focalizada também está relacionada ao verbo, porém do ponto de vista semântico. Com base na tipologia proposta por Berlinck (1996, 2005), apresentada no capítulo 2 desta dissertação, analisamos o valor semântico dos verbos com os quais as variantes de dativo ocorreram no corpus. Reproduzimos, no Quadro 5.1 as formas verbais prototípicas de cada classe semântica: VALOR SEMÂNTICO DO VERBO Transferência material EXEMPLOS dar, distribuir, entregar, mandar, oferecer, comprar, pedir Transferência verbal e perceptual aconselhar, contar, dizer, ensinar, escrever, jurar, perguntar, prometer, responder, telefonar Movimento físico conduzir, dirigir, encaminhar, lançar, levar, pôr, trazer Movimento abstrato anexar, atribuir, conferir, dedicar, destinar, filiar, submeter, trazer Interesse assistir, obedecer, servir, corresponder, pertencer, acontecer, faltar, parecer, ser Movimento chegar, escapar, entrar, fugir, ir, vir Movimento psicológico agradar, importar, interessar, satisfazer, admirar, alegrar, emocionar, entristecer, preocupar Quadro 5.1. Valores semânticos dos verbos que selecionam complemento dativo 116 A distribuição das sete variantes de complemento dativo aparece na Tabela 5.3: te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL transferência 145 66 29 4 1 5 17 267 material 54,3% 24,7% 10,9% 1,5% 0,4% 1,9% 6,4% 32,9% transferência 261 102 48 2 1 9 9 432 verbal/ 60,4% 23,4% 11,1% 0,5% 0,2% 2,1% 2,1% 53,2% movimento 36 13 9 2 1 3 1 65 físico 55,4% 20,0% 13,8% 3,1% 1,5% 4,6% 1,5% 8,0% movimento 7 - 1 7 - 2 1 18 abstrato 38,9% - 5,6% 38,9% - 11,1% 5,6% 2,2% interesse 9 - 2 7 - 1 - 19 47,4% - 10,5% 36,8% - 5,3% - 2,3% - - 1 - - - - 1 - - 100,0% - - - - 0,1% movimento 6 - 2 - - 1 - 9 psicológico 66,0% - 23,0% - - 11,0% - 1,2% TOTAL 464 181 92 22 3 21 28 811 57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100% perceptual movimento Tabela 5.3. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto ao valor semântico do verbo predicador Atendo-nos inicialmente aos tipos semânticos em si, percebemos a alta incidência dos verbos com a noção de transferência – seja material, seja verbal e perceptual – na amostra analisada: 699 dos 811 dados de complemento dativo coletados ocorreram relacionados a verbos com essa noção. Os verbos de transferência verbal e perceptual foram mais frequentes do que os de transferência material, fato que podemos relacionar à natureza do corpus: tratando-se de uma amostra de língua escrita, na qual os indivíduos trocam informações diversas (pedidos, notícias de familiares, conselhos etc), as “transferências” em questão envolvem atos comunicativos, marcados pela presença dos verbos dicendi: dizer, contar, falar, perguntar, prometer, responder, dentre outros, conforme podemos atestar nos exemplos: 117 (106) O que tem de novo para te contar é pouca coisa, não há nada nada de novo. [25-081907] (107) Desde já te digo, que, cravos no Paraná nada tem que preste, o compadre foi quem arranjou [05-10-1909] (108) Então te pergunto. Se você puder comprá-lo e me enviar, não seria mais barato? Ou melhor ainda, se você pudesse fotocopiá-lo (xerocá-lo) acho que seria ainda mais barato. [??07-1983] (109) Não posso informar-te quando podemos conversar. mas farei o possível para ser o mais breve, tenha confiança em mim pelo amor de Deus (110) Tente resistir até o final Delinha, cabeçada a gente dá uma vez, tente resistir no tempo e no espaço pelo qual você vai permanecer aí. Se não conseguir, eu te aconselho a voltar. [0310-1980] Os verbos de interesse contabilizaram 19 dados, o que representa 2,3% da amostra. Essa categoria semântica foi mais frequente com as variantes te (9 ocorrências, 47,4%) e a ti (7 ocorrências, 36,8%). Os 7 dados registrados para a forma preposicionada, 6 ocorreram com o verbo pertencer, ao passo que a forma clítica ocorreu curiosamente com 9 formas verbais distintas: atender, pertencer, suceder, acontecer, servir, corresponder, faltar, ser e parecer. Entendemos que o emprego de a ti constituiu um uso bem marcado em nosso corpus, visto que 6 das 7 ocorrências foram obtidas nas cartas amorosas do informante Jayme, marcadas por forte lirismo amoroso. Em contrapartida, além de ser a variante mais frequente, o clítico te constitui um uso não marcado, como ficou evidenciado pela grande variedade de verbos em tão poucos dados, ilustrados a seguir, ao lado dos exemplos de a ti: (111) “(...) nesta carta vou renovar o pedido que constantemente te faço, e, peço que em meu nome o faças à tua boa Mãe, que, boa como ela é com certeza te atenderá: volta, meu anjo, volta, querida, porque do contrário eu não resisto mais (...)” [16-04-1891] (112) “Após uma semana e tanto de angustias, (...) receando a cada instante pela minha saúde e vida, que te pertence e à nossos filhos, (...) eis-me felizmente livre déssas preocupações, são e salvo, a espera do momento feliz em que estarei junto de ti no seio de nossa querida familia.” [01-01-1899] (113) “Morta de saudades te escrevo estas linhas para saber se te succede o mesmo.” [17-101899] 118 (114) “Quero (...) que voce tome muito cuidado com tudo o que vá te acontecer ai. Pense bem antes de toma uma solução pois garotos aproveitadores estão espalhados por todo o mundo (...)” [02-08-1978] (115) “(...) ponho-me em teus pés para servir-te de escravo, expondo-me aos teus mandos.” [16-03-1937] (116) “(...) cada vez acredito mais minha querida que teu amor me é sincero, um amor puro criado somente para mim, e o mesmo correspondo-te eu, que vivo na ânsia de cada vez te amar mais (...)” [25-01-1937] (117) “Diz-me que as meninas já estão convencidas que devem, ficar e estão satisfeitas, a minha questão é de ti e da Senhora acredito que na occasião te faltará a coragem e a ellas tambem (...)” [05-03-1895] (118) “Não te esqueças de estudar as línguas; a inglesa e a alemã podendo ser e o italiano. Talvez aí te seja fácil na casa mãe obter quem te ensine.” [08-06-1905] (119) “Não te parece que é um consolo para nós, que tenha podido entrar no seu convento!” [11-09-1919] (120) “(...) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu espero todo o meu ideal (...)” [22-09-1936] (121) “(...) recebe com amor muitos beijos deste teu apaixonado noivinho, que só a ti pertence.” [05-10-1936] (122) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937] Os verbos de movimento psicológico somaram 9 dados, sendo 6 ocorrências relacionadas com a forma te; 4 dessas ocorrências estavam relacionadas ao verbo interessar, e as outras 2 foram registradas com os verbos importar e agradar. Os 2 dados do clítico lhe ocorreram com os verbos agradar e interessar. A única ocorrência do SPrep a você foi registrada não com um verbo simples, mas com uma construção verbo-nominal que exprime noção de movimento psicológico: “ficar grato”. Vejamos os exemplos: (123) “ ‘Pisa Lectures’, ‘Formal Syntax’ e a tese da Myriam estão comigo (+ o Ruwet, ‘Gramática Gerativa’). Posso enviá-los, se eles te interessam no momento.” [??-081983] (124) “Aproveite ao máximo o que há de bom e se isso tudo não lhe interessa considere aquela sua idéia de só ficar para este primeiro período.” [31-08-1982?] 119 (125) “Visto que o retrato lhe agradou, vou ver si tiro outro com o rabut francez; mandarei logo para você e para os outros irmãos.” [10-04-1921] (126) “Junto remeto o tal papel, e só eu sinto, a grande massada que tenho te dado com isso; certo de que você é o mais culpado, pois te pedi que deixasse seu pai fazê-lo, e você não quis. Por tudo fico muito e muito grata a você.” [17-04-1916] Os verbos de movimento contabilizaram uma única ocorrência com o clítico lhe. O verbo a ele relacionado era o chegar, como mostra o exemplo em (127): (127) “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe chegam.” [28-051983] Consideremos, agora, a distribuição das variantes em relação aos tipos semânticos dos verbos. O clítico te foi a variante mais recorrente em quase todas as categorias, apresentando, contudo, frequências diferenciadas: dentre os verbos de transferência verbal e perceptual e de movimento psicológico, cerca de 60% das ocorrências; entre os verbos de transferência material e movimento físico, em torno de 50%; com os verbos de interesse, 47,4%; com os verbos de movimento abstrato, 38,9%. (128) Transferência material: “ (...) eu escrevo para minha casa depois o Antoninho te entrega e de pois você rasga ou manda para mim (...)” [19-01-1937] (129) Transferência verbal e perceptual: “Estão montando um palco aqui na praia de Botafogo. Não sei para que. Quando souber eu te digo.” [15-09-1978] (130) Movimento físico: “Fiz adquirir uma imagem pra te levar, assim com uma medalha de ouro feita por um grande gravador francez, egual às que trazem o Rei e a Rainha da Alemanha.” [29-12-1907] (131) Movimento abstrato: “Minha flor já começo a sentir uma inquietação por estares longe de mim, e ando um pouco triste por saber que tu não tens confiança em mim, eu que te dedico todo o meu amor, os meus momentos e tenho tanta confiança em ti.” [12-011937] (132) Interesse: “Diz-me que as meninas já estão convencidas que devem, ficar e estão satisfeitas, a minha questão é de ti e da Senhora acredito que na occasião te faltará a coragem e a ellas tambem (...)” [05-03-1895] 120 (133) Movimento psicológico: “ (...) todos enfim, são de opinião que deves vir quanto antes; que te importa os teos Bahianos? [05-03-1895] Já o clítico lhe, embora tenha sido apenas a terceira estratégia mais frequente em cinco das sete categorias semânticas observadas, foi a estratégia mais equilibrada quanto às ocorrências: contabilizou ao menos um dado por tipo verbal: (134) Transferência material: “Antes de mais nada deixa eu lhe dar as explicações que você queria sobre o embarque de bagagem (...)” [11-04-1983] (135) Transferência verbal e perceptual: “Você vá pedindo a mamãe que lhe ensine a ler e escrever para com o tempo sustentarmos uma grande correspondência.” [15-01-1886] (136) Movimento físico: “você pediu ao Roberto um retrato de Tio Martinho, Roberto prometeu mas nunca lhe deu, você contou isto ao Visconde, o Visconde escreveu-me e eu lhe enviei, um “negativo” por carta, você agradeceu, ai começou o ‘bate bola’. até hoje.” [07-06-1972] (137) Movimento abstrato: “Adelinha como ‘CÊ’ sabe o meu Inglês é EXCELENTE e andei ‘corrigindo’ a sua última carta e você está de parabéns, pois o seu Inglês está quase tão perfeito quanto o meu. Por isso ‘poupar-lhe-ei’ o trabalho, pedindo que da próxima vez escreva em Português.” [10-10-1980] (138) Interesse: “pro-curei o famoso Ramos, (...) mostrou se muito penalizado, disendo-me que deseja muito lhe servir etc. etc.” [25-04-1894] (139) Movimento: “Tenho guardado todos os jornais, o ISTOÉ e outros bagulhos que lhe chegam.” [28-05-1983] (140) Movimento psicológico: “Aproveite ao máximo o que há de bom e se isso tudo não lhe interessa considere aquela sua idéia de só ficar para este primeiro período.” [31-081980?] Os sintagmas preposicionados, ao todo, destoam do resultado verificado para os clíticos e para o dativo nulo na medida em que foram mais frequentes com os verbos de transferência material (27 ocorrências contra 21 com verbos de transferência verbal e perceptual). Esse “desvio” de tendência deve-se, estritamente, aos dados de para você: 17 dos 28 dados (60,7%) dessa variante ocorrem junto aos verbos com a noção de transferência material, especificamente com o verbo mandar: 121 (141) E mando um beijão bem grande para voce é claro, pois te quero muito. [24-02-1977] (142) e para você minha querida o que devo mandar? recebe muitos beijos, abraços e mais um pedaço de amor pois o meu cresceu muito de domingo para cá. [25-09-1936] (143) a Dona Marieta manda muitas lembranças para você e juizo. [15-03-1937] (144) Adelinha, todos daqui de casa mandam um beijão pra você (a Fernandinha também) e não se preocupe com o pessoal da sua casa, pois acredito que estejam com muitas saudades, mas sobreviverão. [10-10-1980] Os índices de ocorrência e as frequências obtidas em relação a esse grupo de fatores e apresentados na Tabela 5.3 parecem indicar que, como propusemos hipoteticamente, os verbos com a noção de transferência estão vinculados às formas variantes mais produtivas. Por essa ótica, não surpreende o fato de o clítico te ter contabilizado menos de 10 ocorrências vinculado aos verbos de movimento abstrato, interesse e de movimento psicológico (ou ainda de não ter registrado uma única ocorrência vinculado a um verbo de movimento). De acordo com as explanações feitas no capítulo 2, essas categorias semânticas estão mais distanciadas da noção básica do dativo – o polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da sentença – e, por isso mesmo, acessam significados mais abstratos. Concluímos que o alto índice do clítico te ser registrado entre os verbos de transferência verbal e perceptual, e de transferência material deve-se a essa “hierarquia semântica” dos verbos que selecionam argumentos dativos. Os resultados verificados no presente grupo de fatores, tal como dissemos para o grupo anterior, serão retomados na seção que apresenta os grupos de fatores selecionados, uma vez que esse grupo foi considerado relevante na rodada que opunha o clítico te aos Sintagmas Preposicionados. Por meio do cálculo de pesos relativos das variantes, mostraremos as categorias semânticas verbais que favorecem determinadas estratégias, desfavorecendo as demais e, a partir disso, concluir se nossa hipótese procede ou não. - A forma do objeto direto A forma do objeto direto nas estruturas ditransitivas é nosso quarto e último fator de natureza linguística. Em consonância com o que comentamos ao discutir os resultados do grupo de fatores que controlou o tipo de verbo quanto à estrutura argumental, o argumento dativo pode ser selecionado por dois verbos predicadores diferentes: pelo de 2 lugares ou de 3 lugares. No caso deste último, há, ao lado do complemento indireto, a presença de outro 122 argumento interno, o objeto direto. Acreditamos que a existência do objeto direto nesse contexto morfossintático possa condicionar qual variante do dativo irá ocorrer. Sabemos, por exemplo, que, na variedade brasileira da língua portuguesa, não ocorre o fenômeno da contração, no qual o clítico acusativo funde-se ao clítico dativo. Partindo da existência desse condicionamento, cremos que as outras formas nas quais o objeto direto pode aparecer na sentença interfiram na forma em que o objeto indireto irá ocorrer. Consideramos quatro possibilidades de ocorrência do objeto direto do ponto de vista formal: clítico acusativo, sintagmática, oracional e objeto nulo. Por apresentarem uma configuração sintática mais complexa, haja vista que contém em sua estrutura outro sintagma verbal, optamos por controlar a forma oracional do objeto direto separadamente das demais formas sintagmáticas. Chamamos genericamente de “sintagma” as outras possibilidades de objeto direto na sentença: sintagma nominal, sintagma adjetivo e sintagma pronominal. Abaixo, exemplificamos, com ocorrências extraídas do nosso corpus, as quatro possibilidades categorizadas: (145) Sintagma (nominal): “Quincas enviou-lhe via maritima um livro sobre “Eça” do Gondim da Fonseca, lógo você receberá.” [20-04-1971] (146) Sintagma (pronominal): “Pela sua carta de 9 escrita ao Espinola vejo que já tinha feito o favor que lhe pedi na minha carta de 21 do passado (...)” [16-10-1874] (147) Sintagma oracional: “Ela me pediu para lhe dizer que foi ao Correio levar 1kg de jornal para você, mas o prazo - mais de uma semana - e o preço: 1.100,00, não a animaram e ela desistiu.” [31-08-1980?] (148) Clítico: “(...) maior mais duradoura e mais ativa é a amizade que me prende a ti (...)” [05-01-1908] (149) Objeto nulo: “Desculpe-me por este tempão que fiquei sem escrever ø a voce mas é porque ando realmente ocupado.” [17-10-1978] Diante dessas considerações acerca do objeto direto, vejamos na Tabela 5.4 a correlação entre as variantes de dativo de 2P e a forma do objeto direto nas estruturas ditransitivas: 123 Sintagma Oracional Clítico Nulo TOTAL te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL 202 78 32 11 2 11 19 355 56,9% 22,0% 9,0% 3,1% 0,6% 3,1% 5,4% 46,5% 128 44 21 - - 2 - 195 65,6% 22,6% 10,8% - - 1,0% - 25,5% 3 6 1 3 - - - 13 23,1% 46,2% 7,7% 23,1% - - - 1,8% 105 52 32 1 1 3 6 200 52,2% 25,9% 15,9% 0,5% 0,5% 1,5% 3,0% 26,2% 438 180 86 15 3 16 25 763 57,4% 23,6% 11,3% 1,9% 0,4% 2,1% 3,3% 100% Tabela 5.4. Correlação entre as variantes de complemento dativo e a forma do objeto direto em estruturas bitransitivas Com base nos números expostos na Tabela 5.4, constatamos que, diferentemente do que vimos nos demais grupos de fatores até aqui, o clítico te não é a forma mais frequente com todas as manifestações possíveis de objeto direto. Tal fato revela que há interferência de um complemento sobre o outro e, portanto, nossa hipótese procede. Quando o objeto direto foi expresso sob a forma de um clítico (13 ocorrências), a variante de dativo mais recorrente foi o objeto nulo – que, em vários contextos, é a estratégia mais frequente depois do te. Esse resultado parece confirmar o fato de que a ocorrência de objeto direto e indireto sob a forma de clítico não é algo recorrente na variedade do português brasileiro, tal como encontramos na variedade europeia. Os quatro dados de clítico dativo de 2ª pessoa do singular que coocorreram com clíticos acusativos aparecem nos textos de missivistas com maior domínio sobre os modelos de escrita, mais conservadores linguisticamente: (150) “O que eu senti às 8 1/2 da manhã e às 7 da noite não tenho palavras para t’o descrever”. [09-04-1891] (151) “porém, podes dizer, meu anjinho, com toda a firmeza, que não há nenhuma que seja tão querida pelo noivo como tu o és por mim, juro-t’o.” [21-04-1891] (152) “Todo o Trabalho que tiveste, que deve ter sido muito grande a julgar pela correção da biografia do [Padre Pio]. Esta ainda não apareceu; espero enviar-t’a este mês e escrever ao Frei Inacio”. [14-06-1933] (153) “e a razão é, como disse, o meu caracter, que você conhece bastante para que lh'a deva descrever agora.” [10-04-1921] 124 Ainda em relação ao clítico te, verificamos que, além de coocorrer predominantemente com ODs em forma de sintagmas (nominais ou pronominais) – assim como acontece com outras cinco variantes, à exceção do lhe –, há um alto índice desse clítico coocorrendo com OD oracionais. A combinação do complemento dativo com OD oracional também é resultante da presença dos verbos dicendi em grande número: (154) “Devo dizer-te que assim te escrevo em vista do que me dissestes a pouco tempo, que o Edgard aí nenhum futuro podia almejar, nem mesmo o de um bom emprego” [25-031911] (155) “elas disseram que quando você vier ou través aqui elas iam te contar que eu era chorona eu disse que eu não me me importava que dissesse.” [05-10-1936] (156) “Esqueci de te dizer que o ballet ‘Gabriela’ foi transferido para mais tarde. Quem sabe estão te esperando?” [25-03-1983] Quanto ao dativo nulo, chama atenção a segunda forma de objeto direto que mais apareceu com essa estratégia em nossa amostra: outro objeto nulo. Valendo-nos das ocorrências apresentadas na Tabela 5.4, percebemos que, dos 180 dados de dativo nulo, 78 deles aconteceram com um OD em forma de sintagma nominal/pronominal; bem próximo a esse número está a coocorrência dos dois objetos nulos, em 52 dados. Ao voltarmos à amostra, notamos que essa alta incidência deve-se ao uso generalizado do verbo escrever: (157) Desculpa eu estar ø escrevendo só agora, porém acabei de chegar no rio e havia uma carta sua aqui datada de uma pá de tempo, e com 2 grandes presente para mim. [24-021977] (158) Ontem recebi um bilhete de visita em que me dizias estarem todos bem e que não tinhas bronquite nem tinha notícias minhas. Admira-me isso porque tenho ø escrito todos os dias, à mesma hora. [20-02-1886] (159) Eu acho que não e preciso ø escrever mais porque acabei de dizer tudo que ia ø escrever, não adianta mais nada. [23-02-1937] (160) Tenho tido notícias suas, não tenho ø escrito porque sei que não tens tempo para responder. [23-09-1916] Tal verbo apresenta uma transitividade bastante instável e, não raro, é possível omitir seus dois argumentos internos (o que se escreve, o OD, e para quem se escreve, o dativo). Van 125 Hoecke (1996) tece o seguinte comentário a respeito da omissão do OD na predicação do verbo scribere, ‘escrever’ em latim: (...) parece-me que nestas construções o verbo não tem sua significação transitiva ‘incompleta’ em ‘escrever’, mas têm um significado ‘completo’ que implica um acusativo ‘interno’ do tipo de ‘escrever um texto’ ou uma ‘mensagem’ (VAN HOECKE, 1996, p.28) Todos os sintagmas preposicionados contabilizaram maior número de dados com um objeto direto sintagmático, o que, em princípio, não era esperado, visto que são dois argumentos internos com uma estrutura mais complexa (se comparados aos clíticos e objetos nulos, por exemplo). Essa hipótese só foi confirmada nos casos em que o OD era uma oração: apenas dois dados de a você foram registrados nesse contexto. Vejamos alguns exemplos: (161) “Viveremos eternamente um para o outro, amando cada vez mais, esquecendo as dores de agora, o meu coração terás eternamente em teu peito batendo dando-te vida, e o teu viverá em meu peito dando-me vida e alento para continuar dedicando a ti todo o amor que mereces” (162) Foi de uma alegria imensa saber que os tempos que passamos juntas ainda trazem boas recordações pra você e inclusive pra mim. [??-03-1982] (163) “Peço a você dar ao Tito a minha caderneta para ele mandar contar os juros, até 30 de Junho 1917” [08-07-1917] (164) Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e disse que ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para acceitar e apparecer. [17-10-1899] - O subgênero de carta particular Em relação ao subgênero de carta particular, primeiro grupo de fatores extralinguísticos, investigamos se a escolha das formas variantes dativas feita pelos remetentes sofre influência da natureza da carta particular – pessoal , familiar ou amorosa. Levantamos como hipótese que as cartas amorosas favoreçam o uso das variantes relacionadas ao pronome tu – especialmente as formas preposicionadas a ti e para ti – pela razão dessas missivas possuírem um traço lírico-romântico; o pronome tu é notadamente a forma de tratamento empregada no discurso amoroso e, por isso, teria seu uso favorecido. 126 Além disso, o clítico dativo lhe seria outra forma variante do dativo de 2P intimamente ligada ao subgênero de carta particular: acreditamos que a forma lhe seja favorecida pelo menor grau de intimidade existente entre remetente e destinatário, tal como ocorre nas cartas pessoais. Na Tabela 5.5, correlacionamos os três subgêneros identificados na amostra às sete variantes do complemento dativo de 2ª pessoa do singular: Pessoal Familiar te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL 91 36 45 5 - 5 12 195 46,8% 18,6% 23,2% 2,6% - 2,6% 6,2% 24,1% 180 9 5 326 2,8% 1,5% 40,1% 7 11 291 83 45 2 2 55,2% 25,5% 13,8% 0,6% 0,6% Amorosa 193 TOTAL 62 2 15 1 66,3% 21,3% 0,7% 5,2% 0,3% 2,4% 3,8% 35,8% 464 22 21 28 811 2,6% 3,4% 100% 181 92 3 57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% Tabela 5.5. Correlação entre o subgênero da carta e as estratégias utilizadas como complemento dativo Algumas constatações importantes podem ser feitas a partir dos resultados em questão. Notamos, por meio desse primeiro grupo de fatores extralinguístico, que o clítico te continua “imune” às restrições investigadas; independentemente do grau de intimidade existente entre remetente e destinatário, ele é a variante mais frequente nos três subgêneros (46,8% nas cartas pessoais, 55,2% nas cartas familiares e 66,3% nas cartas amorosas). Isso revela que o uso da forma te não segue uma orientação discursiva, sociopragmática, na qual estariam em jogo os papéis sociais desempenhados por quem escreve e por quem recebe a carta. Trata-se, na realidade, de uma forma neutra, que, como temos observado, atua única e exclusivamente para indicar a pessoa (nesse caso, 2ª pessoa do singular) vinculada ao pronome-complemento do verbo, como atestam os trechos abaixo, retirados dos diferentes subgêneros: no exemplo extraído da carta amorosa, Oswaldo Cruz declara seus sentimentos de saudade à sua noiva, Emília Fonseca; na carta familiar, Helena Land Avellar dá notícia dos 127 parentes ao seu filho, Alarico; na carta pessoal, Carlos de Aguiar dá conselhos ao amigo exilado Rui Barbosa: Amorosa: (165) “Impossível é descrever-te, meu querido anjo, a tempestade que se passava dentro de mim: era necessário que eu fosse à tua casa, que fosse em pessoa ver aqueles lugares em que nós estivemos juntos, o lugar em que nos despedimos, aquele em que me foste dada, enfim era necessário que se despedaçasse o meu coração, que todo o meu ser se transformasse em lágrimas (...)” [10-04-1891] Familiar: (166) “O Tito vai bem, hoje vai te escrever, ele gostou muito do Rio, papai levou eles até Botafogo para ver a avenida beira-mar.” [18-08-1907] Pessoal: (167) “Não estou em condições de te dar conselhos, mais como amigo tenho o direito de te dizer alguma cousa, não convem porenquanto escreveres nada sobre assumptos politicos, espere os acontecimentos, pode muito bem tudo isto mudár e Você ser obrigado a estár aqui para fazer parte ou tomar parte.” [19-11-1894] Comportamento extremamente oposto pode ser percebido em relação ao clítico lhe. Vemos que essa estratégia está condicionada ao subgênero, na medida em que é mais frequente em cartas pessoais (menos familiares) e familiares e fortemente desfavorecida pelas cartas amorosas (apenas 2 ocorrências em toda a amostra). Conforme aparece na Tabela 5.5, obtivemos 45 dados de lhe tanto para as cartas pessoais quanto para as amorosas; no entanto, os percentuais de frequência em relação a cada subgênero revelam que o contexto mais favorecedor é o de menor grau de intimidade, ou seja, nas cartas pessoais. Nestas, o índice de ocorrência de lhe é de 23,2% e supera o índice de dativo nulo, que geralmente constitui a segunda variante mais frequente. Nas cartas familiares, o percentual é de 13,8% e fica atrás da frequência do dativo nulo, de 25,5%. Nossos dados de lhe corroboram, portanto, o que alguns estudiosos afirmam sobre o uso desse pronome na área do Rio de Janeiro: ele constitui um uso marcado, que serve para indicar baixo grau de intimidade ou mesmo formalidade (não só na língua escrita como também na língua falada). (cf. GOMES, 2003). É o que mostram os exemplos que seguem, extraídos das cartas pessoais de Francisco Soares Brandão ao “seu embaixador” e de Carlos de Aguiar, respectivamente: 128 (168) “Não repare si por acaso tenha redigido errado algum nome, porque estou lhe relatando fiado na memoria, sem consultar papel algum.” [25-06-1972] Brandão (169) “ (...) não darei a letra, nem proporei acção sem combinar com o Amaral, pretendo diser-lhe que a letra hé minha (...) tudo farei com calma e reflexão, creio que obterei resultado, confie em mim, espere, brevemente lhe comunicarei o resultado.” [15-111893] Carlos Outro índice digno de nota é o registrado para o sintagma preposicionado a ti: 15 dos 22 dados levantados no corpus (68,1%) ocorreram em cartas amorosas. Adotamos como explicação para esse índice o fato de a utilização do pronome tu ser uma convenção do discurso lírico-amoroso para se reportar à “pessoa amada” como uma estratégia que marca maior intimidade desde sua origem em oposição ao você que, advinda do tratamento Vossa Mercê, indicava maior distanciamento. Os exemplos extraídos de nosso corpus ilustram tal comportamento: (170) Minha querida só a ti é que pertence todo o meu amor, só de ti minha flor que eu espero todo o meu ideal, a esperança que brota de meu peito cresce de uma forma espantosa, envolvendo-nos e unindo-nos cada vez mais [22-09-1936] (171) “desejaria escrever qualquer coisa que você gostasse. Apenas umas letrinhas dizendo que te amo muito, que tu és a flor de meus sonhos, que tu és todo o meu ideal, que és toda a minha felicidade, que a ti só pertenço, que ti és a rainha de meu coração, que és a eleita dos meus momentos etc. etc. e muita coisa mais. [23-03-1937] (172) “E a ti envia todos os ‘grãos de terra’ transformados em beijos e abraços.” [23-03-1937] - A seção da carta O gênero carta particular pode ser analisado como uma tradição discursiva, nos termos de Koch (1997), Kabatek (2006) e outros estudiosos. Isso significa dizer que a maneira como algumas seções são redigidas seguem um modelo estabelecido para esse gênero ao longo do tempo; dito de outro modo, certas partes constitutivas das cartas, como a captação de benevolência e a despedida tornaram-se construções cristalizadas, estruturas formulaicas que são reproduzidas pelos autores. Para o nosso estudo, a presença dessas fórmulas fixas para “abrir” e “fechar” o texto de uma carta pode ser determinante, tendo em vista que certas 129 variantes podem ser conservadas no espaço discursivo dessas seções, em detrimento das outras seções, de cunho mais autoral. Resolvemos, portanto, investigar essa hipótese de conservação de formas variantes por influência das tradições discursivas controlando, através do referido grupo de fatores, em que seção do documento nossos dados apareceram. Expomos a distribuição das estratégias em relação às seções controladas na Tabela 5.6 a seguir: te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL Captação de 21 16 - - - 1 - 38 benevolência 55,3% 42,1% - - - 2,6% - 4,7% Núcleo 393 138 83 17 3 12 16 662 59,4% 20,8% 12,5% 2,6% 0,5% 1,8% 2,4% 81,7% Seção de 23 19 5 5 - 4 9 65 despedida 35,4% 29,2% 7,7% 7,7% - 6,2% 13,8% 8,0% P.S. 3 4 3 - - 2 1 13 23,1% 30,8% 23,1% - - 15,4% 7,6% 1,6% 24 4 1 - - 2 2 33 72,7% 12,1% 3,0% - - 6,1% 6,1% 4,0% 464 181 92 22 3 21 28 811 57,2% 22,3% 11,3% 2,7% 0,4% 2,6% 3,4% 100% Outra TOTAL Tabela 5.6. Distribuição das variantes de complemento dativo quanto à seção da carta Analisando primeiramente as seções, notamos que o núcleo da carta é, de fato, um espaço “autoral”, isto é, de maior liberdade discursiva por parte do missivista, visto que registramos dados de todas as variantes em estudo nessa seção. Nela se concentra, também, a maioria esmagadora das ocorrências registradas: 662 dos 811 dados (81,6%). A seção de despedida ocupa o segundo lugar em relação ao número de variantes por seção, não registrando apenas dados de para ti. Esse resultado vai de encontro à nossa expectativa, já que acreditávamos que nessa parte das missivas, por ser uma fórmula fixa, anotaríamos menor variação entre as formas dativas. Exemplificamos, a seguir, três das seis formas variantes registradas na seção de despedida das cartas: (173) “Lembranças a Dona. Marietta, fala com ela que eu gostava muito de conhecê-la, embora já a conheça um pouco pela tua boca, mas gos-taria de conhecê-la 130 pessoalmente. E a ti envia todos os “grãos de terra” transformados em beijos e abraços.” [23-02-1937] (174) “ (...) vou indo pois tenho aula agora. Esto escrevendo da faculdade, sabe? Mande um abraço a seus irmãos e amigos. Mando a voce um beijo, cheio de saudades. Escreva-me se puder, tá?” [14-04-1977] (175) “ (...) vou me despedindo, mandando mil beijos para você, e desejando que você seja para sempre essa pessoa incrível que você é.” [??-03-1982] O resultado observado para as demais seções confirmam o que tínhamos previsto: o P.S. e as outras áreas da carta, diferentes das já assinaladas, assim como o núcleo, constituem espaços de maior liberdade dentro da carta e, por isso, registram maior variação (encontramos cinco das sete variantes em estudo nessas seções); a captação de benevolência é uma seção fortemente marcada pelo uso de estruturas cristalizadas, que é evidenciado com o baixo grau de variação (apenas três variantes ocorreram nesse contexto: te, dativo nulo e um dado de a você). Reproduzimos em (176)-(179) a ocorrência de uma construção bem formulaica de captação de benevolência, no interior da qual alternam-se o clítico te e o objeto nulo. Os exemplos foram retirados de cartas do “casal dos anos 1930”: Maria para Jayme: (176) “Meu Queridinho Jayme Desejo-te muitas felicidades assim como aos teus eu e os meus vamos muito bem graças a Deus (...)” [12-09-1936] (177) “Desejo ø que esta te vá encontrar um pouco melhor do resfriado e que os teus vão bem, os meus vão bem graças a Deus (...)” [11-10-1936] (178) “Desejo-te que esta te vá encontrar em perfeita saúde assim como os teus eu e os meus vamos bem graças a Deus (...)” [06-10-1936] Jayme para Maria: (179) “Desejo ø que esta te vá encontrar em perfeito estado de saúde assim como os teus, os meus vão bem graças a Deus (...)” [06-10-1936] Quanto à distribuição das variantes, não surpreende dizer que o clítico te foi novamente a forma mais produtiva na maioria das seções. Essa forma ficou em segundo lugar apenas nos P.S., em que o dativo nulo foi mais recorrente (por uma diferença mínima de um dado, é preciso dizer). Além disso, o clítico te, o dativo nulo e o sintagma preposicionado a você foram as três estratégias que contabilizaram ao menos um dado em cada seção, sendo os 131 dois primeiros superiores em número de ocorrências. As outras quatro variantes foram mais frequentes em seções não formulaicas, demonstrando maior ligação com o discurso do missivista. É o que podemos ver, por exemplo, nas ocorrências do clítico lhe e do SPrep para você nos P.S.; diferentemente dos exemplos mostrados para os dados de captação de benevolência, vemos que essa seção da carta não apresenta uma estrutura cristalizada. É nesse tipo de contexto, pois, que as variantes ilustradas foram identificadas. (180) “P.S. O Espinola foi passar a Secretaria e disse-me que ia escrever-lhe, porém como ele está sempre muito atarefado não sei se escreverá. [03-11-1874] (181) “P.S. Peço-lhe que remeta a carta inclusa para Petrópolis, não querendo eu mandá-la daqui diretamente com receio que extravie.” [12-02-1873] (182) “P.S. Bia vou mandar prá você, como presente de aniversário, uma fita do grupo “Balão Mágico”. Espero que você a curta bastante, ok?” [24-10-1985] Nessa etapa de análise, de cunho panorâmico, não podemos afirmar com precisão se alguma seção específica da carta favoreceu ou desfavoreceu o uso de alguma forma, haja vista a diferença quantitativa acentuada entre os dados de te e dativo nulo de um lado, e os dados das outras variantes de outro. Na rodada binária opondo o clítico te aos sintagmas preposicionados, Esse grupo será retomado uma vez que foi considerado relevante pelo programa estatístico. - O período de tempo e as amostras Os outros dois grupos de fatores extralinguísticos restantes – o período de tempo e a amostra do corpus – serão apresentados em conjunto. Optamos por essa maneira de apresentálos a fim situar no tempo e no corpus os dados das variantes de dativo. O Gráfico 5.2 divide as sete variantes em quatro períodos de 25 anos. 132 100% 80% 0,0% 1,4% 3,3% 10,3% 14,5% 1,0% 2,5% 0,5% 10,1% 25,6% 4,0% 2,5% 7,0% 0,5% 17,1% 60% 40% 20% 0% 9,0% 4,0% 0,0% 24,5% para você a você 69,6% 32,5% 59,8% 68,3% para ti a ti 30,0% lhe zero te Gráfico 5.2. Percentual de ocorrência das variantes dativas na diacronia analisada (1880-1980) Observando a distribuição percentual das variantes pelos períodos da diacronia analisada, podemos notar que o clítico te, assim como verificamos no gráfico 5.1, representa mais da metade da amostra em três quartos de século, sofrendo uma diminuição de percentual de frequência apenas no 4º período (de 68,3% no período anterior para 30,0% no período em questão). É também no último período que percebemos maior equilíbrio no emprego das estratégias, especialmente entre o clítico te, o dativo nulo (32,5%) e o clítico lhe (24,5%). Os sintagmas preposicionados a você e para você totalizam 13,0% (4,0% para o primeiro e 9,0% para o último). A representação gráfica também nos possibilita visualizar claramente o desaparecimento gradativo dos sintagmas preposicionados relacionados ao paradigma de tu em cartas produzidas no Rio de Janeiro (a ti e para ti), acompanhado do aumento das taxas de sintagmas preposicionados relacionados ao você (a você e para você). Um esclarecimento: Por que não utilizar um gráfico de linhas para mostrar o desenvolvimento da variação entre as formas ao longo do tempo? A resposta relaciona-se com a natureza heterogênea da amostra; as ocorrências de cada período foram obtidas a partir de missivas escritas por indivíduos com perfis sociolinguísticos diversificados. Em alguns períodos, os missivistas são pessoas ilustres, enquanto que em outros não o são. Como veremos nas próximas linhas, essas diferenças influenciam tanto na quantidade como na qualidade dos dados. Projetar os resultados com o avanço/retrocesso das variantes em linha 133 produziria uma leitura ilusória, na medida em que os dados do clítico lhe que aparecem no 2º e no 4º período, por exemplo, foram obtidos de informantes com características socioculturais diferentes. Passamos a apresentar, nas tabelas subsequentes, a distribuição das variantes de acordo com as amostras do corpus utilizadas. Cada tabela representa um quarto de século analisado. - 1º período (1880-1905): a supremacia do tratamento de 2P tu 1º período te zero lhe a ti para ti a você TOTAL 73 6 - 2 - 1 82 89,1% 7,3% - 2,4% - 1,2% 38,5% 17 7 2 - 1 - 27 7,4% - 3,7% - 12,7% 3 5 - - 62 4,8% 8,1% - - 29,1% - - - 1 5 - - - 20,0% 2,3% 17 - - 1 37 - - 2,7% 17,4% 7 1 3 213 0,5% 1,4% 100% (1880-1905) Cruz Pedreira 63,0% 25,9% Rui Barbosa 46 8 74,2% 12,9% Penna Jr. 3 1 60,0% 20,0% Cupertino 10 9 27,0% 24,3% 46,0% TOTAL 149 31 22 69,9% 14,6% 10,3% 3,3% Tabela 5.7. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 1º período (1880-1905) Cinco das dez amostras utilizadas para este estudo nos renderam dados de pronomes dativos de 2ª pessoa do singular: a amostra do médico Oswaldo Cruz, a coleção da Família Pedreira Ferraz – Magalhães, a amostra de cartas endereçadas a Rui Barbosa, a coleção de missivas da família do ex-presidente Afonso Penna e a amostra da família Cupertino do Amaral. Percebemos o predomínio das formas relacionadas ao paradigma de tu, já que, nesta época, a forma você ainda não havia adquirido o estatuto de pronome pessoal, e, portanto, ainda apresentava um uso respeitoso como pronome de tratamento (cf. RUMEU, 2008). Neste período, o dativo nulo já constitui a segunda variante mais produtiva, sendo contabilizado nas cinco amostras do período. O clítico lhe ocorre com mais frequência nos 134 dados da Família Cupertino, como consequência de um tratamento mais respeitoso e distanciado entre os escreventes. O sintagma preposicionado a ti é mais recorrente do que o para ti, como atestam os dados da família Cruz e das cartas a Rui Barbosa. Expomos alguns exemplos dessas ocorrências: (183) “(...) as tempestades que a muito tempo se desencadearão sobre esta terra tenho fé em Deus andem passar, tudo voltará a seus eixos, espero ainda ver-te grande, feliz, estimado e muito contente no seio de tua família, o futuro a ti pertence, os dias felizes virão, tenha confiança no teo destino” [05-03-1895] (184) “Tenho te escripto muitas cartas, tenho tirado dos jornaes tudo que diz respeito a ti e que te pode enteressar, tenho remettido (...)” [05-03-1895] (185) “Peço-lhe que remeta a carta inclusa para Petrópolis, não querendo eu mandá-la daqui diretamente com receio que extravie.” [12-02-1873] (186) “Peço-lhe que me responda sobre isto e também me diga quanto lhe devemos das duas publicações que o Espinola mandou fazer.” [14-11-1874] - 2º período (1906-1930): o início do espraiamento de você como variante de tu 2º período te zero lhe a ti para ti a você para você TOTAL 30 - - 1 1 - - 32 93,8% - - 3,1% 3,1% - - 16,1% 17 5 8 - - - 1 31 - - - 3,2% 15,6% 9 - - 5 - 104 8,7% - - 4,8% - 52,3% 3 - - - 1 32 9,4% - - - 3,1% 16,1% 20 1 1 5 2 199 0,5% 2,5% 1,0% 100% (1906-1930) Cruz Pedreira 54,8% 16,2% 25,8% Avelar 49 41 47,1% 39,4% Penna Jr. 23 5 71,9% 15,6% TOTAL 119 51 59,8% 25,6% 10,1% 0,5% Tabela 5.8. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 2º período (1906-1930) 135 Integram o 2º período dados das Famílias Cruz, Penna e da Pedreira FerrazMagalhães. Além dessas, que já figuravam no 1º período, contabilizamos ainda dados retirados de cartas da Família Land Avelar. Chama a atenção o aparecimento mais expressivo da forma lhe em três das quatro amostras em questão. Qual seria a razão? Acreditamos, por hipótese, que, nesse momento, a entrada do você no sistema desencadeia uma profunda instabilidade no uso dos pronomes, já que agora contamos com um sistema mesclado na posição de sujeito (cf. RUMEU, 2008; LOPES, 2011). Detectamos sete variantes de dativo (frente às cinco do período precedente). Sendo assim, parece que o clítico lhe torna-se mais recorrente, estabelecendo a simetria formal entre as posições de sujeito e objeto. Embora verifiquemos o acréscimo de lhe, o clítico te continua sendo a estratégia preferida. Não podemos mais dizer, contudo, que os dados de te ocorram apenas relacionados ao pronome-sujeito tu, tendo em vista que encontramos exemplos da combinação “vocêsujeito + te-dativo”. O dativo nulo mantém-se também como a segunda variante mais recorrente em duas das quatro amostras do período, ficando atrás do lhe na amostra da Família Pedreira Ferraz, que, no 1º período, registrava aquela estratégia como a segunda mais frequente. Seguem exemplos desse período: (187) “Diga ao Edgard que recebi a carta dele que não respondo porque a resposta é a que agora dou a você.”[13-05-1917] (188) “O dicionário serviu bem e mamãe mandou pelo Tito agradecer a você, bem como tudo que mandou-lhe.” [08-06-1917] (189) “Visto que o retrato lhe agradou, vou ver si tiro outro com o rabut francez; mandarei logo para você e para os outros irmãos.” [10-04-1921] (190) “Você querendo me favorecer, compra para você e só será meu quando eu te pagar.” [12-02-1909] 136 - 3º período (1931-1955): variação tu e você consolidada 3º período (1931-1955) te zero lhe a ti Casal 122 30 1 13 68,2% 16,8% 0,5% 7,3% Pedreira 14 4 70,0% 20,0% TOTAL 136 34 para ti a você para você TOTAL 1 4 8 179 0,5% 2,2% 4,5% 90,0% - 1 - 1 - 20 - 5,0% - 5,0% - 10,0% 1 14 1 5 8 199 0,5% 2,5% 4,0% 100% 68,3% 17,2% 0,5% 7,0% Tabela 5.9. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 3º período (1931-1955) Para o 3º período, apenas duas amostras renderam dados: as cartas trocadas entre o “casal dos anos 1930” e entre alguns membros da Família Pedreira Ferraz. A amostra do casal registra ao menos um dado de cada uma das sete variantes do complemento dativo, o que evidencia uma acentuação da variação. O clítico lhe, que no 2º período teve uma frequência expressiva, praticamente desaparece. Em contrapartida, o clítico te segue com uso hegemônico (68,3%), seguido do dativo nulo (17,2%). Torna-se mais claro do que no período anterior que o pronome você na posição de sujeito passou a se combinar livremente com o te em posição dativa, derrubando qualquer possibilidade de evidência de uniformidade de tratamento. Os exemplos comprovam as ocorrências dessa combinação: (191) “Muito te agradeço tudo que Você fez por nossa irmasinha; coitada; tenho tanta pena; e isto de longe que seria vêr de perto como ella está.” [28-11-1933] (192) “Muitas penas passa minha alma – em um papelilho te conto e Você responde tambem não na carta, senão a parte.” [01º-02-1948] (193) “(...) eu fiquei triste de você brigar no escritório eu peço-te para ficares mais calmo, manda-me dizer por que você brigou com Senhor Mario.” [22-09-1936] (194) “eu escrevo para minha casa depois o Antoninho te entrega e de pois você rasga ou manda para mim.” [19-01-1937] 137 Cabe destacar ainda a elevação inusitada do sintagma preposicionado a ti. A justificativa, como já dissemos ao comentar a Tabela 5.5, é o tom lírico-romântico das cartas amorosas, principalmente daquelas escritas pelo remetente Jayme. - 4º período (1956-1980): generalização de você 4º período te zero lhe - 2 34 - 4,9% 15 27 1 30,7% 55,1% Cartas 45 36 Cariocas 41,0% TOTAL 60 a você para você TOTAL (1956-1980) Brandão Lacerda 30,0% - 41 - 20,5% 3 3 49 2,0% 6,1% 6,1% 24,5% 14 - 15 110 - 13,6% 55,0% 8 18 200 4,0% 9,0% 100% 82,9% 12,2% 32,7% 12,7% 65 5 49 32,5% 24,5% Tabela 5.10. Distribuição das variantes dativas entre as amostras do 4º período (1956-1980) São representativos do 4º período dados da Família Brandão, da Família Lacerda e dos “cultos cariocas”. A combinação dos dados presentes nessas amostras proporciona um painel curioso quanto às ocorrências das variantes. Em primeiro lugar, o resultado peculiar na amostra de cartas da Família Brandão deve-se ao estilo extremamente informal adotado na escrita do seu remetente, que se coloca a todo tempo em condição de respeito e apreço para com seu destinatário, o “embaixador”. Cumpre ressaltarmos que dessa amostra advém mais da metade dos dados do clítico lhe (69,4%, ou seja, 34 dos 49 dados dessa variante). Em relação ao informante da Família Lacerda, temos um fato curioso: essa é a única amostra em que a frequência de dativo nulo (55,1%, isto é, 27 dos 49 dados) superou a frequência do clítico te (30,7%, ou seja, 15 dos 49 dados). Contabilizamos, todavia, pelo menos uma ocorrência de cada uma das cinco estratégias presentes no 4º período na amostra dessa Família. Entre os dados extraídos das “cartas cariocas”, vemos que o te persiste como estratégia preferida (41,0%, 45 dos 110 dados obtidos), seguido do dativo nulo (32,7%, 36 ocorrências). Os índices de lhe e para você são praticamente iguais. Os dados dessa amostra 138 são os que mais se aproximam ao que, de fato, encontramos hoje na variedade carioca – falada e escrita – ao menos naquela utilizada pelos indivíduos usuários da norma culta: um uso indiscriminado do clítico te, seguido da não realização formal (o dativo nulo); em menor escala, o emprego do clítico lhe, restrito a situações de maior formalidade, e do sintagma preposicionado para você (como um uso enfático ou expressivo, principalmente). Vejamos alguns exemplos desse período: (195) “O Academico Ministro Hermes Lima tambem está escrevendo suas memorias, devem sair este ano (...), si ele não lhe oferecer um livro, que aliás disse-me que ia lhe oferecer eu lhe enviarei. “[20-04-1971] (196) “(...) você pediu ao Roberto um retrato de Tio Martinho, Roberto prometeu mas nunca lhe deu, você contou isto ao Visconde, o Visconde escreveu-me e eu lhe enviei, um “negativo” por carta, você agradeceu, ai começou o “bate bola”. até hoje.” (197) “Quero saber o que se passa por essa cabecinha oca ai. O que voce pensa de mim agora? Peço ø tambem respostas sinceras.” [14-04-1977] (198) “Fiquei preocupado quando disse que não recebeu ainda nenhuma outra carta, mas eu ø mandei uma com algumas fotos minhas e com uma foto que gosto muito, de Guarapari na qual estava junto com voce.” [15-08-1978] (199) “Então te pergunto. Se você puder comprá-lo e me enviar, não seria mais barato? Ou melhor ainda, se você pudesse fotocopiá-lo (xerocá-lo) acho que seria ainda mais barato.” [??-07-1983] (200) “Há dois anos atrás se ele te proposse casamento você nem piscaria, garanto.” [??-031982] À primeira vista, poderíamos pensar em uma redução do uso de te; entretanto, o que parece ter ocorrido, na realidade, foi um aumento das demais variantes. A orientação normativa em relação à uniformidade de tratamento parece ser, sem dúvida, a grande responsável pelo “reaparecimento” dos clíticos lhe nas cartas do 4º período, já que as amostras são formadas por indivíduos com maior domínio sobre os modelos de escrita. Vale ressaltar, por fim, que, ainda assim, entre os informantes das “cartas cariocas”, o te continuou sendo a forma mais frequente, revelando certa “imunidade” ao paradigma adotado pelo remetente (tu, você ou tu~você). O te é uma marca legítima de 2ª pessoa do singular, sempre apresentou altos índices de uso e seu uso “não uniforme” não gera estigma social. A 139 combinação desses fatores pode ser a resposta para a “persistência”, “sobrevivência”, “permanência” de tal clítico no sistema pronominal do PB. 5.3. Análise variável do fenômeno A partir dos resultados globais, que forneceram um panorama descritivo das variantes de dativo de 2SG ao longo de um século, foram realizadas rodadas binárias que opunham o clítico te às demais formas menos produtivas, mas presentes na amostra de cartas analisadas. O intuito da análise estatística era identificar os contextos linguísticos e extralinguísticos favorecedores das estratégias dativas em competição. Tais análises parciais também se justificam pelo fato de o clítico te ter sido a variante majoritária, como vimos, em todos os grupos de fatores analisados. Tornou-se premente, desse modo, relativizar as frequências brutas para identificar a força de cada restrição – linguística ou social – em relação ao fenômeno variável, e os ambientes mais favoráveis à aplicação da regra (no caso, o clítico te). Como apresentado no quadro a seguir, foram realizadas três rodadas binárias: te vs. dativo zero; te vs. lhe e te vs. SPreps. No primeiro caso, analisamos as formas mais produtivas no corpus, no segundo, contrapomos dois clíticos (o te original de 2P e o lhe que migrou da 3P). Por fim, contrapomos o clítico mais produtivo aos sintagmas preposicionados, sejam eles do paradigma de tu (a ti, para ti), sejam do paradigma de você (a você, para você). O quadro 5.2 indica, ainda, quais grupos de fatores foram selecionados em cada uma das rodadas: Grupos de fatores (1) Forma do sujeito (2) Estrutura argumental do verbo (3) Tipo semântico do verbo (4) Forma do OD (5) Período (6) Subgênero da carta (7) Seção da carta (8) Amostra do corpus te x ø X X te x lhe X te x SPreps X X X X X X X X Quadro 5.2. Grupos de fatores selecionados nos cruzamentos entre o clítico te e as demais variantes Todos os oito grupos de fatores elaborados para a pesquisa foram selecionados em pelo menos uma das três rodadas estatísticas feitas. O grupo de fatores da forma do sujeito, de 140 natureza linguística, foi selecionado pelo programa de regra variável nos três casos. O subgênero da carta, de natureza extralinguística, foi selecionado nas rodadas te x ø e te x lhe. Os outros seis grupos foram selecionados uma única vez. Inicialmente, podemos dizer que o Quadro 5.2 revela que a forma de 2P utilizada na posição de sujeito (tu, você e tu/você) exerce influência sobre as variantes dativas empregadas, com exceção do observado com o clítico te, que é produtivo nos 3 subsistemas. 5.3.1. Variantes dativas mais produtivas: clítico te vs. dativo ø A Tabela 5.11 reúne os grupos de fatores selecionados na rodada que contrapôs o clítico te ao dativo zero. Como mencionado, foram selecionados os seguintes grupos: a amostra do corpus, a forma de 2P empregada na posição de sujeito, a estrutura argumental do verbo predicador e subgênero da carta pessoal: Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R. Cupertino Land Avellar Família Cruz Família Penna Rui Barbosa Pedreira Ferraz Casal 1930 Família Lacerda Cariocas 1980 10/19 49/90 103/109 26/32 46/54 48/64 122/152 15/42 45/81 52,6% 54,4% 94,5% 81.2% 85,2% 75% 80,3% 35,7% 55,6% .242 .480 .860 .694 .369 .585 .489 .144 .212 Tu Você Tu/Você 194/229 85/165 184/234 84,7% 51,5% 78,6% .525 .417 .595 Verbos de 2 lugares Verbos de 3 lugares 24/25 440/620 96% 71% .948 .471 Pessoal Familiar Amorosa 91/127 180/263 193/255 71,7% 68,4% 75,7% .679 .400 .512 i) Amostras ii) Forma utilizada na posição de sujeito iii) Estrutura argumental do verbo predicador iv) Subgênero pessoal da carta Tabela 5.11. Análise multivariada das formas dativas te x zero (Valor de Aplicação: clítico te) 141 Em termos dos fatores linguísticos, a forma empregada na posição de sujeito foi o primeiro a ser selecionado. Esse resultado corrobora algo que já havíamos afirmado na análise geral dos resultados: o emprego do clítico te é “imune” à forma pronominal adotada na posição de sujeito. Dito de outro modo, o uso de te não está condicionado ou correlacionado ao pronome de 2ª pessoa do singular presente na posição de sujeito. Embora apresente frequências desiguais – 84,7% em cartas com uso exclusivo de tu, 51,5% em cartas com uso exclusivo de você e 78,6% em cartas com alternância entre tu e você –, os índices verificados no peso relativo demonstram que há certa regularidade no favorecimento dessa variante em relação ao grupo de fatores em questão, predominando nas cartas com uso exclusivo de tu (0.525) e com alternância entre tu/você (0.595). Com relação ao dativo nulo, notamos o seu favorecimento sobre o clítico te quando o missivista utiliza somente a forma você na posição de sujeito: (201) “E eu ø peço que você não compre muito para as crianças que eu estou num esforço de valorizar o que eles têm. Se você me aparecer com muita coisa por aqui eu não vou deixar você lhes dar. Eles só saberão o valor das coisas se não as tiverem com total facilidade.” [31-08-1980?] Outro grupo de fatores linguísticos selecionado foi a estrutura argumental do verbo predicador. Os resultados demonstram que, na oposição entre o clítico te e o dativo nulo, houve favorecimento para o clítico com verbos de dois lugares (0.948), ao passo que o dativo zero foi favorecido com verbos de 3 lugares. Esse resultado confirma o que foi observado na análise geral dos dados. Há uma tendência ao “apagamento” de um dos argumentos internos do verbo, “adequando” a estrutura sintática das sentenças ao padrão geral mais simples e básico: Sujeito-Verbo-Objeto. Neste caso, o dativo realiza-se como objeto nulo, enquanto que o complemento acusativo realiza-se na forma sintagmática: (202) “Pensei em telefonar-te mas fiquei com medo de voce querer me dar um soco pelo telefone (...)” [19-09-1977] (203) “Recebi a sua carta e não ø mandei a procuração porque pensava subir sábado (...)” [29-11-1915] No que tange aos fatores extralinguísticos, a amostra do corpus e o subgênero da carta pessoal foram os grupos selecionados pelo programa estatístico. A amostra na qual os 142 dados foram encontrados foi o primeiro grupo selecionado. Os resultados dos pesos relativos mostram um favorecimento do clítico te nas amostras das famílias Cruz (0.860), Penna (0.694) e Pedreira Ferraz-Magalhães (0.585). Destas, as duas primeiras utilizam majoritariamente as formas de 2ª pessoa relacionadas ao paradigma de tu, o que pode justificar esse resultado. O fato interessante é o da família Pedreira Ferraz-Magalhães, na qual há ampla utilização do pronome você em posição de sujeito com a forma clítica dativa te. Em outras palavras, esse resultado significa que, excetuando as amostras que apresentam um uso exclusivo das estratégias ligadas ao paradigma de tu, a amostra imediatamente seguinte, na qual o clítico te foi mais utilizado, é justamente aquela que reúne grande número de casos de assimetria formal (você-sujeito correlacionado ao clítico dativo te), como ilustram os exemplos: (204) “Muito te agradeço tudo que Você fez por nossa irmasinha (...)” [28-11-1933] (205) “Por favor cuide de tua saúde, sobre tudo dos olhos, e mande-me noticias, se Você não pôde escrever, peça a alguma alma bôa, estou certa que te fará ese favor.” [01-02-1948] Invertendo o ponto de vista, vemos que, nas amostras da Família Cupertino do Amaral, da Família Lacerda e dos Cariocas da década de 1980, houve o desfavorecimento da ocorrência de te; ou melhor, nessas amostras, o clítico te aparece com menor força em relação ao dativo zero. No caso das duas amostras do 4º período – Família Lacerda e Cartas Cariocas de 1980 –, esse resultado confirma o que foi observado na etapa de análise geral: a afirmação do você como pronome pessoal na posição de sujeito eleva os índices de dativo nulo de 2P; sendo assim, é evidente que o clítico te apresentaria menor força nesse material. Quanto ao peso relativo verificado para a Família Cupertino do Amaral, a justificativa é um pouco diferente: nessas cartas, pertencentes ao 1º período, temos um uso do você ainda com caráter de pronome de tratamento, conforme mostrou Lopes (2009). Isso parece desfavorecer a ocorrência da variante te, em detrimento do dativo nulo. A seguir, um exemplo extraído de uma missiva de Cupertino do Amaral à esposa, Elisa: (206) “Eu devo formar-me como já ø disse na segunda-feira, se Deus quiser (...) Assim, pois, vou a festa. Você me espere. Quando ø digo que me espere não quero dizer que guarde jantar, porque jantarei na Barra.” [12-03-1886] 143 Quanto ao subgênero de carta particular, quarto e último grupo de fatores selecionado na análise binária entre te e dativo nulo, percebemos maior probabilidade de aplicação da regra em dois dos subgêneros controlados: cartas pessoais (0.679) e cartas amorosas (0.512). As cartas familiares favoreceram o emprego do dativo nulo. Esses resultados podem ser relacionados, dentre outras coisas, com as peculiaridades das relações de parentesco, ora simétricas, ora assimétricas. As cartas amorosas e as pessoais não familiares, trocadas principalmente entre amigos, apresentam um caráter mais íntimo, o que propiciaria, em alguns casos, o emprego de formas do paradigma de tu. A variante nula, devido ao seu caráter neutro, não compromete o remetente ao se referir ao destinatário. É o que atestam os exemplos a seguir, extraídos de uma carta amorosa trocado entre o casal dos anos 1930 e de uma carta familiar da amostra Land Avellar, respectivamente: (207) “Minha querida tu sabes perfeitamente que toda a oportunidade que posso aproveitar é somente para escrever-te, porque não me saes, um único segundo da lembrança (...)” [16-03-1937] (208) “ (...) ficamos sabendo que você estivera doente, o que mamãe já desconfiava por falta de cartas suas. Estimamos que agora esteja bom e ø pedimos notícias.” [08-06-1917] Em síntese, observando somente as formas variantes de dativo mais frequentes no corpus (clítico te vs. dativo nulo), verificamos que o clítico te mostrou maior favorecimento nas amostras de cartas pessoais (não-familiares) e amorosas do fim do século XIX e início do XX (Família Cruz, Penna e Pedreira Ferraz). Em termos estruturais, notamos a maior probabilidade de aplicação da regra variável (uso do te) em missivas com uso exclusivo de tu e nas cartas sem uniformidade de tratamento (uso de tu e você) na posição de sujeito. Os verbos de dois lugares (SU V OI) também favoreceram o emprego do clítico original de 2P. Em contrapartida, os ambientes que se mostraram mais propícios ao emprego do dativo nulo foram: as amostras de cartas familiares produzidas principalmente a partir da segunda metade do século XX, em que se empregava predominantemente você na posição de sujeito e em estruturas verbais de 3 lugares (SU V OD OI). 5.3.2. Variantes dativas de origens distintas: clítico te vs. clítico lhe Vejamos agora os grupos de fatores selecionados na rodada que contrapôs o clítico te ao clítico dativo lhe em referência à 2PSG. Opomos, nessa análise binária, dois clíticos 144 originados de paradigmas distintos, que apresentam valores funcionais igualmente distintos: segundo o que pudemos observar na rodada geral dos dados, as formas pertencentes ao paradigma do pronome tu são mais íntimas, enquanto as formas do paradigma do você são mais formais. Na Tabela 5.12, são apresentados os grupos selecionados: A forma de 2P utilizada na posição de sujeito, o período de tempo e subgênero da carta pessoal: Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R. Tu Você Tu/Você 194/195 83/158 184/191 99,5% 52,5% 96,3% .942 .028 .598 1º (1880-1905) 2º (1906-1930) 3º (1931-1955) 4º (1956-1980) 149/171 117/137 136/137 60/109 87,1% 85,4% 99,3% 55,0% .093 .683 .932 .334 Pessoal Familiar Amorosa 91/136 178/223 193/195 66,9% 79,8% 99,0% .366 .231 .853 (i) Forma utilizada na posição de sujeito (ii) Período (iii) Subgênero pessoal da carta Tabela 5.12. Análise multivariada das formas dativas te x lhe (Valor de Aplicação: clítico te) O primeiro grupo de fatores selecionado pelo programa na análise binária te x lhe foi a forma pronominal de 2P empregada na posição de sujeito. Os índices registrados são, em alguns casos, previsíveis, visto que o te é altamente favorecido nas cartas com uso exclusivo de tu na posição de sujeito (0.942), seguido das cartas com uso variável de tu e você como sujeito (0.598). Esses resultados são semelhantes ao que foi observado na rodada anterior em que se opôs tu e dativo nulo. Dois índices, contudo, precisam ser analisados atentamente. Em cartas com uso exclusivo de você na posição de sujeito, o clítico te foi fortemente desfavorecido (0.028). Esse resultado foi influenciado pelas missivas do primeiro e quarto períodos: nas primeiras, temos um uso do você ainda com caráter de pronome de tratamento; nas últimas, o uso “simétrico” do você com o clítico lhe aparece em cartas de escreventes com alto domínio dos modelos de escrita e que, portanto, seguem, em boa medida, a uniformidade de tratamento. Nessas últimas, temos ainda a interferência do subgênero da carta, que será comentado mais adiante. 145 (209) “Anexo mando-lhe uma carta de Hélio Tellegrino e gostaria que você refletisse sobre o que ele fala, tá?” [??-03-1982 (210) “Você disse que encontrou com o Pieroni, não é? Devo lhe confessar que sinto um carinho muito grande por ele.” [??-03-1982] O período foi o segundo grupo de fatores selecionado na presente rodada. É interessante observar que, no 1º período (1880-1905), em que há o maior número de ocorrências do clítico te (149 dados), essa variante apresentou o peso relativo mais baixo (0.093). Conforme comentamos na análise geral, isso decorre do fato de, nesse período, o pronome você ainda atuar como um pronome de tratamento propriamente dito; a representação da 2ª pessoa do singular estava a cargo, portanto, apenas das formas pertencentes ao paradigma do pronome tu (cf. RUMEU, 2008). Os usos do pronome lhe observados no 1º período acompanham pronomes de tratamento você e senhor/senhora. Sendo assim, não podemos dizer que havia uma concorrência direta das formas clíticas em foco, visto que cada uma atuava em contextos funcionais distintos. Nos outros três períodos, a situação se modifica e já podemos considerar que te e lhe passam a disputar a mesma posição, ou seja, a posição de complemento dativo de 2ª pessoa. Nos 2º e 3º períodos, notamos um favorecimento do clítico te, (0.683 e 0.932 respectivamente). Esses índices, principalmente no 3º período, confirmam a preferência pelo clítico te em contexto de variação. Os dados das cartas trocadas pelo casal da década de 1930 são, sem dúvida, os grandes responsáveis para o elevado peso relativo do referido pronome clítico, que obteve um percentual de frequência de 99,3%. Embora seja necessária muita cautela ao fazer certas afirmações a respeito das modalidades falada e escrita para sincronias passadas, podemos considerar o material do casal como o mais representativo daquilo que, por hipótese, estaria ocorrendo no português brasileiro em sua vertente popular da época (cf. SILVA, 2012). A variação na representação da 2PSG verificada nas cartas desse período se assemelha bastante ao sistema encontrado atualmente em diversos dialetos do português brasileiro, observados em estudos sincrônicos (cf. OLIVEIRA SILVA, 2011). No 4º período (1956 e 1980), há uma queda nas ocorrências do clítico te, refletida no percentual de frequência de 55%. Em termos relativos, isso se confirma com o índice de 0.334, indicando um favorecimento do clítico lhe. Esse favorecimento resulta do caráter da amostra da qual os dados foram extraídos: o informante da Família Brandão apresenta um uso categórico do clítico lhe para a representação do dativo 2SG; além disso, alguns missivistas da 146 amostra de cartas cariocas da década de 1980 adotam tal variante em cartas com uso exclusivo de você na posição de sujeito: (211) “O cartão que lhe enviei é da efigie do Conde de Pinhal, com o sêlo comemorativo do Centenario de São Carlos (do Pinhal)” [17-02-1973] (212) “(...) fiquei com a impressão de que você não está gostando muito e de que o lugar é uma Nova Iguaçú metida a besta (...). Aproveite ao máximo o que há de bom (...). Estou daqui lhe dando a maior força via ondas telepáticas.” [31-08-1980?] No último grupo de fatores selecionado na análise binária “te x lhe”, o subgênero da carta particular confirma o que verificamos na rodada anterior. Nas cartas de cunho amoroso, o te foi largamente favorecido, como comprovam o número de ocorrências (193 dos 195 dados analisados nessa rodada), o percentual de frequência (99%) e o peso relativo (0.853). Já nas cartas trocadas entre familiares e pessoais, embora o te registre percentuais de frequência consideravelmente altos (79,8% e 66,9%, respectivamente), a variante foi desfavorecida, com peso relativo de 0.231 para as missivas familiares e de 0.366 para as missivas pessoais. A associação das formas do paradigma do pronome tu com as cartas de tom lírico-amoroso explica os resultados obtidos nessa rodada e corrobora o que discutimos na apresentação dos resultados gerais, ao comentarmos a Tabela 5.5. Nos dois subgêneros referidos anteriormente, houve claro favorecimento ao emprego do clítico dativo lhe. Tal afirmativa pode ser ilustrada com as ocorrências dessa variante, já expostas na Tabela 5.5: dos 92 dados de clítico lhe, apenas 2 foram registrados em cartas amorosas; os outros 90 dados dividem-se igualmente entre as cartas pessoais e familiares. Retomando as assertivas de Gomes (2003) e de outros estudiosos quando afirmam que, no dialeto da área do Rio de Janeiro, o pronome lhe teria adquirido caráter de formalidade, nossos resultados parecem estender essa colocação: na área do Rio de Janeiro, o clítico lhe sempre deteve, na realidade, um traço pragmático associado à formalidade. Percebemos que, em diversas missivas familiares e pessoais, remetentes e destinatários de diferentes décadas i) não possuíam alto grau de intimidade, ou ii) tratavam de assuntos financeiros e/ou políticos, que exigiam um tom de maior seriedade na escrita. Um número expressivo de clítico lhe aparece justamente nesses casos, motivados pelo caráter [+formal] dessa variante. Os exemplos abaixo ilustram essas ocorrências: 147 (213) Alarico Land Avellar para o pai: “Bom é, todavia, que ele se lembre que já possuo 5/7 do negócio e que, de nenhum modo, me fará de tolo. Agora, em vez de histórias do José, peço-lhe que procure o rapaz e fale-lhe diretamente, pondo o negócio em pratos limpos.” [09-09-1916] (214) Anna Espínola ao primo Cupertino: “Já tive notícia de ter João recebido os 100$, o que de novo lhe agradeço. Porém o que ainda não sei é que quantia Maninha estregou-lhe, porque eu mandei dizer a ela que entregasse 200$. Peço-lhe que me responda sobre isto e também me diga quanto lhe devemos das duas publicações que o Espinola mandou fazer.” [14-11-1874] (215) Francisco Soares Brandão ao “Embaixador”: “(...) não ofereça, mais livros, venda, na cérta não lhe escrever, mostrando interesse em possuir o livro, não ofereça diga que está a venda em tal livraria e envie o endereço (...)” [25-06-1972] Em suma, analisando especificamente as formas clíticas de dativo de 2PSG presentes no corpus (clítico te vs. clítico lhe), concluímos que a variante te foi favorecida nas missivas em que se utilizava somente o pronome tu na posição de sujeito e naquelas em que havia alternância entre tu e você na posição de sujeito. Além disso, o te esteve amplamente presente nos documentos da primeira metade do século XX. Quanto ao subgênero da carta particular, as missivas amorosas favoreceram mais intensamente o uso da variante. Por outro lado, constatamos que o emprego do clítico lhe foi propiciado pelas cartas familiares e pessoais escritas na virada do século XIX para o século XX e na segunda metade do século XX em diante, nas quais se empregava majoritariamente você em posição de sujeito. 5.3.3. Variantes conservadoras e inovadoras: clítico te vs. sintagmas preposicionados Após analisarmos a aplicação da regra variável do dativo de 2SG opondo a variante te ao dativo nulo e ao clítico lhe, restaram ainda outras quatro variantes preposicionadas: de um lado, a ti e para ti, formas ligadas ao paradigma de tu; de outro, a você e para você, ligadas ao paradigma do você. Optamos por reuni-las em uma rodada binária com o clítico te por duas razões: primeiramente, devido à baixa produtividade dessas formas em todo corpus, que impossibilitaria o cálculo do peso relativo entre, por exemplo, te x para você. Além disso, acreditamos que os fatores que condicionam o aparecimento dessas formas sejam semelhantes, tendo em vista que as quatro são introduzidas por preposição marcadora de caso. 148 Expomos na Tabela 5.13 os quatro grupos de fatores selecionados na rodada: a forma do objeto direto, a seção da carta, a forma utilizada na posição de sujeito e a categoria semântica do verbo predicador. Grupo de Fatores Fatores Nº/T Frequência P.R. Clítica Sintagmática Oracional Nula 3/6 202/245 128/130 105/116 50,0% 82,4% 98,5% 90,5% .032 .391 .874 .380 Capt. de benevolência Núcleo Despedida P.S. Outra 21/22 393/441 23/41 3/6 24/28 95,5% 89,1% 56,1% 50,0% 85,7% .692 .563 .125 .031 .255 Tu Você Tu/Você 194/211 85/120 184/205 91,9% 70,8% 89,8% .733 .147 .500 T. material T. verbal/perceptual Mov. físico Mov. abstrato Interesse Mov. Psicológico 145/172 261/282 36/43 7/17 9/17 6/7 84,3% 92,6% 83,7% 41,2% 52,9% 85,7% .348 .656 .554 .032 .137 .703 (i) Forma do objeto direto (ii) Seção da carta (iii) Forma utilizada na posição de sujeito (iv) Categoria semântica do verbo predicador Tabela 5.13. Análise multivariada das formas dativas te x SPreps (Valor de Aplicação: clítico te) O primeiro grupo de fatores selecionado, de caráter linguístico, corresponde à forma do objeto direto nas estruturas ditransitivas. A ocorrência do clítico dativo te com um objeto direto também sob a forma clítica é bem restrita, como indica o baixíssimo peso relativo (0.032). No entanto, isso não significa que as formas preposicionadas sejam favorecidas nesse caso, visto que só registramos, também, 3 ocorrências do a ti com clítico acusativo. Vários estudos sobre o PB já demonstraram a baixa produtividade do clítico acusativo, especialmente o de 3ª pessoa do singular, que tem sido substituído, tanto na fala quanto na escrita, pelo objeto nulo ou pelo pronome lexical (cf. FREIRE, 2000, 2005). 149 O segundo dado importante diz respeito à forma oracional do objeto direto, que favorece a variante clítica em questão. Embora não tenha sido o contexto mais frequente de aparecimento do clítico te na amostra – 128 dados com OD oracional contra 202 dados com OD sintagmático –, essa forma pronominal marca 0.874 de P.R. nesse tipo de predicado. Consoante afirmamos na seção de análise geral, esse elevado índice resulta da larga ocorrência de verbos dicendi em nosso corpus, fato que justifica a presença maciça de OD oracionais. Fazendo a leitura inversa dos pesos relativos, podemos inferir que o espaço ocupado pelos sintagmas preposicionados nas estruturas ditransitivas seria, preferencialmente, em predicados com objeto direto nulo ou sob a forma de sintagma (nominal ou pronominal). Retomamos, a seguir, 2 exemplos já apresentados anteriormente do clítico te ocorrendo com OD oracional. Ilustramos, ainda, a ocorrência das formas preposicionadas em sentenças com objeto direto nulo e sintagmático: (216) “Ontem à noite te prometi que iria hoje à casa de Dona Arminda, porém veja, meu bem, que minha dignidade manda que eu lá não vá (...)” [21-10-1889] (217) “Esqueci de te dizer que o ballet ‘Gabriela’ foi transferido para mais tarde. Quem sabe estão te esperando?” [25-03-1983] (218) “São 11 horas preciso dormir, se não fosse isso seria capaz de ficar a noite toda escrevendo ø para ti” [02-03-1937] (219) “Já não aguento mais falar com voce pela caneta. Não que não goste de escrever ø para voce mas porque prefiriria não precisar escrevê-las mais sim ditá-las ou dizê-las.” [2709-1978] (220) “Brevemente iremos á Santa Fé. Tua vovó é que talvez, não possa ir desta vez. Quando eu for levarei alguma lembrança para ti e teus maninhos.” [08-07-1895] (221) “Foi de uma alegria imensa saber que os tempos que passamos juntas ainda trazem boas recordações pra você e inclusive pra mim.” [??-03-1982] A seção da carta foi o segundo grupo de fatores selecionado na análise binomial te x SPreps. A forma clítica te registra maior probabilidade de ocorrer na captação de benevolência (0.692) e no núcleo da carta (0.563). Segundo o que já expomos na seção de análise geral, atribuímos o alto índice verificado para a seção de captação de benevolência à tradição discursiva de carta pessoal. Em nosso corpus, as missivas apresentaram, na seção de captação de benevolência, formas discursivas cristalizadas que preservam o clítico te, desfavorecendo o emprego das formas preposicionadas. Os exemplos comprovam a existência 150 dessa construção formulaica em cartas de diferentes missivistas das amostras Land Avellar, Casal dos anos 1930 e Afonso Penna Júnior: (222) Edgard Land Avellar: Que você esteja gozando saúde é o que te desejo. (01-06-1913) (223) Alexandre Penna: Desejo-te muita saúde em companhia de todos aí. (04-10-1915) (224) Casal dos anos 1930: Desejo-te muitas felicidade assim como aos teus eu e os meus vamos bem graças a Deus (23-09-1936) (225) Casal dos anos 1930: Desejo-te que esta te vá encontrar em perfeita saúde assim como os teus eu e os meus vamos bem graças a Deus (06-10-1936) As seções de despedida e post scriptum (P.S.), entretanto, desfavoreceram a ocorrência do te, segundo indicam os pesos relativos (0.125 e 0.031, nessa ordem). Vale comentar que o P.S. é a seção da carta na qual, por vezes, encontramos as variantes inovadoras a você e para você na escrita de remetentes que registram menor uso variável das formas pronominais. Dito de outro modo, essa seção, prototipicamente destinada a anotações repentinas e informações julgadas como relevantes pelo missivista que, por descuido ou esquecimento, não as incluiu no corpo da carta, parece ser a “porta de entrada” da variação pronominal de 2ª pessoa: sob a pressão do tempo para a finalização do texto, o grau de monitoramento da escrita parece diminuir e, informantes como Emília Fonseca, esposa do médico Oswaldo Cruz, deixam escapar o uso de pronomes que não corresponde ao padrão utilizado no núcleo da carta: (226) P.S. Papae esteve hoje com o Hilario De Gouveia elle perguntou muito por voce e disse que ia te nomear para uma comissão contra a tuberculose e que pedia a voce para acceitar e apparecer. Elle parte para a Europa no dia 26 d’este mez (18-10-1899) Quanto à forma pronominal utilizada na posição de sujeito, terceiro grupo de fatores selecionado, observamos que, novamente, o clítico te apresenta um peso relativo elevado nos contextos em que há o uso exclusivo de tu (0.733) e nas cartas com alternância entre você e tu na posição de sujeito (0.500). Nos contextos em que temos o uso exclusivo do pronome você na posição de sujeito, o emprego da variante te é fortemente desfavorecido, segundo indica o peso relativo de 0.147. Mais uma vez, interpretando os valores por uma ótica invertida, somos conduzidos a pensar que esse é um contexto favorecedor aos sintagmas preposicionados, especialmente a você e para você. O fato de essas duas variantes corresponderem à forma 151 você acompanhada de preposição atribuidora de caso descarta a questão da uniformidade de tratamento. Em outras palavras, se o clítico lhe não é utilizado, pois ele pode gerar ambiguidade referencial, e se o clítico te não deve ser empregado, já que ele rompe a simetria formal entre os pronomes de 2ª pessoa, então os missivistas lançam mão dessas estruturas preposicionadas, que podem ser vistas como um tratamento neutro. Acrescentemos a isso, o fato de o pronome você não dispor – ao menos no estágio da língua estudado – de formas clíticas próprias do seu paradigma; sendo assim, quando o indivíduo não agrega o clítico te ao você, a forma esperada seria, por conseguinte, um dos sintagmas preposicionados mencionados. Outro índice de peso relativo que merece comentário é o verificado para a mescla de tratamento na posição de sujeito: nesse contexto, a variante te registra 0.500, ou seja, exatamente 50% de chances de ocorrer. À primeira vista, isso parece não significar muito; porém, vale lembrar que estamos focalizando o binário te x SPreps, no qual opomos o clítico a quatro variantes (a ti, para ti, a você e para você). Assim sendo, o peso relativo observado significa que, na disputa com as formas preposicionadas, a probabilidade de ocorrer o clítico te em contexto de variação entre tu e você na posição de sujeito é de 50%. Quarto e último grupo de fatores selecionado, a categoria semântica do verbo predicador nos permite traçar observações interessantes. De acordo com os índices de peso relativo, os verbos de movimento psicológico (0.703), transferência verbal e perceptual (0.656) e de movimento físico (0.554) são os que mais favoreceram o uso da forma te. Conforme mostramos na análise geral ao discutir os resultados da Tabela 5.3, obtivemos 9 ocorrências de dativo de 2PSG com esse tipo de verbo, dentre os quais seis delas foram com o clítico te. (227) “(...) acredito que na occasião te faltará a coragem e a ellas tambem (...)” [05-03-1895] (228) “(...) nesta carta vou renovar o pedido que constantemente te faço, e, peço que em meu nome o faças à tua boa Mãe, que, boa como ela é com certeza te atenderá: volta, meu anjo, volta, querida, porque do contrário eu não resisto mais (...)” [16-04-1891] O peso relativo também alto dos verbos que veiculam a noção de transferência verbal e perceptual (0.656) confirma o favorecimento da forma te, já observado na alta frequência de 92,6%. Os verbos de movimento físico também confirmaram o favorecimento dessa variante frente aos sintagmas preposicionados (0.554), já percebido no elevado percentual de frequência de 83,7%. De maneira geral, podemos dizer que os índices verificados confirmam 152 nossa hipótese de que o clítico te, por ser a estratégia mais produtiva, vincula-se aos verbos com a noção semântica básica do dativo (polo de orientação para o qual tendem as ações/processos expressos pela predicação da sentença). Seguindo a tipologia de dativo adotada nesta dissertação e discutida no capítulo 2, os verbos de transferência verbal e perceptual estão bem próximos ao núcleo de significação básica, atrás somente dos verbos de transferência material. Podemos afirmar, pois, que a alta frequência do clítico te com esses verbos relaciona-se, de fato, com uma “hierarquia semântica”, na qual a variante mais frequente é favorecida pelos verbos “prototípicos” do caso dativo. (229) “(...) fato que aqueles dois dias em que saimos fez-me ver que sempre gostei de voce. Posso te provar que muita da minha alegria com que me despedi de voce era falsa.” [0208-1978] (230) “Na Faculdade você vai conhecer milhões de pessoas, boas ou más, mas que a cada dia te ensinarão lições de vida, porque é vivendo que se aprende a viver melhor.” [??-031982] As categorias semânticas que mais abriram espaço para as variantes preposicionadas foram os verbos ditransitivos de movimento abstrato e os transitivos de interesse. Os índices da Tabela 5.13 precisam com maior clareza os valores absolutos obtidos para as formas preposicionadas em relação a esses verbos. Na seção de análise geral dos dados, os pronomes dativos preposicionados registraram maior frequência entre os verbos de transferência material. Atribuímos esse registro aos 17 dados de para você que apareceram relacionados ao verbo mandar. Confrontando os números da Tabela 5.3 e os apresentados na Tabela 5.13, com os valores absolutos relativizados pelo programa, vemos que essa categoria semântica verbal favorece a ocorrência dos sintagmas preposicionados, embora não tenha sido a mais propícia ao aparecimento dessas variantes (lendo os pesos relativos de maneira inversa, percebemos que os índices de 0.032 dos verbos movimento abstrato, e de 0.137 dos verbos de interesse são maiores do que o índice de 0.348 registrado para os verbos de transferência material). (231) “(...) tu sabes que só a ti é que pertenço, tu é a dona do meu coração, és a eleita de meus sonhos, és a rainha de meu pensamento (...)” [19-01-1937] (232) “Quando estivermos juntos de contarei o procedimento de certa gente, cuja posição vida e fortuna a ti devem, são uns miseraveis, de alguns terás já noticia, de outros ficarás 153 admirado, tempo ao tempo, nunca imaginei tanta pervesidade Deus He grande.” [15-111893] Em resumo, ao verificarmos o clítico te em oposição às quatro variantes preposicionadas de dativo 2PSG, constatamos que a presença de um objeto direto oracional, as seções de captação de benevolência e núcleo das cartas, o uso exclusivo do pronome tu e o uso variável tu/você na posição de sujeito e a presença dos verbos de transferência verbal e perceptual favorecem mormente a ocorrência do clítico te. Outrossim, a ocorrência de objeto direto nulo ou sintagmático, as seções de despedida e P.S. das cartas, o uso exclusivo do você na posição de sujeito e a presença dos verbos de movimento abstrato e de interesse atuam favoravelmente ao aparecimento dos dativos de 2PSG sob a forma preposicionada. 5.4. A Uniformidade de tratamento: retornando à questão Nos capítulo 3 desta dissertação, dedicamos alguns parágrafos à questão da uniformidade de tratamento pronominal na 2ª pessoa do singular. Salientamos, dentre outras coisas, o conservadorismo exacerbado que, ainda hoje, está presente nas gramáticas tradicionais que, ao tratarem do quadro de pronomes pessoais, desconsideram a existência de novas formas atuantes na representação das diferentes pessoas discurso; ao ignorarem, por exemplo, a inserção do você no sistema pronominal do português utilizado no Brasil, acabam por reproduzir um quadro de formas pronominais muito distante da nossa realidade, já que, segundo os compêndios gramaticais, o pronome clítico te só se combinaria com o pronome tu na posição de sujeito, de maneira que uma construção do tipo “você leu o livro que eu te dei?” é rechaçada por romper a uniformidade de tratamento; formas de 2P só devem se combinar com formas de 2P, assim como formas de 3P só podem se combinar com formas de 3P. A combinação de pronomes de 2P com pronomes oriundos de 3P, mas que passam a funcionar como referência à 2P, seria uma ruptura da simetria formal que o indivíduo não deve cometer, sobretudo na língua escrita. Diante dessa prescrição recorrente nos manuais de gramática, resolvemos atestar a validade dessa regra em nosso corpus, que, como foi apresentado no capítulo 4, é formado por textos escritos no período de um século, período esse que recobre a época em que o você implementou-se no sistema do PB, segundo os estudiosos já referidos. 154 Os resultados obtidos, ilustrados e comentados em 5.2 e 5.3, mostraram que a plena correlação entre a forma pronominal utilizada na posição de sujeito e a forma do pronome dativo (nosso objeto de estudo) não ocorre na diacronia analisada, sobretudo após a inserção do você. Na etapa da análise variável, contudo, vimos que o grupo de fatores “forma utilizada na posição de sujeito” foi selecionado nas três rodadas feitas entre o clítico dativo te e as demais variantes do corpus (o dativo nulo, o clítico dativo lhe e os Spreps). Argumentamos, sem nos aprofundarmos, que o fato de esse grupo de fatores ter sido selecionado como relevante relacionava-se mais com as demais variantes do que com a forma te em si, pois essa seria “imune” a praticamente todos os grupos de fatores elaborados para esta pesquisa; em outras palavras, o te não parece ser nem favorecido e nem desfavorecido por nenhuma variável independente controlada, pelo fato de ser a estratégia dativa mais frequente no corpus em todos grupos de fatores. Dentre todos esses pontos já expostos, uma pergunta ainda precisa ser respondida: afinal, a uniformidade de tratamento, diferentemente do que acontece na variedade europeia do português, é algo completamente falso para o português brasileiro? Todas as sete variantes estudadas são permutáveis entre si, podendo ocupar quaisquer contextos para representar a 2ª pessoa do singular na posição de dativo? Objetivando averiguar essa questão com mais detalhamento, apresentamos os gráficos a seguir. - A Variante te ao longo do século: mudança de paradigma 100% 81,6% 80% 67,8% 63,2% 60% Tu 49,0% Você 40% 32,2% Mescla 33,2% 25,8% 0% 18,4% 17,8% 20% 11,8% 0,0% 1880-1905 0,0% 1906-1930 1931-1955 1956-1980 Gráfico 5.3. A frequência do clítico te nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) 155 No Gráfico 5.3, distribuímos as frequências do clítico dativo te em nosso corpus entre os quatro períodos de tempo analisados, tendo em vista o tratamento na posição de sujeito. Em cada período, subdividimos as frequências do te entre as formas pronominais utilizadas na posição de sujeito – somente tu, somente você e alternância tu/você. O resultado revela-se bastante interessante: conforme indicam as linhas de tendência, ao longo da diacronia considerada, o clítico te desassocia-se do pronome tu na posição de sujeito, passando a combinar-se com o você. Se no 1º período, que compreende o intervalo de tempo entre 1880 e 1905, quase 70% dos dados da forma te ocorriam em cartas cuja forma na posição de sujeito era o pronome tu, no último período, entre 1956 e 1980, esse clítico dativo aparece plenamente associado ao você (mais de 80% dos dados). Vale ressaltar também o “encontro” entre as linhas de tendência da forma tu-sujeito e da forma você-sujeito no 3º período (1930-1956): justamente na época da inserção do você no sistema. Diante do gráfico, podemos afirmar que a uniformidade de tratamento não se aplica aos nossos dados do clítico dativo te, que paulatinamente passou a associar-se ao você. Precisamos, entretanto, verificar se combinações dessa natureza ocorrem livremente com as demais variantes. Passemos ao Gráfico 5.4: - A Variante lhe ao longo do século: manutenção do paradigma 100% 80% 91,0% 100,0% 100,0% 72,7% 60% Tu 40% Você Mescla 22,8% 20% 11,0% 4,5% 0% 1880-1905 0,0% 1906-1930 0,0%0,0% 1931-1950 0,0% 0,0% 1956-1980 -20% Gráfico 5.4. A frequência do clítico lhe nas cartas segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) 156 Ao controlarmos os mesmos parâmetros em relação ao clítico dativo lhe, percebemos que a situação modifica-se drasticamente: embora seja apenas a 3ª estratégia de dativo de 2ª pessoa mais frequente na nossa amostra, conforme já demonstramos nas seções anteriores desse capítulo, o clítico lhe, quando ocorreu em nosso corpus, estava fortemente associado à forma você presente na posição de sujeito, como evidenciam as barras vermelhas do gráfico. No primeiro período, cerca de 70% das ocorrências do clítico lhe estavam relacionadas ao você na posição de sujeito; no último período, todas as ocorrências obtidas pertenciam a esse contexto. Combinações entre o pronome tu na posição de sujeito e o clítico dativo lhe praticamente foram inexistentes, visto que a frequência desse tipo de ocorrência é irrisória, se consideramos toda a diacronia. Corroborando o que já havíamos dito em 5.3.2, podemos afirmar que o clítico lhe é condicionado pela forma pronominal na posição de sujeito e, nesse contexto morfossintático, pelo menos na escrita epistolar do período analisado, a uniformidade é respeitada. Analisemos, por fim, mais uma variante dativa, o sintagma preposicionado para você. - A Variante para você ao longo do século: emergência no sistema 100,0% 100% 94,0% 87,5% 80% 60% Tu Você 40% Mescla 20% 12,5% 6,0% 0% 0,0%0,0%0,0% 1880-1905 0,0% 0,0% 1906-1930 0,0% 1931-1955 0,0% 1956-1980 Gráfico 5.5. A frequência do sintagma preposicionado para você segundo a forma pronominal do Sujeito na diacronia analisada (1880-1980) 157 No Gráfico 5.5., notamos que essa variante está, de fato, associada à implementação do você no sistema de pronomes pessoais, haja vista que sua frequência de uso aumenta gradualmente do primeiro ao último período, acompanhando a forma pronominal vocêsujeito. Entre os dados de 1880 e 1905, não houve um único registro do para você; este aparece sempre associado, nos três períodos subsequentes, ao você (vale lembrar que no contexto de alternância, pressupomos que as duas formas em variação credenciam suas respectivas variantes). As linhas de tendência confirmam esse comportamento regular e uniforme. Diante das informações colocadas pelos três gráficos precedentes, podemos tirar uma conclusão: a representação pronominal da 2ª pessoa do singular na posição de complemento dativo no português brasileiro não é absolutamente caótica; 5 das 7 variantes registradas possuem condicionamentos linguísticos e extralinguísticos bem demarcados, dentre os quais destacamos a forma pronominal do sujeito. Parece que a entrada do você no sistema foi um fator decisivo na “vida” das formas pronominais na posição de complemento. Vimos que, em um período consideravelmente curto, os sintagmas preposicionados a ti e para ti desapareceram da escrita epistolar de indivíduos situados na cidade do Rio de Janeiro e esse desaparecimento, evidentemente, está ligado ao gradativo desuso do pronome-sujeito tu. Em detrimento disso, emergem duas novas formas preposicionadas associadas ao pronome você, como uma maneira de compensar as outras duas que se perderam. O objeto nulo, uma estratégia neutra e não associada ao paradigma de nenhuma forma pronominal, manteve altos índices de frequência, acentuados no período em que a variação entre as formas foi mais intensa. O clítico lhe, forma que tem sofrido diferentes mutações, não desaparece por completo – pelo menos no que diz respeito à escrita –, estando, contudo, fortemente condicionado por diferentes fatores (grau de formalidade, subgênero da carta, forma empregada na posição de sujeito). Em meio a essas perdas, ganhos e modificações, continua a prevalecer o clítico dativo te, com uma “força de uso” tão grande que, como vimos, foi capaz de desassociar-se de seu paradigma original, o do pronome tu, associando-se à nova forma inserida, o pronome você. Essa “recombinação” certamente não se deu de maneira tão simples como os resultados numéricos e os gráficos podem sugerir. Acreditamos que outros processos tenham ocorrido em torno desse item gramatical; alterações de ordem semântica, gramatical e discursiva foram, sem dúvidas, decisiva para a “sobrevivência” da forma te. Essa análise, no entanto, ultrapassa os limites desta dissertação e merecerá atenção especial em trabalhos vindouros. 158 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas discussões apresentadas e a partir dos resultados obtidos pela análise empreendida acerca da representação da 2ª pessoa do singular na posição de dativo em cartas particulares escritas entre as décadas 1880 e 1980 por cariocas e fluminenses, podemos sumarizar alguns aspectos sobre o assunto, descritos e/ou comprovados ao longo desta dissertação. Em primeiro lugar, cabe resgatar a questão teórico-metodológica levantada no capítulo 4 acerca da aplicação do modelo de trabalho da sociolinguística laboviana aos dados de sincronias passadas. Dada a natureza e especificidade do corpus histórico, vimos que analisar os dados obtidos a partir de fatores como gênero, faixa etária ou classe social seria inviável, pois as informações disponíveis sobre os informantes do passado são, em geral, incompletas, fragmentárias e escassas. Em contrapartida, procuramos demonstrar a possibilidade de analisar a variação em perspectiva histórica, ao realizar uma série de procedimentos metodológicos necessários. Diante disso, foi possível observar a dinâmica das variantes de dativo de 2PSG na diacronia carioca/fluminense e obter resultados valiosos para o estudo da variação pronominal no português brasileiro. Verificamos que o clítico te era, de fato, a forma pronominal de complemento dativo mais frequente na escrita dos informantes da diacronia estudada. Um fato curioso que pôde ser evidenciado na análise dessa variante foi sua “aparente imunidade” à estratégia utilizada na posição de sujeito. Isso significa dizer que, independentemente do subsistema de tratamento empregado nessa posição – exclusivamente tu, exclusivamente você ou mescla entre tu e você –, o clítico te ocorria e com produtividade relativamente alta em quase todas as amostras apreciadas, podendo combinar-se com o pronome você. Outra constatação feita em nossa pesquisa diz respeito ao dativo nulo. Conforme indicaram os resultados quantitativos, esta parece sempre ter sido a segunda variante de complemento dativo mais empregada. Além disso, os dativos nulos sofrem uma elevação de frequência notável após os anos 1930, ou seja, no período indicado pelos estudiosos em que a forma você começa a ser utilizada em textos escritos com estatuto de pronome pessoal. O clítico lhe figurou no corpus analisado como uma variante de frequência irregular, cujo uso apareceu extremamente condicionado a variáveis de ordem linguística e extralinguística. A referida estratégia não sofreu aumento significativo de recorrência após a gramaticalização do você. Dito de outro modo, o pronome você, ao passar a ser utilizado 159 como pronome pessoal, não trouxe consigo em grande intensidade a forma de 3ª pessoa do singular lhe. Esta atua como dativo na escrita carioca/fluminense em contextos bem definidos, associado, principalmente, a cartas com menor grau de intimidade entre remetentes e destinatários conferindo caráter de formalidade. Os sintagmas preposicionados, conforme colocamos por hipótese, registraram baixos índices de frequência em todos os períodos analisados. Ao traçarmos um paralelo com o resultado obtido por outros trabalhos (GOMES, 2003; OLIVEIRA SILVA, 2011; LOPES & CAVALCANTE, 2011), podemos perceber que a distribuição das três estratégias principais de realização do dativo – clítico, objeto nulo e sintagma preposicionado – corresponde a uma organização estrutural do próprio sistema linguístico, diferente daquela observada para os complementos de 3SG, em que os índices das formas preposicionadas superam os índices de clíticos. Portanto, a baixa frequência dos complementos dativos preposicionados em referência à 2SG não é consequência da variação focalizada por esta dissertação, mas antes da configuração do sistema pronominal do português brasileiro. Interessante foi observar, ao longo do século investigado, o desaparecimento gradual de a/para ti seguido da emergência de a/para você na variedade do Rio de Janeiro. No âmbito das Tradições Discursivas, constatamos que os subgêneros do gênero carta particular influenciaram diretamente a ocorrência das variantes em análise. De maneira geral, os resultados indicaram que o clítico lhe relacionava-se diretamente ao baixo grau de intimidade entre missivista e destinatário e, por isso, foi mais frequente em cartas trocadas entre amigos ou pessoas próximas dentro de um dado círculo de convivência social. Por outro lado, os sintagmas preposicionados a/para ti foram registrados, em sua grande maioria, nos dados extraídos das cartas amorosas, com um traço lírico-romântico marcante. A uniformidade de tratamento não se revelou, na amostra, como uma realidade linguística concreta na escrita epistolar de fins do século XIX e quase todo o século XX. Encontramos, em boa medida, a combinação Você-sujeito com te-dativo nos dados de indivíduos com diferentes graus de domínio de escrita (inclusive entre os “cultos”). Sendo assim, adotando os resultados dessa pesquisa, não haveria uma motivação/herança de cunho histórico para a preservação nos compêndios gramaticais e escolares de uma lição na qual é prescrito o uso uniforme dos pronomes de referência à segunda pessoa. O núcleo social ao qual pertenciam os missivistas demonstrou ser um fator extralinguístico determinante para a escolha das variantes dativas. Baseando-nos na heterogeneidade dos perfis sociolinguísticos encontrados no corpus, tornou-se evidente que 160 escreventes de diferentes categorias sociais não utilizavam sempre as mesmas formas pronominais para a representação do complemento dativo. 161 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, G. de S. Quem te viu quem lhe vê: a expressão do objeto acusativo de referência à segunda pessoa na fala de Salvador. 193 f. Dissertação de mestrado. – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. ALMEIDA, N. M. de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 29. ed. 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