Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA Autor: Camila Oliveira Ribeiro Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva CAMILA OLIVEIRA RIBEIRO Brasília - DF 2011 CAMILA OLIVEIRA RIBEIRO A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA Monografia apresentada ao curso de graduação em Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Licenciado em Letras Português. Orientadora: Dra. Mariza Vieira da Silva Brasília 2011 Monografia de autoria de Camila Oliveira Ribeiro, intitulada “A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURSIVA”, apresentada como requisito parcial para a obtenção de grau de Licenciado em Letras da Universidade Católica de Brasília, em 18 de novembro de 2011, definida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada: ______________________________________ Profª. Dra. Mariza Vieira da Silva Orientadora Curso de Letras – UCB _______________________________________ Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan Curso de Letras − UCB _______________________________________ Prof. MSc. Juarez Moreira da Silva Júnior Curso de Pedagogia, Proform e Pós-Graduação em Educação a Distância– UCB(Católica Virtual) Brasília 2011 AGRADECIMENTO A Deus, por ter me dado forças, coragem e sabedoria. À professora Mariza, por toda paciência, apoio, amizade e, principalmente, por me ensinar a acreditar no meu potencial. Aos meus pais, Adriana e Valmir, por terem doado parte de suas vidas para que esse sonho se concretizasse. Aos meus irmãos, Vanessa e Vinícius, pela amizade e compreensão dos necessários momentos de silêncio. À minha madrinha, “Elsi”, minha avó, “Maria do Socorro”: sem elas, esse sonho não poderia estar se realizando. A todos os meus amigos que me apoiaram, em especial, Solange e Janaína, por estarem sempre presentes na minha vida, e aos amigos da Ofitex que tanto contribuíram para meu crescimento profissional, principalmente à querida professora Vera. Agradeço, de forma especial, à minha amiga Aline Salgado por me acompanhar durante toda a minha trajetória acadêmica, partilhando do mesmo sonho. RESUMO RIBEIRO, Oliveira Camila. A GRAMÁTICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO SOB A PERSPECTIVA HISTÓRICO-DISCURIVA. 2011. 45p. Monografia Letras – UCB, Brasília- DF, 2011. Este trabalho tem como objetivo compreender como o nosso objeto de estudo – a gramática no livro didático - produz sentidos. O nosso referencial teórico e metodológico fundamenta-se na Análise de Discurso e na História das Ideias Linguísticas, que nos levam a tomar a gramática e o livro didático como Instrumentos linguísticos, tecnologias e discursos. Analisamos as condições de produção do nosso objeto de estudo, buscando compreender a imagem de língua, de conhecimento linguístico e de leitor presentes no livro didático por meio da pergunta norteadora do nosso trabalho que é: como o saber gramatical é didatizado pelo livro didático? Uma vez que observamos que não é por mera transposição de conhecimentos, mas que eles obedecem a padrões e exigências estabelecidos pelo Estado e pela Ciência, logo buscamos compreender como se dá esse processo, ampliando nossa visão sobre as políticas públicas do livro didático, analisando, principalmente, Guias que são resultantes do processo de seleção das obras produzidas no Brasil. Por meio da compreensão do dispositivo teórico oferecido pela teoria da Análise de Discurso, construímos o nosso dispositivo analítico, delimitando o nosso corpus centrado nos Guias de Livros Didáticos do PNLEM e no livro “Português Linguagens” de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, atualmente mais usado no Brasil e em Brasília. E por meio da descrição e análise chegamos à conclusão de que a gramática ainda é quem “comanda” o ensino, que o conhecimento linguístico presente na escola ainda se resume em estudar uma gramática fechada em conceitos e regras simplificadas e banalizadas, por meio de exercícios para que o leitor identifique fatos gramaticais. Assim, a imagem de língua é projetada como conceitos para serem identificados e decorados, uma língua una e uniforme; a imagem de conhecimento como algo estável e controlável, e a de sujeito como a de quem ainda não é capaz de dominar essa língua homogênea. Palavras-chave: Tecnologias histórico-discursivas. Gramática. Livro didático. Ensino de língua portuguesa. Análise de discurso. História das ideias linguísticas. ABSTRACT The objective of this paper is to comprehend how our object of study – grammar within the didactic book – produces meanings. Theoretical and methodological referential were Discourse Analysis and the History of Linguistic Ideas, which lead us to take grammar and the didactic book as linguistics tools, technologies and discourses. We have analyzed the conditions of production of our object of study, trying to comprehend the image of language, linguistic knowledge and presence of the reader in the didactic book through the guiding question of this paper: how is grammatical knowledge didactically put through the didactic book? Once observed that it's not through simple knowledge transposition, but that such knowledge obeys patterns and demands established by the State and Science, soon we tried to comprehend how this process occurs, broadening our view about public policies on didactic books, analyzing, primarily, Guides which are a result of the process of selection of books produced in Brazil. By comprehending the theoretical device offered by the theory of Discourse Analysis, we have built our analytical device, limiting our corpus of study within the Guide of Didactic Books of PNLEM and the book currently highly used in Brazil and Brasília called “Português Linguagens” by William Roberto Cereja and Thereza Cochar Magalhães. Through description and analysis we have reached the conclusion that grammar is still the one “commanding” the teaching process. We have also perceived that the linguistic knowledge used nowadays in schools still means studying simplified and banalized rules and concepts in a closed grammar through exercises which enable the reader to identify grammatical aspects. Therefore, the image of language is projected as concepts to be identified and memorized, a single and uniform language; the image of knowledge is seen as something stable and controllable, and the image of the subject is one of someone who still can't fully domain this homogeneous language yet. Keywords: Historical-discourse Technology. Grammar. Didactic book. Portuguese language teaching. Discourse analysis. History of linguistic ideas. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7 CAPÍTULO 1 TECNOLOGIAS HISTÓRICO-DISCURSIVAS .................................... 10 1.1 A GRAMÁTICA ................................................................................................ 10 1.2 O LIVRO DIDÁTICO ........................................................................................ 17 CAPÍTULO 2 CONSTRUINDO UM DISPOSITIVO ANALÍTICO................................ 24 CAPÍTULO 3 O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO .................................................................................................................................. 31 CAPÍTULO 4 DESCRIÇÃO E ANÁLISE: LINGUAGENS E LÍNGUA ......................... 37 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 53 7 INTRODUÇÃO Este Trabalho de Conclusão de Curso busca compreender como a gramática, no sentido de um saber produzido sobre a língua em um momento histórico de uma determinada sociedade, vem sendo escolarizada por meio do livro didático. Isso significa que estamos trazendo para reflexão e análise duas questões que têm estado sempre presentes, pelo menos nas três últimas décadas, nos estudos e nas discussões sobre o processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa: a de ensinar ou não a gramática e da centralidade do livro didático no processo escolar, considerando seus efeitos em termos de qualidade da educação. Podemos iniciar nosso trabalho, com as palavras de Dias (2000): Já se tornou comum a idéia de que o ensino de gramática padece de sérios problemas. Alguns desses problemas estão relacionados com a própria metodologia utilizada pelo professor em sala de aula; outros estão ligados às características excessivamente rebuscadas da linguagem utilizada pelos gramáticos; outros ainda são devidos à falta de uma hierarquia nos níveis de complexidade e detalhamento de conteúdo apresentado aos alunos através do livro didáticos. Esses problemas têm sido levantados em diversos trabalhos nos últimos anos (DIAS, 2000, p. 21). É preciso ressaltar que Dias é a favor do ensino da gramática na escola e que o problema não se resolve, segundo ele, apenas com métodos e técnicas, estratégias pedagógicas adequadas. E, nesse mesmo artigo, sinaliza para o lugar que merece reflexão mais aprofundada que é pensarmos nos conhecimentos que temos sobre esse instrumento de normatização de uma língua, na nossa própria atitude frente aos conceitos produzidos pela gramática; e aponta outros caminhos, como o de não conceber a língua apenas como um fato gramatical e, sim, como um fato discursivo, ou seja, que tem história e memória, que se produz pela relação entre sujeitos em condições específicas. A outra questão que está em jogo em nosso trabalho é o livro didático, o meio pelo qual esse conhecimento gramatical chega à escola, pois não é mais comum a própria gramática fazer parte do material escolar de cada aluno. O livro didático tornou-se, no decorrer do tempo, principalmente nas escolas públicas, o ator principal da cena enunciativa pedagógica, ocupando, muitas vezes, o lugar do professor, decidindo sobre o conteúdo ou a metodologia a serem usados. Trata-se, pois, de uma questão a que não se pode fugir de uma reflexão e análise mais 8 aprofundadas, se quisermos tomar uma posição em nossa vida profissional, sermos profissionais competentes e autônomos. A partir da década de 1980, principalmente, outra discussão, relacionada ao nosso objeto de estudo, também ganha a cena escolar, criando uma dicotomia entre um ensino tradicional, superado, do qual a gramática seria representante, em oposição a um ensino moderno, porque científico, objetivo, não preconceituoso, representado pela linguística. Trata-se, contudo, de uma oposição redutora e simplista que ignora toda a história de produção de conhecimento linguístico, do qual a gramática faz parte. Por outro lado, observamos que quando se fala ou se pergunta, ainda hoje, qual é o foco de ensino de Português na escola, ouvimos a palavra “gramática”: saber português ainda é saber gramática. Mas, o que está se entendendo por gramática? Como ela se articula com a leitura e a produção de texto? Há, aí, várias questões a compreender que não podemos esgotar neste TCC, mas queremos ampliar nossa visão sobre algumas delas. Nosso objetivo, considerando o objeto de estudo – a gramática no livro didático-, é compreender como essas tecnologias, responsáveis por descrever, normatizar e instrumentalizar a língua portuguesa, como língua nacional, produzem sentido no modo de dizer uma língua em diferentes espaços de circulação. Nosso referencial teórico e metodológico para compreender esse objeto de estudo será a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, o que significa que a gramática e o livro didático serão tomados, neste trabalho, como instrumentos linguísticos (AUROUX, 1992) e como discursos (PÊCHEUX,1990 e ORLANDI, 2007). Tomamos como conceitos para reflexão e análise as condições de produção da gramática e do livro didático no Brasil, com ênfase, em se tratando da gramática no livro didático, nas imagens de língua, de conhecimento linguístico e de sujeito leitor presentes no livro didático. Nosso dispositivo de análise tomou como corpus os Guias de Livros Didáticos PNLEM- apresentação e de Língua Portuguesa, e o livro didático de Ensino Médio atualmente mais usado no país e em Brasília, “Português Linguagens 2” de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, edição de 2010, fazendo um recorte para descrição e análise, dado o tempo disponível, da primeira Unidade do livro destinado ao segundo ano. No primeiro Capítulo, ampliamos nossa visão acerca da gramática e do livro didático, considerando-os como tecnologias histórico-discursivas, ressaltando as 9 suas condições de produção num sentido mais amplo, o que significou incluir em nossa reflexão o contexto sócio-histórico (ideológico) em que são produzidos, ou seja, o da gramatização (AUROUX, 1992) das línguas na Europa e no Brasil. No segundo Capítulo, apresentamos conceitos que constroem o nosso dispositivo de interpretação – a Análise de Discurso - e construímos o nosso dispositivo de análise, a fim de que nos desse elementos para compreender, pelas pistas e vestígios presentes na materialidade linguística dos textos, o nosso objeto de estudo. No terceiro Capítulo, tratamos das condições de produção do livro didático em um sentido mais estrito, isto é, o contexto imediato em que o livro selecionado para descrição e análise está inserido: o da disciplina de Língua portuguesa, o nível de ensino e o das políticas públicas de educação, analisando parte do material – guias-, que regem as relações entre essas instâncias, relações essas que envolvem muitos interlocutores. Por fim, no quarto Capítulo, descrevemos e analisamos o nosso corpus, observando os efeitos de sentidos produzidos no processo de escolarização, de didatização do conhecimento gramatical em termos das imagens de língua, de conhecimento linguístico, de sujeito. Todo esse trabalho analítico nos levou a algumas considerações finais sobre esse processo de didatização, como a de que a gramática ainda é quem “comanda” o ensino, mas uma gramática enrijecida, cristalizada, fechada em conceitos e regras simplificadas e banalizadas, por meio de exercícios para que o leitor identifique fatos gramaticais. Assim, a imagem de língua é projetada como conceitos para serem identificados e decorados de uma língua una e uniforme; a imagem de conhecimento como algo estável e controlável, e a de sujeito como a de quem ainda não é capaz de dominar essa língua homogênea. Este TCC criou condições também para nos situar em outro lugar em relação às ciências da linguagem e ao ensino de língua portuguesa, abrindo possibilidades para outros estudos e pesquisas. 10 CAPÍTULO 1 TECNOLOGIAS HISTÓRICO-DISCURSIVAS Neste Capítulo, considerando nosso referencial teórico – a História das Ideias Linguísticas no Brasil e Análise de Discurso-, iremos fazer uma reflexão sobre a gramática e o livro didático como instrumentos linguísticos, como tecnologias e como objetos discursivos, tendo ambos sido produzidos em condições históricas específicas. De acordo com Auroux (1992), a gramática, assim como o dicionário, é um instrumento linguístico em que se evidencia uma relação com a alteridade, com o outro que deve dominar a língua da qual já é falante como objeto de conhecimento. A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-la também como um instrumento lingüístico: do mesmo modo que o martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo locutor (AUROUX, 1992, p.69). Consideramos o livro didático também como um instrumento linguístico, uma vez que o aluno não domina todo o conhecimento apresentado pelo LD(Livro Didático), que por sua vez tem a função de instrumentar esse conhecimento, ampliando a competência do aluno em matéria de domínio de língua. A Análise de Discurso tem como objeto de estudo o “discurso”, que é definido por Pêcheux (1990) como “efeito de sentidos entre locutores”. Isso significa que, se a gramática e o dicionário são considerados como discurso, é preciso compreender os efeitos de sentido entre os interlocutores aí envolvidos. Enquanto uma teoria e uma metodologia de leitura de textos, de arquivos, ela nos permite compreender a relação desses instrumentos – gramática e livro didático – com o sujeito e com a língua na história, em determinadas condições de produção. Nesse sentido, apresentamos, a seguir, outras questões que ampliam a nossa compreensão sobre esses objetos histórico-discursivos. 1.1 A GRAMÁTICA 11 Inicialmente, é preciso distinguir os dois conceitos que são atribuídos à palavra gramática: o de conhecimento produzido pelo homem e o do saber inerente ao homem. Assim como explicam Dias e Bezerra (2006), após uma explanação mais ampla sobre o uso do termo gramática pelo gerativismo, uma teoria da chamada linguística moderna: Podemos agora explicar melhor a diferença entre os dois usos do termo. Em suma, há diferença básica entre: a) gramática como o próprio saber a língua (competência internalizada), objeto de estudo da teoria gerativa; b) gramática como um saber sobre a língua, isto é, um conjunto de estudos que descrevem ou explicam a língua (p.18). Neste trabalho, estaremos trabalhando com a segunda acepção: a da gramática no sentido de um saber metalinguístico que se constrói ao longo da história de acordo com interesses e necessidades de uma sociedade dada. Trata-se de um lugar da prática da linguagem e de normatização dessas práticas, de acordo com a Análise de Discurso, no qual são produzidos efeitos de sentidos não transparentes, afetados pela estrutura e pelo funcionamento da língua, da história e da ideologia, tomados como a direção que esses sentidos tomam. A produção desse saber, conforme Auroux (1992), iniciou-se na Mesopotâmia, por volta do segundo milênio antes de Cristo, onde podemos encontrar os primeiros rudimentos gramaticais, nos quais foram construídos agrupamentos de palavras com características comuns. Isso, porém, não foi suficiente para construir uma gramática como um corpo organizado de conceitos e regras. Ainda, conforme Auroux, na Grécia, a Lógica e Retórica foram imprescindíveis no desenvolvimento dessas reflexões, desses primeiros estudos. Com a contribuição da Retórica, foi constituído o que hoje denominamos classe de palavras. E com a contribuição da Lógica, nasceram os primeiros rudimentos de predicação, o que hoje fundamenta a sintaxe. Dias e Bezerra (2006), tratando também dessa história, afirmam que, mesmo com as contribuições advindas da Grécia, ainda não existia uma gramática no sentido tradicional, esclarecendo que a primeira gramática grega aparece por volta de 170 a 90 a.C, escrita por Dionísio, o Trácio, e que já abordava a estrutura dos sons e das classes de palavras. Outra gramática grega que merece destaque foi a de Apolônio Díscolo, no século II d. C, que já abordava a sintaxe e as partes do discurso. Dias e Bezerra(2006) ressaltam ainda que, antes dos gregos, por volta do 12 século V a. C, o gramático hindu Panini escreveu uma obra detalhada que analisava os sons e a estrutura vocabular da língua sânscrita. As primeiras gramáticas do Latim que se destacaram foram as de Varrão (século I a. C) e a de Quintiliano (século I d. C). E alguns séculos depois, merecem destaque, as gramáticas latinas de Donato e Prisciano no século V d. C, que já trazem noções de transitividade e regência, que ainda hoje são fundamentais na sintaxe. Um conceito que tem sido central para os estudiosos de História das Ideias Linguísticas, dentro e fora do Brasil, tem sido o de gramatização proposto por Auroux (1992, p.65): “Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”. Esse processo, em se tratando do Ocidente, tem como referência a produção dos gregos e romanos e vem se desenrolando pouco a pouco, e ganha força a partir do final da Idade Média, indo constituir o que Auroux (1992) chama de “gramatização massiva” das línguas e que irá ocorrer em condições históricas determinadas. No curso desses treze séculos de história vemos o desenrolar de um processo único em seu gênero: a gramatização massiva, a partir de uma só tradição linguística inicial (a tradição Greco-latina) das línguas do mundo. Esta gramatização constitui- depois do advento da escrita no terceiro milênio antes da nossa era – a segunda revolução técnico lingüística. Suas conseqüências práticas para a organização das sociedades humanas são consideráveis. Essa revolução- que só terminará no século XX- vai criar uma rede homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa(p.35 – grifo nosso). Esse autor explica tal fato sinalizando para o período de transição que se vivia na época, e dentre os fatos por eles mencionados como causa desse processo, ressaltamos a Reforma (Lutero) que difundiu o acesso às escrituras, o que até então era exclusivo de membros da igreja que sabiam latim, abrindo, assim, espaço para a tradução entre línguas. Em síntese, essa passagem de uma língua para a outra, foi a primeira causa da gramatização, pois além desse interesse de tradução das escrituras, era possível atender a vários outros interesses práticos, como: i.acesso a uma língua de administração; ii. acesso a um corpus de textos sagrados; iii. acesso a uma língua de cultura; iv. relações comerciais e políticas. v. viagens (expedições militares, explorações); vi. implantação/exportação de uma doutrina religiosa; 13 vii. colonização (AUROUX, 1992, p.47). Outra causa da gramatização estaria ligada à política de uma língua no que diz respeito à organização e regulação de uma língua literária e ao desenvolvimento de uma política de expansão linguística de uso interno ou externo. Podemos mencionar, ainda, a invenção da imprensa que permite a difusão de livros e exige, com isso, uma uniformização dos textos, as grandes descobertas, possibilitando o contato com línguas até então desconhecidas, como outras causas da gramatização, sem nos esquecermos de que a Europa passava por uma mudança sócio-econômica, com a chegada do capitalismo e, consequentemente, de uma elite, os burgueses, que não dominavam o latim como os nobres e o clero. (AUROUX,1992). Como vimos, essa gramatização massiva a partir do modelo greco-latino cria uma rede homogênea de comunicação capaz de afetar a sociedade de tal forma a ser considerada a segunda revolução técnico-linguística. A gramática e o dicionário são, pois, tecnologias intelectuais que homogeneízam o modo de conceber e normatizar a língua e que, com a tradução, possibilitam descrevê-la com as mesmas categorias. Sua técnica principal consiste em, a partir do modelo greco-latino, constituir uma metalinguagem capaz de ser transferida para qualquer outro vernáculo, formando, assim, uma rede. Assim, como as estradas, os canais, as estradas-de-ferro e os campos de pouso modificaram nossas paisagens e nossos modos de transporte, a gramatização modificou profundamente a ecologia da comunicação e o estado do patrimônio lingüístico da humanidade (AUROUX, 1992, p. 70). As gramáticas são produzidas a partir de uma estrutura fixa, denominada quadro latino, um sistema unificador que faz com que as gramáticas tenham a mesma forma básica, a mesma forma de sistematizar a língua, que desenvolvem uma tradição e criam o chamado “modelo clássico”. Uma gramática contém (pelo menos): a. uma categorização das unidades; b. exemplos; c. regras mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar seu lugar)(...) O conteúdo das gramáticas é relativamente estável: ortografia/fonética (parte opcional), partes do discurso ( cf. Apêndice 1), morfologia (acidentes das palavras, compostos, derivados), sintaxe (freqüentemente muito reduzida: conveniência e regime), figuras de construção(AUROUX, 1992, p.66-67). Bechara (2009), no Prefácio da primeira edição de sua “Moderna Gramática Portuguesa” de1961, mostra a presença dessa tradição ainda hoje. 14 Ao escrever esta Moderna Gramática Portuguesa, foi nosso intuito levar ao magistério brasileiro, num compêndio escolar escrito em estilo simples, o resultado dos progressos que os modernos estudos de linguagem alcançaram no estrangeiro e em nosso país. Não se rompe de vez com uma tradição secular: isto explica por que esta Moderna Gramática traz uma disposição da matéria mais ou menos conforme o modelo clásico. A nossa preocupação não residiu aí, mas na doutrina. Encontrarão os colegas de magistério, os alunos e quantos se interessam pelo ensino e aprendizado do idioma um tratamento novo para muitos assuntos importantes que não poderiam continuar a ser encarados pelos prismas por que a tradição apresentava. Apesar de as gramáticas seguirem esse modelo clássico greco-latino, é importante ressaltar que elas sofrem modificações ao longo da história, considerando a estrutura de determinada língua, o local, o tempo e as políticas de língua. Os conceitos, as regras, os exemplos têm historicidade. Claro no detalhe, a construção da rede supõe adaptações locais e um certo viezamento das descrições. O quadro teórico que se constitui assim corresponde grosso modo a uma descrição comum que convém mais ou menos à língua inicial e às outras. Neste sentido, pode-se falar em uma Gramática latina estendida (GLE). (AUROUX, 1992, p.44). Dias e Bezerra, em seu texto “Gramática e dicionário” (2006), trazem uma análise do pronome em gramáticas brasileiras de três épocas diferentes, e mostram como o saber gramatical sofreu mudanças ao longo do tempo sob perspectivas teóricas diferentes em relação à produção do conhecimento. Os resultados mostraram que nos autores do século XIX: Júlio Ribeiro (1881), João Ribeiro (1886) e Maximino Maciel (1894), as gramáticas trataram os pronomes a partir de um juízo de valor, de uma estilização do fato gramatical, isto é, perseguiam um determinado modelo de estética. Já em meados do século XX, com Rocha Lima (1957), Evanildo Bechara (1961) e Celso Cunha (1970/1985), as gramáticas se deslocam para a produção de um saber avaliativo para descrever a língua, indicando os usos legitimados pelos usos gerais e os legitimados pelos usos específicos da língua padrão. Mário Perini (1995) e Moura Neves (2000), dois linguistas, que não seguem a linha tradicional, e, sim, a estruturalista e a funcionalista, respectivamente, tratam o pronome como um saber sustentado por suas teorias. Vale a pena ressaltar ainda, em se tratando de refletir sobre a estrutura e funcionamento das gramáticas, que nem todo estudo sobre a língua é considerado uma gramática. Segundo Dias e Bezerra (2006), para que uma obra seja considerada uma “gramática”, é preciso que atenda a dois parâmetros: I)apresente uma visão integral da língua e II) apresente uma diretriz pedagógica. 15 Apresentar uma visão integral da língua significa que a obra deve reunir, mesmo que imaginariamente, todo o saber referente a uma dada língua, por meio do conteúdo relativamente estável, o que, discursivamente, entendemos como um “efeito” de completude, uma vez que é impossível uma gramática conter toda a língua. Em relação à diretriz pedagógica, isso implica em conceber a gramática como um instrumento utilizado no ensino de uma língua. Porém, com o desenvolvimento dos estudos da linguagem, houve um deslocamento no modo como se vê a gramática em relação ao processo de ensino-aprendizagem, deixando de ser um simples manual de consulta para se saber o certo e o errado, e tornando-se um instrumento de informação sobre uma língua. Ainda assim, as gramáticas modernas mantêm a diretriz pedagógica. De um lado, no que se refere às variações de uso de preposições, pronomes ou procedimentos de concordância, adota-se uma perspectiva informativa, isto é, o gramático apenas apresenta essas variações para o leitor. De outro, adota-se a perspectiva segundo a qual a gramática deve atuar no ensino oferecendo uma visão concisa dos estudos morfológicos e sintáticos produzidos na lingüística. Em ambos os casos, rejeita-se a perspectiva doutrinária no ensino de língua, afastando-se da idéia de gramática como manual de instruções sobre o uso da língua (DIAS; BEZERRA, 2006, p.16) (grifo nosso). A partir da década de 1980, principalmente, ganha a cena escolar uma dicotomia para justificar o fracasso escolar, entre um ensino tradicional, superado, do qual a gramática seria representante, em oposição a um ensino moderno, porque científico, objetivo, não preconceituoso, representado pela linguística. Trata-se, contudo, de uma oposição redutora e simplista que ignora toda a história de produção de conhecimento linguístico, do qual a gramática faz parte. Essa dicotomia nos faz, muitas vezes, menosprezar a gramática. Em nosso trabalho, contudo, tivemos oportunidade de repensar essa dicotomia, compreendendo melhor esse instrumento, que resulta secularmente de estudo sistematizado, sério, estruturado, uma verdadeira tecnologia intelectual que possibilitou grandes avanços na história da produção do conhecimento linguístico. “A produção do saber metalinguístico inscreve-se em um jogo complexo entre o papel legislador do Estado, o papel regulador da instrução e a tradição gramatical” (ORLANDI; GUIMARÃES, 2001, p.21). Esses autores chamam a nossa atenção para outros pontos desse processo de gramatização, mostrando que, além desse papel regulador da instrução seguindo uma tradição gramatical, a produção do saber 16 metalinguístico articula Ciência e Estado. No caso do Brasil, essa relação se evidencia, por exemplo, com a Nomeclatura Gramatical Brasileira (NGB), que, na década de 1950, irá estabelecer uma nomenclatura oficial para a produção de gramáticas brasileiras, alterando assim um modo de autoria até então construído. Se a gramatização das línguas europeias se deu principalmente na relação com o latim e foi um modo de a Europa conhecer e dominar o mundo, no Brasil, esse processo ocorreu no embate entre o português do colonizador, as línguas indígenas, as línguas africanas e as línguas dos imigrantes, e foi um modo de marcarmos nossa independência de Portugal, de construirmos nossa brasilidade. O processo de gramatização do português no Brasil significou mais que produzir instrumentos linguísticos; tratou-se de constituir um sujeito brasileiro, de afirmar a nossa identidade de povo autônomo. Destituindo a universalidade do português de Portugal pelo deslocamento de seu domínio da validade (seu território de definição), esse movimento que traz, para um outro território(solo, país) que não é Portugal, a relação entre unidade/diversidade, reinstala, no Brasil, o processo de legitimação da língua portuguesa referindo-a não a um suposto modelo imóvel externo a esse seu campo discursivo de validade. Se a colonização impõe uma língua, a historização da língua faz com que essa mesma colonização sofra um deslocamento visível no processo de gramatização. Como estamos expondo, o trabalho de gramatização, em um país colonizado, desloca o eixo relativo à universalização. A gramática, nessas condições, é instrumento de legitimação, dá foros de universalidade, significa o direito à unidade (imaginária) constitutiva de toda identidade. Correlatamente, falar em usos variados é defender “outra” língua. E, desse lado do Atlântico, uma vez conquistado o direito à unidade, de imediato se começa, de novo, a se reconhecerem as variedades: a de relação com as línguas indígenas, as línguas africanas etc.(ORLANDI, 2002, p.128). As primeiras gramáticas brasileiras surgiram no século XIX. “[...] configurando um corpo de especialistas e se formando uma disciplina relativa aos estudos da linguagem no Brasil” (ORLANDI, 2002, p.132). Foram elas: a gramática de Júlio Ribeiro (Gramática Filosófica), a de João Ribeiro (Gramática Histórica) e a de Maximino Maciel (Gramática Geral). Nesse período, foi se constituindo o conhecimento linguístico do Brasil, pois as ideias vindas de fora não eram apenas repetidas, mas passavam por um processo de ressignificação; e assim os gramáticos dessa época foram formando a nossa própria tradição intelectual e científica. Contudo, como explica Orlandi (2002): Com a NGB (1959) este estado de coisas muda sensivelmente, quando é uma comissão que, a partir de um decreto, estabelece a homogeneidade de uma terminologia que des-autoriza as variadas posições (gramática geral, 17 gramática histórica, gramática analítica, gramática descritiva etc) dos gramáticos que traziam para si a responsabilidade de um saber sobre a língua. Com a NGB o Estado brasileiro toma em mãos a administração da relação institucional do brasileiro com a língua nacional, via gramática, pela uniformização da terminologia (p.160). A NGB desloca a posição da autoria do gramático, causando uma transferência do conhecimento do gramático para o linguista, como podemos observar nas palavras de Orlandi (2002, p. 160): Depois desse deslocamento, a autoria do saber sobre a língua deixa de ser uma posição do gramático e será patrocinada pelo lingüista para dizer como uma língua é (português no Brasil/português europeu). A autoria da gramática passa a necessitar da caução do lingüista, já que este tem o conhecimento científico da língua. Há uma transferência do gramático para o lingüista. As gramáticas são, como vimos, instrumentos complexos, históricos, que trabalham as línguas de forma determinada, sob condições de produção, que envolvem o contexto sócio-histórico, ideológico, político em que as imagens e as representações de língua, de conhecimento, de correção, de sujeito se constituem. Como esse saber sobre a língua chega à escola? Até que ponto essa historicidade do conhecimento não vai ser apagada? 1.2 O LIVRO DIDÁTICO O conhecimento nas diversas áreas, inclusive o conhecimento gramatical agora em questão, chega à escola por meio de um processo de didatização, mediante estratégias sociais e educacionais, assim como explica Magda Soares (1996): Assim, na escola, o saber para ser ensinado, aprendido, avaliado, sofre um processo de seleção, segmentação, organização em seqüências progressivas, é em síntese, didatizado, escolarizado. Currículos, programas, materiais didáticos representam estratégias sociais e educacionais para a concretização e operacionalização desse saber escolarizado. Nesse sentido, o livro didático instituiu-se, historicamente, bem antes que o estabelecimento de programas e currículos mínimos, como instrumento para assegurar a aquisição dos saberes escolares, isto é, daqueles saberes e competências julgados indispensáveis à inserção das novas gerações na sociedade, aqueles saberes que a ninguém é permitido ignorar (p.55). Como se dá esse processo de seleção, segmentação, organização no LD, de que fala Soares, em se tratando de gramática? Que saberes, em se tratando de conhecimentos gramaticais, são indispensáveis, não se pode ignorar? Que imagem de língua, de sujeito escolarizado eles produzem? 18 Uma vez que não há mera transposição dos conhecimentos gramaticais para um LD, uma vez que são selecionados, segmentados, organizados, podemos dizer que produzem um tipo de saber metalinguístico específico sobre a língua, provendoa de realidade, estabelecendo uma relação específica do sujeito com a língua, via uma instituição legitimada pela sociedade. O saber gramatical adquire uma forma escolar que funciona como verdadeira técnica intelectual para o trabalho com a língua, dando uma nova dimensão ao conhecimento linguístico. Resta-nos compreender como isso se dá. Tanto o livro didático quanto a gramática, da perspectiva histórico-discursiva, são construídos e circulam em determinadas condições de produção, produzindo, assim, os seus efeitos de sentido e de sujeito. Em nosso trabalho, queremos explicitar essas condições. Quem seriam os interlocutores em se tratando de LD? Como podemos pensar a situação em que o LD que selecionamos para analisar se constitui? Choppin, pesquisador francês, de outra perspectiva teórica, em seu artigo “História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte” (2004), chama nossa atenção, inicialmente para a dificuldade de se definir o objeto “livro didático” devido à diversidade de objetos utilizados para fins didáticos e à instabilidade dos usos lexicais. Na maioria das línguas, o “livro didático” é designado de inúmeras maneiras, e nem sempre é possível explicitar as características específicas que podem estar relacionadas a cada uma das denominações, tanto mais que palavras quase sempre sobrevivem àquilo que elas designaram por um determinado tempo. Inversamente, a utilização de uma mesma palavra não se refere sempre a um mesmo objeto, e a perspectiva diacrônica (que se desenvolve concomitantemente à evolução do léxico) aumenta ainda mais essas ambigüidades. Alguns pesquisadores se esforçam em esclarecer essas questões e estabelecer tipologias, mas constata-se que a maior parte deles se omite em definir, mesmo que sucintamente, seu objeto de estudo. (p.549). Nós, como pesquisadores iniciantes, não iremos arriscar trabalhar nessa definição, que tem se mostrado tão difícil para estudiosos experientes. Neste TCC, tomamos como livro didático aquele que é comprado e distribuído nas escolas públicas do país como tal, como parte de políticas públicas de educação. O livro didático, como observou Chris Stray, em 1993, citado por Choppin (2004), “ [...] é um produto cultural complexo. [...] que se situa no cruzamento da cultura, da pedagogia, da produção editorial e da sociedade.” Esse autor mostra-nos 19 também que o LD tem exercido múltiplas funções, considerando o ambiente sociocultural, época e métodos, entre outros fatores. Suas principais funções, segundo ele, podem ser resumidas em quatro: I – Referencial: seguir o programa curricular e transmitir os saberes julgados indispensáveis a nova geração; IIinstrumental: por colocar em prática métodos de aprendizagem por meio de exercícios, de forma geral de sua estrutura; III- ideológica e cultural: exercer o papel político de aculturar gerações; e IV- documental: fornecer textos a fim de desenvolver a capacidade crítica do aluno. De nossa perspectiva teórica, preferimos falar em funcionamento e não em função, pois trabalhamos com a língua funcionando em relação à história e a ideologia produzindo sentidos. Assim nos interessam as condições de produção em relação à memória, que engloba a ideologia, o inconsciente, o esquecimento e a falha, o equívoco a que a língua está sempre sujeita, bem como o saber sobre ela produzido. Uma ida a dicionários pode nos ajudar a começar a explicitar essas condições de produção do LD. Segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (2009), o livro didático é “[...] destinado ao ensino e cujo texto deve obedecer aos programas escolares; livro texto” (p. 1222, grifo nosso). Conforme o Dicionário Houaiss (2001), é “[...] aquele adotado em estabelecimentos de ensino, cujo texto se enquadra nas exigências do programa escolar; livro texto”(p. 1190, grifo nosso). Segundo os dicionários, pois, o LD deve obedecer a padrões e se enquadrar em exigências estabelecidas por outrem (Estado? Ciência?), afastando-se da noção de discurso transparente, e apontando para outros interlocutores envolvidos no processo que não apenas o autor e os leitores-alunos e professores. Podemos reafirmar tal análise com as palavras de Choppin (2004): Escrever a história dos livros escolares- ou simplesmente analisar o conteúdo de uma obra- sem levar em conta as regras que o poder político, ou religioso, impõe aos diversos agentes do sistema educativo, quer seja no domínio político, econômico, linguístico, editorial, pedagógico ou financeiro, não faz qualquer sentido(p.251). A presença do político está presente em diferentes momentos e de diferentes formas; se pensarmos no LD como um todo, observamos que, desde a sua concepção, ao participar do Programa Nacional do Livro Didático, por exemplo, ele obedece a parâmetros exigidos por outrem e cumpridos tanto pelos professores quanto pelos alunos, a fim de se atingir uma homogeneização e um controle da 20 língua e de sentidos (controle ideológico) no âmbito escolar. Como explica Choppin (2004): Uma vez que são destinados a espíritos jovens, ainda maleáveis e pouco críticos e podem ser reproduzidos e distribuídos em grande número sobre todo um território, os livros didáticos constituíram-se e continuam a se constituir como poderosos instrumentos de unificação, até mesmo de uniformização nacional, linguística, cultural e ideológica. Isso porque, em grande parte dos países, eles são objeto de regulamentação que difere sensivelmente daquela a que são submetidas as demais produções impressas; regulamentação que é geralmente mais estrita, quer ela se exerça no início (elaboração, concepção, produção, procedimentos prévios de aprovação) ou ao final do processo (modos de financiamento, de difusão, procedimentos de escolha, formas de utilização) (p. 561). Um dos vestígios dessa uniformização, da presença do político como gestão das diferenças, das desigualdades, podemos encontrar também internamente, na própria forma de organizar o LD, por meio de uma estrutura cristalizada, que busca formar mentalidades, sem despertar o espírito crítico dos alunos. Assim como constatou Grigoletto (1999), ao analisar a estrutura das seções de leitura dos LD de Língua Portuguesa dos cursos fundamental e médio: A economia do livro didático como um dos discursos de verdade se dá na operação com construções fixas. A repetição de uma mesma estrutura a cada unidade e a atribuição de uma determinada ordem e sequência ao ato de leitura são apresentadas como naturais, e, na maior parte dos casos, interpelam o aluno em sujeito que deve ser guiado, a cada passo, por um único caminho (p. 75). E é por meio dessa estrutura cristalizada, por meio do saber, poder, dever dizer, que a ideologia faz sentido, que os próprios fatos reclamam sentido, como diz Orlandi (2007). E é dessa forma que o LD se postula, produzindo um efeito de completude, de conter todo o necessário para o aluno dominar, controlar a linguagem, a língua. Assim como afirma Grigoletto(1999), trabalhando com a noção de verdade de Foucault: Certamente, uma das formas de disseminação do poder decorrente da produção, circulação e funcionamento dos discursos na esfera escolar está no LD que funciona como um dos discursos de verdade. Um discurso de verdade é aquele que ilusoriamente se estabelece como um lugar de completude dos sentidos. A análise de Discurso (ao menos a linha denominada Escola francesa, cf. Pêcheux, 1975, por exemplo) postula que a incompletude é constitutiva da linguagem (p.67 – grifo nosso). Ainda nesse sentido, trazemos as palavras de Orlandi(2007): A condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento. 21 Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do possível(p.52). Os interlocutores também são parte das condições de produção de um discurso e precisam ser explicitados, analisados. O autor do LD, como parte desse processo de didatização dos conhecimentos linguísticos não é transparente, de acordo com a perspectiva discursiva, um indivíduo empírico, mas uma posição de fala, um sujeito afetado pela língua, história e ideologia e que sofre determinações conforme o lugar que ocupa. Nesse sentido, mais uma vez, Choppin (2004) nos traz elementos para a reflexão. Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam de que ela fosse, do que ela realmente é. Os autores de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada, modelada (p. 557). Em se tratando do Brasil, não poderíamos deixar de tratar das condições de produção desse instrumento em termos econômicos e sociais, que tem um peso muito importante pelo volume de recursos públicos que mobiliza. Soares (1996) afirma que, a partir dos anos 60, o setor de edições didáticas veio crescendo, chegando nos anos 80 a ocupar o principal segmento do mercado editorial, dividido em média entre 5 editoras; crescimento que deve ser explicado devido à implantação da política de financiamento de livro didático. Uma pesquisa feita por Ricardo Pereira Soares, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, em seu texto para discussão denominado “Compras governamentais para o programa nacional do livro didático: uma discussão sobre a eficiência do governo” (2007), analisa o comportamento do governo nesse processo, por ocupar a posição de maior comprador de livros didáticos do país, como podemos observar: Com relação ao setor editorial brasileiro, constatou-se que o total de livros didáticos (ensino fundamental e ensino médio) correspondeu a 58% dos livros produzidos em 2004(CBL/SNEL, 2005, p. 7 e 9). Deste total, 64% foram comprados pelo governo federal, principalmente por meio do PNLD (EARP, 2005, p. 107). Isto significa que o governo comprou cerca de 36% de toda a produção editorial brasileira(p.12). 22 No Brasil, o Programa iniciou-se em 1929 e foi sofrendo modificações no decorrer do tempo, atingindo até 2004 o Ensino Fundamental, quando surge o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio - PNLEM, programa responsável pela distribuição de LD para as escolas do Ensino Médio do país – interesse deste TCC -, aumentando esse poder de compra do governo. Analisando dados disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, constatamos que no ano de 2010, somente o PNLEM, movimentou R$117.306.315,14, distribuídos entre 12 editoras. Porém, observando de forma mais detalhada esses dados, pode-se ver, como dito por Soares (1996) em relação a somente 5 editoras dominarem o mercado nos anos 80, que atualmente essa realidade não está diferente, pois o peso maior está dividido entre uma minoria: Moderna, FTD, Ática, Saraiva e Scipione. Soares (2007), outrossim, explica que essa concentração entre poucas editoras se dá devido ao grande investimento em divulgação, no qual as que possuem maior poder aquisitivo investem pesado nos divulgadores responsáveis por distribuir gratuitamente os livros para os professores (que serão responsáveis pela escolha), dentre outras estratégias, o que se torna inviável para as pequenas empresas, devido à falta de recursos. Vejamos dados apresentados: Esse esforço de divulgação parece bem-sucedido. Tanto o é que figura inexpressiva a venda de editoras menores que, apesar de participarem do PNLD, não contam com a equipe de divulgadores nos moldes das grandes editoras, assim como, muito provavelmente, tampouco contam com recursos para divulgarem gratuitamente seus livros para um número elevado de escolas. De fato, Cassiano (2005) constatou que, em 2002, para a cidade de São Paulo, as editoras com práticas de divulgação bastante incisivas, com prioridade à doação de livros às escolas, como as editoras Saraiva/Atual, FTD, Ática/Scipione, IBEP/Nacional, Moderna e Brasil, venderam 96,7% dos livros didáticos. Enquanto isso, as editoras com práticas menos agressivas de divulgação, como Nova Geração, Módulo, UFG, Dimensão e Lê, mesmo com os seus livros referenciados no Guia do Livro Didático e alguns bem avaliados, obtiveram juntas apenas 3,3% do total das vendas (CASSIANO, 2005, p. 307 apud SOARES, 2007, p.30). Soares explica que essa prática de visitar escolas e fazer divulgações, de certa forma “fazer a cabeça do professor”, foi proibida, o que “indicou que, para 2006, aumentaram as vendas de livros das editoras pequenas, como a Sarandi, e diminuíram as das grandes, como Ática e Scipione” (VALOR ECONÔMICO, 2006 apud Soares, 2007,p.30). Porém, constatamos que essa prática de enviar os livros gratuitamente para os professores, de uma forma ou de outra, ainda continua, pois 23 um dos exemplares do livro que vamos analisar possui um selo no qual diz que ele é um livro destinado à análise do professor. Enfim, devido ao grande número de exemplares vendidos e do peso econômico, é óbvio constatar que é interesse dos autores e editores que o seu livro seja escolhido. Então, temos fortemente a intervenção do Estado articulado à Ciência, uma vez que todo o processo de orientações e diretrizes do PNLEM, bem como de avaliação, é feito por professores e pesquisadores da comunidade acadêmica. O processo inicia-se a partir da publicação do edital, do qual constam os parâmetros propostos por especialistas. Depois, é feito uma triagem pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), que envia os escolhidos para a Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC), onde especialistas analisam mais uma vez as obras e escrevem resenhas, que compõem os Guias que são disponibilizados nas escolas para a escolha do livro que mais se ajuste ao seu projeto político pedagógico. É notório o jogo de interesses envolvidos nas condições de produção desse instrumento até que ele chegue à sala de aula. Os sentidos que aí irão se produzir trazem as marcas das relações de poder presentes em todo o processo discursivo, desfazendo aquela concepção de instrumento neutro, transparente, cujo objetivo é simplesmente carregar a função de transmitir os conteúdos julgados indispensáveis. 24 CAPÍTULO 2 CONSTRUINDO UM DISPOSITIVO ANALÍTICO A Análise de Discurso (AD) é uma teoria e uma metodologia de leitura e de interpretação de textos, de arquivos, que procura compreender como um objeto simbólico, um objeto significante produz sentidos: no nosso caso, o livro didático de língua portuguesa de Ensino Médio. Não procuramos o sentido verdadeiro, correto, adequado, mas em saber como, por meio da materialidade da língua, chegamos aos processos discursivos, aos efeitos de sentidos entre os interlocutores. Queremos saber como se estabelecem relações entre a língua, o sujeito e a história. Para entender essas relações, temos uma teoria com seu objeto e conceitos, e para se chegar à materialidade desse objeto, precisamos construir um dispositivo de análise. Embora o dispositivo teórico encampe o dispositivo analítico, o inclua, quando nos referimos ao dispositivo analítico, estamos pensando no dispositivo teórico “individualizado” pelo analista em uma análise específica. Daí dizermos que o dispositivo teórico é o mesmo, mas os dispositivos analíticos, não. O que define a forma do dispositivo analítico é a questão posta pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da análise (ORLANDI, 2007, p. 27). Nesse processo de construção de nosso dispositivo, gostaríamos de retomar algumas questões do dispositivo teórico que nos deram sustentação para as definições necessárias. A AD foi fundada em 1960, na França. As suas filiações teóricas são a Linguística, o Materialisno Histórico e a Psicanálise, que ela une sem se deixar absorver por elas. Assim o foco está na língua em seu funcionamento, em sua materialidade, da qual faz parte um sujeito interpelado pela história. Assim, para a Análise de Discurso: a. A língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Lingüística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem); b. A história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); c. O sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e para ideologia (ORLANDI, 2007, p. 19-20). A partir dessas afirmações, desfaz-se a noção de linguagem, sentido e sujeito transparentes, pois a ideologia, a história e a língua produzem efeitos de sentidos, e 25 isto é o discurso: “[...] uma palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2007, p.15). Temos, pois, de atravessar a opacidade da linguagem, do sentido, do sujeito, sabendo que “[...] os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos” (ORLANDI, 2007, p.30). Assim, para a compreensão do nosso objeto de estudo, será preciso levar em consideração as suas condições de produção, isto é, os sujeitos, a situação e a memória, a sua relação com a exterioridade, com o dito e o não dito. E para tanto, tomamos a língua, em sua estrutura e funcionamento como ponto de partida para a descrição e a análise, e o texto como unidade de análise. Os textos, para nós, não são documentos que ilustram idéias préconcebidas, mas monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras. Nem tampouco nos atemos aos seus aspectos formais cuja repetição é garantida pelas regras da língua – pois nos interessa sua materialidade, que é linguístico-histórica, logo não remete a regras, mas as suas condições de produção em relação à sua memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, o esquecimento, a falha, o equívoco. O que nos interessa não são as marcas em si, mas o seu funcionamento no discurso. É este funcionamento que procuramos descrever e compreender (ORLANDI, 2007, p. 64-65). O sujeito, segundo Pêcheux (1990, p.82), “[...] designa algo diferente da presença física de organismos humanos individuais”, mas um lugar determinado na estrutura de uma formação social e esse lugar está representado e transformado nos processos discursivos: “[...] em outros termos, o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (p. 82). Nesse processo, ele é afetado pela língua e história e não tem total controle sobre como elas o afetam. Significa dizer que o sujeito sofre determinações da língua, da história, logo da ideologia. Apresentamos, a seguir, o quadro produzido por Pêcheux (1990) que explicita o funcionamento dessas formações imaginárias. 26 Expressão que designa as formações imaginárias I A (A) A { Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A I B (B) B Significação da expressão { Questão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondente “Quem sou eu para lhe falar assim?” “Quem é ele para que eu lhe fale assim?” Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B “Quem sou eu para que ele me fale assim?” Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B “ Quem é ele para que me fale assim?” I B A) Fonte:Pêcheux, 1990. Pensando ainda nas condições de produção do discurso, temos a situação, ou seja, o aqui e o agora, que determina o que pode e dever ser dito em determinada conjuntura. Outras noções são propostas por Pêcheux (1990) para compreender o processo discursivo, a saber: I) as relações de força existentes entre os sujeitos, entre os lugares de onde falam (o de professor, o de aluno, o de autor do livro didático, o do editor, o do MEC etc); II) a relação de sentidos que evidenciam que um discurso sempre remete a outro discurso, ou seja, a existência de uma intertextualidade e interdiscursividade (o discurso da ciência, o discurso do Estado, o discurso jurídico, o discurso pedagógico); e III) a antecipação, que é a possibilidade de o sujeito se colocar de uma certa maneira no lugar do ouvinte, e antecipar-se em relação ao sentido de suas palavras. Esses funcionamentos, que determinam o que é dito dão contornos próprios à situação imaginária; logo o que produz sentido são as imagens que resultam de projeções. E “[...] são essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso. Esta é a distinção entre lugar e posição” (ORLANDI, 2007, p.40). O contexto histórico mais amplo deve ser considerado também como parte das condições de produção. Assim, o LD selecionado para análise neste TCC faz parte de um contexto que não se restringe ao momento de sua elaboração, de sua distribuição, de sua utilização em sala, mas faz parte de programa de governos, de 27 uma política de educação, de um processo histórico de escolarização da sociedade brasileira, da história da relação do professor e do aluno com o conhecimento gramatical etc. Há uma memória do dizer presente naquilo que dizemos hoje. A memória discursivamente constitui o que chamamos interdiscurso; o já dito faz com que o que está sendo dito tenha sentido, sem que os sujeitos tenham controle. Assim, como explica Orlandi(2007): Como dissemos, o interdiscurso – a memória discursiva- sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já feitas, mas esquecidas e que vão construindo uma história de sentidos. É sobre essa memória, de que não detemos o controle, que nossos sentidos e constroem, dando-nos a impressão de sabermos do que estamos falando. Como sabemos, aí se forma a ilusão de que somos a origem do que dizemos. Resta acentuar o fato de que esse apagamento é necessário para que o sujeito se estabeleça um lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos: eles não retornam apenas, eles se projetam em outros sentidos, constituindo outras possibilidades dos sujeitos se subjetivarem(ORLANDI, 2007,p.54). O esquecimento é dividido, segundo ainda Pêcheux (1988) em: esquecimento número 2: de acharmos que o que estamos dizendo só pode ser dito dessa forma; e esquecimento número 1: de acharmos que somos a origem do que dizemos. Não temos controle desse esquecimento, porém é por meio dele que são constituídos os sentidos e somos constituídos sujeitos. O dito significa, portanto, em relação ao já dito (histórico que está nessa memória do dizer), mas também em relação ao não dito. [...] a proposta é a da construção de um dispositivo de interpretação. Esse dispositivo tem como característica colocar o dito em relação ao não dito, o que o sujeito diz em um lugar com o que é dito em outro lugar, o que é dito de um modo com o que é dito de outro, procurando ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz, mas que constitui igualmente os sentidos de suas palavras (ORLANDI,2007, p.59). A partir destes (e de outros) conceitos disponibilizados pelo dispositivo teórico é tarefa de cada analista construir o seu dispositivo analítico, a partir de uma pergunta que desencadeia a análise - Como o saber gramatical é didatizado pelo Livro Didático? - e da escolha e delimitação do corpus: Tendo isso em conta, ele constrói finalmente seu dispositivo analítico, que particulariza, a partir da questão que ele coloca face aos materiais de análise que constituem seu corpus e que ele visa compreender, em função do domínio científico a que ele vincula seu trabalho. Com esse dispositivo, ele está medida de praticar sua análise, e é a partir desse dispositivo que ele interpretará os resultados a que ele chegar pela análise do discurso que ele empreendeu (ORLANDI, 2007, p.62). 28 Em relação à delimitação do nosso corpus, inicialmente buscamos os Guias de Livros Didáticos de 2012 e encontramos dois que nos seriam úteis: a apresentação, que deixa claro o que se deve esperar dos livros didáticos de Ensino Médio e explica como acontece processo de escolha e aquisição pelas escolas, e o de Língua Portuguesa, que traz a resenha e a avaliação das 12 obras de Português destinadas ao Ensino Médio aprovadas pelo MEC. Nos Guias, obtivemos informações gerais sobre o que é prescrito para essas obras, antes mesmo de serem elaboradas, visões específicas de como se faz a análise, a avaliação, do modo como é tratado o Ensino de Português nessas coleções aprovadas: seus pontos forte e fracos vistos de uma perspectiva geral e específica. Os Guias constituem, pois, parte de nosso corpus e foram objeto de análise, trazendo elementos para análise do LD propriamente, fazendo parte das condições de sua produção. Em seguida, no trabalho com a constituição do corpus, fomos em busca de LD de Português de Ensino Médio para ser nosso material de descrição e análise. Para isso, fizemos um levantamento dentre as obras distribuídas pelo Estado, a fim de descobrir qual era a mais utilizada. Tomando como base o conhecimento adquirido em relação à política do livro didático no Brasil (ver Capítulo anterior), analisamos os valores negociados por cada título em um âmbito nacional, por meio de um documento 2011 disponibilizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação1, responsável pelo Programa Nacional do Livro Didático. No documento, constam 250 obras das disciplinas distribuídas em geral. A partir dos dados obtidos, fizemos um recorte de todas as obras destinadas à Língua Portuguesa (totalizando 11) e elaboramos o seguinte quadro, a fim de visualizar qual teria fornecido mais exemplares, logo, o mais utilizado. 1 Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-dados-estatisticos>. 29 EDITORA LIVRO BASE EDITORIAL LTDA Português: Língua e Cultura EDITORA ÁTICA Português - ProjetosVolume Único 40.223 EDITORA ÁTICA Português- Volume Único 134.812 EDITORA DO BRASIL LÍNGUA PORTUGUESA – Projeto Escola e Cidadania para Todos Novas Palavras 6.214 Português- Língua, Literatura, Produção de texto Português- De Olho no Mundo do TrabalhoVolume Único Textos: Leituras e Escritas – Volume Único 172.932 EDITORA SCIPIONE Português 428.341 IBEP INSTITUTO BRASILEIRO DE EDIÇÕES PEDAGÓGICAS LTDA SARAIVA SA LIVREIROS EDITORES Língua Portuguesa – Coleção Vitória-RégiaVolume Único 34.781 Português Linguagens 1.084.429 EDITORA FTD EDITORA MODERNA EDITORA SCIPIONE EDITORA SCIPIONE NÚMERO DE EXEMPLARES 16.779 424.686 56.981 32.314 Como se pode observar, o livro “Português Linguagens”, assustadoramente é o mais utilizado em âmbito nacional, pois nenhum outro exemplar conseguiu vender nem a metade do número que ele distribuiu. Após essa informação, decidimos por um novo recorte: analisar a nossa cidade, Brasília, saber qual era o LD mais adotado. Fizemos um levantamento das 77 escolas de Ensino Médio atendidas pelo PNLEM no DF. Devido ao tempo disponível para elaboração deste TCC, centramos nosso trabalho na Cidade Satélite 30 mais importante do DF, para verificar qual o livro estava mais presente na sala de aula. A cidade foi Taguatinga e o livro “Português Linguagens” foi novamente destaque, estando presente em 90% das escolas. Vale ressaltar que o livro escolhido faz parte de uma coleção que abrange todo ciclo escolar, desde a primeira série do Ensino Fundamental até o terceiro ano do Ensino Médio e, segundo o site da Editora Saraíva, seus autores - William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães - são os autores mais adotados do país. Devido à grande difusão do livro “Português linguagens”, resolvemos analisálo e optamos pelo livro do segundo ano do Ensino Médio: ano em que o aluno já se desvinculou do Ensino Fundamental e ainda não está tão comprometido com o vestibular. Depois de uma visada geral no livro e de uma observação assistemática em todas as suas unidades no que se refere explicitamente – ou não – à parte gramatical, decidimos nos deter na primeira Unidade, que trata da classe de palavras, fazendo, então, um paralelo com o modo com a “Moderna Gramática Portuguesa” de Evanildo Bechara (2009) trata tal assunto. 31 CAPÍTULO 3 O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO A análise dos Guias de Livros Didáticos e do LD selecionado será feita com base nos conceitos do dispositivo teórico aqui discutidos, e no trabalho bibliográfico feito no Capítulo anterior. Assim, buscaremos compreender como são produzidos os sentidos no nosso corpus, por meio dos vestígios deixados na materialidade da língua, tomado como um sistema com autonomia relativa porque afetado pela história. O nosso principal material de descrição e análise “Português Linguagens 2” de Cereja e Magalhães (2010) encontra-se inserido em um contexto especifico que é necessário levarmos em consideração, o da etapa escolar e a disciplina a qual ele é destinado. Gostaríamos, pois, de refletir um pouco sobre as condições de produção nesse contexto mais estrito. O LD em análise participa do Programa Nacional do Ensino Médio, que, como dito anteriormente, é responsável por financiar livros didáticos para escolas de Ensino Médio da rede pública. A parte da triagem e observação é feita pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo, que escolhe especialistas responsáveis para analisarem as obras, conforme requisitos apresentados no edital e elaborarem o Guia de Livros Didáticos de cada área com resenhas das obras aprovadas. Como, explicado anteriormente, as escolas públicas de Ensino Médio, além de receberem os guias específicos de cada área, recebem um guia intitulado como “Apresentação” que é comum para todas as disciplinas, e que esclarece o que deve se esperar de um livro destinado a esta etapa escolar, explica a importância de o professor refletir antes da escolha, e todas as etapas do processo de adesão. A fim de compreender as condições de produção que envolvem esse processo, tomamos para descrição e análise esses guias. No Guia de Língua Portuguesa, inicialmente são apresentados patamares de qualidade e organização de todas as coleções em geral. Posteriormente, cada obra é resenhada uniformemente, apresentando uma visão geral, descrição e análise de leitura, literatura, produção de textos escritos, oralidade e conhecimentos linguísticos. Ainda, é apresentado um quadro esquemático com os pontos fortes, fracos, destaque, programação do ensino e manual do professor. 32 Os Livros Didáticos de Ensino Médio devem seguir as normas oficiais que regulamentam o Ensino Médio, requisito imprescindível para as obras de todas as áreas que devem ser adotadas pelas Unidades da Federação. Desse modo, segundo o Guia 2012, as obras devem levar em consideração a Constituíção da República Federativa do Brasil, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Estatuto da Criança e do Adolescente, Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e Resoluções e Pareceres do Conselho Nacional de Educação. Observamos, pois, a presença de diferentes discursividades sustentando a produção de determinado LD, estabelecendo alianças ou não entre elas. Dentre todos esses documentos, ressaltamos a Lei de Diretrizes e Bases – LDB, que determina os objetivos dessa etapa escolar na formação de caráter geral do aluno cidadão: I. II. III. IV. Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; a preocupação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, de cada disciplina(GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS 2012, p.7). Nesse ponto, observa-se a articulação entre o discurso do Estado com o do Direito, em que se mostra a preocupação não apenas em transmitir o conhecimento, mas também o de formação pessoal, ética, intelectual e crítica, levando em consideração a etapa da vida do aluno, transição entre o mercado de trabalho e/ou o estudo universitário. Como pensar o conhecimento linguístico-gramatical nesse processo de formação do cidadão, do trabalhador brasileiro? O Guia 2012 aponta respostas para essa questão, alertando sobre o dever de levar em consideração a condição juvenil dos alunos para formar cidadãos. Podemos dizer, então, discursivamente, que o que está em questão é o sujeito e seus processos de individualização, a sua adequação a uma forma de sociedade: “estratégias eticamente legitimadas e socialmente bem sucedidas”. Considerando-se esses traços do perfil do aluno, são desafios básicos da escola de EM: 33 acolher o jovem em sua condição específica, colaborando para o processo de construção de sua plena cidadania e, portanto, para sua inserção social e cultural; reconhecer os limites e possibilidades do sujeito adolescente, propiciandolhe o suporte necessário para o desenvolvimento de estratégias eticamente legítimas e socialmente bem sucedidas de subjetivação (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS 2012- Língua Portuguesa, p.10, grifo nosso). Nota-se a interferência na formação do pensamento ético, momento em que o tanto o LD como a Gramática tem, como vimos, o objetivo de educar para um pensamento hegemônico. Como dito anteriormente, seguindo o pensamento de Choppin (2004), são instrumentos unificadores, pois, devido à sua grande difusão no território e seu público ainda maleável, são submetidos a essa regulamentação do Estado com o apoio do Direito e da Ciência. Por meio do ensino de uma disciplina específica, todos os LD de Ensino Médio seguem essa regulamentação. O MEC desenvolve também critérios para avaliar especificamente cada disciplina. Vamos lançar um olhar sobre como deve ser o ensino de língua portuguesa na visão do Estado. Segundo o Guia 2012, o Livro Didático de Língua Portuguesa do Ensino Médio (doravante LDPM) deve seguir os eixos de ensino estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que são: leitura, produção de textos escritos, oralidade e conhecimentos linguísticos. Estendendo três objetivos do Ensino fundamental, relacionados à aprimoração da linguagem escrita e oral, proficiência na norma-padrão e prática de análise e reflexão sobre a língua, trataremos, especificamente da parte relativa aos conhecimentos linguísticos. O Guia 2012 prescreve como devem ser desenvolvidos esses conhecimentos linguísticos, dividindo-os entre norma e reflexão sobre a língua. Vejamos como isso se dá. Inicialmente, trata-se da norma padrão. No ensino da norma-padrão, por outro lado, torna-se necessário: abordar os fatores socioculturais e políticos que entram em jogo no estabelecimento e difusão de ideais e padrões lingüísticos; considerar a língua padrão no contexto da variação lingüística, sem estigmatizar as demais variedades(GUIA DO LIVRO DIDÁTICO- Língua Portuguesa, p.11). E em seguida, sobre a reflexão sobre a língua: No que diz respeito à reflexão sobre a língua e a linguagem, espera-se que o ensino de língua portuguesa, nesse nível, seja capaz de: considerar as relações que se estabelecem entre a linguagem verbal e outras linguagens, no processo de construção dos sentidos de um texto; sistematizar, com base na observação do uso e com o objetivo de subsidiar conceitualmente o desenvolvimento da proficiência oral e 34 escrita, um corpo básico de conhecimentos relativos à língua e à linguagem; privilegiar, em função de tomar o uso como objeto de reflexão, abordagens discursivo-enunciativas da língua, não se atendo, portanto ao nível da frase. O Guia pauta-se em teorias da Linguística chamada Moderna, aquelas que têm como referência a variação, o uso da língua, as linguagens não verbais. Esse é o dito. E o não dito? A tradição do nosso processo de escolarização que privilegia a Gramática Tradicional como base para o trabalho pedagógico, como irá revelar contraditoriamente o subtítulo do LD de Cereja e Magalhães: “Literatura – Produção de textos – Gramática”. O pragmatismo e sociologismo aí presentes em termos de língua é que deverão substituir a gramática e levar o aluno a refletir sobre a língua. Nota-se, ainda, que é proposto um ensino que separa a norma-padrão da reflexão sobre a língua, referendando a fragmentação sempre presente na escola, e trazendo uma imagem de língua como algo estanque, linear. Na análise feita pelo Guia 2012, dos patamares gerais de qualidade e organização das obras “escolhidas”, afirma-se que alguns livros ainda tratam da gramática de forma isolada, enquanto outros tratam a língua e a literatura a partir de reflexão e análise, como se as próprias diretrizes não continuassem a dividir, a separar língua e sujeito. Nota-se, ainda, segundo a avaliação do Guia 2012, que as duas abordagens, tradicional e inovadora,possuem pontos fracos. Os que têm como foco a gramática, apesar de reflexões sobre a linguagem se fazerem presentes, não perdem o foco do ensino sistematizado dessa variante da língua. Mesmo nas coleções que mantêm uma abordagem dos conhecimentos lingüísticos predominantemente identificada com a gramática tradicional, as lingüísticas do uso e do texto se fazem presentes principalmente na forma de reflexões sobre a variação lingüística, os gêneros do discurso e os mecanismos e recursos que dão a um texto coerência e coesão. Mas a gramática, quase sempre nos níveis da morfologia, da morfossintaxe e da sintaxe é o centro das atenções. Em geral, os tópicos escolhidos são abordados a partir de textos de diversos gêneros, mas o foco do interesse está na palavra ou na frase isolada, e não no papel dos fatos gramaticais para a construção do texto ou para a eficácia do discurso. A abordagem é metalingüística, e a exposição da matéria segue a lógica consagrada pela tradição da área, indo da formação da palavra a sua inserção em orações e períodos, passando antes por sua classificação morfossintática (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS- Língua Portuguesa, p. 22). Quanto ao conteúdo, temos indicio que os livros seguem a mesma estrutura da Gramática Tradicional. Segundo Dias (2001), essa ordem específica de 35 apresentar as classes ignora a identidade de cada classe tornando-as apenas um elemento de uma lista fácil de decorar. Os livros que seguem a linha considerada inovadora têm o foco no uso da língua, para que o aluno entenda a gramática a partir de como a língua se realiza. O guia, porém, aponta o risco de ser negligenciada a sistematização dos conhecimentos. Nessa opção, a formação do aluno como usuário proficiente da língua está à frente da aquisição de conhecimentos teóricos. Assim, o risco que se corre é o de negligenciar a sistematização dos conhecimentos lingüísticos, o que parte dessas coleções procura exorcizar reservando momentos específicos para esse trabalho (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS- Língua Portuguesa, p.22). Alguns LDPM optam pelas duas formas. Porém, a partir dessas e de outras questões – como ensinar a língua como um todo ou somente a gramática apontadas pelo Guia 2012, fica claro que o Ensino dos conhecimentos linguísticos no Ensino Médio ainda é polêmico, frágil, questionável, inconsistente, necessitando de estudos mais amplos e que pensem em trabalhar a unidade e a diversidade não apenas como oposições. É todo um processo de gramatização, de constituição e de acesso a uma língua gramatizada, relacionado a uma escolarização precária do brasileiro que está em questão. Vários estudos se posicionam acerca dessas polêmicas questões. A teoria adotada neste TCC é a discursiva, no qual o foco do ensino não é excluir a gramática tradicional, mas sim ir além das categorias formais da língua, levando em consideração o conhecimento sobre o que é língua gramatizada e o seu funcionamento em relação com a história e o sujeito. A partir da visão discursiva, podemos pensar, por exemplo, na relação entre a configuração enunciativa e o lugar da memória. Assim, o ensino da língua não ficaria restrito a uma repetição empírica, formal de conceitos e regras, imaginariamente constantes – como fato gramatical – e, sim, trabalhado de forma que os enunciados, os textos fossem analisados, levando em conta as suas condições de produção – como fato discursivo. Como diz Orlandi (1996): Trabalhar com o conceito de fato discursivo implica em resgatar a dimensão enunciativa da frase; isto é, em considerá-la ao mesmo tempo como produto e processo. A forma lingüística não pode ser abstraída da vivência/experiência, ou da história do sujeito falante. Analisar uma questão lingüística como fato discursivo implica analisar não apenas o modo como 36 ele se dá no nível das relações estritamente lingüísticas, manifestadas pelo conteúdo da frase, mas no discurso que dá sentido ao seu aparecimento enquanto fato significativo para a análise (apud DIAS 2001, p.76). Enfim, a partir de uma abordagem discursiva, o ensino da língua portuguesa dos fatos gramaticais -, seria tomado em seu funcionamento entre a unidade e a diversidade, estimulando a capacidade de reflexão do aluno, atribuindo sentidos diferentes aos locutores envolvidos. Dias (1998) reflete sobre a tarefa do gramático, e por extensão, da gramática, do professor, do LD e dos alunos. Cabe ao gramático levar o aluno a uma reflexão sobre a ocorrência dos fatos linguísticos em discursos que dão sentido a realidades variadas. E a tarefa dos alunos? Pensar a língua no funcionamento dos enunciados a partir da sua própria realidade. Isto é, estudar a ocorrência dos fatos lingüísticos a partir de uma observação dos discursos do seu próprio dia-adia (1998, p.119). Tendo feito essa análise de documentos que estabelecem diretrizes e validam, legitimam determinados livros por meio de sua aprovação, agora, vamos à descrição e à análise do livro de Cereja e Magalhães, para observar um pouco do processo de didatização do conhecimento gramatical, levando em consideração as condições de produção, efeitos de sentidos que estão sendo ali produzidos, buscando compreender que imagem de língua, de conhecimento linguístico e de leitor estão se fazendo presentes. 37 CAPÍTULO 4 DESCRIÇÃO E ANÁLISE: LINGUAGENS E LÍNGUA Iniciamos este Capítulo, retomando as palavras de Orlandi (2007): “Os sentidos não estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que eles são produzidos e que não dependem só das intenções dos sujeitos” (p. 31). E como isso já pode ser observado desde a capa do livro de Cereja e Magalhães? Comecemos pelo título e subtítulo: Português Linguagens 2 Literatura - Produção de Texto – Gramática Nota-se que, apesar de o ensino de Português não ser mais estruturado dessa forma pelos PCN e pelo PNLD, como vimos anteriormente, e sim como “Leitura, produção de textos escritos, oralidade e conhecimentos linguísticos”, o LD em estudo não segue esse estruturação, mas sim um modelo antigo. Percebemos pela presença da palavra “GRAMÁTICA” (dito) em destaque, e a ausência do termo “CONHECIMENTOS LINGUÍSTICOS” (não dito), em um o jogo do dito e do não dito, que o livro prestigia o ensino de gramática, tornado-a mais importante que o conhecimento da língua, trazendo-nos a confirmação da posição de poder que ainda é atribuída à Gramática Tradicional no Ensino de Língua Portuguesa. Observamos, ainda, outro apagamento: o de Língua como área de conhecimento. Aliás, temos uma assimetria nesse subtítulo, pois Literatura é uma área do conhecimento, Produção de Textos, uma atividade e Gramática, um instrumento, uma tecnologia linguística. O que significaria esse apagamento? Ainda na capa, o nome do livro “Português Linguagens” em relação com as imagens apresentadas - um senhor (Drummond) com um livro e uma pena, sentado em um banco, uma menina, matando um inseto que aparece ao lado da sandália usada para matá-lo, um rolo de fita de cinema e um poste de iluminação antigo aponta para o fato de que o livro aborda diversos tipos de linguagens, adequando- 38 se, pois, ao que propõe o PNLD, como um dos critérios básicos para a elaboração dos livros didáticos. 1. Apresenta uma coletânea de textos, de diversos tipos e gêneros, que revelem funções e registros de linguagem diversificados e que sejam representativos da cultura escrita destinada a adolescente do ensino médio (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS- Língua Portuguesa, p.90). Assim temos o critério do PNLD se materializando no livro, fazendo-nos pensar naquele funcionamento discursivo, o da antecipação, para produzir esse efeito de adequação, de legitimidade, sentidos necessários a sua aprovação. Assim, alguém que pegue o livro já é induzido a essa representação do que seja ensinar Português: um efeito leitor, que coloca o leitor em determinado posição, em determinado lugar de produção de sentidos. Curiosamente, isso nos faz refletir sobre a seguinte questão: de que adianta o livro se propor a oferecer diferentes linguagens se ali, no espaço enunciativo da capa, ele privilegia somente uma tecnologia da língua, a “gramática”? Sem conhecimentos linguísticos mais amplos e renovados para que seja analisada a língua em funcionamento, de que adianta o livro abordar as diferentes linguagens? Ainda na capa, temos um selo que indica que o livro é para a análise do professor e que a venda é proibida. Constatamos, então, que, apesar da prática de distribuir gratuitamente os LD para professores ser proibida, como vimos no Capítulo anterior, no trabalho do pesquisador do IPEA, por induzir de certa forma a escolha dos professores, ela continua sendo feita. Isso traz ainda a questão de se trazer a resposta já pronta para o professor, diminuindo cada vez mais as possibilidades de uma prática pedagógica autônoma e criativa. Na capa, também temos a informação que o livro segue a nova ortografia, o que produz um efeito de atualidade, projetando uma imagem de que o livro está por dentro do que está acontecendo. Temos também uma Apresentação dos autores, dirigida aos estudantes, em que o termo “língua” também é bem dizer apagado no dito, sendo amplamente superado em termos de ocorrência pelos termos “linguagem/linguagens”. Na verdade, língua aparece só duas vezes: como produto cultural e para dela se fazer o “melhor uso possível”. E o impossível? Nada aparece da imagem de língua como algo a conhecer, a desvendar o mundo. 39 Esta obra pretende ajudá-lo na desafiante tarefa de resgatar a cultura em língua portuguesa, nos seus aspectos artísticos, históricos e sociais, e, ao mesmo tempo, cruzá-la com outras culturas e artes. [...] Além disso, tem em vista ajudá-lo a compreender o funcionamento e a fazer o melhor uso possível da língua portuguesa, em suas múltiplas variedades, regionais e sociais, e nas diferentes situações sociais de interação verbal. Observando em seguida o Sumário, o livro organiza-se em torno de quatro Unidades, que indicam uma forma tradicional de conceber a literatura: diacronicamente, pelas chamadas escolas. 1. HISTÓRIA SOCIAL DO ROMANTISMO. A POESIA 2. O ROMANTISMO. A PROSA 3. HISTÓRIA SOCIAL DO REALISMO, DO NATURALISMO E DO PARNASIANISMO 4. HISTÓRIA SOCIAL DO SIMBOLISMO Cada uma dessas Unidades distribui-se em Capítulos. Na primeira Unidade, temos 14 Capítulos; na segunda, 13; na terceira, 12 e na quarta, 12. Esses Capítulos se subdividem em Literatura, Produção de texto, Língua, uso e reflexão, Interpretação de textos, e, como uma espécie de “bônus”, temos uma parte denominada Intervalo. Como pode se observar só pelos títulos, a fragmentação, a ambiguidade, os apagamentos continuam, mantendo essa imagem de língua como uma colcha de retalhos ou ainda como algo que se pode recortar e se ter pleno controle de cada parte. Ressaltamos que, além das unidades do livro serem organizadas, tendo como ponto de partida a Literatura, essa área do conhecimento também ocupa maior parte dos Capítulos da mesma Unidade. Chamamos ainda a atenção para a palavra “gramática” utilizada na capa, e que desaparece na organização dos Capítulos do livro, sendo substituída por Língua: uso e reflexão. Essa substituição foi feita, parece, a fim de produzir uma projeção imaginária de que o livro trabalha os conhecimentos linguísticos como proposto pelos PCN e pelo PNLD, que adotam tal nomenclatura. O livro vai-se adequando, pois, as diferentes diretrizes governamentais, independentemente de sua coerência ou consistência, ao mesmo tempo, continuam a trabalhar os sentidos já estabilizados historicamente sobre o que seja ensinar Português, sobre o que seja língua. Parece que aí se dá um conflito, confronto entre o que é atual, o que é determinado por um poder maior e uma memória que não se desloca. Como se 40 materializam esses Capítulos nomeados como Língua: uso e reflexão, da Unidade em análise? Como já dissemos, fizemos um recorte da Unidade 1 para descrição e análise neste TCC. Apresentamos, a seguir, um quadro com os conteúdos trabalhados nos Capítulos desta Unidade. É importante observar que estamos trabalhando apenas com as partes em que a gramática aparece explicitamente, pois ela também aparece em outras partes como na Produção de textos em que trata do discurso direto e do discurso indireto, colocando em questão entre o que faz ou não parte da gramática. E o texto de outras linguagens também serve de pretexto para questões gramaticais como as da página 55, o que coloca em questão também a forma de explorar essas outras linguagens. Capítulo 3 O Substantivo 28 Flexão do substantivo 32 O substantivo na construção do texto 35 Semântica e discurso 36 Capítulo 5 O adjetivo 50 Flexão de adjetivo 52 O adjetivo na construção do texto 56 Semântica e discurso 57 Capítulo 8 O artigo e o numeral 69 O artigo e o numeral na construção do texto 73 Semântica e discurso 74 Capítulo 11 O pronome 97 Pronomes pessoais 98 Pronomes de tratamento 101 Pronomes possessivos 103 Pronomes demonstrativos 104 Pronomes indefinidos 106 Pronomes interrogativos 107 Pronomes relativos 108 O pronome na construção do texto 110 Semântica e discurso 111 Chamamos a atenção ainda para o título da parte denominada Intervalo e suas subdivisões, que nos pareceu um “bônus” oferecido aos alunos. 41 EM DIA COM O ENEM E COM O VESTIBULAR 131 A gramática nos vestibulares de hoje 131 Questões do Enem e do vestibular 133 Nota-se que, apesar da troca dos nomes de Gramática (capa) para Língua: uso e reflexão (no interior do livro), temos aí presente uma memória que sustenta essa estruturação do LD funcionando: a de uma ordem cristalizada em que se estudam as classes, como dito por Dias (1998) “uma lista para ser decorada”. Ordem essa que se encontra nas gramáticas. Observando o Sumário da “Moderna Gramática Portuguesa” de Bechara (2009), na parte que trabalha com as classes de palavras, intitulada como Unidades do Enunciado, encontramos os quatro primeiros capítulos na seguinte ordem: 1 Substantivo. 2 Adjetivo. 3 Artigo. 4 Pronome. Passemos, agora, a outra etapa da descrição-análise da Unidade 1, observando como o saber gramatical é didatizado, em que momentos ele está presente tanto explícita como implicitamente nos capítulos de Língua: uso e reflexão, que estão assim divididos: Construindo um conceito: textos de diferentes linguagens, seguido de exercícios; Conceituando: o conceito e explicações Exercícios a partir de textos de diferentes linguagens O (substantivo, adjetivo, pronome e etc) na construção do texto: um texto seguido de exercícios. Semântica e discurso: texto seguido de exercicíos. Como se pode observar, há partes explicitamente nomeadas como Exercícios, embora apareçam questões em outras seções. Vejamos como ocorre esse processo, tomando como referência o Capítulo 11, destinado ao estudo dos pronomes (p. 91). 42 CONSTRUINDO UM CONCEITO - Inicialmente temos uma tira de Fernando Gonsales (2005), seguida de cinco (5) questões de exercícios, sendo que quatro delas consistem em identificar na tira os pronomes na mais antiga forma de se trabalhar com a gramática. Deixamos em vermelhos as respostas, tal como vêm no exemplar do Professor. 1. Há na tira algumas palavras que indicam as pessoas que participam da ação discursiva, substituindo-as. a) a) No 1° quadrinho, que palavra substitui a palavra Níquel? você b) b) No 2° e no 3°quadrinho, que palavra substitui a palavra você? a palavra lo. 2. 2. No 2° quadrinho, na fala de Walt, que palavra indica a 1° pessoa do discurso, ou seja, a pessoa que fala? me 3. 3. Em três situações, as personagens empregam a palavra meu (s). O que essa palavra indica: imprecisão, posse ou localização? posse (p. 91) Nota-se aqui a forma como o livro se postula como discurso de verdade (GRIGOLETTO, 1999), pois ele leva o aluno a pensar por um único caminho, admitindo uma única resposta “correta”. CONCEITUANDO – Parte da teoria dos atos de fala (Linguística) para apresentar a relação do pronome com o sujeito, mas de modo categórico, sem nuances, tomando a tira anterior como comprovação, para chegar ao conceito de pronomes em geral, sem indicação de qual gramática foi retirado: “Pronomes são palavras que substituem ou acompanham outras palavras, principalmente os substantivos” (p. 92). Bechara (2009) irá definir Pronome de forma bem mais complexa. [...] classe de palavras categoremáticas que reúne unidades em número limitado e que se refere a um significado léxico pela situação ou por outras palavras do contexto. De modo geral, esta referência é feita a um objeto substantivo considerando-o apenas como pessoa localizada do discurso (p.162). Em seguida ao conceito de pronome, o livro didático em análise, classifica-os em pronomes substantivo e pronome adjetivo, e, mais uma vez, usa uma frase da tirinha inicial para exemplificar. Depois dessa subdivisão, o livro apresenta o seguinte subtítulo: “Pronomes pessoais” (p. 92) e explica que os pronomes se referem às pessoas do discurso: 43 Os pronomes pessoais designam diretamente uma pessoa do discurso: O locutor (quem fala): 1ª pessoa: eu (singular) ou nós (plural); O locutário (com quem se fala): 2ª pessoa: tu (singular) ou vós (plural); O assunto ou referente (do que o de quem se fala): 3ª pessoa: ele/ela (singular) ou eles/elas (plural) (p.92). Logo, conceitua: “Pronomes pessoais são aqueles que indicam as três pessoas do discurso” (p. 93). Paremos um instante para uma ida à gramática de Bechara (2009) para ver como ele nos ajuda a desconstruir esse conceito. Os pronomes pessoais designam as duas pessoas do discurso e não a pessoa (não eu, não tu), considerada, pela tradição, a 3.ª pessoa: 1.ª pessoa: eu (singular), nós (plural), 2ª pessoa: tu (singular), vós (plural) e 3ª pessoa: ele, ela (singular), eles, elas (plural) (p. 164). Essa parte traz, ainda, as classificações dos pronomes em retos e oblíquos, seguidos de um quadro-resumo, colorido, do que havia se tratado até então. Apesar de, antes de apresentar o quadro, o LD trazer uma breve explicação, utilizando os exemplos da tirinha de Gonsalez, notamos os efeitos de sentido produzidos por esse quadro: a língua é apresentada é “enquadrada” como algo estático para ser reconhecido e decorado, como explica Dias (1998). Depois desse quadro, temos uma explicação sobre pronome reflexivo com exemplos criados pelo autor para comprovação do conceito, da regra. Feri-me com a tesoura. Pron. reflexivo (a mim mesmo) Nesse ponto, há uma deslizamento de sentido, no qual todo o discurso didático de gramática contextualizada é substituído pelo discurso da gramática tradicional que apresenta exemplos de forma isolada. Confirmamos com os exemplos oferecidos por Bechara (2009) referentes ao pronome oblíquo reflexivo (p.165): Eu me vesti rapidamente. Nós nos vestimos. Eles se vestiram. Também, nessa mesma seção, o livro traz o subtítulo “Contraponto”, em que informa o aluno sobre as formas você(s) (substituindo o pronome tu e vós) e a gente (substituindo nós), dizendo que especialistas reivindicam a entrada desses 44 pronomes de tratamento na lista dos pronomes pessoais, e então questiona o aluno: “Qual a sua posição sobre o assunto: essas palavras deveriam ser reconhecidas como pronomes pessoais? Por quê? Que ganhos isso poderia trazer para o uso ou estudo da língua?” (p. 93) E nós nos perguntamos: O que foi apresentado e o modo como foi permitem que o aluno tenha uma posição sobre o assunto? A seção seguinte trata dos Pronomes de Tratamento. Inicialmente, traz um cartum de Santiago (Tinta fresca. Porto Alegre: L&PM, 2004. p.86), em que um político se dirige ao seu público por meio das palavras “Senhoras e senhores”. Em seguida, o LD explica que as expressões utilizadas para o personagem dirigir-se ao público são pronomes de tratamento e conceitua: “Pronomes de tratamento são palavras e expressões empregadas para tratar familiar ou cerimoniosamente o interlocutor(p.95).” Nota-se o quanto este conceito é vago, pois e se for um amigo? Imagine quantas questões devem passar pela cabeça do aluno. Bechara (2009) traz uma definição mais abrangente: “A estes pronomes de tratamento pertencem as formas de reverência que consistem em nos dirigirmos às pessoas pelos seus atributos ou qualidades que ocupam (p. 165)”. Conceito que apesar de mais abrangente ainda não é totalmente convincente, pois o que diríamos em relação ao pronome “você” em paralelo com essa definição? Podemos constatar que a pessoa a qual nos dirigimos dessa forma não possui nenhum atributo ou não ocupa nenhuma qualidade? Porém, em suas observações, o gramático explica que “você”, usado familiarmente, vem de “Vossa Mercê” e substitui o pronome vós que caiu em desuso. Logo, no LD temos mais uma vez um quadro-resumo, com as formas de tratamento, a abreviatura e a explicação de como são usadas, produzindo um efeito “para decorar” e não aprender a língua em seu funcionamento. Enfim, temos uma lista de exercícios, composta por 7 questões em que o foco é treinar. Vejamos alguns exemplos, extraído da página 96: 45 1. Identifique as frases em que o pronome está empregado em desacordo com a variedade padrão da língua. Em seguida re-escreva-as, adequando-a a essa variedade. a) Fiquei tão brava que mandei ele sair da sala imediatamente... o mandei. b) Quando saíres, avisa-nos que iremos com você. .... comigo c) Preciso encontrar-me com você ainda hoje. d) Não vá, por favor, preciso falar com o senhor. e) Se você sair, leve com você o cachorro. ... consigo 5. Re-escreva as frases, completando-as com um pronome pessoal da 1ª pessoa do singular: a) Sem ___ ler a procuração, eu não assino. (eu) b) Isso é para ___! ? Obrigada! (mim) Conclui-se que, apesar dos Capítulos iniciarem com um texto no qual o aluno deveria ser levado a pensar a língua em seu funcionamento; posteriormente, ele é levado a aprender os conceitos e regras gramaticais e aplicá-los de forma descontextualizada. Após os exercícios, o LD continua a classificar os pronomes. Temos, então, uma seção denominada “Pronomes Possessivos”, que inicia com uma canção de Lenine (“Meu amanhã”. HTTP://letras.terra.com.br/lenine/83606/.) Aí, o LD ressalta o sentido produzido pela palavra “minha” usada pelo eu lírico e, em seguida, explica que essa palavra “minha” tal como “meu” indicam posse e são pronomes possessivos, oferecendo a seguinte definição: “Pronomes possessivos são aqueles que indicam posse em relação às três pessoas do discurso(p.98)”. Após a definição dos pronomes possessivos, o LD traz a definição de pronomes possessivos adjetivos e pronomes possessivos substantivos, a partir de exemplos extraídos do texto: Nas expressões “minha festa”, meu requinte”, “minha sina”, “meu cinema”, etc. da canção, minha e meu acompanham substantivos e, por isso, são pronomes possessivos adjetivos. Quando ao pronome possessivo substitui um substantivo, ele é um pronome possessivo substantivo. Veja: Meu carro está sem estepe. Pron. poss. Adj. O seu tem estepe Pron. poss.subst. Como podemos ver, os textos de variados gêneros são utilizados para que sejam retirados “fatos gramaticais”, e não para que o aluno perceba o funcionamento do pronome. É priorizada sempre a definição, o conceito: é porque é, a marca de um discurso autoritário. Os exemplos retirados dos textos produzem um efeito de que estão ali somente para produzir um sentido, nos quais o autor pensou 46 antecipadamente, o de contextualizar a gramática. Por outro lado, vemos que há sempre a necessidade de trazer outros exemplos para comprovar o que o LD diz, exemplos fora do texto que está sendo trabalhado, fora da literatura, meros exemplos pra comprovar o que é dito. Após esses conceitos, temos mais uma vez um quadro-resumo com todos os pronomes possessivos; mais uma vez é usado esse recurso de enquadrar a língua didaticamente para ser decorada. Na sequência, temos a seção “Pronomes Demonstrativos”, que é iniciada a partir da leitura da tira de Adão Iturrusgarai (Folha de S. Paulo, 7/5/2002), da qual é extraído o pronome “isto” e definido como pronome demonstrativo, seguido de seu conceito: “Pronomes demonstrativos são aqueles que situam pessoas ou coisas em relação às três pessoas do discurso. Essa localização pode se dar no tempo, no espaço ou no próprio texto (p.99)”. Em seguida, mais uma vez, são retirados exemplos do texto para subdividir esse conceito, no caso, em pronomes demonstrativos substantivos e pronomes demonstrativos adjetivos, e reafirmado com um exemplo sem relação com o texto, nem com a literatura. Como ocorreu nas outras seções, essa também traz um quadro-resumo com os pronomes demonstrativos. Efeito de mesmice, de monotonia. Por fim, trata do emprego dos pronomes demonstrativos, afirmando ser preciso levar em consideração as pessoas do discurso e aquilo que se fala e se escreve. E traz exemplos descontextualizados de cada um deles. A título de exemplificação, temos: Em relação ao espaço Este(s), esta(s) e isto indicam o que está perto da pessoa que fala: Este relógio de bolso que eu estou usando pertenceu a meu avô. Esse(S), essa(s), e isso indicam o que está perto da pessoa com quem se fala: Mamãe, passe-me, por favor, essa revista que está perto de você. Aquele(s), aquela(s) e aquilo indicam o que está distante tanto da pessoa que fala como da pessoa com quem se fala: Olhem aquela casa. É um exemplo de arquitetura colonial brasileira. A gramática de Bechara (2009) traz basicamente o mesmo conceito, porém deixa claro que: “Nem sempre se usam com este rigor gramatical os pronomes demonstrativos; muitas vezes interferem situações especiais que escapam à disciplina da gramática”(p. 167). O apagamento dessa informação que daria flexibilidade ao conceito, à língua, produz um sentido de algo estanque, de algo 47 evidente e, em relação ao aluno de que realmente ele não sabe língua. E mais uma vez eu faço a pergunta: De que adianta afirmar que vai trabalhar as “linguagens” e “variedades”, se a gramática, que está no lugar da língua, é tratada em um sentido “tradicionalíssimo”, como verdade absoluta e completa? Após os pronomes demonstrativos temos um pequeno exercício que segue a mesma estrutura dos anteriores. Destaco a questão de número 3, porque ela deixa clara a posição de privilegio atribuída a uma norma padrão estanque. Chamo a atenção, especialmente, para a resposta dada no exemplar do professor. 3. Leia a tira ao lado, de Caco Galhardo, e observe o emprego do pronome demonstrativo. Tanto na fala de Gina quanto na fala de Júlio, o emprego do pronome demonstrativo está de acordo com a variedade padrão da língua? Justifique sua resposta. Na fala de Gina, não, pois como o controle remoto está na mão dela, próximo, portanto da pessoa que fala, ela deveria ter empregado este; já na fala de Júlio, sim, pois ele se refere ao controle que está próximo da pessoa com quem ele fala. (p.101) Na sequência, temos as seções “Pronomes indefinidos”, “Pronomes interrogativos” e “Pronomes relativos” que seguem a mesma estrutura das demais: um texto referente a algum gênero, o conceito e o quadro-resumo. Após as três seções, novamente um exercício focalizado em treinar o aluno em relação ao que foi apresentado. Na seção O Pronome na Construção do Texto, o aluno tem um texto inicial, no caso, o poema de Sílvio Bedani, seguido de questões (exercícios) no qual ele é novamente levado a reconhecer os fatos gramaticais. Como exemplo, citamos as duas primeiras questões da p. 106. 1. O poema é essencialmente lírico. Como é comum nesse gênero literário, há inúmeras marcas da 1ª pessoa, que evidenciam a presença e a voz do locutor (o eu lírico), como se nota nos verbos e pronomes. Identifique os pronomes que dizem respeito ao eu lírico. Classifique-os. Meu (duas vezes): pronome possessivo; eu: pronome pessoal do caso reto; mim, me: pronomes pessoais do caso oblíquo. 2. Dirigindo-se a um interlocutor, o eu lírico extravasa seu mundo interior. a) Que palavras do poema dizem respeito ao interlocutor? Teu, teu, teu, te, te, tua, te, ti. b) De que fala o eu-lírico? Dos seus sentimentos pelo interlocutor ou de seu envolvimento emocional. 48 Ao lado desse exercício, temos um quadrado que tem como título “Para que servem os pronomes” e uma pequena explicação sobre qual o seu papel no texto e sua função de garantir a clareza, a coerência e a coesão do texto. Constata-se que, ao invés de o aluno ser levado a perceber isso na língua em funcionamento, o texto serviu apenas para que fossem identificados fatos gramaticais. E o que realmente deveria ser importante, que é o uso dos pronomes para coesão e coerência de um texto, é apresentado em um pequeno quadro, sem nenhuma reflexão critica do aluno, nem percepção de sua relação com a prática. Por fim, a seção “Semântica e discurso”, apesar de trazer um novo nome, trata basicamente das mesmas coisas. A novidade fica por conta de uma abordagem da variação. A estrutura é a mesma de todas as seções, pequenos textos ou tirinhas, seguidos de exercícios. Vejamos, por exemplo, mais dois exercícios, das páginas 107-108. 1. Na fala de Calvin no 1º quadrinho e na fala do tigre no último quadrinho, é empregada uma expressão no lugar de pronome pessoal. a)Que expressão é essa? A gente b) No último quadrinho, que pronome pessoal poderia substituir, a variedade padrão formal, essa expressão? O pronome pessoal nós. c) Re-escreva falas de ambas as personagens nesses quadrinhos, substitundo a expressão pelo pronome pessoal adequado, de acordo com a variedade padrão. Quando somos crianças não temos muita.../ ...se víssemos alguém normal... (...) 4. No 1º quadrinho, os rapazes chamam alguém cerimoniosamente. a)Como se classificam as palavras contidas nos balões? Pronomes de tratamento b)Três das quatro palavras podem vir acompanhadas de Sua ou Vossa. Se os rapazes optassem por dizê-las em sua forma completa, como ficariam? Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Alteza. c) A quem provalvelmente eles tratam assim? Justifique sua resposta. A um provável patrão ou chefe, como comprova a fala de Fagundes no 3º quadrinho. O bônus “Em dia de Enem e vestibular”, inicialmente, traz uma explicação de como está sendo tratada a gramática no vestibular hoje, que, segundo o LD em análise, estaria abordando aspectos linguísticos dos textos que também servem ao estudo de literatura e à interpretação de textos. Logo em seguida, mostra exemplos de como isso pode acontecer, sendo comum três tipos de abordagens: semântica, reescrita e coesão textual. Logo depois,traz quatro páginas de exercícios retirados desses exames para que os alunos resolvam. 49 Não podemos dizer que nossa análise seja conclusiva e possa ser generalizada para todos os livros didáticos ou mesmo para o de Cereja e Magalhães, mas criou condições para uma investigação mais aprofundada e detalhada em determinadas direções. Mas, considerando a descrição e análise feitas, chegamos a algumas conclusões. A gramática é realmente o centro do ensino de português e produz a imagem de uma língua fechada em si mesma, independentemente do fragmento de língua que se use para trabalhá-la. A presença de diferentes linguagens produz antes e, sobretudo, o efeito de modernidade, de novidade, de movimento em meio à monotonia do tratamento que se dá à língua, O aluno é frequentemente levado a trabalhar com a gramática, colocada no lugar da língua, para extrair do texto, também tornado fechado, fatos gramaticais a serem estudados isoladamente. Poderíamos, então, ainda nos perguntarmos. De que está se falando quando se fala em ensinar ou não gramática na escola? 50 CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta inicial de analisar como o saber gramatical é didatizado nos livros didáticos tomou uma dimensão muito maior a partir do momento em que foram definidas as teorias - História das Ideias Linguísticas e Análise de Discurso - que com seu suporte acabou com nossa relação até então ingênua com o objeto, fazendo-nos compreender que não se tratava apenas de transposição de conhecimentos. A gramática foi tomada como instrumento linguístico e como tecnologia (AUROUX, 1992) e estendemos esses conceitos para o livro didático por ser também um saber produzido pelo homem, responsável por descrever e instrumentar a língua por meio de sua sistematização (seleção, segmentação, organização), aumentando a competência falante. Logo, a gramática, nesta concepção, como uma ciência sistematizada, desfaz a impressão de estudo ineficaz, inferior a linguística. Assim, a partir da compreensão da história e da teoria de interpretação de texto – Análise de Discurso-, investigamos como são produzidos os sentidos do nosso objeto de estudo - a gramática no livro didático-, levando em consideração as suas condições de produção. O olhar mais próximo das condições de produção desfez toda a noção de discurso transparente que tínhamos desses objetos, pois descobrimos como o contexto sócio-histórico determinava o sentido do que estava sendo produzido, em um jogo em que a política, a memória, as posições imaginárias se fazem presentes. Pensar nas condições do processo de gramatização no Brasil nos fez compreender que não se tratava apenas da construção de instrumentos e, sim, da construção da nossa identidade brasileira. Acompanhando a produção do nosso saber gramatical, pudemos compreender como a história e o político se materializam em um âmbito geral, pois seguimos ainda a tradição greco-latina e, internamente, a NGB, que uniformiza e administra a produção da gramática brasileira. Em se tratando de livros didáticos, constatamos que eles também seguem padrões e exigências estabelecidos pelo Estado em uma relação com a Ciência, uma vez que o político – a divisão e sua administração - se faz presente, por meio de sua estruturação, visando o controle ideológico escolar, buscando atingir uma homogeneização. 51 Ainda pensando nos livros didáticos, buscamos compreender como o poder político ganha espaço e descobrimos que é por meio da economia, pois o Estado ocupa o lugar de maior comprador de livros didáticos no nosso país. O programa responsável que rege essa relação é o PLND, e no caso do nosso corpus, é o PNLEM, que movimenta milhões, capazes de instigar as editoras e autores à produção de algo em determinadas direções de sentido, desencadeando todo um processo. Então, buscamos compreender como ocorre esse processo e quem participa desse jogo de sentidos. E então, chegamos aos Guias do Livro Didático – responsáveis por apresentar diretrizes, descrever e analisar as obras aprovadas pelo MEC -, e buscamos compreender o que o Governo espera dessas obras em geral, e em um sentido mais estrito em relação à etapa escolar de nosso interesse: o português no Ensino Médio. Para compreender como tudo isso funcionava, buscamos Pêcheux (1990) e Orlandi (2007) e, por meio do entendimento do dispositivo de interpretação, ficou claro que não existe discurso transparente e, sim, afetado pela língua, história e ideologia. A partir desse conhecimento, construímos o nosso dispositivo analítico definindo o nosso corpus “ Português Linguagens”, livro que atualmente é o mais usado em âmbito nacional e em nossa cidade. Nossa descrição e análise levaram em consideração o modo de construção, a estruturação, o modo de circulação e responderam as questões que foram colocadas inicialmente: Como o saber da gramática é didatizado? Qual é a imagem de língua, de conhecimento linguístico e de leitor que são formadas? Constamos que, apesar do PCN e do PNLD apontarem para um estudo dos conhecimentos linguísticos, em que o aluno deveria trabalhar com fatos discursivos e não fatos linguísticos (Dias, 1998 ), uma tradição gramatical já superada por alguns gramáticos como Bechara (2009), ainda “domina” o ensino de língua portuguesa em sua forma primordial, que é a de ser estudada em formato de quadro e de exercícios que transformam a língua em algo fixo, estanque e não em seu funcionamento, e que constituem um sujeito leitor que precisa ler apenas para responder alguma coisa, nunca ler para ler, conhecer a língua para saber as possibilidades que ela traz de conhecer e desvendar o mundo. 52 Elaborar esse Trabalho de Conclusão de Curso não foi uma tarefa fácil, porém, abriu espaço para uma imensidão de novas descobertas, mudou inclusive a nossa forma de ver as coisas, que até então seguia um pensamento hegemônico, resultado de uma educação a que fomos/somos submetidos. Logo, a partir desse estudo consegui deslocar meu pensamento e ver além das evidências, conseguindo perceber que não existe discurso transparente, e que um mesmo discurso abre espaço para inesgotáveis interpretações. Enfim, ampliamos nossa visão acerca de vários aspectos e percebemos que ainda há muito a ser descoberto, deixando, portanto, o espaço aberto para futuro trabalhos. 53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1992. 134 p. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira: Lucerna, 2009. 671 p. BRASÍLIA. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de Livros Didáticos PNLD 2012: Apresentação. Ensino Médio. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/index.php/pnld-guia-do-livro-didatico>. Acesso em: 10 jun. 2011. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. 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