Existe algum outro lugar onde podemos nos encontrar? Nadine Gordimer (1923) Era uma manhã cinzenta e fria e o ar parecia fumaça. Nessa inversão de elementos que por vezes ocorre, o céu cinza, suave e abafado se movia como o mar em um dia silencioso. A gola do casaco pressionava asperamente seu pescoço e suas bochechas estavam levemente frias, como se tivessem sido lavadas em água gelada. Ela respirava suavemente com o ar; à esquerda uma faixa de estepe fogo se curvava em silêncio, sem chamas. Acima, um pombo arrulhava. Ela passou sobre a grama plana, seguindo as árvores, hora dentro, hora fora do caminho. Logo à frente, além do emaranhado de galhos, as linhas inclinadas de grama preta e platinada - todos os tons que se fundem, mas sem cor, como uma gravura - era o horizonte, a terra onde a névoa se sobrepunha. A grama queimada e úmida emanava um pó preto e débil sob seus pés. Ela podia ouvir-se engolir. A uma longa distância, ela viu uma figura com algo vermelho na cabeça, e tirou dela o senso de equilíbrio que ela havia sentido quando se coloca uma figura em uma imagem. Ela estava aqui: alguém estava lá. Então, o ponto vermelho se foi, perdeu-se na curva das árvores. Ela mudou a bolsa e o pacote de uma mão para a outra e sentiu a manhã, palpável, profundamente fria e palpável sob seus olhos. Ela chegou ao final de um trecho de caminho reto e contornou um pinheiro escuro e um arbusto delicadamente desfolhado, o qual ela lembrava estar carregado de cachos de flores brancas como cristais no verão. Havia um nativo com um boné vermelho de lã em pé na próxima junção de árvores, onde o caminho cruzava uma vala e era rodeado por pedras salpicadas de branco. Ela havia apanhado um pequeno ramo de espinhos de pinheiro, três em um galho marrom fino e, enquanto caminhava, pressionava-os contra o seu polegar. Para baixo; liso e rígido. Para cima; agarrando-se levemente quando os minúsculos espinhos tocavam sua pele. Ele estava de costas para ela, olhando ao longo do caminho por onde viera, ela espetou seu polegar com as extremidades da agulha. Sua calça de uma perna só estava rasgada acima do joelho, e na parte traseira da perna nua e no calcanhar notava-se a pele morta e porosa por causa do frio. Ela estava mais perto dele agora, mas percebeu que ele não tinha notado sua aproximação através da poeira pegajosa do caminho. Ela estava ao lado dele, passando por ele; e ele virou-se lentamente e olhou para além dela, sem uma centelha de interesse, como uma vaca te observa quando você passa. Os olhos estavam vermelhos, como se não tivesse dormido por um longo tempo, e o forte cheiro de suor de muito tempo ardia em suas narinas. Depois de tê-lo ultrapassado, ela quis tossir, mas uma pontada de culpa nos olhos vermelhos cansados a fez se controlar. E ele tinha apenas um trapo imundo parte de uma camisa velha? - Sem mangas e desgastada e rasgada da axila até a cintura que se balançava com o vento frio enquanto ela passava. Ela tinha deixado cair o trio arrumado de espinhos de pinheiro em algum lugar e, agora, lembrando-se de algo de sua infância, ela levantou a mão ao rosto e a cheirou: sim, era como ela se lembrava, não como faziam parecer nos sais de banho, mas um cheiro empoeirado verde, vegetal, em vez de floral. Era puro, desumano. Um tanto forte demais; viscoso em seus dedos. Ela deveria lavá-los logo que chegasse lá. A menos que suas mãos estivessem completamente limpas, ela não conseguiria esquecer-se delas, elas se faziam notar. Ela escutou um ruído através do solo como o som de uma lebre correndo com medo e quando ela ia se virar ele surgiu na frente dela, tão surpreendentemente inesperado e ofegante em sua frente. Ele estava mortalmente parado, assim como ela. Qualquer vestígio de controle, de sentido, de pensamento, fugiu dela como um quarto que mergulha no escuro com a falta de luz e ela se viu choramingando como uma idiota ou uma criança. Grunhidos animalescos saíram de sua garganta. Ela murmurava sem sentido. Por um momento, era o próprio Medo que a tinha pelos braços, pelas pernas, pela garganta; não era medo do homem, de qualquer ameaça única que ele pudesse representar, mas o Medo absoluto, abstrato. Se a terra se abrisse sob seus pés, se um animal selvagem tivesse aberto sua boca terrível para engolila, ela não poderia reduzir-se a menos do que ela estava agora. Havia um peito arfando através dos farrapos na frente dela, um rosto ofegante; abaixo da cabeleira coberta pelo boné de lã vermelha o olho vermelhoamarelado a deixava desconfiada. Um pé, rachado pela exposição que até parecia madeira quebrada, moveu-se, apenas para ganhar equilíbrio por causa da corrida, porém qualquer movimento parecia ser contra ela e ela tentou gritar, mas o horror dos sonhos se tornou realidade e nenhum som sairia. Ela queria jogar a bolsa e o pacote contra ele, e quando ela se atrapalhou com eles, ela o ouviu soltar um suspiro profundo e rouco e ele a agarrou - ah! Ele a agarrou. Sua mão segurou o ombro dela. Naquele momento, ela lutou com ele e ela estremeu com força, enquanto eles lutavam. A poeira lufava em volta de seus sapatos e dos pés cambaleantes dele. O cheiro dele engasgou-a. – Era um pijama velho, não uma camisa. – Seu rosto estava sombrio e havia um ponto cor de rosa onde a pele tinha sido esfolada. Ele fungou desesperadamente, sem fôlego. Os dentes dela batiam e descontroladamente ela o golpeou com a cabeça, afastou-se, mas ele agarrou a barra do casaco e a puxou de volta. Com seu rosto virado para cima ela viu as ondas de um céu enorme e uma garça fitando-os, bela como a carranca da proa de um navio. Ela lutou para se equilibrar e a bolsa e o pacote caíram. Naquele momento ela estava sobre eles, e se virou, mas quando ela estava prestes a cair de joelhos para chegar lá primeiro, um alívio repentino, como uma torrente de lágrimas, veio e ela correu. Ela correu e correu, tropeçando loucamente através da grama morta, virando os calcanhares contra touceiras de inverno rígido, tropeçando através das árvores e arbustos. As mimosas jovens se fecharam, pendurando um emaranhado de galhos até o chão, mas rasgou-se completamente, sentindo a poeira em seus olhos e os galhos escamosos enganchando em seu cabelo. Havia uma vala com carrapichos até a altura de seus joelhos, como alfinetes que respondem a um ímã eles grudaram ao longo de suas pernas, mas do outro lado havia uma cerca – suas mãos nada conseguiam fazer - e tentou arrastar-se entre o arame, mas seu casaco ficou preso em uma farpa, e ela estava presa lá, dobrada ao meio, enquanto ondas de terror varreram-na em calor e tremor. Por fim, o fio rasgou o tecido; oscilante, freneticamente, ela pulou a cerca. E ela estava fora. Estava fora da estrada. Um pouco mais à frente havia casas com jardins, caixas de correio, um balanço de criança. Um pequeno cão estava sentado ao portão. Ela podia ouvir um zumbido fraco, como de vida, de conversa em algum lugar, ou talvez de telefone. Ela tremia tanto que ela não podia suportar. Teve que continuar caminhando rapidamente, estrada abaixo, que estava tranquila e cinza, como a manhã. E estava frio. Agora ela podia sentir o ar frio ao redor de sua boca e entre as sobrancelhas, onde a pele se destacava com o suor, além da fria umidade que embebia suas axilas e por entre as nádegas. Seu coração batia devagar e com firmeza. Sim, o vento era frio, ela, de repente, estava fria, completamente gelada. Levantou a mão, ainda tremendo de forma incontrolável, e alisou o cabelo, que estava molhado por causa do ar. Ela colocou a mão no bolso e encontrou um lenço para assuar o nariz. Havia o portão da primeira casa, à sua frente. Ela pensou na mulher chegando à porta, nas explicações, do rosto da mulher e da polícia. Por que eu lutei, ela pensou de repente. Eu lutei por qual razão? Por que eu não lhe dei o dinheiro e o deixei ir? Seus olhos vermelhos, e o cheiro e as rachaduras dos pés, fissuras, erosão. Ela estremeceu. O frio da manhã a percorreu. Ela se afastou do portão e desceu a rua lentamente, como um inválido, começando a retirar os carrapichos de suas meias.