DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA Escatologia Cristã (EC) - Professor: Geraldo De Mori SJ Programação 2012 Escatologia cósmica Introdução Desde o advento dos tempos modernos, a escatologia cósmica encontra uma série de dificuldades em estabelecer-se pois o cosmos enquanto tal e em suas dimensões particulares tornou-se objeto das ciências físicas e naturais. Na medida em que essas últimas devem proceder segundo métodos agnósticos, elas não admitem mais afirmações teológicas em seu domínio, sejam afirmações referentes às origens ou ao fim do cosmos. A teologia moderna retirou-se então progressivamente do domínio da natureza e concentrouse sobre o domínio da história entendida somente como o que concerne a existência dos homens. A distância entre cosmologia e escatologia tornou-se desde então maior que toda outra distância. Ora, uma escatologia sem cosmologia se transforma inexoravelmente em mito gnóstico, como o mostra o existencialismo moderno. A separação entre a existência privada e a história real, entre história humana e natureza não humana é porém artificial. A existência humana é uma existência corporal, ligada ao mundo da natureza e tributária dele. O mundo do vivente, da terra, do sistema solar, da nossa galáxia e do cosmos é igualmente condição de possibilidade de nosso mundo humano. O corpo não é separado da alma nem a humanidade da natureza. Por isso, não existe salvação do homem sem salvação do cosmos. Nenhuma salvação é pensável para os homens sem o novo céu e a nova terra. Não pode haver vida eterna para os homens sem mudança de condições da vida cósmica. As dificuldades para pensar esta articulação entre escatologia e cosmologia foram assumidas sobretudo por Teillard de Chardin, a partir do conceito de evolução e sua metafísica do ponto ômega, Alfred North Withehead e sua filosofia do process, Ernst Bloch e sua filosofia da esperança que engloba também a natureza, e muitos outros. A análise que propomos aqui tentará articular alguns dados das teorias das ciências da natureza, sobretudo os que dizem respeito aos conceitos de tempo e espaço, com os elementos constitutivos da escatologia cristã: a morte e a ressurreição do Cristo e o advir do novo céu e da nova terra. 1.O futuro da criação: sábado (tempo) e shekinah (espaço) A primeira questão que a escatologia cósmica tem que pensar é a de saber se a criação deve ser compreendida à luz da redenção ou à luz da nova criação. No primeiro caso, a criação é perfeita desde o começo. Foi o pecado dos homens que a perturbou. A graça é a medida de socorro destinada por Deus para remediar a situação do pecado. No fim, intervirá o restabelecimento bom das origens. A escatologia funciona aí como restitutio in integrum. No segundo caso, a criação é criada no começo de uma história de Deus que chega a seu termo somente na nova criação de todas as coisas e na inabitação universal de Deus nela. No primeiro caso, a esperança escatológica da redenção só existe por causa do pecado e de suas consequências devastadoras. No segundo caso, a esperança conduz ao cumprimento escatológico da criação que é mais que a libertação do pecado e de suas consequências. No primeiro caso, chegamos a uma compreensão restauradora da escatologia. No segundo caso, chegamos a uma compreensão escatológica da criação. A tradição teológica da Igreja ocidental transmitiu-nos a primeira maneira de entender a escatologia cósmica. Quando ouvimos a palavra criação, pensamos automaticamente no estado original do mundo e no começo de todas as coisas como que terminadas, acabadas e perfeitas. A criação é o estado original, o paraíso. A tradição dogmática chamava a 1 condição de Adão de status integritatis, que possuía a justiça e a santidade original. Deste estado os homens foram tirados em razão do pecado. A graça que salva os reconduz a esse estado original intacto. No fim, a criação é de novo o que ela era na origem. Este drama da salvação corresponde porém muito mais aos mitos de origem pagãos que à historia da criação em Israel. E o mito do eterno retorno, sob a forma do mito da regeneração eterna do tempo envelhecido presente nas festas do ano novo. Esta concepção mítica do círculo do tempo influenciou o subconsciente da teologia cristã. Da mesma forma que tudo procede do Deus único, da mesma forma tudo retorna ao Deus único. Há uma correspondência entre a saída e retorno (esquema exitus-reditus). O caráter único e definitivo da história do Cristo expresso no ephapax paulino proíbe no entanto todo recurso à ideia de um eterno retorno. Para manter este caráter único e definitivo na escatologia e para que a mesma seja possível, é preciso que na libertação a experiência seja feita de uma mais valia com relação ao pecado, excluindo a queda seguinte depois do restabelecimento da criação. Se a graça superabunda onde o pecado abundou (Rm 5,20), esta mais valia da graça consiste no fato que são abolidos não somente o pecado, mas a possibilidade de pecar; não somente a morte efetiva, mas a possibilidade de morrer. Se isso é verdade, a esperança que tem seu fundamento na libertação não se refere ao restabelecimento da criação original, mas a seu acabamento definitivo. A experiência de ter sido libertado do poder do pecado conduz a uma esperança no acabamento da criação na glória. Se chamamos fim ao acabamento da criação, a criação do começo aparece então como uma criação inacabada, que acaba de começar. No relato sacerdotal, o sábado é a promessa de um futuro que é inscrita na criação desde o começo e que faz esperar seu acabamento. Através da doutrina da creatio ex nihilo, a tradição teológica sempre ensinou a contingência da criação. Ela não sublinhou porém da mesma forma que a criação contingente é uma criação no temp e que ela deve ser compreendida em referência ao horizonte do tempo. No modelo restitutio-in-integrum, a história só começa com a queda. O tempo começa com ela e termina com o restabelecimento da criação original. Agostinho tem porém razão quando faz o tempo começar com a criação. Deus criou o mundo com o tempo e não no tempo, o que significa que a criação é uma creatio mutabilis e um sistema aberto ao futuro e não um sistema fechado e perfeito nele mesmo. Neste caso, a criação é temporal e não eterna. Enquanto tal, ela é referida a um futuro no qual ela é destinada a tornar-se uma criação eterna. Sua temporalidade mesma é a promessa real de sua eternidade, pois é a eternidade que é a plenitude do tempo e não a intemporalidade. Na escatologia cósmica, o acabamento da criação temporal é a passagem da criação temporal à nova criação de um mundo eterno divinizado. É em vista deste cumprimento que toda coisa é criada. A tonalidade desta escatologia é a da novidade (novos céus e nova terra de Ap 21,1). O “eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5) significa que nada se passa ou é perdido, mas que tudo é restabelecido segundo uma forma nova. A creatio ex nihilo encontra seu acabamento na creatio ex vetere escatológica. A tonalidade da escatologia é a da atualização e do retorno, não como restitutio in integrum mas como renovatio omnium. É preciso portanto articular a categoria escatológica do novum com a categoria anamnética da repetição, de tal modo que o começo seja conservado e ultrapassado no fim e que o acabamento restabeleça tudo o que existiu. Em que consiste o começo e o acabamento da criação? O que distingue o primeiro céu e a primeira terra do novo céu e da nova terra? É a presença diferente do Criador na comunidade das criaturas. A criação do começo encontra seu acabamento no sábado (Gn 2,2). Os seis primeiros dias apontam em direção do sétimo e todas as criaturas são criadas em vista desta festa do Criador, sendo por ele benditas neste dia. A criação é criada de nova maneira a fim de poder acolher a nova Jerusalem e tornar-se a shekinah de Deus (Is 65; Ez 37; Ap 21). O sábado do tempo da primeira criação faz a ligação entre este mundo e o mundo futuro. Ele é a presença de Deus no tempo de suas criaturas. Ele é a presença dinâmica da eternidade no tempo, que faz a ligação entre o começo e o fim suscitando assim a lembrança e a esperança. A inabitação de Deus no novo céu e na nova terra é a presença de Deus no espaço das criaturas. Sábado e shekinah se reportam um a outra como promessa e cumprimento, o começo e o acabamento. No sábado, a 2 criação contém nela mesma, desde o começo, a promessa real de seu acabamento. Na shekinah a nova criação assume nela mesma e acaba a primeira criação como seu próprio anúncio e seu próprio prelúdio. A criação começa com o tempo e encontra seu acabamento no espaço. A temporalidade da primeira criação é ela mesma sua promessa e sua abertura em vista de uma nova e eterna criação. É no quadro das esperas rememoradas do sábado que se portam para a shekinah que preencherá o céu e a terra, que é preciso entender as afirmações do NT sobre a encarnação. Gl 4,4-5 e Jo 1,14 vêem no envio do Filho e na inabitação da Palavra eterna de Deus em nossa carne o cumprimento do tempo ou, inversamente, o tempo se cumpre onde advém a shekinah definitiva de Deus. 2. Aniquilamento ou acabamento do mundo? O cristianismo elaborou diferentes representações para falar do fim do mundo, que vão do aniquilamento total do mundo, segundo a ortodoxia luterana, à transformação total do mundo, segundo a Igreja antiga e a tradição reformada, à divinização gloriosa do mundo, segundo a teologia ortodoxa. Como entender essas diferentes representações? São elas complementares ou excluem-se umas às outras? Como entendê-las cristologicamente? a. O aniquilamento do mundo Contra a doutrina da transformação, presente na Igreja antiga e na teologia católica, a dogmática luterana afirma o aniquilamento como destino último do mundo. Depois do julgamento final intervém o fim total deste mundo. Com excessão dos anjos e dos homens, tudo o que faz parte deste mundo será queimado pelo fogo e se dissolverá no nada. Os anjos bem aventurados e os fiéis se perderão na visão de Deus “face à face”, não tendo mais necessidade das realidades criadas e da percepção de Deus pelos sentidos, não precisando mais dos ambientes criados do céu e da terra, pois Deus mesmo é o novo ambiente no qual se encontram mergulhados. A beatitude consiste unicamente na contemplação eterna de Deus. Seu lugar é o céu. Este será o novo ambiente dos homens. Qual mundo será destinado ao aniquilamento escatológico? Segundo a doutrina apocalíptica dos eons, é o mundo da injustiça e da morte que desaparecerá. No NT, utiliza-se o termo cosmos para falar desse mundo. A terra desaparece e é aniquilada. Não só é destruída a forma ímpia do mundo mas toda a criação. À creatio ex nihilo se segue a redutio in nihilum. Este modelo deve ser qualificado de exterminacionista. A figura deste mundo que deve desaparecer é a que está em contradição com Deus e não a criação mesma de Deus. O aniquilamento dos poderes ímpios deste mundo não é ao serviço do aniquilamento do mundo mas da nova criação na justiça que corresponde a Deus. A ideia de ressurreição da carne desaparece quando a salvação é compreendida como sendo unicamente visão bemaventurada de Deus da alma desencarnada. Se esta esperança desaparece da escatologia, a ideia de encarnação não pode mais ser mantida na cristologia. Se esta ideia é abandonada, a fé cristã torna-se uma gnose que nega e despreza o mundo. Quem ensina o aniquilamento do mundo anula a criação, sendo mais fascinado pelo nada que pelo ser. b. A transformação do mundo A Igreja antiga, a Igreja reformada e a teologia católica afirmam a transformatio mundi. Depois do julgamento intervirá o fim deste mundo, Deus destruindo o estado presente do mundo pelo fogo, o que não quer dizer ele o aniquilará, mas que a partir do mundo antigo realizará um mundo novo, um novo céu e uma nova terra imperecíveis. Seguese daí que não só as almas dos crentes serão glorificadas mas também seus corpos, pois Deus acolheu não só as almas em sua aliança mas também os corpos. A aliança de graça histórica é a forma serva do reino de Deus neste mundo do pecado e da morte. Ela desaparecerá quando o pecado será totalmente vencido. Isso se realizará quando o Cristo crufificado será manifestado ao mundo inteiro como o Justo, e quando a forma serva do 3 reino se transformar em forma gloriosa. Com o retorno do Cristo intervirá a ressurreição dos mortos. Trata-se de um novo agir de Deus em benefício dos mortos que reunirá cada alma com o corpo no qual ela viveu na terra. Esta unidade entre novidade e identidade é chamada transformatio mundi. A anihilatio mundi é incluida nesta perspectiva, pois a nova criação do céu e da terra pressupõe o aniquilamento do estado presente do mundo. A transformação pressupõe porém a identidade do mundo como criação de Deus, porque senão algo inteiramente outro tomaria o lugar da criação. A ressurreição dos mortos é então vista como un novo agir criador de Deus em benefício dos mortos e por isso mesmo, como a transformação dos mortos na vida eterna. Na nova corporeidade dos bem aventurados se manifestará uma glorificatio resultante da comunicação de uma vida eterna, imperecível, pois eles serão configurados ao corpo glorioso do Cristo (Fp 3,21). Há continuidade entre a experiência da graça do Cristo na história e a glória do Cristo esperada no cumprimento. c. A divinização do mundo A concepção ortodoxa da divinização do mundo vai além da ideia ocidental da transformação e da transfiguração do mundo. Na verdade, ela extende ao conjunto do cosmos a doutrina física da redenção da Igreja antiga. “Deus se fez homem para que nós sejamos divinizados”, como dizia Atanásio. Não se trata de ser como Deus mas da condição de filhos de Deus. Ora, os filhos são da mesma natureza que os pais. Mesmo adotados eles tornam-se herdeiros de direito pleno. Eles têm parte à natureza divina. É porque a divinização não significa a transformação dos homens em deuses, mas sua participação nas qualidades e nos direitos da vida divina pelo fato da comunhão com o homem Deus que é o Cristo. As qualidades divinas de incorruptibilidade e imortalidade tornam-se assim bens da salvação para os homens. Como esta doutrina antropológica da divinização extendeu-se ao cosmos? A teologia ortodoxa nunca distinguiu, como a teologia ocidental moderna, natureza e pessoa. Segundo ela, toda pessoa humana é, de uma certa maneina, uma hipóstase do conjunto da natureza cósmica, mas sempre em estreita conexão com as outras criaturas. Resulta disso que a ligação hipostática entre natureza e pessoa salva a natureza, transfigurando-a e divinizando-a. Toda a natureza é assim destinada à glória. A redenção do homem leva à redenção da natureza. A chave da ligação hipostática que une a pessoa humana à natureza cósmica é o corpo humano. Se não só a alma mas também o corpo é criado à imagem de Deus, a salvação consiste então na transfiguração do corpo. Pela transfiguração da corporeidade humana, a natureza toda inteira é introduzida na comunhão com a humanidade transformada e transfigurada. A teologia ortodoxa não levou porém seu raciocínio até o fim, pois a transfiguração do cosmos implica a ideia de que o mesmo é imago Dei. Na Bíblia, o fato de ser à imagem de Deus é sempre ligado à glória de deus. O pecado que se opõe a Deus faz o pecador perder esta glória. Com a libertação do pecado, volta o esplendor desta glória. A libertação do pecado implica que não só a criatura geme para ser liberta da caducidade, mas que a criação toda inteira anseia para entrar na luz de Deus e ser divinizada. A condição de imagem de Deus não é algo que distingue o homem da natureza não humana, mas o que a une hipostaticamente a tudo o que é vivo e ao cosmos inteiro. A concepção ortodoxa oferece uma solução à separação moderna entre a pessoa enquanto sujeito e a natureza enquanto objeto. Tudo o que afeta a pessoa tem efeitos sobre a natureza e tudo o que salva a pessoa salva igualmente a natureza. É porque uma salvação da pessoa sem salvação da natureza cósmica é inconcebível. A divinização do cosmos no entanto não é pensada como criação nova do céu e da terra, mas como espiritualização e impregnação do cosmos pelo Espírito. O mundo totalmente espiritualizado não é necessariamente a nova terra e a nova corporeidade da shekinah de Deus. Esta teologia corresponde a uma teologia da ressurreição unilateral como a teologia do aniquilamento conduz a uma teologia da cruz unilateral. A redutio in nihilum e a elevatio ad Deum vão juntas e se completam mutuamente, donde a necessidade de melhor articulá-las, retomando talvez num nível mais profundo a doutrina da transformação e da transfiguração. 4 2. O fim do tempo na eternidade de Deus O fim do tempo para Paulo é descrito em 1 Cor 15,52 como um piscar de olho escatológico. Trata-se deste instante da eternidade no qual todos os mortos são ressuscitados ao mesmo tempo, de modo sincrônico. Este último dia do tempo é ao mesmo tempo a presença da eternidade a todos os tempos. Este último dia é o dia de todos os dias. Não é possível pensar de outra forma o dia da ressurreição. Do ponto de vista de seu conteúdo, esse dia é o dia do Senhor e todos os tempos lhe são concomitantes. Ap 10,6 descreve o fim do tempo com a imagem do anjo que jura: “por aquele que vive pelos séculos dos séculos, que criou o céu e o que lá se encontra, a terra e o mar e o que neles existe: não haverá mais tempo”. Como para Paulo, é ao som da última trombeta que o mistério de Deus será cumprido. Neste contexto, chronos representa primeiro o tempo da história, onde os profetas proclamaram o mistério do Deus que vem, mas também o tempo da criação que é saído da eternidade do Criador. O mistério de Deus é a realização e a extensão de sua senhoria sobre toda a terra, ou seja o acabamento da história e da criação no reino da glória no qual Deus inhabita ele mesmo sua criação eterna. Se Deus manifestase na criação, então sua eternidade manifesta-se no tempo e sua presença universal manifesta-se no espaço da criação. Assim, a criação temporal é transformada em criação eterna e a criação espacial em criação cuja presença é universal. Quando Deus fizer desaparecer a morte para sempre, então a caducidade ela mesma desaparecerá. Não haverá mais o tempo. Ele será abolido, cumprido e transformado pela eternidade da nova criação. Não se trata da eternidade absoluta de Deus ele mesmo mas da eternidade relativa da nova criação que parte da eternidade absoluta de Deus. Como pensar teologicamente isso? a. O tempo da criação A teologia da criação tenta pensar o começo de tudo a partir de Deus. Dois modelos foram elaborados no decorrer do séc. XX para compreender a relação entre tempo e eternidade no ato criador, o modelo de Barth e o de Scholen. O primeiro modelo parte da ideia do decreto criador de Deus. Antes de criar o mundo e com ele o tempo, Deus decidiu ser o Criador de um mundo distinto de seu ser e de um tempo distinto de sua eternidade. É nesta auto-determinação divina que se encontra o começo onde Deus criou o céu e a terra. O segundo modelo parte da ideia da auto-limitação de Deus. Em sua onipotência, Deus encontra um espaço para sua criação retirando sua presença deste espaço original. Ele limita então sua eternidade para dar tempo e deixar tempo à sua criação neste tempo original. Deus limita sua oniciência para dar liberdade às suas criaturas. Estas autolimitações originais de Deus precedem sua criação. No primeiro ato, Deus age voltando-se para o interior dele mesmo, antes de sair de si mesmo num segundo ato e criar uma realidade outra que ele. Só se Deus retira-se, limitando-se e concentrando-se nele mesmo, ele pode chamar à existência algo ao lado e fora dele que não seja de essência divina e que não é nem eterno nem onipresente. Esses dois modelos dizem a mesma coisa pelo recurso a uma metáfora pessoal ou a uma metáfora espacial. Auto-determinação e auto-limitação são a mesma coisa. Elas pressupõem uma auto-modificação de Deus na eternidade. O instante original situa-se antes da criação do mundo e do tempo na autodeterminação de Deus a ser Criador. Da auto-limitação da eternidade divina procede o tempo da criação. No instante original do decreto criador de Deus, são dispostas todas as possibilidades que o Criador quer desdobrar no tempo da criação. Pode-se aqui falar de eon original (Maximo o Confessor distingue entre eon e eternidade e pensa que o eon é uma eternidade que é repleta pelas experiências do tempo ou um tempo repleto de eternidade. Existe um último eon no qual todo o tempo é resumido e um eon inaugural que inclui em Deus todas as possibilidades pensadas daquilo que se desdobrará no tempo. As leis não temporais da criação, as ideias do tempo constituem tal eon). Do instante original do tempo da criação procede o instante inaugural do tempo da criação. No ato criador, o tempo sai da 5 eternidade e se desdobra em antes e depois, em futuro, presente e passado. É preciso distinguir com a Bíblia entre este começo em que Deus criou o céu e a terra (Gn 1,1) e o começo do tempo terrestre: “houve uma noite e uma manhã: primeiro dia” (Gn 1,5). Enquanto que para o céu e os que nele habitam há um tempo eônico, para a terra e os que nela habitam há um tempo que passa. O tempo eônico pode ser compreendido como um tempo que corresponde à eternidade de Deus: um tempo sem começo e sem fim, sem antes e sem depois. A figura que corresponde à eternidade que é sem fim é o círculo sem fim do tempo. Ela representa a forma reversível, simétrica, sem fim e por isso mesmo intemporal do tempo. A forma terrestre do tempo no entanto é a flecha do tempo. Do futuro nasce o presente e do presente o passado. Esse curso é irreversível, não reiterável e irresistível. À diferença da criação celeste, a criação terrestre se mantém sob o horizonte desta forma temporal do tempo. É preciso levar em conta esta dupla forma do tempo na criação. A criação terrestre se mantém sob o horizonte do tempo que passa, e esse tempo terrestre se mantém sob o horizonte do tempo eônico do mundo invisível que o toca constantemente e é tocado por ele. A criação temporal é uma criação mutante, parecendo-se a um sistema aberto, assimétrico, desequilibrado, que é orientado para seu futuro. É por isso que o tempo terrestre é o tempo da promessa. Sua essência é ser para o futuro como seu começo já era o futuro. Ela é criada em vista da inabitação de seu Criador e é porque ela é inacabada enquanto não se tornar a pátria de Deus. É a isso que faz referência o sétimo dia que termina a criação. O repouso do sábado, pelo qual o Criador bendiz sua criação, é a promessa que Ele inscreve nela de seu acabamento na shekinah escatológica de Deus. O sábado é a shekinah de Deus na criação. A shekinah é o sábado de Deus no espaço. Segundo o primeiro relato do Gn, o modelo temporal da criação não implica unicamente o tempo que se escoa de modo irreversível mas também o tempo ordenado de modo rítmico pelos dias e anos sabáticos. No ritmo das interrupções sabáticas do tempo que se escoa, a criatura terrestre vibra na na liturgia cósmica da eternidade. O tempo que se escoa se regenera a partir da presença da eternidade no ritmo dos dias e dos anos jubilares para se preparar ao sábado messiânico da criação no fim dos tempos e através dele ao sábado escatológico da criação eterna. b. O tempo da história c. O cumprimento do tempo A experiência de plenitude que fazemos no tempo e que o NT interpreta como sendo a do dia da salvação é uma antecipação temporal do instante escatológico. O que aí advém é o começo daquilo que deve acabar, no fim, a vitória da vida sobre a morte. Na experiência presente do kairos da fé, o tempo experimentado se transforma. Deixando de ser tempo que passa para tornar-se tempo aberto ao futuro. Para tomar uma imagem: as sombras da noite do mundo que se acaba mudam-se em luz do dia de Deus que se levanta. O que advém no kairos presente da fé e do novo nascimento à vida é a antecipação histórica daquilo que deve advir para os mortos no instante escatológico. Além do fim e do acabamento da história, o instante escatológico deve ser pensado como o acabamento da criação no começo e como a saída do tempo e a entrada na eternidade. Ele corresponde ao instante original do tempo da criação. O fim do tempo é a inversão do começo do tempo. Da mesma forma que o instante original surge do decreto criador de Deus e da auto-limitação divina que ele implica, assim também o instante escatológico surgirá do decreto salvador de Deus e do autodesdobramento divino que ele implica. Deus não se desdobra para aniquilar sua criação e para tomar seu lugar e seu tempo mas para nela habitar e tornar-se tudo em tudo. O tempo original e o espaço original da criação tomam fim quando a criação se torna o templo da shekinah eterna de Deus. A criação temporal se torna então criação eterna porque todas as criaturas têm então parte com a eternidade divina. A criação espacial torna-se então uma criação onipresente porque todas as criaturas têm então parte com a onipresença de Deus. A saída da criação fora do tempo para entrar no eon da glória advém pelo aniquilamento da 6 morte e pela ressurreição dos mortos. Se a morte não mais existe o tempo tampouco: nem o tempo do que passa nem o tempo futuro. A morte é mudada em vitória da vida, que é eterna porque ela participa de modo indestrutível da vida divina. Porque a ressurreição dos mortos capta de modo diacrônico todos os mortos, do primeiro ao último homem, existe então uma reversão do tempo que, aqui e agora, é irreversível. No restabelecimento de todas as coisas voltam igualmente todos os tempos: eles são transformados, transfigurados e assumidos assim no eon da nova criação. Na criação eterna são reunidos também todos os tempos que o decreto divino desdobrou. Os tempos desenvolvidos da história são enrolados como um rolo. É isso que podemos chamar plenitude do tempo. O instante totalmente preenchido de vida dá uma ideia do que seja essa plenitude final. O instante escatológico, correspondente ao instante original da saída do tempo fora da eternidade, tem duas faces: Deus cumpre nele mesmo o auto-desdobramento escatológico. Ele aparece em sua criação no explendor de sua glória desvelada. Ele vem com o rosto iluminado, de forma que os homens o reconhecerão face a face. A criação temporal é transformada em criação eterna. Do mesmo modo que do instante original nasce o instante inaugural do tempo, assim também no último instante o tempo passa à eternidade. É por isso que o último dia é ao mesmo tempo o começo da eternidade: um começo sem fim. É o tempo cumprido, o tempo eônico, o tempo preenchido de eternidade, o tempo eterno. Nas representações antigas, o tempo eônico não é concebido como a fleha do tempo mas como o círculo do tempo. O tempo histórico irreversível é então subsitituído pelo tempo reversível que é a imagem da eternidade divina. A nova criação é determinada por uma nova presença de Deus nela. O Criador não permanece diante de sua criação mas vem habitar nela aí encontrando seu repouso. A nova criação é então impregnada da presença divina e está ligada à plenitude inesgotavel de Deus. Da inabitação divina resulta uma espécie de pericorese cósmica das propriedades divinas e cósmicas. Resulta igualmente uma pericorese mútua entre a eternidade e o tempo, o que nos faz falar de um tempo eterno e de uma eternidade preenchida de tempo. 4. O fim do espaço na presença de Deus O que acontece com o espaço no fim é descrito por Ap 20,11. Diante do trono de Deus e da face desvelada de sua majestade, “o céu e a terra desaparecerão, e um lugar não foi encontrado para eles”. Topos não designa aqui um lugar criado mas o espaço que, no decreto criador, foi designado à criação toda. Porque Deus limitou sua onipresença, nasceu o espaço original no seio do qual ele pôde criar o céu e a terra. Este espaço no qual as criaturas podem desabrochar é aberto pela retirada da onipotência de Deus e pelo velarse de sua glória. É por isso que o céu e a terra perdem o topos que lhes foi designado quando a majestade de Deus aparece, onipresente. Como a presença de Deus diante da criação se modifica, o espaço de sua criação se modifica também. O céu e a terra não podem mais existir à distância de Deus. Eles tornam-se a morada da onipresença divina, como o tempo da criação tornou-se o tempo da eternidade divina. Qual teologia do espaço resulta da visão do fim do espaço na onipresença de Deus? Que representa um fim do espaço? a. O espaço da criação Deus deve ser pensado como estando acima do tempo. Exprimimos isso com a ideia de sua eternidade. Da mesma maneira ele dever ser compreendido como acima do espaço e exprimimos isso com a ideia de sua onipresença ilimitada. Todo espaço é limitado e delimita. Todo espaço cria distância. Se Deus é o sujeito de sua eternidade e de sua presença, ele é igualmente o sujeito de sua própria limitação pela qual é constituído o espaço para a criação que não é divina mas que deve existir diante de Deus e com ele. Esta auto-limitação da onipresença divina tem como fundamento o decreto de Deus do qual precede a criação. Deus limita sua eternidade para tomar tempo para sua criação e para lhe deixar tempo. De maneira análoga, ele limita sua onipresença para dar lugar e espaço à sua criação. Resulta disso a distância entre Deus e a criação e sua relação com ela. Deus se 7 retrai para permitir que uma realidade outra exista fora dele e diante dele. A ideia da autolimitação de Deus (zimzum) foi desenvolvida pela kabala. A doutrina trinitária também ajuda a pensar o surgimento do espaço. Segundo esta doutrina, as três pessoas existem umas com as outras, umas pelas outras e umas nas outras. Elas existem umas nas outras porque elas dão-se mutuamente espaço para desdobrarem-se totalmente. Existindo mutuamente umas nas outras, elas formam esta comunhão trinitária que lhes é própria. Tal é a doutrina da immanentia e da inexistentia trinitárias. Se segundo Jo 14,9-11, o Filho habita no Pai e o Pai no Filho, o Pai é a morada do Filho e o Filho a morada do Pai. O Espírito que procede do Pai e repousa no Filho, encontra nele o lugar de sua inabitação eterna. Pelo dom sem reserva delas mesmas, as pessoas trinitárias são fora delas mesmas e inteiramente umas nas outras. Elas tornam-se assim a morada eterna umas para as outras. O ser de Deus é perfeito e não tem necessidade de um outro ser para existir nele nem de uma substância divina comum. A inexistência mútua constitui a perfeição divina. Quando o Deus Trindade limita sua onipresença para permitir que haja uma criação fora dele, ele não deixa um vazio como o faz pensar a doutrina do zimzum, mas abre um espaço para suas criaturas que corresponde às suas inabitações interiores. Ele faz existir um mundo diferente dele diante dele, com ele e nele. Deus chama o espaço à existência graças a uma possibilidade incluída em sua vida intra-trinitária. Ele o criou como o meio da comunhão entre ele e os homens e da comunhão destes entre si, à imagem da comunhão que existe na Trindade e à qual os homens devem chegar. O espaço da criação é ao mesmo tempo fora de Deus e em Deus. Por sua auto-limitação, o Deus Tri-uno faz de sua presença a morada da criação. Ao retirarse e dar espaço à criação, Deus faz-se ele mesmo o espaço de habitação de suas criaturas. A ligação entre as inabitações das pessoas divinas e sua abertura comum para ser o espaço de habitação das criaturas são formuladas de modo preciso em Jo 17,21: “que todos sejam um, como tu, Pai, tu estas em mim e eu em ti, que eles estejam em nós eles também”. Da mesma maneira que por sua inabitação mútua as pessoas divinas formam um espaço comum, assim também a comunidade forma, sobre o plano da criação, o espaço social de desdobramentos de si recíprocos. As criaturas têm necessidade de existir lado a lado e juntas, e elas têm necessidade para isso de vastos espaços onde poderão mover-se livremente. Não há liberdade subjetiva sem esses espaços de liberdade sociais que são abertos pelo respeito e pela simpatia e que são garantidos por disposições jurídicas. O espaço vital mediatiza as relações e a história humanas. Ele é formado pelas relações interpessoais entre uma pluralidade de pessoas. Ele é nosso espaço e não meu espaço. Ele carrega a marca de presentes e de ausentes, dos que estão próximos e dos que estão distantes. Ele é ligado às paisagens e a outros universos vivos. Ao lado da orientação histórica do tempo é importante estar atento à ordenância social e terrestre do espaço. b. Espaços históricos das inabitações de Deus Deus é infinito e em princípio ele só pode ser espaço do mundo e não o mundo ser espaço de Deus. A Bíblia fala porém de inabitações divinas no seu povo, em sua morada em Sion, nos que estão dispersos no exílio, no Verbo feito carne que habita entre nós, no Espírito. Como o Deus infinito pode habitar em espaços e em comunidades terrestres limitadas sem destruir esses espaços e essas comunidades por sua infinitude? A doutrina da shekinah procura responder a essa questão. A doutrina da encarnação do Logos e da inabitação do Espírito é também uma outra forma de resposta. Ambas doutrinas possuem o mesmo pressuposto bíblico. A ideia da shekinah faz a ligação entre o Deus infinito e um espaço finito no qual ele quer habirar. A shekinah designa um ato de descida de Deus e seu resultado que é sua inabitação. Deus quer estar presente num lugar determinado e revelarse. Esta presença divina particular não é uma parte de sua presença universal, mas tem seu fundamento num ato particular de descida e de abaixamento dele mesmo. Como Deus é o sujeito deste abaixamento e desta descida, esta ideia não atenta contra sua soberania. A teologia rabínica tentou interpretar a descida e a inabitação de Deus através da teoria da contração que é distinta da teoria do zimzum. Deus deixa a assembleia do conselho do alto 8 e limita sua shekinah no santuário. Essa concentração num lugar espacial terrestre não é uma diminuição de sua presença universal. A doutrina cristã da Trindade, que distingue pessoas na unidade de Deus, foi formulada a partir dos dados do NT que falam da inabitação de Deus. A cristologia recorre à ideia da kenose do Logos para falar da inabitação da plenitude da divindade em Jesus Cristo. A ideia da assunção da natureza humana pelo Logos também supõe a da inabitação cuja matriz originária é a da shekinah. As duas ideias conduzem à ideia de uma comunhão singular entre o Deus que inabita e a natureza humana e sua história que ele inabita e elas aprofundam a teologia da shekinah. A diferença entre a teologia da shekinah e a cristologia consiste em que a shekinah pode tomar traços humanos quando acompanha Israel e partilha seus sofrimentos, mas não se tornou carne de modo concreto e não permanece entre nós como a pessoa messiânica. c. O espaço cumulado na presença de Deus O espaço que lhe é acordado por Deus dá à criação a possibilidade de estar à distância de Deus e de ter uma liberdade de ação com relação a ele. Se Deus fosse onipresente no sentido absoluto e se ele fosse manifesto em sua glória, não haveria criação terrestre. Para poder ser suportado por suas criaturas, Deus deve esconder sua glória, pois quem vê Deus deve morrer. O distanciamento de Deus e a distância espacial com relação a ele nascem da retirada da onipotência de Deus e do velamento de sua face. Eles fazem parte da graça da criação, pois trata-se de condições para a liberdade das criaturas. A história das inabitações de Deus no povo, no templo, em Cristo e no Espírito aponta em direção de seu acabamento na inabitação universal da glória de Deus e de sua revelação. Pelo processo histórico da inabitação e seu acabamento escatológico, a distância do Criador em relação à sua criação torna-se presença interior de Deus na criação. À presença exterior de Deus acima delas acrescenta-se a presença interior de Deus nelas. À transcendência do Criador face à criação acrescenta-se a imanência de sua inabitação na criação. Por isso, a criação inteira torna-se a casa de Deus, o templo no qual ele pode habitar, o lar onde pode encontrar seu repouso. Todas as criaturas têm parte de modo direto e sem mediação à sua glória que inabita nelas. Elas têm parte à sua vida divina e aí vivem eternamente. A criação perde seu espaço fora de Deus e encontra seu lugar nele, quando Deus encontra sua morada nela. Como no começo, o Criador se fez a morada de sua criação, da mesma forma no fim sua nova criação se tornará sua morada. Produz-se uma inabitação mútua do mundo em Deus e de Deus no mundo. Isso não implica nem a dissolução do mundo em Deus, como o afirma o panteísmo, nem a dissolução de Deus no mundo, como o afirma o ateísmo. Deus continua Deus e o mundo continua criação. Por suas inabitações mútuas, eles permanecem sem confusão nem separação pois Deus habita na criação de maneira divina, e o mundo habita em Deus segundo o que ele é. Dessas inabituações mútuas resulta uma communicatio idiomatum cósmica: a participação recíproca nas qualidades um do outro. As criaturas tomam parte nas qualidades divinas da eternidade e da onipresença, e Deus toma parte no tempo e no espaço delas que é finito e limitado e os assume. Termina assim para as criaturas terrestres o tempo do afastamento de Deus e da caducidade e começa uma presença eterna na onipresença divina. A eternidade divina que inabita da para sempre às critauras o vasto espaço no qual não há mais opressão. 9