AS NOVAS EXPRESSÕES DA “QUESTÃO SOCIAL” E AS FAMÍLIAS
BRASILEIRAS: REFLEXÕES PARA O SERVIÇO SOCIAL
Rita de Cássia Santos Freitas1 e Adriana de Andrade Mesquita2
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo problematizar as novas expressões da
“questão social” e o papel das famílias na gestão e superação da crise de (mal) bemestar social que se vive hoje, no Brasil, refletindo sobre as práticas cotidianas
desenvolvidas pelos assistentes sociais na garantia dos direitos cidadãos. Assim, temos
como eixos: em primeiro lugar, problematizar acerca das múltiplas expressões da
“questão social” no Brasil contemporâneo; em segundo, discorrer sobre proteção social,
políticas sociais e as famílias brasileiras; e, por fim, realizar considerações sobre as
construções de redes sociais como estratégia de enfretamento da questão social por parte
das famílias brasileiras.
PALAVRAS-CHAVE: “Questão Social”, proteção social, políticas sociais, famílias e
redes sociais.
ABSTRACT: This article aims to discuss the new expressions of "social issue" and the
role of families in managing and overcoming the crisis of (bad) social welfare who now
lives in Brazil, reflecting on the daily practices of social workers in ensuring citizens'
rights. Thus, we have as priorities: first, questioning about the multiple expressions of
"social issue" in contemporary Brazil, second, to discuss social protection, social
policies and the Brazilian families, and, finally, to considerations about the construction
of social networks as a coping strategy of social issues on the part of Brazilian families.
KEYWORDS: “Social Question”, social protection, social policy, families and social
networks.
1
Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social/Centro de Referência Documental
(NPHPS/CRD-UFF). Graduada em Serviço Social – Mestre e Doutora em Serviço Social.
2
Professora substituta da Escola de Serviço Social da UFF. Graduada em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Política Social pela UFF e Doutoranda do
curso de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pelo Instituto de Economia da UFRJ.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo problematizar as novas expressões da
“questão social” e o papel das famílias na gestão e superação da crise de (mal) bemestar social que se vive hoje no Brasil, buscando refletir sobre as práticas cotidianas
desenvolvidas pelos assistentes sociais em sua luta na garantia dos direitos democráticos
e universais dos cidadãos.
Nos últimos anos, as crises dos padrões produtivos, da gestão do trabalho e as
recentes transformações societárias têm repercutido diretamente nas políticas públicas
de proteção social. E, nesse quadro a família é redescoberta como agente de proteção
social privado de proteção. Para Pereira-Pereira (2004),
“... a antiga conjunção de circunstâncias favoráveis às conquistas
sociais pelas classes não possuidoras, especialmente após a Segunda
Grande Guerra, deixou de existir desde meados dos anos 1970. A
expansão do consumo de massa – com a ajuda da industrialização, do
crescimento das atividades produtivas e da distribuição de bens e
serviços, realizada por um Estado garantidor de direitos sociais e
trabalhistas – entrou em declínio. Da mesma forma, o compromisso
estatal com o pleno emprego (fortalecedor dos sindicatos), com a
segurança no trabalho, com a oferta de políticas sociais universais e
com a garantia geral de estabelecimento de um patamar mínimo de
bem-estar, vem se desfazendo a passos largos” (p.30-31).
No período pós década de 1990, em especial, as crises dos sistemas estatais de
bem-estar social afetam e ameaçam mais radicalmente as garantias de níveis mínimos
de emprego e seus sistemas protetivos, acesso aos direitos assistenciais, a qualidade de
saúde pública, educação gratuita como direitos universais. O projeto neoliberal ganhou
força e priorizou ações como as de privatização do Estado, internacionalização da
economia, desproteção social, sucateamento dos serviços públicos, concentração da
riqueza e aumento da pobreza e indigência. Nas palavras de Netto (2006), isso acontece
“em nome da racionalização, da modernidade, dos valores do Primeiro
Mundo etc., vem promovendo (ao arrepio da Constituição de 1988), a
liquidação de direitos sociais (denunciados como ‘privilégios’), a
privatização do Estado, o sucateamento dos serviços públicos e a
implementação sistemática de uma política macro-econômica que
penaliza a massa da população” (p.18-19).
Vivenciamos, assim, um quadro de retração e liquidação dos direitos sociais dos
cidadãos, ocasionando no aumento do número de indivíduos, famílias e comunidades
que vivem em condições precárias por causa da grande desigualdade social e da redução
da qualidade de vida. Com isso, temos o crescimento das desigualdades dos direitos
básicos – civis, políticas e sociais – de massa significativa da sociedade brasileira.
Deste modo, no atual contexto de retração dos direitos cidadãos, principalmente
dos direitos sociais, outros atores – dentre eles, indivíduos, a família e a comunidade –
são chamados a intervir e são responsabilizados por todos os problemas que estão fora
da ação do estado. Segundo Iamamoto, “a contrapartida tem sido a difusão da idéia
liberal de que o ‘bem-estar social’ pertence ao foro dos indivíduos, famílias e
comunidades” (2006, p.3). Assim, a privatização dos sistemas de proteção social e a
responsabilização das famílias tornam-se fato.
E é neste cenário, que a família é (e sempre esteve) compreendida como
instância de gestão e superação da crise de (mal) bem-estar social que se vive hoje nos
países desenvolvidos ou em desenvolvimento. A família, além de assumir suas
tradicionais atribuições na sociedade, torna-se responsável por promover cuidados e
serviços que deveriam ser ofertados pelo estado de bem estar social.
Em suma, na conjuntura atual, a família brasileira retorna a cena enquanto
agente importante e central das políticas públicas sociais, haja vista a proliferação dos
programas e projetos assistenciais de combate a fome e miséria que tem como alvo a
família. Exemplos nesse sentido é o caso dos programas Bolsa Família, Benefício de
Prestação Continuada – BPC, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, entre
outros. Programas esses que são alvos da intervenção dos assistentes sociais.
É nesse contexto que floresce o debate sobre as novas expressões da “questão
social” e a centralidade das famílias nas políticas sociais vigentes entre políticos,
estudiosos e organizações sociais; emergindo, no contexto internacional, novas formas
de sociabilidade via programas sociais marcados pelas idéias da centralização,
privatização e focalização, como é o caso dos Programas de Transferência de Renda3.
Assim, temos como eixos: em primeiro lugar, problematizar acerca das múltiplas
expressões da “questão social” no Brasil contemporâneo; em segundo, discorrer sobre
proteção social, políticas sociais e as famílias brasileiras; e, por fim, realizar
3
Não será possível aprofundar nos marcos desse artigo uma discussão mais ampla acerca dos programas
de transferência de renda.
considerações sobre as construções de redes sociais como estratégia de enfretamento da
questão social por parte das famílias brasileiras.
As novas expressões da “questão social” e as famílias brasileiras
O assistente social tem na “questão social” a base de sua fundação enquanto
especialização do trabalho; ou seja, tem nela o elemento central da relação profissional e
realidade. Nesta interface, os assistentes sociais são chamados a intervir nas relações
sociais cotidianas, visando à ampliação e consolidação da cidadania na garantia dos
direitos civis, políticos e sociais aos segmentos menos favorecidos e mais
vulnerabilizados socialmente (trabalhadores, crianças, adolescentes, idosos, portadores
de necessidades especiais, mulheres, negros, homossexuais e suas respectivas famílias).
É importante salientar que esta questão por muito tempo esteve relacionada à
“disfunção” ou “ameaça” de alguns indivíduos à ordem social. Seu reconhecimento deuse na segunda metade do século XIX, a partir da emergência da classe operária e seu
ingresso no cenário político, na luta em prol dos direitos relacionados ao trabalho e na
busca pelo reconhecimento de seus direitos pelos poderes vigentes, em especial pelo
Estado. Segundo Iamamoto a expressão “questão social”
“diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais
engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a
intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da
produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade
humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização,
assim como de seus frutos” (2001, p.10).
Mas, como falamos anteriormente, as crises dos padrões produtivos, da gestão
do trabalho e as recentes transformações societárias têm repercutido diretamente nas
políticas públicas de proteção social e no surgimento de novas configurações da
“questão social” no cenário brasileiro, em especial, a partir da década de 1970. Diante
desse quadro, a “questão social” é redimensionada, sofre alterações e apresenta
particularidades e especificidades para a sociedade brasileira no cenário contemporâneo.
As profundas alterações do sistema capitalista, que intensifica o processo de
exploração e expropriação das classes trabalhadoras, reduzem o papel do Estado na
garantia de direitos e promoção de políticas públicas sociais que atendam às
necessidades básicas de maior parte da população. Para Iamamoto (2008), esse tipo de
ação conduz à “banalização do humano”, à “descartabilidade” e “indiferença” perante o
outro, a “questão social” passa a condensar
“... a banalização do humano, que atesta a radicalidade da alienação
e a invisibilidade do trabalho social – e dos sujeitos que o realizam –
na era do capital fetiche4. A subordinação da sociabilidade humana às
coisas – ao capital-dinheiro e ao capital mercadoria –, retrata, na
contemporaneidade, um desenvolvimento econômico que se traduz
como barbárie social” (2008, p.125 – grifos nosso).
Assim, a preferência ao econômico em detrimento ao social das políticas
governamentais, tanto nos países centrais como periféricos, tem levado a “banalização
do humano” e radicalização das necessidades sociais. Ou seja, o aumento do
desemprego, a instabilidade do trabalho, perda dos direitos trabalhistas, aumento da
pobreza, empobrecimento da classe média, privatização dos serviços sociais, inserção
das mulheres no setor de serviços, “novas5” configurações familiares (famílias chefiadas
por mulheres, aumento da monoparentalidade feminina, etc.) colocam muitos em
situação de extrema vulnerabilidade social – de pobreza, exclusão e subalternidade –
que se agrava ante o momento atual de regressão dos direitos sociais.
Conforme Mesquita et ali (2010), é nesse quadro, que ganham destaque as
famílias pobres e suas questões. Essas famílias aparecem necessariamente como um
“problema social”, principalmente diante da ausência de serviços públicos, como:
creches, escolas, saúde, saneamento básico, habitação entre outros. Desse modo, temos
a crescente vulnerabilização social das classes trabalhadoras frente ao aumento das
desigualdades socioeconômicas que podem levar ao processo de criminalização das
famílias pobres, tornando-as num perigo para a sociedade – que precisaria ser evitado.
Destarte, da mesma forma que crescem as desigualdades, temos o aumento das
lutas cotidianas por trabalho digno, acesso a direitos e serviços no atendimento às
4
Capital fetiche se refere ao capital financeiro no atual contexto de mundialização da economia que se
apresenta em sua forma plena de desenvolvimento e alienação. O capital fetiche apresenta “as finanças
como potências autônomas diante das sociedades nacionais, esconde o funcionamento e a dominação
operada pelo capital transnacional e investidores financeiros, que atuam mediante o efetivo respaldo dos
Estados nacionais sob a orientação dos organismos internacionais, porta-vozes do grande capital
financeiro e das grandes potências internacionais. A esfera das finanças, por si mesma, nada cria. Nutre-se
da riqueza criada pelo investimento capitalista produtivo e pela mobilização da força de trabalho em no
âmbito, ainda que apareça de uma forma fetichizada...” (p.109).
5
Vale salientar que colocamos entre aspas “NOVAS” configurações porque estas não são exatamente
novas. O que há de novo é, primeiro, o seu reconhecimento – seja legal, seja acadêmico – embora, esses
diferentes modelos historicamente tenham convivido no Brasil. E segundo, a outra “novidade” seria o
aumento desses perfis.
necessidades básicas dos cidadãos, questionamento das diferenças étnico-raciais,
gênero, diversidade sexual e religiosa. Questões essas que dão origem aos chamados
“novos sujeitos”, “novos usuários”, “novas necessidades” que transformam a sociedade
após a década de 1970 (PASTORINI, 2007).
Desse modo, diante das mutações ocorridas no sistema capitalista atual, haveria
o surgimento de uma “nova” “questão social”. Nova por romper com o período
capitalista industrial e por “metamorfosear”, parafraseando Castel (2008), a “velha
questão social” que surgiu para dar conta do fenômeno do pauperismo mais evidente na
história da Europa Ocidental, que experimentava os impactos da primeira onda
industrializante, no século XIX (NETTO; 2001).
Nesse cenário, emerge o debate sobre a “nova questão social” que passa a ser
redescoberta e debatida entre os cientistas sociais, em especial por pensadores da Escola
Francesa. Destaque deve ser dado aos principais pensadores sobre o tema, como Pierre
Rosavallon (1995) e Robert Castel (1998). Conforme Pastorini,
“a discussão sobre a existência de uma ‘nova questão social’ irrompe
na Europa e nos Estados Unidos no final da década de 70 e início dos
anos 80, quando alguns dos grandes problemas inerentes à
acumulação capitalista (como desemprego, pobreza, exclusão), vistos
como residuais e conjunturais, durante os ‘Trinta Anos Gloriosos’ nos
países centrais e em alguns periféricos, passam a ser percebidos como
problemas que atingem um número não negligenciável de pessoas de
forma permanente” (2007, p.49-50)
Portanto, na obra de Rosavallon (1995), “La nueva cuestion social”– repensando
el Estado providencia”, o autor enfatiza que existe diferença entre a “nova questão
social” e a “velha questão social”. As novidades da época pós-industrial implicariam
numa ruptura e superação da antiga sociedade capitalista e os principais problemas que
dela decorrem (PASTORINI, 2007 e IAMAMOTO, 2008).
Indo nessa mesma direção, Castel (1998), em “Metamorfoses da Questão Social:
uma crônica do salário”, coloca que a “questão social” foi se metamorfoseando e sendo
transformada com o passar do tempo, resultado da reestruturação internacional do
capitalismo. Logo, isso gerou um grande número de problemas (como o desemprego
estrutural de longa duração), que marcam uma ruptura na trajetória do salariado e
servem de fundamento para o que o autor coloca como a existência de uma “nova
questão social” (PASTORINI, 2007 e IAMAMOTO, 2008).
Esse discurso gerou um acirrado debate no meio acadêmico ao redor do mundo,
inclusive no Brasil a partir da década de 1990; quando se deu visibilidade e importância
à temática entre os acadêmicos das ciências sociais, em especial entre os profissionais
do Serviço Social, que tem a “questão social” como fundamento e justificação do
trabalho profissional especializado.
Autores como Marilda Iamamoto (2001), José Paulo Netto (2001), Maria
Carmelita Yazbek (2001), Potyara Pereira (2001), Alejandra Pastorini (2007), Marilda
Iamamoto (2008) são categóricos em afirmar que não há uma nova “questão social”, já
que se mantêm os traços essenciais da “questão social”, surgidos no século XIX, cujo
fundamento é o trabalho. Eles não foram superados e permanecem até os dias atuais, só
que em sua forma mais radical e alienada: na banalização do humano e invisibilidade do
trabalho social. Pois, a “questão social” assume expressões particulares dependendo das
peculiaridades de cada formação social e da forma de inserção de cada país na ordem
capitalista.
Para Netto, inexiste qualquer “nova questão social” e sim
“a emergência de novas expressões da ‘questão social’ que é
insuprimível sem a supressão da ordem do capital. A dinâmica
societária específica dessa ordem não só põe e repõe os corolários da
exploração que a constitui medularmente: a cada novo estágio de seu
desenvolvimento, ela instaura expressões sócio-humanas diferenciadas
e mais complexas, correspondentes à intensificação da exploração que
é a sua razão de ser” (2001, p.48).
O real problema, na conjuntura atual, está em identificar as expressões
emergentes da “questão social” e sua relação com as modalidades de exploração e
expropriação dos direitos cidadãos – os direitos civis, políticos, sociais – existentes em
nossa sociedade e, até então, garantidos em nossa constituição.
De acordo com Iamamoto (2006), “a atual desregulamentação das políticas
públicas e dos direitos sociais desloca a atenção à pobreza para a iniciativa privada ou
individual, impulsionada por motivações solidárias e benemerentes, submetidas ao
‘arbítrio do indivíduo isolado’, e não à responsabilidade pública do Estado” (p.3). Isso
resulta na privatização das ações de cuidado e proteção social dos indivíduos. E, falar
em privatização de cuidado e proteção social é tocar na esfera do privado, do doméstico,
e da família. Esse tipo de ação pode ser caracterizado como uma “volta ao passado”,
uma vez que estabelece um retorno a formas de proteção social articuladas ao mundo
privado, a esfera primária das relações.
Historicamente, a análise dos sistemas de proteção social que tiveram maior
destaque foram aquelas que se voltaram para as sociedades capitalistas européias, a
partir de meados do século XX – que ocasionou a criação dos sistemas de seguridade
social da atualidade – cujo traço marcante é a presença do Estado na implantação e
gestão desses sistemas. Contudo, acreditamos que ações de proteção social davam sinal
de vida muito antes desse período; ampliando o conceito, dessa forma.
Antes do processo de institucionalização da proteção social, sempre existiu, nas
diversas sociedades (primitivas, feudais e modernas), algum tipo de proteção social
entre os homens e mulheres, especialmente na família – e nela o papel da mulher é
essencial – e na comunidade. Sendo ela um dos principais mecanismos de sobrevivência
de muitas pessoas: doentes, inválidos, famílias com filhos pequenos, idosos, viúvas,
desempregados e pobres6. Costa aponta que o sistema de proteção social é reconhecido
como
“uma regularidade histórica de longa duração, de diferentes formações
sociais, tempos e lugares diversos... Tal orientação permite verificar
que diferentes grupos humanos, dentro de suas especificidades
culturais, manifestem, nos modos os mais variados de vida,
mecanismos de defesa grupal de seus membros, diante da ameaça ou
de perda eventual ou permanente de sua autonomia quanto à
sobrevivência” (1995, p. 99).
Este tipo de definição abre espaço para pensar a proteção social não apenas
enquanto constituição dos sistemas protecionistas, mas também como uma regularidade
histórica de longa duração que dá visibilidade às práticas de proteção existentes no
âmbito das famílias e grupos de convívio, na esfera privada. Acerca desta definição,
Mesquita et all (2010) reforçam que é justamente este entendimento que abre espaço
para pensarmos no papel das famílias – e das mulheres – na construção de estratégias de
sobrevivência. Com isso, estamos falando da obrigatoriedade de se pensar nas ações do
mundo privado enquanto esfera de garantia dos mínimos básicos de sobrevivência.
Desta forma, problematizar as novas expressões da “questão social” e o papel
das famílias, particularmente das famílias pobres, na gestão e superação da crise de
(mal) bem-estar social que se vive hoje no Brasil torna-se basilar para o Serviço Social,
6
Acerca da definição de proteção social ver as obras de Di Giovanni (2008), Castel (1998) e Costa
(2002).
já que se trata de um profissional que contribui para a ampliação e a consolidação dos
direitos cidadãos em sua plenitude.
Políticas sociais, famílias brasileiras e o Serviço Social
Dentre as diversas literaturas sobre política social no Serviço Social, verificamos
que diante das crises nos países capitalistas avançados e em desenvolvimento, a família
sempre esteve presente como instância de gestão e superação da crise de (mal) bemestar social em que se vive. Segundo Pereira-Pereira (2004), “desde a crise econômica
mundial dos anos 1970, a família vem sendo redescoberta como um importante agente
privado de proteção social” (p.26). Fenômeno também existente mesmo nos países em
que o Estado de Bem Estar Social esteva a pleno vigor e possibilitou a saída dessas
mulheres para a esfera pública, para inserção no mercado de trabalho e universidades7.
Segundo Mioto, “nesses países, a família, especialmente por meio do trabalho não
pago da mulher, constitui-se em um dos pilares estruturantes do bem-estar social”
(2010, p.04).
Além disso, pensando a realidade brasileira, vemos que a precariedade dos
mecanismos de proteção social e um cotidiano de gênero fazem com que essas famílias
sejam as que mais acionem aos benefícios dos programas de transferência de renda
(como o Programa Bolsa Família) e também estratégias baseadas na construção de redes
sociais (DESSEN e BRAZ, 2000; FONSECA, 2000; COSTA, 2002; FREITAS, 2002).
No contexto atual, a discussão acerca da matricialidade sociofamiliar nas
políticas sociais dá visibilidade às famílias e o seu papel enquanto promotora da
proteção e do bem estar social. Todavia, sabemos que trabalhar com a família é um
desafio, por se tratar de um tema extremamente complexo e que se transforma com o
passar do tempo e da história; além de ser um tema muito próximo e que nos traz
dificuldades metodológicas8. Nas palavras de Mioto (2010), a família
7
Ver obra de Nadine Lefaucher (1991) e Gisela Bock (1991).
“Essa intimidade do conceito de família pode causar confusão entre a família com a qual trabalhamos e
nossos próprios modelos de relação familiar. Acercamo-nos da família do outro a partir de nossas
próprias referências, de nossa história singular. O resultado disso é que tendemos a trabalhar com as
famílias desconhecendo as diferenças ou, pior, em muitas situações transformamos essas diferenças em
desigualdade ou incompletude” (FALLER-VITALE; 2002, p. 46).
8
“se constrói e se reconstrói histórica e cotidianamente por meio das
relações e negociações que se estabelecem entre seus membros, entre
seus membros e outras esferas da sociedade e entre ela e outras esferas
da sociedade, tais como Estado, trabalho e mercado. Reconhece-se
que, além de sua capacidade de produção de subjetividades, ela
também é uma unidade de cuidado e de redistribuição interna de
recursos. Tem um papel importante na estruturação da sociedade em
seus aspectos sociais, políticos e econômicos e, portanto, não é apenas
uma construção privada, mas também pública” (p.3)
E, falar em família é tocar num tema latente da esfera privada, no papel que as
mulheres desempenham dentro dela; sendo ela um dos principais mecanismos de
sobrevivência e proteção de muitas pessoas9 (doentes, inválidos, famílias com filhos
pequenos, idosos, viúvas, desempregados e pobres). E como sabemos, por séculos, a
história das mulheres foi naturalizada na família por causa de um cotidiano de gênero.
Só recentemente, é que a história do cotidiano ganhou espaço de discussão e deu
visibilidade a história da esfera privada e dos indivíduos e, nesse processo, à história das
mulheres e a dimensão de gênero10.
A função social da família depende em grande parte do lugar que ocupa na
organização social e das propostas econômicas, políticas e sociais de cada país. No
Brasil, a família sempre ocupou um lugar de destaque, seja como de socializadora de
seus membros, aportes psicológico, afetivos e emocionais, onde são absorvidos os
valores éticos, humanitários, solidários e culturais, suporte material e financeiro,
proteção diante das situações de violência e vulnerabilidade social, saúde.
Durante os anos finais do século XIX, a sociedade brasileira passou por grandes
transformações: a consolidação do capitalismo; o surgimento dos centros urbanos que
ofereciam novas alternativas de convivência social; a ascensão da sociedade burguesa e
o surgimento de uma nova mentalidade – a da classe burguesa – reorganizadora das
9
Embora não possamos nos esquecer que a família, o espaço privado, pode ser também a arena de
conflitos e violências, sendo um espaço de disputas de poder.
10
Para Joan Scott, a categoria analítica gênero surge “como substituto de ‘mulheres’, é igualmente
utilizado para sugerir que a informação a respeito das mulheres é necessariamente informação sobre os
homens, que implica no estudo do outro. Este uso insiste na idéia de que o mundo das mulheres faz parte
do mundo dos homens, que ele é criado dentro e por esse mundo. Esse uso rejeita a validade interpretativa
da idéia das esferas separadas e defende que estudar as mulheres de forma separada perpetua o mito de
que uma esfera, a experiência de um sexo, tem muito pouco ou nada a ver com o outro sexo. Ademais, o
gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita
explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para
várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força
muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as ‘construções sociais’ – a criação
inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se
referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero
é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (1990, p.4).
vivências familiares e domésticas; as modificações do espaço urbano e do estilo de vida;
e a efetivação de um novo modelo de família, a nuclear burguesa (D’INCAO, 1997).
Com isso, a nova sociedade deixou claros os limites de convívio e as distâncias sociais
entre a nova classe – a burguesa – e o povo.
A partir do Estado Novo, o governo assumiu uma feição mais “humanizada” e
“preocupada” com o povo, principalmente com o trabalhador e sua família. É
importante enfatizar que os anos quarenta foram anos de grande movimentação na área
social. O final do Primeiro Governo Vargas vê emergir um grande número de
instituições nesta área (o SENAI, o SESI e a LBA são grandes exemplos). A criação da
LBA, em 1942, demarca uma redefinição no Estado brasileiro com a incorporação da
pobreza e da miséria ao discurso oficial (FREITAS, 1994). Esse é o “mote” que gera a
necessidade de profissionais preparados para atuar na área social. Assim, a família é
ressignificada e torna-se a base e alvo principal das ações do Estado, na tentativa de
modificação de seus hábitos e costumes. Assim, o Estado criou medidas que interviesse
nas condutas, normas e valores das classes populares, as quais eram vistas como uma
patologia social. Conforme Backx,
“colocava-se no âmbito de ação dos reformadores sociais da
República Velha, que tinham em mira a construção de uma nação para
o futuro, o padrão de ‘família higiênica’ em oposição a ‘famílias
populares’ que eram postergadas ao âmbito da patologia social, à
medida que o procedimento adotado era o de reconhecer como
civilizado os padrões de comportamento das classes dominantes. A
conduta manifestada pelas classes populares era vista, por esses
atores, como anômica, patológica, promíscua e imoral, contribuindo
para a desagregação da família e para a impossibilidade do progresso
do país” (1994, p.56)
As classes populares eram tratadas como “promíscua e imoral” e que contribuía
para a desagregação familiar e atraso do país. Dentro desta lógica, algumas medidas
foram fundamentais como as políticas criadas pelo Estado e os discursos dos médicos
higiênicos e da religião. Eles contribuíram para a nova face da vida social urbana
brasileira e construção de novos conceitos de vida familiar e higiene em geral. Nas
expressões de Backx,
“Tentava-se impor o modelo de família estável como sendo o modelo
normativo da moralidade e condição de civilidade. Para impor-se
como única e exclusiva forma legítima e reconhecida de organização
da vida em sociedade, exigiu-se o sufocamento e a repressão das
formas anteriores de sociabilidade e de organização da vida familiar
por parte das camadas populares urbanas” (1994, p.56 – grifos nosso).
Nesse quadro, normatizar a família e ressocializá-la seria de suma importância
ao país, pois ela era reconhecida como uma “célula política básica”. Aqui não só os
problemas que se referiam ao trabalho interessavam ao Estado, mas tudo o que fazia
menção ao cotidiano do trabalhador era uma questão de interesse nacional. E, é nessa
ocasião que o serviço social é chamado para intervir junto ao trabalhador e sua família
com ações que reafirmavam um padrão extremamente funcional ao sistema capitalista e
ao sistema político, econômico e social da época. Isso acontecia “ao defender um
modelo de família no qual ao homem competia desempenhar o papel de provedor e à
mulher a função de ‘alma do lar’” (BACKX; 1994, p.66).
Mas é importante destacar também a necessidade de ver esse momento de forma
dialética e perceber o modo como, contraditoriamente, essa inserção no mundo público
por parte das mulheres traz alterações para seu cotidiano de gênero. Trata-se de uma
história de mulheres que, com todas as limitações (de gênero, de classe, raça)
conseguiram criar uma profissão. Destacamos esse comentário por entendermos que
muitas vezes estas mulheres são olhadas com o olhar do presente e condenadas por um
conservadorismo que, na verdade, não as caracterizou necessariamente11.
Nos dias atuais, a família, parafraseando Pereira-Pereira (2004), retorna a cena
política como lócus privilegiado de promoção dos programas e políticas sociais na
sociedade capitalista neoliberal. A matricialidade sociofamiliar está presente nas ações,
programas e projetos das políticas sociais governamentais. Com isso, tem-se enfatizado
o papel da família enquanto promotora do bem estar e proteção social de seus membros.
A família volta à cena política, enquanto estratégia de intervenção; e, nela as mulheres
continuam sendo as maiores responsáveis pelo cuidado dos filhos e afazeres
domésticos.
A grande questão dessa centralidade na família é que uma gama de
responsabilidade é deixada a cargo das famílias sem que seja levado em consideração e
debatido a viabilidade das propostas e os novos arranjos familiares no contexto
contemporâneo. Falar em família implica entender o que ela significa e representa na
sociedade brasileira e, com isso, atentar para os padrões culturais onde essas famílias se
11
FREITAS, Rita de Cássia Santos et all. "Construindo uma profissão: o caso da Escola de Serviço Social
da Universidade Federal Fluminense", Revista Serviço Social e Sociedade, n. 97, São Paulo: Cortez,
2009.
inserem. Freitas coloca que definir famílias significa pensar uma realidade em constante
transformação e que
“qualquer análise acerca da família tem de se ater às condições que
essas famílias vivem. Não existe a Mãe, assim como não existe a
Mulher ou a Família. A construção desses papéis é rasgada a todo
instante pelo tecido social em que vivemos. Pensar em família sem ater
para as diferenças de classe implica conhecer bem pouco desse objeto
de estudo” (2002, p. 81).
Ou seja, devem-se conhecer os modelos de famílias existentes na sociedade
brasileira sob os diversos prismas disciplinares. Estudos sobre a história da família
apresentam estruturas e organizações familiares diferentes, a saber: “famílias
matrilineares”; “famílias patrilineares”; “famílias poligâmicas”; “família patriarcal
rural”; “família dos escravos”; “família dos homens livres”; “famílias extensas”;
“família rural”; “família nuclear burguesa”; “família conjugal” (ALMEIDA 1987;
NEDER 1988; COSTA 1989; NUNES 1991). Ainda convém frisar que essas tipologias
não se esgotam aqui, sendo difícil pensar a família sem atentar para as questões das
redes sociais no Brasil.
Conforme Fougeyroullas-Schewebel (1994), a família brasileira, após os anos
60, foi marcada por grandes transformações, ocasionando na diversificação de suas
formas e na geração de modelos de “famílias”12. Essas transformações das práticas
familiares têm relação direta com o aumento da atividade feminina no mercado de
trabalho e de sua maior autonomia e inserção na sociedade.
Logo, faz-se necessário que se conheçam e levem em consideração as
especificidades desses grupos de estudo; e que não sejam estabelecidas generalizações,
com a criação de um modelo padrão de família. Pelo contrário, é necessário entendê-las
de forma plural, numa multiplicidade de tipos étnico-cultural, que se baseiam em
construções que acontecem de forma diferenciada entre os indivíduos de um mesmo
grupo.
Em vista do que foi mencionado anteriormente, e para fins desse trabalho,
entendemos famílias “enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de
vida, que possuem um caminhar conjunto e a vivência de relações íntimas, um processo
que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade”
12
Famílias monoparentais, famílias conviventes, famílias entre pares homossexuais, entre outros
modelos.
(FREITAS; 2000, p.8). Diante disso, ao tratar da família contemporânea é essencial
refletir sobre questões complexas e realidades que estão em constante transformação.
É importante salientar, que historicamente, o Estado brasileiro tem se apropriado
e atribuído às famílias co-responsabilidades pelo desenvolvimento dos cidadãos. Por
mais que essa relação não fique explícita, isso revela a importância da família – esfera
privada de proteção – como estratégia de proteção social, ao longo da história do país.
Em especial, no momento atual em que o debate circula em torno do binômio político
“universal” versos “focal”. Segundo Pereira-Pereira,
“No Brasil, país onde se costuma dizer que nunca existiu um Estado
de Bem-Estar, por comparação a um suposto esquema coerente,
consistente e generoso de bem-estar primeiro-mundista, a afirmação
de que não há política de família ‘cai como uma luva’. Mas tal
afirmação só teria cabimento se, de fato, houvesse uma verdadeira
política de família nos países desenvolvidos. Como tal política está
impregnada de particularidades culturais, é lícito falar de uma ‘política
de família à brasileira’ e identificar os seus traços principais – até
porque a não-ação governamental não deixa de ser uma atitude
política” (2004, p.28).
A família é o ponto de partida das reflexões e intervenções sociais entre
pesquisadores e gestores públicos. Quadro esse que ganha fôlego, na década de 1990,
quando os estados de bem-estar social, especialmente nos países de capitalismo
periférico, apontam para dificuldades presentes em sua manutenção diante das atuais
crises do capitalismo na atualidade. Retornando à cena a família como ator coresponsável pelo desenvolvimento dos cidadãos. Ou seja, a família volta ao cenário
político de discussão, debate e intervenção e torna-se o centro das políticas de proteção
social, especialmente das políticas sociais. Para Brant de Carvalho,
“A família está no centro das políticas de proteção social. Há 20 anos,
apostávamos no chamado modelo de Bem-Estar Social, capaz de
atender a todas as demandas de proteção. Hoje, nas sociedades em que
vivemos, um conjunto de fatores derrubou nossas expectativas e vem
exigir soluções compulsoriamente partilhadas entre Estado e
sociedade” (2003, p.269).
De tal modo, de acordo com a autora, a família e as políticas públicas
apresentam funções correspondentes e essenciais ao desenvolvimento e proteção social
dos indivíduos. Fatores sociais, políticos, culturais e econômicos contribuíram para isso
e tem levado a situação de vulnerabilidade social segmentos representativo da
sociedade. Percebemos, do mesmo modo, que a família e suas novas configurações,
mesmo diante das situações de vulnerabilidade social, continuam a ser o principal eixo
de inclusão e proteção social de muitos.
E, nesse quadro de transformações, a década de 1990 é emblemática e marca um
contexto de “Brasil em contra-reforma”13, que obstaculiza e reduz muitos dos direitos e
políticas conquistados na Constituição Federal de 1988. Essa contra-reforma que atinge,
principalmente, as políticas sociais e suprimem os direitos sociais adquiridos.
Conforme Yasbek (2001), esse processo se traduz numa refilantropização das políticas
sociais, que implica numa precipitada volta ao passado sem esgotar as possibilidades da
política pública, na sua formatação constitucional. Transferindo as responsabilidades
para a sociedade sob a justificativa do voluntariado da solidariedade e da cooperação e
trazendo outros agentes – como as famílias e as Organizações Não Governamentais –
como alternativas eficientes e eficazes na produção do bem-estar social. E, é com essas
novas expressões da “questão social” e configurações estratégicas familiares que os
assistentes sociais tem que lidar.
Considerações Finais: A construção de redes sociais como estratégias de
enfrentamento da “questão social”
Diante do que foi exposto, verificamos que a família tem papel importante diante
das novas expressões da “questão social” no contexto atual. A família e políticas sociais
de proteção social apresentam funções correspondentes e essenciais frente a situação de
vulnerabilidade social segmentos representativo da sociedade. Mas, além da sua
importância nas políticas não podemos esquecer das estratégias que são criadas, como
as redes sociais.
Com sinalizamos antes, não se pode pensar na questão das políticas sociais de
proteção social e família sem atentar para as construções das redes sociais no Brasil. As
redes sociais são constitutivas dos processos históricos e culturais do país e perpassa
todas as classes sociais, particularmente as famílias empobrecidas, se constituindo
enquanto estratégias fundamentais de proteção e sobrevivência.
13
Termo usado por Elaine Behring (2008).
Em texto clássico Elizabeth Bott (1976) estudava a realidade de camadas médias
norte-americanas e definia por redes sociais a constituição de redes de relações
construídas socialmente em diversos graus de conexidade, estabelecidas entre
indivíduos ou grupos situados dentro ou fora da família para apoios tanto instrumental
(ajuda financeira, divisão de responsabilidades) quanto emocional (afeição, aprovação,
simpatia e preocupação com o outro).
Também no Brasil, há séculos as mulheres, de classe média e popular, em
proporções diferenciadas, criam estratégias, “tecidas por trás dos panos”, que variam de
contexto e independem do poder do Estado. Podem ser citadas a “maternidade
transferida” (COSTA, 2002), as “redes de solidariedade e reciprocidade” (FREITAS,
2002), a “circulação de crianças” (FONSECA, 2002).
Pensando o caso brasileiro, Sueli Costa (2002) coloca que essas redes são de
longa duração e, de certa forma, tardaram a construção de padrões de proteção social
que garantisse igualdade de direitos sociais entre homens e mulheres. Para que as
mulheres saíssem para a esfera pública, seja para trabalhar ou estudar, tiveram que
construir redes sociais, de troca e partilha, com outras mulheres.
Desta forma, houve a conformação do que esta autora chama de “maternidade
transferida” que é a forma em que as mulheres atribuírem-se mútuas responsabilidades
e delegam as tarefas administrativas de suas casas a outras mulheres. Assim, essas
mulheres podem reprogramar o tempo que gastavam com o cuidado com a prole e
afazeres domésticos e sair para o espaço público em busca da realização pessoal e
profissional (COSTA; 2002). Isso impacta diretamente a configuração das políticas
sociais.
Rita de Cássia Freitas (2002), ao analisar o caso das mães Acari, aponta para o
processo de construção de “redes de solidariedade e reciprocidade” entre pessoas que
apresentam questões em comum. No episódio Acari, a experiência das redes sociais se
deu diante da dor de muitas mulheres que se uniram na construção de uma identidade e
objetivo comum, a perda de seus filhos que foram chacinados na década de 1990. Para a
autora, “redes de solidariedade e reciprocidade” revelam a
“formação de uma agenda de valores comuns – valores que
determinam um padrão de sociabilidade e de costumes que tem como
substrato idéias e referências acerca da solidariedade e dos direitos
humanos, ainda que tais valores não sejam muitas vezes verbalizados
com toda força argumentativa por todas elas. Uma existência (de
longa duração) levam-nas a ver com extrema naturalidade a
socialização dessas formas de redes de proteção social aos seus”
(p.93).
A noção de solidariedade é uma representação social arquitetada por essas
mulheres, que “em nome dos filhos” conquistam a esfera pública para dar visibilidade a
sua causa, como também politizar a sua luta como forma de manifestação de sua dor.
Do mesmo modo, Claudia Fonseca (2002) coloca que a compreensão da vida
familiar no Brasil contemporâneo exige considerar a existência de modelos para além da
norma hegemônica, do modelo de família nuclear burguesa, como composições
alternativas que se aparecem nos grupos populares, como é o caso da “circulação de
crianças”.
A circulação de crianças é um conceito analítico que denomina a permuta e/ou
partilha de cuidados e atenção de uma criança entre um adulto e outro. Revelando,
assim, que existem “outras normalidades” que sucedem entre as práticas familiares na
sociedade complexa atual. Esse é um exemplo típico de praticas realizadas por toda
parte do mundo, sendo adaptada a cada realidade sócio-cultural.
Em relação a essa afirmação Freitas coloca que a “coletivização seja na troca de
favores ou nos cuidados com as crianças (bem como os velhos ou doentes) faz parte das
estratégias de sobrevivência elaboradas” pela população pobre (2002, p.94). Pois, essas
famílias são marcadas por grande instabilidade e vulnerabilidade social que podem ser
ocasionadas por situações de separação, morte, dificuldades econômicas; situação essa
que pode ser agravada pela ausência ou precariedade de instituições públicas que
promovam a proteção social do grupo em questão, a partir da criação de mecanismos de
proteção social.
Verificamos, assim, que as desigualdades sócio-políticas e econômicas em que
vivem muitas famílias restringem o acesso a uma cidadania formal plena. Sendo
constituída um outro tipo de cidadania que rege suas relações, que se dá na esfera do
informal, fora do alcance do poder público. E, que se torna possível nas relações de
proximidade familiar. Pois é esta o principal lócus de sociabilidade e sobrevivência para
muitas pessoas. Segundo Brant de Carvalho (2000) é na família que as camadas
populares encontram sua condição de “resistência” e “sobrevivência”. E nela a mulher
se torna basilar para a produção do cuidado e promoção de direitos. Muitas vezes, esta
mulher se torna a única responsável pelo lar e pelo cuidado da prole, vivendo em
condições de monoparentalidade.
As construções de redes sociais, como aspectos culturais e históricos, fazem
parte da realidade brasileira. Além disso, evidenciam que a hegemonia do modelo de
família nuclear moderno não se exerce da mesma forma em todas as camadas sociais e
que outras alternativas familiares insurgem e devem ser reconhecidas e pensadas como
estratégias de sobrevivência importante entre as camadas pobres da sociedade brasileira.
É importante ressaltar que é na esfera do “informal” – na família, fora do alcance
do poder público – que elas passaram a ter acesso a possibilidades de garantia do direito
à vida e ao direito de ir e vir. Segundo Brant de Carvalho (2000), é na família que as
camadas populares encontram sua condição de “resistência” e “sobrevivência”. Desta
forma, estas mulheres vivem uma cidadania que difere da cidadania formal. Segundo
Manzini-Covre (2000) será uma “nova cidadania” baseada na família enquanto
produtora de proteção social, e nesta, a presença feminina é marcante para o acesso a
algum tipo de direito.
Por fim, acreditamos que os assistentes sociais – profissionais qualificados e que
tem como pressuposto o compromisso ético de responder com competência às novas
exigências das questões surgidas em nosso trabalho cotidiano – devem problematizar
tais expressões das questões sociais visando uma intervenção qualificada e
comprometida com as camadas menos favorecidas de nossa sociedade. Não podemos
esquecer que somos profissionais que “atuam nas manifestações mais contundentes da
‘questão social’, tal como se expressam na vida dos indivíduos sociais de distintos
segmentos das classes subalternas em suas relações com o bloco do poder e nas
iniciativas coletivas pela conquista, efetivação e ampliação dos direitos de cidadania e
nas correspondentes políticas públicas” (IAMAMOTO, 2009, p.19).
Tomando como referência nosso Código de Ética e o projeto ético político
construído pela categoria, entendemos que em relação a essa temática deve ser um de
dever ético para nós a superação das contradições e a constituição de novos valores.
Para com isso, deixar de banalizar a vida das classes subalternas e não culpabilizá-las
pelos infortúnios cotidianos gerados pela situação de pobreza e miséria em que vivem,
tão característicos do sistema capitalista. Tal postura possibilita evitar deixar a cargo do
privado, da esfera doméstica, da família – principalmente das mulheres – a
responsabilidade e a promoção de cuidados e bem-estar de seus membros, bem como
teremos condições de buscar a efetivação da universalidade dos direitos por meio do
Estado.
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