epístola dedicatória
aos negros escravos
Meus amigos,
Ainda que eu não seja da mesma cor que vós, sempre vos
considerei meus irmãos. A natureza formou­‑vos para ter‑
des o mesmo espírito, a mesma razão, as mesmas virtudes
que os Brancos. Refiro­‑me apenas aos da Europa, pois no
que toca aos brancos das colónias não vos farei o ultraje
de os comparar a vós, sei muito bem quantas vezes a vossa
fidelidade, a vossa probidade, a vossa coragem fizeram os
vossos senhores enrubescer. Se partíssemos em busca de
um homem nas ilhas americanas, não seria entre as gen‑
tes de carne branca que o acharíamos.
O vosso sufrágio não serve para arranjar lugares nas
colónias, o proteger­‑vos não permite obter pensões, não
tendes com que pagar o soldo aos advogados; não é, pois,
de espantar que os vossos senhores topem mais pessoas
que se desonram defendendo a causa deles do que vós
encontreis quem se honre defendendo a vossa. Países
há, até, onde quem quisesse escrever em vosso favor não
disporia de tal liberdade. Todos aqueles que enriquece‑
rem nas Ilhas à custa dos vossos trabalhos e dos vossos
sofrimentos têm, quando tornam, o direito de vos insul‑
tar em libelos caluniosos; mas não é de todo permitido
responder­‑lhes. É esta a ideia que os vossos senhores têm
da bondade do seu direito, é esta a consciência da sua
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humanidade a vosso respeito. Mas tal injustiça é apenas
mais uma razão para, num país livre, tomar a defesa da
liberdade dos homens. Sei que nunca conhecereis esta
obra, e a doçura de ser abençoado por vós ser­‑me­‑á recu‑
sada para sempre. Mas terei aquietado o meu coração
desfeito pelo espectáculo dos vossos males, revoltado
com a insolência absurda dos sofismas dos vossos tiranos.
Não usarei de eloquência, mas da razão, falarei não dos
interesses do comércio, mas das leis da justiça.
Vós, tiranos, censurar­‑me­‑eis por dizer somente coi‑
sas banais, e de ter tão­‑só ideias quiméricas; com efeito,
nada é mais banal que as máximas da humanidade e da
justiça, nada é mais quimérico que propor aos homens
que com elas conformem a sua conduta.
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i
da injustiça da escravidão dos negros,
considerada em relação aos seus senhores
Reduzir um homem à escravidão, comprá­‑lo, vendê­‑lo,
retê­‑lo na servidão, tudo isso são verdadeiros crimes,
e crimes piores que o roubo. Com efeito, esbulha­‑se o
escravo não somente de qualquer propriedade mobiliária
ou fundiária, mas da faculdade de a adquirir, da proprie‑
dade do seu tempo, das suas forças, de tudo o que a natu‑
reza lhe deu para conservar a sua vida ou prover às suas
necessidades. A este mal junta­‑se o de retirar ao escravo o
direito de dispor da sua pessoa.
Ou não há moral de todo, ou é necessário convir neste
princípio. Bem pode a opinião não estigmatizar este tipo
de crime, bem pode a lei do país tolerá­‑lo, nem a opinião
nem a lei podem alterar a natureza das acções: e mesmo
que esta opinião fosse a de todos os homens e o género
humano reunido tivesse, a uma só voz, aprovado esta lei,
tal crime permaneceria sempre um crime.
No que se segue, compararemos frequentemente com
o roubo a acção de reduzir à escravidão. Estes dois cri‑
mes, embora o último seja muito menos grave, têm gran‑
des relações entre eles; e como um sempre foi o crime do
mais forte, e o roubo o do mais fraco, encontramos todas
as questões sobre o roubo resolvidas de antemão, e de
acordo com os bons princípios, por todos os moralistas,
enquanto o outro crime nem sequer tem o seu nome nos
seus livros. É necessário exceptuar, contudo, o roubo à
mão armada, que se chama conquista, e outras espécies
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de roubos em que é igualmente o mais forte a esbulhar
o mais fraco. Os moralistas também fazem vista grossa
a estes crimes, bem como o de reduzir seres humanos à
escravidão.
ii
razões alegadas para desculpar
a escravidão dos negros
Diz­‑se, para desculpar a escravidão dos negros compra‑
dos em África, que estes infelizes são ou criminosos con‑
denados ao derradeiro suplício, ou prisioneiros de guerra
que seriam executados, não fossem eles comprados pelos
Europeus.
De acordo com este raciocínio, alguns escritores
apresentam­‑nos o tráfico dos Negros como sendo quase
um acto de humanidade. Mas observaremos:
1. Que este facto não está provado e nem sequer é vero‑
símil. O quê? Antes de os Europeus comprarem os Negros,
os Africanos degolavam todos os prisioneiros! Matavam
não somente as mulheres casadas, como era, diz­‑se,
outrora uso entre uma horda de ladrões orientais, mas
até as raparigas não casadas, coisa nunca antes relatada
acerca de nenhum povo. O quê? Não fôssemos nós buscar
negros a África, e os Africanos matariam os escravos que
destinam agora a ser vendidos! Cada um dos dois parti‑
dos preferiria espancar até à morte os seus prisioneiros
a trocá­‑los! Para acreditar em factos inverosímeis são
necessários testemunhos idóneos, e aqui temos apenas
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os das pessoas empregadas no comércio dos Negros.
Nunca tive a ocasião de os frequentar, mas havia, entre os
Romanos, homens que se consagravam ao mesmo comér‑
cio, e o seu nome é ainda uma ofensa1.
2. Supondo que se salva a vida do negro que se com‑
pra, não seria menos criminoso comprá­‑lo, se fosse para
revendê­‑lo ou reduzi­‑lo à escravidão. Seria uma acção igual
à de um homem que, depois de ter salvo um infeliz perse‑
guido por assassinos, o roubasse. Ou então, se supusermos
que os Europeus levaram os Africanos a deixar de matar
os prisioneiros, seria a acção de um homem que tivesse
conseguido dissuadir salteadores de assassinarem os tran‑
seuntes, e os tivesse persuadido a satisfazer­em‑se com
roubá­‑los com ele. Dir­‑se­‑á, numa ou noutra destas supo‑
sições, que este homem não é um ladrão? Um homem que,
para salvar outro da morte, lhe desse do seu necessário,
estaria sem dúvida no direito de exigir uma compensação;
poderia adquirir um direito sobre os bens e até sobre o
trabalho de quem salvou, descontando, contudo, o que é
necessário à subsistência do obrigado: mas não poderia
sem injustiça reduzi­‑lo à escravidão. Podem adquirir­‑se
direitos sobre a propriedade futura de outro homem, mas
nunca sobre a sua pessoa. Um homem pode ter o direito
1 Leno começou por significar apenas mercador de escravos, mas como
estes mercadores vendiam belas escravas aos voluptuosos de Roma, a
designação revestiu­‑se de outro significado. Ora aqui está uma conse‑
quência necessária do ofício de mercador de escravos: aliás, mesmo
nos países suficientemente bárbaros para que tal profissão não fosse
considerada criminosa, nunca ela deixou de ser considerada infame.
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de forçar outro homem a trabalhar para ele, mas não o de
o forçar a obedecer­‑lhe.
3. A desculpa alegada é tanto menos legítima, quanto
é, pelo contrário, o infame comércio dos bandidos da
Europa que faz nascer entre os Africanos guerras quase
contínuas, cujo único motivo é o desejo de fazer pri‑
sioneiros para os vender. Frequentemente, os próprios
Europeus fomentam estas guerras mediante dinheiro
ou intrigas, de modo que são culpados não somente do
crime de reduzir homens à escravidão, mas ainda de
todos os assassínios cometidos em África para preparar
este crime. Têm a arte pérfida de excitar a cupidez e as
paixões dos Africanos, de levar o pai a entregar os filhos,
o irmão a trair o irmão, o príncipe a vender os súbditos.
Deram a este infeliz povo o gosto destrutivo dos licores
fortes. Comunicaram­‑lhe este veneno, que, escondido
nas florestas da América, se tornou, graças à activa avi‑
dez dos Europeus, um dos flagelos do globo; e ainda se
atrevem a falar de humanidade!
Ainda que a desculpa que alegámos umas linhas acima
desculpasse o primeiro comprador, não poderia descul‑
par nem o segundo comprador nem o colono que fica com
o negro, porque não têm agora o motivo de subtrair à
morte o escravo que compram. São, em relação ao crime
de reduzir à escravidão, o que é, em relação a um roubo,
aquele que divide o saque com o ladrão, ou antes, o que
encarrega outrem de um roubo, e que compartilha com
ele o produto. A lei pode ter motivos para tratar diferen‑
ciadamente o ladrão e o seu cúmplice, ou o seu instigador;
mas, em moral, o delito é o mesmo.
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