1 REFORMAS ESCOLANOVISTAS NA EDUCAÇÃO MINEIRA: FORMANDO CIDADÃOS Rita de Cássia de Souza Gephe/UFMG – FE/USP O presente trabalho apresenta alguns resultados obtidos durante a realização da pesquisa realizada no Mestrado: “Sujeitos da educação e práticas disciplinares: uma leitura das reformas educacionais mineiras a partir da Revista do Ensino (1925-1930)” na qual buscamos investigar as propostas disciplinares divulgadas entre os professores do Estado de Minas Gerais. Tendo por objetivo compreender de que forma novas concepções disciplinares foram introduzidas a partir das Reformas do ensino no Estado, optamos por investigar um dos canais mais eficientes de comunicação da Diretoria de Instrução Pública: a Revista do Ensino. O impresso pedagógico vem sendo utilizado como uma fonte de grande importância para a compreensão dos debates acerca da educação, revelando especificidades nem sempre possíveis de ser encontradas nos documentos oficiais. Tendo por objetivo pesquisar a questão da disciplina escolar, optamos por analisar as recomendações feitas pelos responsáveis pelo ensino público mineiro aos professores, não somente nos documentos, mas também através de um veículo de informação do governo direcionado aos docentes do ensino público. Como fontes de investigação foram utilizadas as legislações correspondentes às Reformas de 1925 e de 19271, principalmente no que se referiam ao ensino primário e à disciplina escolar e a Revista que tinha um papel crucial na divulgação das Reformas entre os professores mineiros. A escolha desse período foi motivada pela criação da Revista, ocorrida em 1925, a partir de uma reforma na educação mineira e o encerramento do período de estudo, 1930, coincide com a saída de Francisco Campos da Secretaria do Interior de Minas Gerais, após a realização de uma das mais importantes reformas no ensino primário e normal no Estado. O período dos seis anos iniciais da publicação nos permitiu não somente uma análise das duas reformas, comparando-as com relação aos aspectos relativos à disciplina, mas também a investigação de um momento em que se buscava a introdução de um modelo “moderno” de se fazer escola. 1 Foram consultadas algumas legislações de 1929 e 1930 que incluímos nas análises da Reforma de 1927, já que foram realizadas por Francisco Campos. 2 No período analisado foram publicadas 52 edições da Revista do Ensino2. Durante a consulta a essas edições, selecionamos 407 artigos que se referiam direta ou indiretamente ao tema da disciplina. A partir dessas fontes e com o cruzamento dos textos referentes às reformas no Estado, pudemos analisar como a Escola Nova chegava a Minas Gerais e de que forma eram divulgados os novos conceitos de educação e disciplina entre os professores. Entre as reformas, era comum a defesa da expansão da escola primária para todos os segmentos sociais – principalmente direcionada aos menos favorecidos. Esse fato refletia uma discussão mais ampla que já existia em todo o país desde o final do século XIX, que dava à educação escolar uma importância crucial na formação do povo brasileiro. A educação seria capaz de transformar a massa de analfabetos em povo, incutindo-lhes sentimentos de civismo e patriotismo, extinguindo os males causados pela ignorância, formando-lhes o caráter de povo ordeiro e trabalhador. Somente dessa forma, o Brasil poderia transformar-se numa nação moderna e civilizada. Em todo o país, diversos intelectuais debatiam o assunto considerando as oligarquias, juntamente com o analfabetismo, os entraves que impediam a marcha para o progresso do país. A modernização deste estaria condicionada à educação do povo, e esta deveria ser fornecida preferencialmente pela escola3. A educação escolar, a ser fornecida pelos organismos públicos, passava a ser a grande e única possibilidade de civilizar a multidão, colocando o país na corrida pelo progresso. As reformas educacionais realizadas na década de vinte estavam imbuídas desse espírito disciplinador das massas ignorantes e irracionais que compunham a nação brasileira. Ela prepararia os cidadãos brasileiros para o futuro. Segundo Casasanta (1983), inspirados nas reflexões do fílósofo americano John Dewey, Francisco Campos considerava a educação um importante instrumento capaz de democratizar a sociedade, minimizando os conflitos e instaurando uma nova ordem social, transformando os indivíduos em cidadãos. Para o Secretário, cidadão seria o indivíduo capaz de exercer sua liberdade de maneira racional. Francisco Campos explicitava, dessa forma, a função da escola na exposição de motivos do Regulamento do Ensino Primário em Minas Gerais: 2 A Revista continuou existindo até a década de 70. Em janeiro de 1971, o número 239 da Revista encerrou a publicação deste periódico. Os anos de 1929 a 1939 constituíram-se nos de edição mais regular. Entre outras interrupções, a maior delas se verificou entre 1941 a 1946 quando não houve sequer uma edição publicada. 3 Vários estudiosos têm discutido a função disciplinadora da educação escolar nesse período do país, como NAGLE, 1974; MONARCHA, 1989; HERSCHMANN; PEREIRA, 1994 e CARVALHO, 1989. 3 “Utilizando nas suas classes os processos da vida ordinaria, ella (a escola), para assim dizer, socialisa a mentalidade infantil, dotando-a do sentido dessa para ella nova dimensão humana, a sociabilidade, que só a educação desenvolve, amplia, ordena e disciplina, de maneira a inserir, sem choques e desharmonias, a creança na sociedade a que ella deve pertencer, pela assimilação da ordem intellectual e moral reconhecida, a um dado momento, como a ordem necessaria e natural á convivencia humana.” 4 (grifos nossos) A escola de que tratava não era aquela tal como estava implantada no Estado. Para atuar na sua grande missão de transformadora do social, esta deveria passar por uma ampla reforma que abrangesse não somente o Ensino Primário, mas também o Ensino Normal, para que este capacitasse os professores segundo os métodos educacionais mais modernos experimentados até então. Ramos Cesar5 argumentava que a Escola Primária favorecia o advento da democracia, regime de confiança e tranqüilidade “sob cuja paz laboriosa o homem aprende e acceita sem revoltas a idéa das subordinações ineluctaveis ás superioridades soberanas...”. A democracia, sob este ponto de vista, só poderia acontecer a partir do momento em que as escolas disciplinassem o povo, para aceitar as “diferenças de merecimento” existentes na sociedade. “A Sociedade desbasta definitivamente as arestas do caracter. Do seu contacto, sae o caracter do indivíduo como os seixos rolados do leito dos regatos: sem faltas nem demasias. A Sociedade não eguala todos os homens. Ella serve ao contrario d’isso para salientar-lhes a differença dos merecimentos.”6 A sociedade justa e igualitária era a que oferecia oportunidades iguais a todos. As diferenças sociais seriam dadas ou pelas diferenças naturais entre os indivíduos – menos ou mais dotados - ou pelo esforço empreendido por eles. A democracia, neste ponto de vista, não poderia existir sem educação: “Nunca nos devemos esquecer de que um regimen de liberdade só póde estabelecer-se dentro de um regimen de igualdade e de fraternidade, e que, para que os cidadãos sejam irmãos e eguaes, preciso é que o Estado offereça a todos elles, sem excepção nem privilegios, igualdade de opportunidades para o seu desenvolvimento.” 7 4 MINAS GERAIS. Decreto n. 7.970-A – 15 out. 1927. Aprova o Regulamento do Ensino Primário. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Vol III. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928, p.1124. 5 CESAR, Ramos. “Escola Nova”. Revista do Ensino, Belo Horizonte, n. 25, p. 4-7, jan.1928. 6 MINAS GERAIS. Decreto n. 8.094 – 22 dez. 1927. Aprova os Programas do Ensino Primário. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Vol III. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928, p. 1660. 7 “Educação Publica”. Revista do Ensino, Belo Horizonte, n. 47, p. 4-28, jul.1930. 4 As Reformas mineiras da década de vinte estavam imbuídas do espírito escolanovista, adaptados aos interesses e às contingências locais. Não havia entre elas uma ruptura, mas uma continuidade, marcada pela ampliação e aprofundamento realizados na reforma iniciada em 1927. Não se pode afirmar, a partir das fontes investigadas, que tenha havido uma verdadeira utilização, dentro das classes escolares, das idéias reformadoras divulgadas em Minas8. No entanto, são evidentes os investimentos do governo do Estado na divulgação de novos métodos e técnicas educacionais entre os funcionários do ensino, principalmente a partir da Reforma de 1927. Francisco Campos não escondia a fé na educação, nomeava a escola de “oficina de aprendizagem social” e “sementeira de esperanças da Patria”. Para ele, “onde quer que se encontrem a justiça e a liberdade, o progresso e a riqueza, ahi se encontrará a escola bem organizada, a instrucção educativa pratica como fundamento principal da sociedade.” 9 Nos Regulamentos do Ensino Primário era conferida uma significativa importância à questão disciplinar na escola, envolvendo alunos, funcionários e até mesmo os familiares dos alunos. Essa questão consistia na parte mais extensa dos referidos documentos. Os títulos relacionados à questão disciplinar possuíam 65 artigos no Regulamento de 1924, e 68 no de 1927, dedicados especificamente às infrações, penas disciplinares e processo disciplinar, demonstrando, pela extensão, que esta era uma questão central nas Reformas do Ensino Primário em Minas Gerais. Ainda no Regulamento de 1927, a Parte X, referente aos alunos, tratava ora de maneira direta, ora tangencial da questão disciplinar nos 5 capítulos, abordando a disciplina dentro e fora da escola, ass promoções e exames, os elogios e prêmios, e a caderneta escolar. A importância da disciplina escolar era inquestionável, sendo considerada a base para a construção de uma sociedade também disciplinada. Daí a necessidade de que ela fosse cuidadosamente implementada na escola, demarcando as proibições, racionalizando as punições de forma que, não apenas os alunos, mas todo o corpo de funcionários escolares estivesse ciente de suas responsabilidades, papéis e das conseqüências de suas ações. Ter conhecimento dos limites era essencial para que estes fossem respeitados. 8 Estamos, nesse momento, iniciando uma pesquisa de doutorado que busca investigar justamente as práticas disciplinares dos professores que passaram pelas Reformas e de que forma eles se apropriaram das propostas modernizadoras da escola em Minas. Essa pesquisa intitulada: Por uma história das punições escolares: Práticas e representações acerca da disciplina escolar e as influências da Psicologia na Escola Nova em Minas Gerais (1920-1950) está sendo realizada na Faculdade de Educação da USP sob a orientação da Profa. Maria Cecília C. Cortez de Souza. 5 A disciplinarização do povo brasileiro a ser feita pela escola, como era fartamente divulgado na década de vinte, expunha uma diferença entre a tarefa da escola de instruir e a de educar. Todos precisavam ser educados e receber um mínimo de conhecimentos. Um nível mais avançado de instrução, entretanto, devia ser reservado àqueles que tivessem condição de utilizá-la corretamente. Além disso, seria perda de tempo ensinar aos menos inteligentes. A maior instrução deveria ser oferecida, preferencialmente, aos mais capazes, o que fica bastante evidente no Regulamento do Ensino Primário de 1927: “Art. 195. A escola primária, sendo destinada não sómente á instrucção, como também á educação, deve procurar desenvolver nos alumnos o instituto social, offerecendo-lhes opportunidades de exercer os sentimentos de sociabilidade, responsabilidade e cooperação.”10 O art. 249 afirmava também: “O ensino primario tem por fim, não sómente a instrucção, mas, antes e sobretudo, a educação, comprehendendo-se como tal toda obra destinada a auxiliar o desenvolvimento physico, mental e moral das creanças, para o que deverá ser considerada a infancia não do ponto de vista do adulto, mas do ponto de vista dos motivos e interesses proprios della.”11 A instrução entendida como domínio de conhecimentos era, em alguns momentos, vista como perigosa para as classes sociais desfavorecidas podendo gerar desordem e revolta. A educação, pelo contrário, caracterizava-se pela cortesia, pela civilidade e contribuiria para impedir comportamentos revoltosos que colocassem em perigo a ordem social estabelecida. Esta diferenciação já posta nas considerações iniciais acerca da Reforma do Ensino por Francisco Campos era reiterada nas páginas da Revista. Disciplinar e civilizar o povo brasileiro, formando-o para o trabalho, incutindo-lhe valores do mundo moderno e capitalista - como o valor do trabalho, do salário, do controle do tempo, do corpo -, tidos como condição sine qua non para que o país atingisse o progresso e o desenvolvimento, passou a ser uma tarefa da escola. Educar, portanto, constituía-se numa necessidade premente para o projeto reformador e modernizador da sociedade brasileira. O bom uso dos métodos disciplinares no momento de formação deste homem, durante a infância, dispensaria, no futuro, o uso de recursos mais 9 MINAS GERAIS. Decreto n. 8.094 – 22 dez. 1927. Aprova os Programas do Ensino Primário. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Vol III. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928, p. 1564. 10 MINAS GERAIS. Decreto n. 7.970-A – 15 out. 1927. Aprova o Regulamento do Ensino Primário. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Vol III. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928, p. 1200 (Regulamento do Ensino Primário). 11 Ibidem, p. 1215. 6 drásticos como a polícia, as prisões e hospitais. Era preciso moldar a criança cujo caráter ainda se encontrava em formação: “A modificação da conduta é mais importante que a informação em si mesma. O homem só vale pelo que é, pelo que faz e pelo que produz: a missão da escola é criar valores socialmente utilizáveis e não uma ociosa aristocracia diplomada, é dar autonomia, iniciativa, sentimento de responsabilidade, laboriosidade, resistencia, virilidade, em uma palavra.”12 Aprender, entretanto, continuava a ser um privilégio, se antes destinado aos que podiam custear seus estudos, agora, aos mais favorecidos pela inteligência. A esses favorecidos, devidamente identificados pelos testes psicológicos, seria ministrado um ensino, segundo suas capacidades; para os menos inteligentes, no entanto, bastavam a educação moral e a aquisição de alguns conhecimentos básicos. “Paragrapho único: A escola primaria tem o seu fim em si mesma, não visando preparar as creanças para os graus superiores do ensino, mas ministrar-lhes conhecimentos que possam ser utilizados nas suas experiencias infantis, tendo por principios que só as noções susceptiveis de serem utilizadas nas operações ordinarias da vida se incorporam, effectivamente, como habitos mentaes, aos seus conhecimentos.”13 A escola deveria transmitir um mínimo essencial não para ser memorizado, mas para ser compreendido pelo aluno. Mais que a quantidade de noções e conhecimentos a serem ministrados, tinha-se em vista a “qualidade das noções para os usos da vida”. A escola era compreeendida como a instituição que iria inserir a criança na sociedade, inculcando-lhe regras e valores tidos como necessários e naturais. Esta teria não somente a tarefa de assegurar a continuidade de suas tradições e costumes, mas também de melhorar e transformar a sociedade: “... a escola, como instrumento educativo, não se limita apenas á transmissão passiva, sinão que transmitte corrigindo, rectificando, aperfeiçoando e melhorando, de onde a sua influencia sobre a sociedade, cujas tendencias e aspirações a escola inculca ás creanças não sob a forma vaga e impalpavel do ideal, sinão sob a fórma de habitos, costumes, regras de vida e disciplina da intelligencia e da vontade. Eis como a escola, de dependencia e de instrumento ao serviço da sociedade, passa á educadora da sociedade, cujos processos assimila para transmittil-os rectificados e melhorados. O seu papel educativo não se restringe aos limites da sua auctoridade e, por conseguinte, ás paredes 12 “A missão da escola é crear valores socialmente utilizaveis – Vigorosos traços do ensino moderno – Methodo de problemas e methodos de projetos”. Revista do Ensino, Belo Horizonte, n. 15, p. 239, jun.1926. 13 MINAS GERAIS. Decreto n. 7.970-A – 15 out. 1927. Aprova o Regulamento do Ensino Primário. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Vol III. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1928, p. 1215. 7 de suas classes, mas extende-se ao meio social a que se acha incorporada, influindo sobre elle, enobrecendo-lhe os processos, ampliando-lhe os horizontes, sinão abrindo-lhe novos e claros horizontes, organizando-lhes as tendencias, orientando-o nas suas aspirações, dotando-o da consciencia da ordem intellectual e moral que elle observa sem comprehender. ... a escola tem por fim preparar para a vida social, fazendo com que a creança assimile e interiorize a sua ordem moral e intellectual...”14 A sociedade democrática que se pretendia instalar necessitava de cidadãos autônomos, livres, capazes de se auto-controlar e dirigir, de pensarem e agirem por si mesmos, responsabilizando-se por seus atos, sem esperar qualquer tipo de controle externo. Um ensino teórico era considerado insuficiente para permitir aos alunos, futuros cidadãos, virtudes essenciais como coragem, iniciativa, cooperação e ordem, devendo-se recorrer a exercícios práticos que levassem ao desenvolvimento de tais virtudes até que se tornassem hábitos. A instituição de uma sociedade democrática passava pela sua valorização desde os bancos escolares. Todas as associações complementares da escola, criadas por Francisco Campos, tinham uma organização próxima à de uma República, elegendo-se os seus dirigentes, estabelecendo-se as competências e, em alguns casos, criando um regulamento próprio. Cidadãos participativos e engajados era o que se pretendia formar, internalizando-se, ainda muito cedo, as regras de convivência numa sociedade disciplinada, racionalmente distribuída e democrática, dentro dos limites estabelecidos. Na verdade, a democracia para os reformadores possuía uma abrangência muito limitada. A participação social não poderia impedir o controle, devendo ser uma participação restrita e liderada pelos mais capazes e preparados. E a escola estava sendo preparada para se constituir em um espaço de preparação dessa participação social. Preparar-se para tal democracia era também e, fundamentalmente, reconhecer o poder instituído15. Nesse momento em que a educação ocupava o lugar primordial como redentora dos problemas nacionais, a Escola Nova apresentava-se como capacitada para oferecer um ensino que não se limitava à instrução, por estar baseada em conhecimentos científicos, “neutros” e modernos. A escola em funcionamento era criticada por recorrer a métodos considerados ultrapassados e por desconhecer as necessidades e características da criança – recém descobertas pelas ciências, em especial, a Psicologia. A imposição do saber científico como legítimo e verdadeiro, contribuindo para a desmistificação e o questionamento de outros saberes que não se enquadravam nas exigências 14 Ibidem, p. 1125 (Exposição de motivos). Para termos uma noção dos limites dessa democracia, devemos recordar que somente aos escolarizados/alfabetizados permitia-se a participação política através do voto. 15 8 do método científico, era essencial para a criação de uma escola que se colocava como necessária e essencial para a sociedade. Essa escola, como portadora da verdade científica, contribuiria para uma sociedade mais democrática, justa, civilizada, moderna, capaz de construir uma nação e fazê-la progredir. A utilização de conhecimentos científicos era essencial na Escola Nova. Uma das explicações para tamanhos erros pedagógicos realizados pela escola até então, era justamente a ausência de ciências que lhe auxiliassem na busca por atividades mais adequadas à educação da criança. A Pedagogia, até aquele momento, estaria “impregnada de espirito metaphysico e dogmatico”16. A busca da individualização e da reunião de conhecimentos sobre todos e cada um é que possibilitou a emergência de ciências que analisavam e, ao mesmo tempo, construíam o indivíduo, elaborando um saber essencial ao mecanismo disciplinar: “Todas as ciências, análises ou práticas com radical ‘psico’, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo.”(Foucault, 1987, p. 171) Se já na primeira Reforma do Ensino a importância do conhecimento científico parecia crucial para a melhoria do ensino mineiro, a partir de Francisco Campos a preocupação com a utilização das ciências na educação pública tornava-se mais incisiva. Uma das formas de possibilitar a entrada dos métodos científicos na Escola Primária era através da Reforma no Ensino Normal, que prepararia os professores para utilizá-los. Ser professor para o Secretário não exigia tão somente um dom para a missão, mas, principalmente, o domínio de uma técnica que só seria segura se baseada em preceitos científicos. O professor que utilizasse apenas o instinto ou seu próprio dom seria sempre imperfeito e ficaria tateando, enquanto a ciência lhe daria bases mais seguras para agir. Dentre as ciências que mais se destacavam na formação do professor salientava-se a Psicologia, cujos princípios científicos assegurariam uma atuação mais eficiente dos processos de ensino. Esta ciência era também de crucial importância para a disciplina escolar. A seleção dos alunos através dos testes, a organização destes em classes homogêneas era 9 considerado um dos meios mais eficazes para se combater a indisciplina no meio escolar. Além do mais, a Psicologia era vista como a responsável pela modernização do ambiente, dos materiais utilizados na escola e, principalmente, dos métodos escolares que se baseavam nas investigações científicas realizadas por esta ciência. A Psicologia, enquanto portadora de conhecimentos sobre a criança, daria subsídio às atividades escolares que deveriam se pautar pelos interesses e necessidades do mundo infantil. As crianças que não se adaptavam à essa escola, produzida e preparada segundo as características infantis identificadas pelas pesquisas psicológicas, apresentariam indícios de anormalidade. Nesse caso, deveriam ser encaminhadas para as classes especiais ou para atendimento médico. Em último caso, deveriam ser excluídas da escola. E o comportamento indisciplinado era, certamente, um dos principais indícios dessa anormalidade. As Ciências Médicas, a Arquitetura, a Estatística, a Educação Física e outras ciências foram de suma importância para o estabelecimento da Escola Nova em Minas Gerais. Os conhecimentos provenientes dessas ciências eram incorporados ao dia-a-dia escolar objetivando educar e disciplinar, formar cidadãos que, futuramente, modernizariam a sociedade como um todo. A importância social e política da Igreja católica exigia algumas modificações na apropriação das propostas reformistas. Dessa forma, ciência e fé eram postas lado a lado devendo contribuir para a formação moral do cidadão. A ciência não deveria contrapor-se aos preceitos religiosos, que estavam sempre em primeiro lugar. O trabalho e a fé constituíam-se em instrumentos importantes na formação do aluno disciplinado em Minas Gerais. A confiança e o otimismo na tarefa da escola enquanto educadora e disciplinadora da sociedade eram inquestionáveis. Uma vez implantadas as reformas, a indisciplina estaria banida da sala de aula. Para isso, entretanto, urgia formar o professor dentro desse novo modelo. Sem a participação deste, a reforma não se daria. E, nesse sentido, um outro problema se colocava: era premente a necessidade de se disciplinar o próprio professor. Como ter alunos e classe disciplinada, com um professor mal formado? Nessa tônica, as reformas mineiras foram desenvolvidas. Só seria possível uma escola disciplinada, única e exclusivamente, se o professor estivesse preparado para essa missão. Todas as alternativas disciplinares perpassavam o trabalho docente e seu sucesso ou fracasso estavam a ele condicionados. As reformas, principalmente a de 1927, investiram profundamente na 16 FERREIRA, Valle. “As funcções individuaes na escola activa e o methodo da autoridade”. Revista do Ensino, BH, n. 34, p. 33-38, jun.1929. 10 formação dos professores cuidando não somente de realizar mudanças no ensino normal, como de atingir também os já formados e atuantes. Sendo a ciência tão importante na Reforma mineira não se deve pensar, entretanto, que eram os professores autorizados a produzi-la. Francisco Campos recomendava que o Curso Normal deveria se limitar ao ensino das ciências e, principalmente, das suas contribuições para a educação infantil. Aos professores cabia somente reproduzir o aprendido: “Nos programmas devem preponderar os processos e fórmas didacticas já experimentados e assentes pelos tratadistas de educação, e não pesquizas destinadas a fixar este ou aquelle processo, porque a Escola tem por fim transmittir e não elaborar sciencia.”17 Indisciplina constituía-se, segundo se concluiu, numa demonstração de incompetência docente, sendo estes os responsáveis por organizar a escola de acordo com os interesses infantis, modernizando-a; selecionar os alunos segundo suas capacidades; ensinar respeitando suas características, além de identificar e encaminhar o aluno indisciplinado. A instauração de uma nova sociabilidade na escola e na sociedade demandava professores formados, preparados e capazes de efetivar, com dignidade e eficiência, a tarefa da educação. A formação do professor tornava-se, dessa forma, condição indispensável para a modernização da escola e o aprimoramento do cidadão da moderna sociedade a ser construída. Referências Bibliográficas18: CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A escola e a República. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989. CASASANTA, Ana Maria. A educação no Brasil, anos 20. São Paulo: Loyola, 1983 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. 5ª ed. Petrópolis: Vozes,1987. HERSCHMANN, Micael M. & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. A invenção do Brasil moderno: Medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. MONARCHA, Carlos. A invenção da cidade e da multidão – dimensões da modernidade brasileira: A Escola Nova. São Paulo: Autores Associados, 1989 NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU, EDUSP, 1974. 17 MINAS GERAIS. Decreto n. 8. 987 – 22 fev. 1929. Aprova o Regulamento da Escola de Aperfeiçoamento. Collecção das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1930, p. 622. 18 Optamos por colocar as fontes utilizadas no trabalho (os documentos consultados e os artigos da Revista citados no texto) nas notas de rodapé.