PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Relações Internacionais
A CONFIGURAÇÃO DO NARCOTRÁFICO NA
AMÉRICA DO SUL: BRASIL E PAÍSES ANDINOS
Autor (a): Juliana Medeiros de Oliveira
Orientador: Msc. Alexandre Martchenko
JULIANA MEDEIROS DE OLIVEIRA
A CONFIGURAÇÃO DO NARCOTRÁFICO NA AMÉRICA DO SUL:
BRASIL E PAÍSES ANDINOS
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Relações Internacionais da Universidade
Católica de Brasília, como requisito parcial
para obtenção do Título de Bacharel em
Relações Internacionais.
Orientador Geral: Profº Msc. Alexandre
Martchenko
Brasília – DF
2009
TERMO DE APROVAÇÃO
Monografia de autoria de Juliana Medeiros de Oliveira, intitulada “A Configuração do
Narcotráfico na América do Sul: Brasil e Países Andinos”, apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais da Universidade Católica de
Brasília, em 20 de novembro de 2009, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo
assinada:
________________________________________
Prof. Msc. Alexandre Martchenko
Orientador
________________________________________
Prof. Msc. José Romero Pereira Júnior
Relações Internacional - UCB
_________________________________________
Prof. Msc. Fábio Duval
Relações Internacionais – UCB
Brasília – DF
2009
Dedico este trabalho aos meus pais,
sempre presentes em todas as etapas da minha
vida.
AGRADECIMENTO
Agradeço aos mestres que ao longo do curso auxiliaram na construção do meu
conhecimento. Ao professor orientador Alexandre Martchenko pelas instruções, paciência e
disponibilidade. Aos meus amigos, familiares e namorado pela compreensão e força. E a
todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta monografia.
LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS
ABIN – Agência Brasileira de Inteligência
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas
ATS – Tipos de Anfetaminas Estimulantes
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras
COCIT – Coordenação-Geral de Combate aos Ilícitos Transnacionais
CONAD – Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas
CREDEN – Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
DEA – Drug Enforcement Administration
DINANDRO – Dirección Antidrogas de la Policía Nacional del Peru
ELN – Exército de Liberação Nacional da Colômbia
UE – União Européia
EUA – Estados Unidos da América
FARC – Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FMI – Fundo Monetário Internacional
FUNAD – Fundo Nacional Antidrogas
GSI – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República
LSD – Lysergic Saure Diethylamide
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MJ – Ministério da Justiça
MRE – Ministério das Relações Exteriores
MT – Tonelada Métrica
OBID – Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONU – Organização das Nações Unidas
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas
SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia
SPA – Substâncias Psicoativas
THC – Tetraidrocanabinol
UMOPAR – Unidad Móvil de Patrullaje Rural
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
UNESP – Universidade Estadual Paulista
UNODC – United Nations Office on Drugs and Crime
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
WDR – World Drug Report
WTC – World Trade Center
RESUMO
OLIVEIRA, Juliana Medeiros. A Configuração do Narcotráfico na América do Sul: Brasil
e Países Andinos. 98 p. Trabalho de Conclusão do Curso de Relações Internacionais –
Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2009.
O crime organizado não é um fenômeno recente. Ele se manifesta em diferentes
formas, contudo aparentemente seu seguimento mais lucrativo é o narcotráfico. O
fim da Guerra Fria, bem como, os avanços tecnológicos possibilitaram o aumento de
fluxos de bens, capitais e pessoas entre países. Este contexto favoreceu a
emergência de novos pólos de poder que direta ou indiretamente influenciam as
relações entre Estados. O narcotráfico, portanto, ascende à condição de ator do
sistema internacional à medida que ganha proporções maiores se integrando a
política, economia e sociedade mundiais. Ademais, sua capacidade de estruturar-se
em rede possibilita a integração entre diferentes organizações narcotraficantes,
favorecendo suas práticas ilícitas principalmente em locais instáveis, com
instituições frágeis e carência social. Diante desse quadro, destaca-se a América do
Sul, por nela se encontrarem os três maiores produtores de cocaína do mundo, bem
como países que servem como zona de trânsito de psicoativos ilícitos a seus
mercados consumidores, localizados principalmente na Europa e nos Estados
Unidos da América. Os primeiros regimes internacionais que versaram sobre o
narcotráfico priorizaram a análise do tema focada apenas em um viés, sendo ele a
repressão à oferta de drogas. Contudo, a militarização do combate a tal modalidade
de crime organizado não tem surtido efeitos consideráveis, o que sugere a
necessidade de um novo debate com vistas à mudança de perspectiva das políticas
antidrogas. Baseando-se na lógica neo-liberal, percebe-se que devido à
transnacionalidade do narcotráfico tais políticas apenas lograrão êxito se forem
realizadas por meio de cooperação internacional.
Palavras-chave: América do Sul. Narcotráfico. Transnacionalidade. Regimes
Internacionais. Zona de trânsito.
ABSTRACT
Organized crime is not a recent phenomenon. It manifests itself in different ways,
however narco-traffic is its most lucrative sequence. The end of the Cold War, as well
as technological advances enabled the increase of flows of goods, capital and people
between countries. This context led to the emergence of new poles of power that
directly or indirectly influence the relations between states. The narco-traffic,
therefore, uprise the condition of an international´s system actor as it gets larger
proportions integrating with the worldwide politics, economy and society. Moreover,
its ability to structure in a network, enables the integration between different drug
organizations, furthering their illegal practices mainly in unstable places, that has
weak institutions and a social deprivation. Given this situation, South America is
highlight, since the three largest producers of cocaine in the world are located in this
region, as well as some countries that serve as a transit area for ilicits psychoactives
to consumer markets, mainly located in Europe and United States of America. The
first international regime related to narco-traffic gave priority to the analysis of just
one topic, the repression of drug supply. However, the militarization of this type of
crime has not produced significant effects, what suggests the need for a new debate
about another drug policy perspective. Based on neo-liberal logic, it is observed that
due to the transnational nature of narcotrafficking such policies will only be
successful if they are carried out through international cooperation.
Keywords: South America. Organized
International regimes. Transit area.
crime.
Narco-traffic.
Transnational.
SUMÁRIO
1. Introdução ........................................................................................................................... 10
1.1. Problema e a sua importância ....................................................................................... 10
1.2. Hipótese ........................................................................................................................ 13
1.3. Objetivos ....................................................................................................................... 14
1.3.1. Objetivo Geral .................................................................................................. 14
1.3.2. Objetivos Específicos ....................................................................................... 14
1.4. Metodologia .................................................................................................................. 14
2. Referencial Teórico ............................................................................................................ 16
2.1. Revisão Bibliográfica ................................................................................................... 16
2.2. Marco Teórico............................................................................................................... 23
3. Desenvolvimento..................................................................................................................30
3.1. Capítulo 1 ...................................................................................................................... 30
3.2. Capítulo 2 ...................................................................................................................... 47
3.3. Capítulo 3 ...................................................................................................................... 63
4. Conclusão ............................................................................................................................ 80
5. Referências Bibliográficas ................................................................................................. 85
6. ANEXOS..............................................................................................................................91
6.1 Anexo A .......................................................................................................................... 91
6.2 Anexo B .......................................................................................................................... 97
10
1.
Introdução
1.1
Problema e sua importância
Este estudo pretende demonstrar a configuração do narcotráfico1 na América
do Sul, com ênfase no Brasil e na Região Andina, a partir da década de 1990. Para
tanto faz-se necessário relembrar conceitos e fatos históricos que contribuíram para
a consolidação do crime organizado.
As Relações Internacionais não são uma ciência exata e precisa. Ao
contrário, o estudo das relações entre diferentes atores do sistema internacional
caracteriza-se por cenários variados, responsáveis pelas vertentes que o conduz.
Meados dos anos 70 aos anos 80 do século XX representaram um marco no
estudo das Relações Internacionais. Estudiosos e analistas tinham a atenção
voltada para o conflito bipolar entre as superpotências norte-americana e União
Soviética. O cenário internacional da época desenhava-se em torno desse conflito
ideológico e indireto denominado Guerra Fria, o qual dividia o mundo em dois pólos
de poder: os defensores e propagadores do capitalismo frente aos do comunismo.
No entanto, a União Soviética já não possuía tanta estabilidade. Muito
dinheiro era gasto em áreas de defesa e segurança enquanto outros setores do país
eram deixados de lado. Estando evidentes as falhas no sistema socialista, deu-se
início à Glasnost e à Perestroika, os quais, respectivamente, consistiam em uma
reestruturação política e uma reestruturação econômica do país, a primeira visando
à transparência política. Contudo, essas tentativas de reformas não obtiveram o fim
desejado, contribuindo, dentre outros fatores, para a dissolução da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991.
Ademais do ocorrido descrito acima, a crise do sistema socialista teve como
seu maior símbolo a queda, em 1989, do muro de Berlim, o qual dividia a Alemanha
Oriental (socialista) e a Alemanha Ocidental (capitalista).
A Guerra Fria, então, chegava ao fim. O mundo deixava de ser bipolar para,
aparentemente, tornar-se unipolar. Os Estados Unidos da América (EUA) eram,
1
De acordo com Oliveira (2007, p.8) “O narcotráfico abarca a produção (plantio, processamento), o
transporte (nacional, transnacional) e o comércio de substâncias psicoativas consideradas ilícitas pela
Comunidade Internacional”. 11
portanto, a potência econômica, política e militar mais influente e poderosa do
mundo. A premissa não deixa de ser verdadeira, embora a unipolaridade do sistema
internacional não tenha perdurado.
Em contrapartida ao poderio absoluto que aparentemente os Estados Unidos
detinham frente ao resto do mundo, a América do Sul passava por um momento de
“crise política e emergência de novas ameaças à segurança da região” (DUPAS,
2005, p.133). Para Dupas (2005, p. 133), um dos pontos comuns entre os países da
região era a existência de uma forte interlocução com os EUA. Significa dizer que os
posicionamentos ideológicos norte-americanos frente ao novo sistema internacional
atingiam, de uma forma ou outra, a América do Sul.
Paralelamente, o advento da nova ordem mundial proporcionou uma
“redistribuição de poder entre Estados, mercados e sociedade civil” (MATHEWS,
1997, p. 50). As premissas capitalistas tomaram uma proporção maior do que já era
constatado à época da Guerra Fria. Houve uma mudança de perspectiva quanto ao
papel do Estado na economia, este deixando de ser controlador e adquirindo um
caráter mais liberal. Portanto, começa-se a repensar a soberania absoluta do Estado
como ator principal do sistema. Novos pólos de poder ganham mais destaque pela
influência que conseguem exercer no andamento das relações internacionais.
O contexto descrito anteriormente tem por objetivo evidenciar características
do crime organizado. Segundo Juan Gabriel Tokatlian (1999, p. 168), o “crime
organizado floresce, amplia-se e aprofunda suas raízes com mais força no
capitalismo”. O narcotráfico, sendo uma das modalidades de crime organizado
transnacional, também se enquadra nessa prerrogativa.
A problemática ganha amplitude, já que, dentro desta nova configuração, os
anos 1990 caracterizaram-se pelo aumento/necessidade de fluxos de capitais,
pessoas, informações, bens e serviços pelo mundo. Ademais, a globalização influiu
no desenvolvimento tecnológico e em sua rápida expansão para diversos países do
globo, facilitando a relação e troca de mercadorias entre Estados, bem como um
aproveitamento mais eficaz de recursos. Todos estes fatores também auxiliam de
forma benéfica o comércio de psicoativos ilícitos2. Fator demonstrado por Mathews
2
“Psicoativos ilícitos consistem em produtos que têm a capacidade de alterar as funções do sistema
nervoso central podendo implicar mudanças fisiológicas ou comportamentais” (OLIVEIRA, 2007, p.
29).
12
(1997, p. 58), que afirma que os grupos criminosos tiram vantagens da globalização
agindo através de vários nódulos, configurados em rede e sem um poder central.
Em suma, a globalização atingiu a economia global como um todo, direta ou
indiretamente. Suas conseqüências foram estendidas de forma positiva para as
elites liberais, enquanto a rápida difusão tecnológica ocasionava maior disparidade
entre as camadas menos ricas da sociedade. No entanto, como já citado, benefícios
foram também estendidos ao comércio ilícito, possibilitando o aperfeiçoamento do
crime organizado transnacional em suas diversas modalidades.
O Crime Organizado Transnacional não é recente. Porém, suas estruturas e
atividades se aperfeiçoaram ao longo do tempo. Muitas vezes, o crime organizado é
confundido com a máfia e com o terrorismo. Contudo, existem fatores que os
diferenciam entre si. O terrorismo tem um fim político, enquanto o crime organizado
está atrelado ao capitalismo, almejando poder e dinheiro.
No que concerne à
diferenciação entre máfia e crime organizado, têm-se conceitos parecidos. No
entanto, o crime organizado não se prende a uma ideologia ou têm hierarquias
permanentes (OLIVEIRA, 2007, p. 8), diferentemente do que ocorre com as máfias.
O foco do trabalho será a região sul-americana pelo fato de alguns países que
a compõem apresentarem características que tornam o ambiente propício para a
atuação do crime organizado. Especificamente, os países centrais do estudo são:
Brasil e países da Região Andina3. Na década de 1990, por exemplo, “a instabilidade
política e vulnerabilidade de alguns governos facilitaram o advento do narcotráfico e
de outras práticas ilícitas” (DUPAS, 2005, p. 133). Essa problemática atravessou o
século XX e ainda se faz fortemente presente no século XXI.
No entanto, o narcotráfico incide no Brasil em uma perspectiva diferente de
como a problemática se dá nos demais países da Região Andina. Isso porque a
realidade brasileira não é exatamente a mesma destes países, situação que será
explicitada no desenvolvimento deste estudo. Ademais, o Brasil “recebe os efeitos
do narcotráfico, devido, principalmente, à extensão de suas fronteiras, que muitas
vezes carecem de vigilância adequada” (MONTOYA, 2007, p. 147).
Além disso, nos mandatos de Reagan e Bush, intensificam-se nos Estados
Unidos políticas de repressão à oferta de drogas afetando diretamente a região
3
Para esse estudo serão considerados tais países da Região Andina: Bolívia, Colômbia, Equador,
Peru e Venezuela.
13
estudada neste trabalho, principalmente a Região Andina, já que se concentram nela
grande parte da produção e tráfico de drogas (DUPAS, 2005, p. 168).
Sendo o narcotráfico um crime organizado de caráter transnacional, ele não
deve ser tratado como um crime cometido por pessoas e grupos isolados
(TOKATLIAN, 1999, p. 169). Transnacional remete à idéia de que o crime vai além
das fronteiras nacionais. Suas relações são entre redes locais, regionais e
internacionais. Dessas redes participam agentes públicos, empresas privadas,
pessoas das mais variadas nacionalidades. Além disso, o crime é organizado porque
não segue uma linha de ação única, mas sim um conjunto de ações ilícitas que
terminam por se atrelar. A fim de exemplificar a afirmativa, basta recordar que o
dinheiro gerado de maneira ilícita por organizações criminosas sempre precisa ser
lavado, caracterizando outra modalidade de ação, o da lavagem de dinheiro4.
A proporção que este novo e poderoso ator das relações internacionais
ganhou é algo quase imensurável. “Suas atividades estão situadas em uma zona
cinza entre o legal e o ilegal” (NAIM, 2006, p. 6). Portanto, devido a sua presença
em atividades estatais, entranhando-se na economia, na política e na sociedade, o
narcotráfico põe em cheque alguns pressupostos, como, por exemplo, a soberania e
autonomia do Estado-nação. Neste caso, vê-se a necessidade de se estudar o
problema sob ótica multilateral, já que o multilateralismo caracteriza tanto os fluxos
do comércio ilícito como as Convenções visando o combate ao crime organizado em
suas mais diversas formas.
Devido a tais fatores elucidados, se torna importante uma análise da
configuração do narcotráfico na Região Andina e Brasil, visto que essa atividade
ilícita provoca um aumento significativo de violência, corrupção e concentração de
poder econômico na região.
1.2
Hipótese
O narcotráfico é uma modalidade do crime organizado transnacional que se
encontra amplamente presente na América do Sul, contribuindo tanto para a
4
“Por meio da lavagem de dinheiro, é possível ocultar a fonte dos lucros ilegais e construir uma
história legítima que permita fazer investimentos no mundo da economia legal. (...) O fator mais
importante no esquema de lavagem é a transformação do dinheiro vivo em outro tipo de moeda, para
que possa ser escondido mais facilmente e que seja possível gastá-lo mais rapidamente”
(MONTOYA, 2007, p. 385).
14
desestabilização política como para problemas de caráter social, econômico e de
segurança na região.
1.3 Objetivos
1.3.1 Objetivo Geral
O presente trabalho tem por objetivo geral apresentar a configuração do
narcotráfico na América do Sul, especificamente no Brasil e nos países Andinos, a
partir da década de 1990, bem como suas conseqüências políticas e econômicas
nessa região.
1.3.2
Objetivos Específicos
•
Conceituar crime organizado transnacional, comparando-o com os
conceitos de máfia e terrorismo. Posteriormente, dar ênfase à conceituação
de narcotráfico. E, a fim de auxiliar a compreensão do trabalho, abordar
aspectos conceituais e teóricos.
•
Descrever a configuração do narcotráfico na América do Sul (Brasil e
Países Andinos); seus principais focos e meios de atuação. Discorrer sobre
como o Brasil encara e trata o problema do narcotráfico na América do Sul.
•
Fazer uma reflexão sobre Regime Internacional que versa sobre o
narcotráfico. Descrever a postura norte-americana frente à problemática que
atinge o Brasil e os países andinos.
1.4
Metodologia
Este estudo foi desenvolvido mediante pesquisas em fontes primárias, tal
como a entrevista com fonte de Inteligência do Estado, que encontra-se no Anexo A
deste trabalho, bem como fontes secundárias, tais como: livros, revistas, periódicos
15
nacionais e internacionais, bem como publicações e artigos disponíveis em sítios da
internet.
Ademais, foram utilizados como fonte de informação e pesquisa acordos
multilaterais e bilaterais relacionados à temática, sendo eles: a Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a Convenção contra o
Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, além de Acordos de
Cooperação Jurídica e Assistência Mútua em Matéria Penal entre a República
Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, da República da
Colômbia e da República do Peru.
Os dados numéricos, tabelas e mapas apresentados no trabalho foram
principalmente baseados no World Drug Report 2009. Lembrando que, visto que a
temática aborda uma atividade ilícita, os dados apresentados não possuem total
veracidade ou precisão.
Na elaboração do trabalho foram observadas as regras da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
16
2.
Referencial Teórico
2.1
Revisão Bibliográfica
Para a abordagem da atuação e conseqüências do narcotráfico na América
do Sul é necessário, primeiramente, o entendimento do que seja o crime organizado
transnacional, bem como seu papel na configuração das relações internacionais
contemporâneas. Nesse contexto, uma das obras utilizadas para realização do
trabalho será “Ilícito” de Moisés Naím.
Naím (2006) analisa a situação dos diferentes tipos de crime através de
exemplificações que demonstrem a complexidade e amplitude do tema. O autor
mostra que o comércio ilícito não é algo novo. Pelo contrário, aparece já na
Antiguidade, porém em uma forma menos sofisticada e interligada através do
contrabando.
Nos anos 90, a problemática ganha destaque após as mudanças econômicas
e políticas mundiais em transição nesse período. As reformas econômicas
enfraqueceram o controle dos governos nas fronteiras, facilitando os fluxos de bens,
capitais e pessoas, permitindo, segundo Naím (2006, p.54), a comercialização de
produtos que no passado não podiam ser transportados.
Novas regulamentações econômicas também atingiram o negócio das drogas.
“À medida que os custos envolvidos nesses negócios caíram, também diminuíram os
custos de todas as transações ao longo da complicada cadeia que une os
fornecedores aos consumidores finais do produto” (NAIM, 2006, p. 214).
Argemiro Procópio Filho (1999) acredita que processos de integração regional
como o MERCOSUL e a União Européia (EU) também se constituem em vetores
que contribuem para facilitar o narcotráfico. Um exemplo é o grande fluxo de bens e
pessoas na região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
O narcotráfico é apenas um dos crimes globais que transformam o sistema
internacional, “modificando suas regras, introduzindo novos atores e reconfigurando
o poder na política e economia mundiais” (NAIM, 2006, p. 11).
O sistema pós-guerra fria e da globalização confere aos países da Região
Andina, região esta que será objeto de estudo deste trabalho, características
comuns, sendo elas:
17
as crises políticas dos anos 90 e início de 2000; forte interlocução com
Estados Unidos da América (EUA); os impactos do conflito colombiano
estão presentes em quase todas as fronteiras dos países dessa região. Tais
fatores contribuem para a vulnerabilidade da região, bem como para a
atuação do narcotráfico (DUPAS, 2004, p. 133).
O enfoque na região ganha mais importância porque ela tem o narcotráfico
inserido em sua agenda política “de forma intensa, em razão de nela se situarem os
principais produtores e o maior mercado de cocaína, além de outras drogas ilegais”
(PROCOPIO, 1997, p. 100).
O narcotráfico se modifica paralelamente às transformações proporcionadas
pelo mundo globalizado. Os novos circuitos de poder desenham complexas
territorialidades, geralmente em forma de território-rede (HAESBAERT, 2005). Logo,
há uma nova territorialidade do narcotráfico, que, como uma grande empresa,
trabalha ilicitamente para a construção e controle de conexões e redes (fluxos de
pessoas, mercadorias e informações).
As redes de narcotráfico atuais são diferentes dos modelos dos cartéis do
crime organizado ou ainda das máfias. Hoje, “as redes de tráfico de drogas são
altamente descentralizadas” (NAIM, 2006, p. 211). Segundo Naím (2006), a
configuração do narcotráfico em redes permitiu, ainda: o desenvolvimento de uma
rede de abastecimento, uma nova concepção e montagem global de produtos, uma
mudança no papel dos portos de passagem nas rotas de tráfico, e a emergência de
um mercado financeiro ilícito em pleno funcionamento. Para exemplificar vê-se que
“a tática atual do narcotráfico no Brasil e na América Latina parece ser a
descentralização, muitos e pequenos negócios.” (PROCOPIO, 1997, p. 96).
Logo, o tráfico de drogas é apenas mais uma modalidade do crime
organizado que ultrapassa fronteiras. Sendo assim, o foco do estudo não é apenas a
Região Andina (Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela). Inclui também o
Brasil, dando ênfase a região fronteiriça com a maioria desses países, excluindo
apenas o Equador.
O Brasil não é mais considerado apenas uma região de trânsito das drogas. O
País também “processa, importa e exporta vários tipos de drogas” de acordo com as
necessidades de mercado (PROCOPIO, 1997, p. 76). Ademais, o problema do
narcotráfico torna-se ainda mais grave “em virtude da extensão e dificuldade de
acesso às áreas de fronteira, dificultando até mesmo a própria presença do Estado”
(PROCOPIO, 1997, p. 100).
18
O que a maioria dos autores estudiosos do narcotráfico propõe, mesmo que
de forma indireta, é olhá-lo além de sua caracterização criminosa. Ou seja,
considerar sua configuração empresarial. Alguns autores consideram o narcotráfico
como uma “empresa transnacional dedicada ao tráfico de drogas ilegais, que não
paga impostos e gera os maiores lucros” (SANTANA, 1999, p. 101).
O narcotráfico possui uma logística de mercado5 assim como em uma
empresa comum. A logística prioriza o desenvolvimento tecnológico para otimização
dos objetivos da empresa. Com o narcotráfico ocorre algo semelhante. Sua
produção e tráfico serão destinados a um local onde o narcotraficante sabe que
existe mercado consumidor. Ademais, no que concerne a distribuição do produto, o
narcotráfico possui diferentes rotas de trânsito de uma natureza facilmente mutável e
rápida (PROCOPIO, 1999).
Tal como os procedimentos de uma empresa comum, o narcotráfico possui
uma administração da cadeia de suprimentos envolvendo a compra de materiais
para o processamento das drogas, sua conversão em produto final e posteriormente
sua entrega ao consumidor final. Porém, existe um fator que dificulta medir
precisamente o impacto do narcotráfico na economia mundial: sua interligação com
o comércio lícito.
As estruturas do narcotráfico e sua operação respondem tanto a
estímulos de mercado, em sua dimensão transnacional e global, como a
fatores e circunstâncias de ordem doméstica e mesmo local que definem o
modo de inserção de um país no contexto do narcotráfico internacional e as
condições específicas de seu funcionamento (PROCOPIO; SANTANA,
1999, p. 100).
No início da década de oitenta, por exemplo, “o narcotráfico figurava como o
empreendimento transnacional mais destacado dos países da América Latina.”
(SANTANA, 1999, p. 99) E hoje, já no século XXI, a região “figura de maneira
destacada na divisão internacional de cultivos e produtos ligados ao tráfico de
drogas ilegais” (SANTANA, 1999, p. 101).
Na visão de Adalberto Santana (1999), a globalização contribui para o
aprofundamento do crime organizado. “A globalização é, em um só tempo,
5
Segundo Philip Kotler (2004), logística de mercado consiste em um planejamento, implementação e
controle dos fluxos de materiais e bens finais, dos pontos de origem aos pontos de uso para atender
as exigências do consumidos.
19
includente e excludente, ou, se se prefere, marca e aprofunda diferenças sociais.”
(SANTANA, 1999, p.103)
Ainda segundo Santana (1999), quanto ao posicionamento estadunidense
frente à problemática, tem-se que o narcotráfico ganha destaque no momento em
que não se tem outra potência militarmente emergente. A esse fator agrega-se a
entrada de milhares de imigrantes ilegais procedentes da América Latina e de outras
regiões periféricas do mundo. Diante dessas proposições, associam-se “drogas e
imigrantes ilegais como duas ameaças que enfrenta o mundo ocidental frente à
periferia.” (SANTANA, 1999, p. 104)
Por outro lado, os atentados de 11 de setembro de 2001 ao World Trade
Center (WTC) mudaram as prioridades norte-americanas no que concerne a
manutenção da integridade e segurança de seu território, levando o combate ao
narcotráfico a segundo plano (NAIM, 2006).
O discurso norte-americano em relação à problemática que atinge tanto seu
país quanto aos países sul-americanos mantêm-se linear ao longo dos anos. Os
Estados Unidos partem da premissa de que o narcotráfico é uma ameaça que vem
de fora. Nessa ótica, seu tratamento ao problema se dirige a combater
narcotraficantes e produtores de drogas (SANTANA, 1999, p. 106). Ou seja, “para
eliminar o consumo há que se começar por eliminar a oferta” (DEL OLMO, 1994, p.
127). No entanto, onde há demanda há oferta. “O consumo dos grandes mercados,
como o dos Estados Unidos, é um fenômeno que impacta de forma direta o
crescimento do narcotráfico latino-americano” (SANTANA, 1999, p. 106).
Para ilustrar a complexidade do problema tem-se ainda que “mais de 2
milhões de pessoas, segundo o PNUD, estão diretamente empregadas na produção
e no comércio das drogas, o que contribui em grande medida para as economias
das nações que as produzem.” (SANTANA, 1999, p. 107) No caso boliviano, por
exemplo, grande parte da população pobre dedica-se ao cultivo da folha de coca. A
erradicação desse bem geraria um impacto econômico e social em proporções muito
grandes.
Em 1978 havia no Chapare (Bolívia) 15.000 famílias dependentes
do cultivo da coca, que em 1986 aumentariam para 70.000, o que teria
permitido que na região do Chapare ficassem concentrados 85% da
população camponesa dedicada ao cultivo de coca para o narcotráfico
(DUPAS, 2005, p. 157).
20
Para enfrentar o problema, uma das diretrizes adotadas é a prática de
substituição de cultura, que visa erradicar plantações ilícitas para posteriormente
substituí-la por algum bem lícito. Segundo Naim (2006, p. 216), a dificuldade de se
alcançar resultados é que o capital destinado a esse tipo de programa nem sempre é
suficiente, portanto, não proporcionando às famílias que cultivam precursores de
drogas ilícitas o mesmo retorno financeiro. Além disso, “uma política de erradicação
completa conduziria a uma desestabilização crítica das bases econômicas de
sobrevivência das populações andinas” (DUPAS, 2005, p. 158).
No entanto, no que concerne a linha de visão norte-americana sobre o
problema há que se lembrar que quando Ronald Reagan lança sua cruzada antidrogas, a cocaína era proveniente principalmente da América Latina, esta sendo
responsável por cultivar, processar e transportar a droga (DEL OLMO, 1994, p. 128).
Esse motivo levou o presidente norte-americano a priorizar sua política de ataque a
oferta de drogas, dando inclusive ajuda financeira para programas de erradicação do
cultivo e oferta (DEL OLMO, 1994, p. 128).
Em contrapartida, a globalização trouxe consigo a facilidade de acesso a bens
e novas tecnologias. Assim, a produção de drogas também é algo globalizado.
Quando há demanda, mas há dificuldades impostas por políticas de supressão às
drogas, alguns países, antes apenas considerados como rotas de trânsito começam
a produzir para consumo interno próprio. Como é o caso da produção de maconha
nos Estados Unidos, que tem 50 por cento de seu montante destinado ao consumo
local (SANTANA, 1999, p. 108).
Segundo Naim (2006), a culpa do embate entre governo e traficantes não é
necessariamente apenas da globalização. O fato é que as agências do governo
encarregadas de combater as organizações criminosas internacionais são
burocracias. Essas “burocracias públicas tendem, em toda parte, a exibir certos
padrões previsíveis” (NAIM, 2006, p. 215). As burocracias governamentais tendem a
ter orçamentos direcionados, limitações políticas e legais, e, por fim, dificuldades
para operar de forma efetiva fora de suas fronteiras (NAIM, 2006, p. 216).
Por outro lado, as redes narcotraficantes podem agir aonde as burocracias
nem sempre tem alcance imediato. Ademais, as redes de tráfico detêm um alcance à
tecnologia que consiste em um dos fatores primordiais para o desenvolvimento de
suas atividades. Nota-se, portanto, que as mudanças no sistema internacional
sugerem uma modificação das linhas de ação contra a problemática.
21
Governos ainda insistem em combater prioritariamente a oferta das drogas.
Para eles, tomar medidas de proteção nas fronteiras nacionais contra invasores
estrangeiros é uma resposta mais rápida ao problema do que aplicar esforços para
dissuadir os cidadãos de consumir os produtos ou contratar os serviços (NAIM,
2006, p. 220). Além disso, contenção da demanda exige esforços complexos e
implicações políticas. No entanto, o principal objetivo do narcotráfico é o lucro. Logo,
se não há demanda, não há lucro, prejudicando o poder da oferta (NAIM, 2006, p.
220).
Nesse contexto, é interessante notar que os países andinos e até mesmo o
Brasil têm suas políticas de repressão as drogas muito influenciadas pelos Estados
Unidos. O fato é que, mesmo atualmente, existe ainda
um alto grau de dependência das organizações multilaterais, tanto de
alcance global como regional, e dos próprios países individualmente em
relação à ajuda dos Estados Unidos para implementação de suas
respectivas estratégias de combate ao narcotráfico (PROCOPIO, 1997, p.
101).
Mesmo temerosos e descontentes com a influência norte-americana em seu
território e formulação de suas políticas, “os países andinos, principais produtores de
coca, foram alvo preferencial de ações norte-americanas destinadas a reduzir a
produção, inclusive com o envolvimento direto de efetivos militares” (PROCOPIO,
1997, p. 102).
A postura norte-americana reitera mais uma vez o que já foi dito acima: “foi no
plano externo, e mais especificamente na repressão à produção e ao tráfico
internacional de drogas, que a política norte-americana se desenvolveu com mais
vigor” (PROCOPIO, 1997, p. 103).
À medida que a política antidrogas norte-americana direciona-se e
penaliza não somente os agentes e ao objeto do narcotráfico, também
atinge governos e sociedades que podem ver-se privadas da assistência e
da possibilidade de aceder a recursos de organismos financeiros
internacionais necessários para a promoção de alternativas e de projetos de
desenvolvimento que podem direta ou indiretamente auxiliar no
enfrentamento à produção, ao tráfico e à produção de drogas ilícitas
(PROCOPIO, 1997, p. 110).
Sendo o narcotráfico fenômeno transnacional, um país não conseguirá
individualmente
combater
o
problema.
Segundo
Procópio
(1997),
faz-se
imprescindível os esforços de cooperação entre os países a partir de pontos
22
consensuais. A questão é que cada governo lidará de uma forma diferente com o
problema. Por esse motivo, eliminar divergências entre Estados Unidos e demais
países sul-americanos seria perda de dinheiro e tempo. Enquanto isso, as redes
narcotraficantes continuam a agir através das brechas deixadas pelos governos.
A política norte-americana faz ainda com que o enfrentamento às redes
narcotraficantes se dê de forma armada, tanto em centros urbanos como nos
campos, comprometendo ainda mais a segurança da região. O ideal seria que o
narcotráfico fosse considerado não apenas como uma atividade criminosa, mas
também como um problema de grandes impactos sociais, econômicos e políticos,
estendendo o foco de ação das políticas de repressão e erradicação ao tráfico de
ilícitos da oferta para a demanda.
23
2.2
Marco teórico
As diferentes etapas do narcotráfico vêm impactando crescentemente os
setores econômicos, políticos e sociais de países sul-americanos. Diante da
percepção do alcance que esta modalidade de crime organizado apresenta nas
relações internacionais contemporâneas, serão utilizadas as seguintes teorias para
análise do problema: teorias neo-liberais que dão atenção à atuação de agentes
transnacionais capazes de influenciar a política externa e interna das nações; teorias
realistas, com vistas a demonstrar a abordagem utilizada anteriormente às teorias
neo-liberais e que enfatiza a abordagem estato-cêntrica, ou seja, teoria que
considera o Estado como principal ator do sistema internacional.
Em suma, para o desenvolvimento desse marco teórico as teorias neo-liberais
serão expostas e confrontadas com a abordagem realista.
Um dos representantes da teoria estato-cêntrica a ser utilizado para o
desenvolvimento desse trabalho será Raymond Aron.
Aron (1967) considera o Estado como principal ator das relações
internacionais. Para ele, o Estado escolhe unidades políticas relevantes para
atuarem nas relações internacionais. Tais unidades, que mantêm relações regulares
entre si, constituem o sistema internacional.
Na perspectiva realista, o Estado atua como principal ator influenciador do
respectivo sistema, tendo grande peso no andamento das relações internacionais.
Além disso, as grandes potências, ou atores principais, “nunca se sentem
submetidos ao sistema do mesmo modo como uma empresa de dimensão média
está sujeita às leis do mercado” (ARON, 1967, p. 154). O que quer dizer que o
Estado possui autonomia de ação. E quanto mais poder tiver, mais alcance suas
ações terão em âmbito internacional.
Segundo Aron (1967, p. 154):
A estrutura dos sistemas internacionais é sempre oligopolística. Os
atores principais determinam, em cada época, como deve ser o sistema,
muito mais do que são determinados por ele. Basta uma transformação do
regime dentro de uma das potências principais para que mude o estilo e até
mesmo o rumo das relações internacionais. [grifo do autor]
Vê-se que ainda nos anos 1960 o debate em torno das relações
internacionais estava pautado na atuação do Estado. Ademais, segundo a lógica
24
realista, as adversidades que poderiam causar desestabilidade no sistema seriam,
por sua vez, determinadas por embates na configuração de forças entre os Estados
(ARON, 1967).
Como já citado nesse trabalho, a dissolução da URSS contribuiu para
evidenciar a mudança da perspectiva do alcance da influência estatal. Já não havia
mais uma iminência de guerra entre duas potências. Os Estados Unidos, por sua
vez, detinham e ainda detêm grande poder econômico, político e militar. No entanto,
mesmo com o fim do conflito bipolar, não são os únicos atores capazes de
influenciar o sistema. Essa perspectiva chama atenção pela presença do
narcotráfico no sistema mundial, trabalhando paralelamente ao Estado, e, portanto,
indicando que a desestabilidade do sistema não é alcançada por embates apenas
entre países, mas também por forças externas a eles.
Portanto, a abordagem estato-cêntrica começa a ser confrontada. Na
definição de Aron (1967, p. 157), “a ambição dos grandes Estados é modelar a
conjuntura; a dos pequenos, adaptarem-se a uma conjuntura que essencialmente
não depende deles”. No entanto, o aumento de regimes, acordos, convenções que
visam à resolução de problemas que interessam a “sociedade transnacional”
(ARON, 1967, p. 168) e que também dizem respeitos ao sistema internacional; a
importância do sistema financeiro internacional funcionando em rede; a presença do
narcotráfico em suas diferentes etapas em vários pontos do globo; todas essas
características citadas evidenciam que não depende mais de uma única grande
potência modelar a conjuntura internacional.
Em contrapartida, na década de 1970, Keohane e Nye começam a trabalhar
em uma nova teoria que evidenciaria então a relevância dos agentes transnacionais
nas políticas internas e externas das nações (OLIVEIRA, 2007, p. 10). Contudo, a
abordagem neo-liberal proposta por Nye e Keohane não descarta a relevância
estatal nas relações internacionais. Os autores apenas acrescentam a importância
de agentes transnacionais e dos agentes intragovernamentais na formulação das
políticas de estado e configuração do sistema internacional.
O que prova a importância das relações transnacionais já na década de 1970
(linha de pensamento defendida pelos neo-liberais) é que os Estados utilizavam-se
cada vez mais de foros de organismos internacionais para solucionar e prevenir
controvérsias (OLIVEIRA, 2007, p. 11), reafirmando assim, as teorias neoliberais.
Ademais, segundo Pecequilo (2004, p. 208), atualmente
25
os cartéis de drogas tendem a crescer diante do vácuo de poder e crise
socioeconômica que atingem as nações [...] O caso colombiano, no qual o
Estado oficial controla apenas 1/3 de seu território soberano, é exemplar da
perda de ação de um governo diante de narcotraficantes e guerrilhas.
Diante dessa perspectiva, observa-se que o crime ascende também onde há
ausência estatal. A teoria realista trataria a problemática considerando o crime
organizado como problema de segurança estatal que apenas seria sanado após
medidas repressoras aplicadas pelo Estado. No entanto, o caráter transnacional do
crime organizado sugere que o tratamento do problema cabe não só a uma, mas a
mais nações em conjunto.
Ademais, a teoria neo-liberal defende a importância das organizações
políticas modernas para o progresso da sociedade internacional, além de trabalhar a
ideia de que as sociedades se auto-regulam por meio de instituições e processos
inerentes a sua organização (NOGUEIRA, 2005, p.60).
As idéias neo-liberais, assim como as realistas, também consideram o
sistema internacional anárquico e conflituoso (NOGUEIRA, 2005, p. 61). No entanto,
a linha de pensamento neo-liberal trabalha a idéia da possibilidade de se amenizar
essa característica conflituosa, aumentando, consequentemente, a cooperação entre
países e instituições (NOGUEIRA, 2005, p. 62). Já os realistas acreditam que a
cooperação entre Estados é dificultada pela natureza insegura do sistema
internacional, bem como, pelo receio de que a cooperação acordada não seja
respeitada (HERZ; HOFFMANN; 2004, p.49). Sendo assim, diante da lógica realista,
as organizações e regimes internacionais apenas são efetivos quando os atores
mais poderosos do sistema internacional acordam a utilização da cooperação
conjunta para realização de seus objetivos.
Contudo, a intensificação das relações entre países aumentara também a
interdependência entre estes, facilitando a cooperação com a finalidade de obtenção
de seus interesses internos ou de ganhos relativos. Tal fator é explicado pelos neoliberais como teoria dos jogos não-cooperativos (HERZ; HOFFMANN; 2004, p. 55).
Nela é indicada a importância das instituições nas relações entre Estados, a fim de
aumentarem a confiança mútua entre eles. Ademais, parte-se da premissa de que
as relações contínuas entre atores egoístas, ou seja, a repetição dos jogos,
favorece a cooperação, uma vez que ocorre uma “sombra sobre o futuro”,
26
ou seja, as ações do presente são influenciadas pela noção de que a
interação se repetirá, passando a ser interessante gerar a expectativa de
cooperação (HERZ; HOFFMANN, 2004, p.55).
Herz e Hoffmann (2004, p. 55) mostram ainda que, os Estados que tiverem
uma reputação negativa terão dificuldades em serem aceitos como parceiros de
mecanismos de cooperação. Portanto, assim como defende a teoria neo-liberal,
sendo o narcotráfico fenômeno transnacional, para que seja construída uma ordem
internacional mais estável e pacífica é imprescindível a atuação de organizações
e/ou instâncias supranacionais (NOGUEIRA, 2005, p. 67).
A dinâmica das relações internacionais contemporâneas força a existência de
fóruns multilaterais e organismos internacionais que regulem o sistema internacional.
Esse contexto evidencia, como já dito, a interdependência6 entre nações. O
narcotráfico, por exemplo, ultrapassa fronteiras nacionais dificultando a ação dos
Estados. Ou seja, nenhum Estado conseguirá sanar o problema sozinho, pois essa
modalidade de crime organizado tem efeito spill over entre os países onde atua,
estando presentes em todos, contudo em maior intensidade em uns que em outros.
Como exemplifica Nogueira (2005, p. 83), “a interdependência, por tanto, é
uma via de duas mãos: todos os atores envolvidos são atingidos, em maior ou
menor medida, por efeitos de acontecimentos ocorridos fora de suas fronteiras e
decididos por outros governos ou pessoas”.
Keohane e Nye (1977) propõem a idéia de que o advento do papel dos atores
não estatais merece tanta atenção quanto o papel que detinha o Estado na política
mundial.
Os
autores
distinguiram
dois
tipos
de
efeitos
produzidos
pela
interdependência que indicam o grau de envolvimento entre os atores internacionais
(NOGUEIRA, 2005, p. 83). O primeiro efeito é a sensibilidade que indica o quanto
uma ação ocorrida em um país incide, medido em termos de custos, em outro país.
Quanto maior a dependência, maior a sensibilidade (NOGUEIRA, 2005, p. 83). O
segundo é efeito é a vulnerabilidade, que mede o custo das alternativas disponíveis
para fazer frente diante do impacto externo (NOGUEIRA, 2005, p. 84).
A ajuda de custo que o governo norte-americano destina a países como
Colômbia e Bolívia para a repressão ao narcotráfico determina grande porcentagem
da eficácia do combate à problemática nesses países. Esse fator evidencia a
6
“Interdependência na política mundial refere-se a situações caracterizadas por efeitos recíprocos
entre países ou entre atores em diferentes países” (KEOHANE, NYE, 1989, p.8).
27
sensibilidade desses países diante do posicionamento estadunidense frente ao
narcotráfico em seus territórios.
A vulnerabilidade apresenta uma perspectiva um pouco diferente, já que ela
se agrava quando são encontradas assimetrias na interdependência (NOGUEIRA,
2005, p. 84). Ou seja, quando o poder de um Estado não é considerado como um
todo, mas sim, são considerados setores específicos dele.
Keohane e Nye (1977) definiram, então, a nova configuração da política
mundial como interdependência complexa, caracterizando-se pela existência de
diferentes canais de comunicação sendo eles organismos internacionais, contatos
informais, diversidade de atores; agenda múltipla de interesses e utilidade
decrescente do uso da força.
O Estado já não pode ser mais considerado como um ator unitário, dentro
dele há grupos de interesses divergentes que também possuem influência no
processo decisório. Logo, a interdependência entre atores do sistema internacional
poderá gerar, por um lado, benefícios, mas também pode ser “fonte de conflitos”
(NOGUEIRA, 2005, p. 87).
Para gerenciar esses possíveis conflitos ocasionados pela interdependência
complexa levanta-se a discussão sobre regimes internacionais, tendo como principal
autor do assunto, Krasner (1982). Os regimes serviriam para regular e resolver
problemas que dependem da cooperação entre Estados.
Segundo Krasner (1982, p.1)
Regimes Internacionais são conjuntos de princípios, normas, regras,
procedimentos de processos decisórios, implícitos ou explícitos, em torno
dos quais as expectativas dos atores convergem numa dada área das
relações internacionais.
Ou ainda, “regimes são arranjos que os Estados constroem para reger as
relações entre os mesmos em uma área específica” (HERZ; HOFFMANN; 2004, p.
19). A formação dos regimes internacionais se deveu ao fato de que, segundo Herz
e Hoffmann (2004, p.19), o multilateralismo, ou seja, a coordenação de relações
entre três ou mais Estados de acordo com um conjunto de princípios, era recorrente
às relações internacionais.
No entanto, os regimes internacionais “não são arranjos neutros e técnicos.
Refletem os interesses de países dominantes do sistema internacional” (OLIVEIRA,
28
2007, p. 13). Isso quer dizer que, no caso das convenções internacionais que tratam
do Crime Organizado Transnacional e do Narcotráfico, por exemplo, países que
detêm maior poder de influência sobre os demais sempre terão seus interesses
garantidos em maior parte. Contudo, a lógica neo-liberal explica que, mesmo diante
desta perspectiva, as organizações e regimes internacionais se fazem necessários
para alcançar os objetivos do Estado, o que denota a importância da existência de
tais atores para o Sistema Internacional.
Em relação aos países da Região Andina, e mesmo o Brasil, vê-se que os
Estados Unidos têm grande influência no que concerne às políticas de combate e
repressão ao narcotráfico na região. Assim como nos Estados Unidos, são políticas
voltadas para o combate ao narcotraficante e aos produtores de drogas
essencialmente.
A interdependência complexa de Keohane e Nye demonstra, como
supracitado, que essa relação de dependência entre Estados força tanto ao aumento
da cooperação como também incide nas assimetrias entre os mesmos, já que nem
sempre haverá consenso, e os Estados participantes do regime usaram de seu
poder – seja no setor político, econômico, tecnológico, militar – para tentar chegar a
uma resolução que lhes seja favorável.
Conclui-se que o Estado, como demonstrado também pelas teorias neoliberais, ainda possui papel de destaque no sistema internacional. Porém, outros
atores ganham cada vez mais influência no poder decisório das relações
internacionais. Villa (2001, p.78), defende a idéia de um “sistema internacional
policêntrico que seria formado por um novo condomínio de poder constituído por
movimentos
societais
transnacionais
e
instituições
intergovernamentais
e
supranacionais”.
Dentro da perspectiva descrita acima o narcotráfico representaria um modelo
de movimento societal transnacional, já que, segundo Villa (2001, p. 65) “sua
especificidade reside antes no funcionamento da sociedade civil cada vez mais
transnacionalizada do que no próprio Estado”.
A proposta de Villa (2001) é redefinir a conceituação de sistema internacional
realizada por Aron que se restringia a definição de relações interestatais propícias a
culminar em uma guerra, acrescentando a essa definição a possibilidade de novos
atores e necessidade de cooperação entre eles para o bom andamento das relações
internacionais.
29
Em suma, as teorias neo-liberais descrevem o cenário pós-Guerra Fria em
que percepções de novas ameaças à segurança mundial emergem. O termo
globalização passa a ser empregado para caracterizar essa nova etapa das relações
internacionais, remetendo à idéia de mundo interligado e interdependente. No
entanto, embora às ameaças ao novo sistema não fossem mais pautadas apenas na
iminência de um conflito nuclear, outras vertentes ganharam destaque nas agendas
dos países para a política exterior e nacional. O crime organizado, nitidamente
transnacional, e o narcotráfico faziam-se ainda mais presentes na América do Sul,
ocupando lugar de destaque na agenda brasileira, bem como na dos países da
Região Andina.
A configuração das relações internacionais funcionando por meio de redes
(HAESBAERT, 2005) tem que, portanto, considerar as falhas e pontos de ausência
estatal, para que se possa entender como se dá a emergência e ação desse novo
ator transnacional que será tratado no desenvolvimento do presente trabalho: o
narcotráfico.
30
CAPÍTULO 1
CRIME ORGANIZADO E NARCOTRÁFICO: UMA ABORDAGEM
CONCEITUAL
Ao tratar de qualquer temática relacionada a crime organizado, seja ele
transnacional ou não, é aberto um imenso leque de informações relativas a
guerrilhas, máfias, grupos terroristas, narcotraficantes. Logo, tais grupos, apesar de
manterem semelhanças entre si, não consistem em um mesmo fenômeno. Portanto,
dedicaremos as próximas linhas deste estudo à diferenciação entre esses termos a
fim de delimitar melhor o que vem a ser o narcotráfico. Aplicaremos esses conceitos
prioritariamente à América do Sul.
1.1 O crime organizado e suas peculiaridades
O crime organizado ainda não possui uma definição absoluta devido à
peculiaridade de cada uma de suas ações. Portanto, para melhor compreendê-lo,
faz-se necessário identificar algumas de suas principais características. Um dos
principais pontos do crime organizado atualmente é sua configuração empresarial.
Ou seja, os narcotraficantes, lavadores de dinheiro, traficantes de armas, ou
qualquer outro que pratique ações similares têm como principal objetivo, como já
anteriormente citado, o lucro.
No entanto, para compreensão desse trabalho será utilizada a definição de
grupo criminoso organizado utilizado pela Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional, que segue
é um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo
e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais
infrações graves ou enunciadas nesta Convenção, com a intenção de obter,
direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.
Atualmente, o crime organizado tem grande habilidade de adaptação e utilizase das vantagens tecnológicas produzidas pela globalização em suas atividades.
Para fins de exemplificação, lembramos que uma droga como a cocaína necessita
de, pelo menos, 51 produtos químicos para sua fabricação (MONTOYA, 2007, p.
31
105). Nesse caso, quanto menos barreiras tarifárias existirem nas relações entre
dois países e quanto mais contatos uma organização criminosa tiver, mais fácil é o
intercâmbio de substâncias essenciais para o refino da pasta da coca.
Montoya (2007, p. 67) delineia acerca de seis pontos em comum encontrados
em grupos que praticam o crime organizado. A primeira característica diz respeito ao
alto padrão de organização do referido grupo criminoso.
O segundo ponto mostra a capacidade dos integrantes da organização de
oferecerem serviços ilícitos como drogas e bens falsificados e, posteriormente,
aplicarem o dinheiro adquirido de modo não legal em atividades lícitas.
Todo dinheiro adquirido de modo ilícito necessita ser lavado7. Segundo o
Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), esse crime consiste em se
aplicar o dinheiro sujo na economia legal, por meio de três etapas.
Na primeira etapa é feita a colocação do dinheiro na economia lícita. Objetivase ocultar a origem do mesmo, portanto são feitas movimentações financeiras,
geralmente em países com um sistema financeiro liberal.
A segunda etapa consiste em dificultar o rastreamento desses recursos
ilícitos, movimentando de forma eletrônica em contas anônimas ou realizando
depósitos em contas fantasmas. Por último, o dinheiro ilícito é, de fato, incorporado
no sistema econômico legal. São feitos investimentos em atividades lícitas o que
facilita a legitimação do capital.
É curioso lembrar que os lavadores de dinheiro não precisam, ou em geral,
não fazem parte do crime organizado. Eles são pessoas contratadas para trabalhar,
no anonimato, para várias organizações ao mesmo tempo, a fim de maximizar seu
lucro e minimizar os riscos para eles e seus clientes (MONTOYA, 2007, p. 385).
A lavagem de dinheiro é uma das modalidades de crime organizado mais
preocupantes, já que não é utilizada apenas por narcotraficantes, abarcando
também outros grupos criminosos. Não há como mensurar exatamente a quantidade
de dinheiro ilícito presente na economia legal. O fato de várias companhias,
empresas, agências, facilitarem a prática da lavagem de dinheiro é um dos motivos
que mais dificultam o combate ao crime organizado propriamente dito.
7
O crime da lavagem de dinheiro é regulamentado no Brasil pela Lei de Lavagem de Dinheiro, ou Lei
nº 10.467, de 11 jun. 2009, disponível no sítio do Ministério da Fazenda.
32
Devido à necessidade da lavagem de dinheiro, as atividades do crime
organizado estão quase sempre entranhadas em serviços e bens legais. Esse fator
gera mais capital do que o próprio comércio de drogas.
Outro ponto atribuído ao crime organizado é o uso da violência para se
alcançar os objetivos da organização de forma mais rápida e lucrativa. Como
Tokatlian (1999, p. 170) demonstra, a violência não é exclusivamente utilizada pela
organização criminosa. O crime organizado cria suas raízes através da persuasão,
e, muitas vezes, a utilização da força e de métodos violentos faz-se necessários
para que os interesses da organização sejam aceitos e para que a mesma seja
reconhecida ou temida pela população.
As demais características do crime organizado citadas por Montoya e que
mais dificultam o seu combate é a corrupção do aparato governamental, da força
policial e do poder judiciário do Estado. Além disso, há que se lembrar as relações
que grupos criminosos tentam manter com pessoas econômica e politicamente
influentes.
Nota-se, também, a capacidade das organizações criminosas em atuarem
exatamente onde o Estado mostra ineficiência ou ausência. Diante das
características descritas acima, percebe-se que o poder que detém uma organização
está ligado ao montante de dinheiro que a mesma possui. Quanto mais dinheiro,
mais possibilidades de intimidação, persuasão e corrupção vão existir.
Além do exposto, é importante lembrar que a não definição absoluta do que
seja crime organizado compromete a ação do Poder Judiciário no que concerne ao
seu combate. Mesmo possuindo características específicas, ainda não há como
enquadrar juridicamente uma organização criminosa que tenha praticado tal ato
ilícito. Mesmo que o primeiro tratamento ao problema seja criminal, há dificuldade de
enquadramento de quem deve ser punido ou não.
Tokatlian (1999, p. 169) descreve o crime organizado como
crime de caráter integral, que está adquirindo dimensões globais (em âmbito
geográfico), transnacionais (em âmbito étnico-cultural), multiformes (nos
acordos que forja com setores políticos sociais) e pluriprodutivas (em
relação à gama de produtos que negocia e aos distintos níveis de
participação, isto é, produção, intermediação e venda, etc.)
A mobilidade do crime organizado confere a este característica de transição,
já que o mesmo tende a se expandir e mudar de configuração sempre que
33
necessário, ramificando-se entre a política, a economia e a sociedade. Sua inserção
na sociedade faz com que esta seja “vítima de suas demonstrações violentas de
força e beneficiária dos bens que o mesmo a provê” (TOKATLIAN, 1999, p. 1690).
Portanto, o crime organizado não trabalha contra o Estado. Pelo contrário,
está inserido nele por meio da economia, da influência política, dos empregos
informais que provê. O Estado torna-se funcional ao desenvolvimento do crime
organizado.
Tais pontos elucidados acima explicam como o crime organizado ramifica-se
entre os Estados e a economia global, configurando-se em redes criminosas a
serem abordadas no item 1.2 deste capítulo.
1.2 Organizações criminosas em rede
As organizações criminosas atuais tendem a se organizar em rede para
facilitar seus negócios, bem como para a troca de informações, insumos básicos e
recursos financeiros entre elas. Para uma melhor compreensão de como acontecem
esses processos, faz-se necessário entender como funcionam tais redes.
Segundo Oliveira (2007, p.17), as redes possuem três estruturas mais
comuns que seguem: em linha ou cadeia (chain network), em estrela (star or hub
network) e em interconexão (all channel network). “São também comuns formas
híbridas de redes que contam com estruturas mais ou menos hierarquizadas”
(OLIVEIRA, 2007, p. 17).
As redes demonstram como é dividido o poder dentro da organização e como
são feitas as relações entre essas células de poder. Ademais, indicam se há
envolvimento ou não com outras redes criminosas.
Em suma, a rede em linha indica que tanto produtos, capital ou informações
passam por todos os pólos da organização. Já as redes em forma de estrela
correspondem a grupos ligados a um poder central, como ocorria nos cartéis, que
possuíam estruturas hierarquizadas e todos os demais pólos de comando que
detinham encontravam-se ligados a uma chefia central. Por fim, as redes
interconectadas indicam que todos os pólos estão conectados entre si, a fim de
facilitar a permuta de produtos e informações.
A organização definirá se terá ou não uma liderança principal. Em caso
negativo, muitas vezes o poder principal é subdividido em diversas lideranças
34
menores, ou em um núcleo central e periferias (OLIVEIRA, 2007, p.24). Esse fator
confere à organização o poder de reestruturar-se rapidamente em caso de alguma
desarticulação provocada por motivo adverso. A organização ainda poderá ter vários
nódulos da rede desempenhando uma mesma função, o que também permitirá uma
reorganização rápida de partes danificadas desta rede criminosa (OLIVEIRA, 2007,
p.26).
As redes criminosas costumam organizar-se em forma híbrida de estrelas e
cadeias (OLIVEIRA, 2007, p. 21). Além disso, ganham vantagem em relação às
estruturas hierarquizadas como os Estados, por serem flexíveis, ou seja, se adaptam
a diferentes situações e se relacionam com outros grupos criminosos caso seja
necessário para a organização, além de possibilitarem um grande fluxo de
informações e bens facilitados. Contudo, percebe-se que esses fluxos dependerão
de uma série de fatores, como a eficácia da organização e a capacidade operativa
de seus membros.
Por fim, vale ressaltar que a conformação de redes criminosas objetiva
principalmente o ganho de lucros financeiros. Tendo em vista que essa configuração
de crime organizado ganha maior desenvoltura nas últimas duas décadas, é
pertinente associá-la ao capitalismo. Como Tokatlian (1999, p.168) explicita, os
conflitos sociais, os incentivos materiais e as práticas políticas que fazem parte do
modelo capitalista correspondem ao cenário em que se manifesta a criminalidade
organizada. Ou seja, a estrutura capitalista é utilizada para um maior florescimento
dos diferentes tipos de crime organizado.
1.3 Máfias e Crime Organizado
Apesar de alguns autores tratarem esses dois conceitos de forma
indiferenciada, máfia e crime organizado possuem características próprias.
As máfias, independente de ser a Cosa Nostra, a Yakuza japonesa ou ainda
as máfias russas, todas elas possuem pontos em comum, sendo eles: o valor da
família, o sentido da honra, a cultura da morte, a relação com o Estado e com o
35
poder, o mito fundante, a utilização da violência e, por fim, a sua estrutura e
organização8.
O papel central da família refere-se não somente à família de sangue, como
também aos demais membros da organização. Juntos, eles se estabelecem em
determinado território, onde seus negócios serão realizados e sua autoridade
determinada.
O sentido da honra se deve às regras que o mafioso terá que seguir para
fazer jus ao termo homem de honra. Dentre elas está o respeito à organização. Isso
exige que o mafioso mate e se cale se for necessário. A cultura da morte e a
utilização da violência estão relacionadas ao sentido da honra à medida que matar
irá conferir prestígio e confiança ao mafioso que realizar esse ato, e a utilização da
violência poderá angariar influência em três grandes setores, sendo eles: “a polícia,
a justiça e os altos escalões da administração” (MONTOYA, 2007, p.2).
O poder e a relação com o Estado é uma das características que também é
encontrada em outros grupos de crime organizado, tais como os narcotraficantes.
Montoya (2007, p.2) descreve máfia como uma “organização paralela ao Estado que
tenta aproveitar as distorções do desenvolvimento econômico para trabalhar na
ilegalidade”.
O mito fundante é a história da organização propriamente dita. Ele guiará os
preceitos da inserção de um novo membro na organização mafiosa. Toda máfia
possui uma iniciação que representará a passagem do novo membro de um Estado
para o outro. Ou seja, ele estará criando um vínculo com a entidade mafiosa,
devendo agir de acordo com o código de conduta que lhe for passado. Além disso,
uma vez iniciado, não há possibilidade de voltar atrás.
A partir dessas características vê-se que máfia é
uma empresa criminosa com fins lucrativos, cujos membros são recrutados
por meio da iniciação ou da captação, que recorre à corrupção, à influência
e à violência para obter o silêncio e a obediência de seus membros, e
daqueles que não o são, para atingir seus objetivos econômicos e garantir
os meios para atuar, e que possui, na maioria das vezes, uma história e
uma forte implantação sociocultural local, desenvolvendo suas atividades
em escala internacional (MONTOYA, 2007, p.3).
8
As características atribuídas às máfias apresentadas neste capítulo foram tiradas do livro “Máfia e
Crime Organizado” de Mário Daniel Montoya.
36
Além disso, as máfias possuem uma estrutura hierárquica9 e unitária. O que
não as impede de manterem vínculos entre si, e/ou com outros grupos criminosos. A
internacionalização das máfias se deu de forma concreta quando essas
organizações decidiram entrar no tráfico de drogas, nos anos 70 (MONTOYA, p.8).
Para tal, foi necessário manter vínculos com outros grupos também poderosos em
outras partes do mundo. Por conseqüência, nos anos 80, as máfias intensificam os
procedimentos de lavagem de dinheiro e o envolvimento em outras atividades
ilegais, como o tráfico de armas e cigarro.
Assim como os grupos criminosos narcotraficantes, o objetivo principal das
máfias é o lucro. Portanto, suas atividades giram em torno de uma mesma
finalidade. Ambas as organizações agem quando há um vácuo de ação estatal, seja
ele policial, judicial ou econômico. Isso faz com que, muitas vezes, a população
aprove e defenda as ações de mafiosos ou narcotraficantes, visto que os mesmos
proveram a população de recursos básicos que o Estado não lhes proporcionou.
Apesar das semelhanças com o crime organizado, de sua capacidade de
também se envolver em diferentes atividades ilícitas e estar presente em distintos
lugares ao mesmo tempo, a máfia, no entanto, apresenta características próprias,
como os valores da honra, da cultura da morte, do respeito à organização para
ascensão dentro da própria máfia.
Veremos que os grupos narcotraficantes atuantes na Região Andina a partir
da década de 90 possuem caráter menos estrutural e mais segregado.
1.4 Terrorismo e Crime Organizado
Ainda não há definição absoluta para o que seja terrorismo. Cada país ou
órgão possui sua própria definição de acordo com seus interesses. No caso
brasileiro, temos uma definição elaborada pela Comissão de Relações Exteriores e
Defesa Nacional (Creden) que classifica o terrorismo como
9
Segundo Montoya (2007, p. 5), dentre os integrantes da máfia tem-se: o chefe, aquele que possui a
palavra final em todas as decisões; o conselheiro, pessoa de confiança do chefe; o vice-chefe, que
substituirá o chefe caso necessário; os capos, administradores de nível médio; soldados, que mantêm
contato com os capos e operam determinados negócios; a Comissão, que agrupa os mais poderosos
chefes da máfia em um corpo central; os operadores, que correspondem aos representantes da
família encarregados de castigar os traidores.
37
todo ato com motivação política ou religiosa, que emprega força ou violência
física ou psicológica, para infundir terror, intimidando ou coagindo as
instituições nacionais, a população ou um segmento da sociedade. (Revista
Brasileira de Inteligência, p. 14).
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) segue também a linha de
pensamento elaborada pela Creden, considerando terrorismo como
Ato de devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar, incendiar, depredar
ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, causando perigo efetivo ou
dano a pessoas ou bens, por indivíduos ou grupos, com emprego da força
ou violência, física ou psicológica, por motivo de facciosismo político,
religioso, étnico/ racial ou ideológico, para infundir terror com o propósito de
intimidar ou coagir um governo, a população civil ou um segmento da
sociedade, a fim de alcançar objetivos políticos ou sociais. (Revista
Brasileira de Inteligência, p. 14).
Há autores que trabalham a idéia de que grupos terroristas estão
abandonando o caráter puramente ideológico e anti-governamental de suas ações, a
fim de se envolverem em atividades financeiras. Nesse caso, a prática do terrorismo
passa a ser um recurso para se atingir algo que se deseja e que pode ou não ter um
fim político ou social.
Para fins desse estudo, vê-se, portanto, que os grupos narcotraficantes ou
que praticam outro tipo de crime organizado podem envolver-se com atividades
terroristas. No entanto, a finalidade de suas ações almeja tanto um maior alcance de
poder, como consequentemente o lucro.
As correlações entre terrorismo e crime organizado se dão pelo fato de o
último ter como uma de suas características o uso da violência. No entanto, o
terrorismo empregado por organizações que praticam alguma vertente do crime
organizado não possui fim ideológico. Pelo contrário, essas organizações possuem
“uma visão simples, prática, utilitária da realidade e de como aproveitá-la para
melhorar e elevar sua inserção política, sua legitimidade social e sua gravitação
econômica. A ideologia pouco, ou nada, importa” (TOKATLIAN, 1999, p. 171).
Diferentemente dos cartéis colombianos dos anos 1980, as atuais redes
narcotraficantes possuem outra configuração. O poder não se encontra concentrado
em um único indivíduo, e as atividades do grupo são divididas em diferentes etapas,
gerando um caráter descentralizado para grupos traficantes.
38
Não havendo monopólio quanto à produção, refino e distribuição das drogas,
os grupos narcotraficantes acabam se relacionando com outros grupos. Daí as
possíveis correlações entre máfias e grupos terroristas com os traficantes de ilícitos.
Fica claro, então, que a relação entre terrorismo e narcotráfico estudada neste
trabalho diz respeito às formas de violência utilizadas por narcotraficantes para
coagir, intimidar e/ou corromper outrem, gerando assim perigo a ordem pública.
Logo, atores que praticam comércio ilícito de bens, como o caso do tráfico de
drogas, muitas vezes recorrem a estratégias terroristas como uma maneira de
alcançarem suas finalidades.
Classificar um grupo como terrorista torna-se complexo, pois dependerá da
legislação vigente em cada país. Há necessidade de cooperação jurídica entre
diferentes países, a fim de que possa haver um combate efetivo ao crime
organizado, bem como de seus vínculos terroristas.
2. O Narcotráfico
O tráfico de drogas é uma das modalidades do crime organizado mais
desenvolvidas. É subdividido em diversas etapas, e, com a globalização, suas
atividades tornam-se cada vez mais eficazes devido à tecnologia. O comércio de
drogas ilícitas está quase sempre entranhado em outra atividade do crime
organizado, tal como o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, ou o contrabando
de outro bem, tornando-o ainda maior e mais difícil de ser combatido.
A estrutura do narcotráfico a partir dos anos 90 difere da dos cartéis e das
máfias. Sua operacionalidade é dividida em etapas, sendo elas: a produção, o
processamento, o trânsito do produto, a sua comercialização e, por fim, a lavagem
de dinheiro (PROCOPIO, 1997, p. 57). Ademais, para que sejam realizados todos os
processos, os grupos criminosos devem possuir uma característica básica:
flexibilidade. Eles devem estar aptos a se rearticularem sempre que necessário,
respondendo às tentativas de repressão ao narcotráfico, ou mesmo, a demanda
crescente por determinado tipo de droga.
Segundo Procópio (1997, p.24), a logística da estrutura produtiva do
narcotráfico passou por um processo de descentralização. Ou seja, o grupo
criminoso subdivide-se, tendo mais de um grupo de comando, localizados em locais
diferentes.
39
Diferentemente das máfias e grupos terroristas, o narcotráfico na maioria das
vezes é desprovido de caráter ideológico. Seu objetivo principal é sempre vinculado
à obtenção de ganhos financeiros. Contudo há exceções como as FARC, na
Colômbia, e o Sendero Luminoso, no Peru. Tais grupos nasceram ainda no
comunismo. Contudo, com a queda da influência comunista, tais grupos
necessitaram envolver-se com outras funções que lhes possibilitassem ganhos
financeiros, tais como o narcotráfico. Portanto, é fácil notar, que mesmo em grupos
que possuam algum tipo de ideologia, o narcotráfico será praticado com vistas a
adquirir capital.
Vê-se que também ocorre mudança nas estratégias de produção e
distribuição da droga. Os traficantes optam pela micro e macrodistribuição. Esse
fator explica o que Procópio (1997, p.24) chama de interiorização da droga, o que
significa que as etapas do tráfico não estão mais concentradas num único lugar, ou
regidas por um único grupo, como acontecia com os cartéis de drogas. Há uma
mudança de foco da produção, distribuição e venda de ilícitos da metrópole para as
pequenas cidades. Isso porque os esforços de repressão ao tráfico de drogas
costumavam concentrar-se principalmente nas grandes cidades e em grandes portos
marítimos.
O narcotráfico possui caráter transnacional, ou seja, suas ações têm alcance
além das fronteiras nacionais, envolvendo mais de um país. Ademais, o caráter
transnacional se deve ao fato de que, muitas vezes, para fabricação de determinada
droga são necessários produtos químicos, que, nesse caso, podem ser importados
de outros países. Ou apenas trafica-se o insumo básico que, mais tarde,
transformar-se-á em um psicoativo ilícito em uma refinaria de outro país.
As redes narcotraficantes são integradas. Possuem uma política de
cooperação entre si (PROCOPIO, 1997, p. 70), característica e necessidade do
mundo globalizado. Para realizar uma atividade como o tráfico de drogas, maior
lucro terá a organização que possuir melhores condições de financiamento do
processo e uma rede de relacionamento maior.
O narcotráfico enquadra-se como nova ameaça à segurança, já que
desestabiliza a ordem, a economia e a população. Ademais, difere do tradicional
pensamento realista das relações internacionais, em que o Estado é o protagonista
principal. Pelo contrário, as consideradas novas ameaças à segurança internacional
40
são “desprovidas de características típicas do Estado-Nação, tais como território e
população” (MACHADO, p. 2).
2.1 Substâncias psicoativas: a dicotomia entre o lícito e o ilícito
Erroneamente, ao trabalhar assuntos como crime organizado, narcotráfico
e/ou dependências químicas, o termo drogas é muito utilizado para referir-se
somente às substâncias ilícitas traficadas. Denominadas de substâncias psicoativas
ou, apenas, psicoativos, as drogas podem também ser lícitas, como o álcool e o
tabaco. As substâncias psicoativas são produtos que “têm a capacidade de alterar
nosso sistema nervoso central” (OLIVEIRA, 2007, p. 29).
Ademais, seu consumo está presente na história por várias décadas para uso
medicinal, religioso, e conforme foram sendo descoberta outras finalidades, para uso
também recreativo10.
Os governos começaram a regular e proibir o uso de algumas dessas
substâncias ao perceberem a forte dependência que ocasionavam aos seus
usuários, bem como o efeito que sua produção poderia acarretar à economia.
Contudo, a partir dos anos 1980, a produção e o acesso aos psicoativos ilícitos
aumentaram. A forma como cada sociedade encarou a questão da produção, do
consumo e do comércio de drogas foi variada. Quando o consumo e a produção
estão arraigados às questões culturais, é extremamente difícil promover a
erradicação absoluta dessas substâncias. Isso ocorre em países da Região Andina,
como na Bolívia, por exemplo.
Abaixo será mostrada uma breve explicação acerca do histórico e
conseqüências dos principais tipos e espécies de drogas, tendo em vista que muitas
delas são produzidas e comercializadas na região de estudo desse trabalho
10
A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) afirma que: “o uso de drogas que alteram o estado
mental, chamadas de substâncias psicoativas (SPA), acontece há milhares de anos e muito
provavelmente vai acompanhar toda a história da humanidade. Quer seja por razões culturais, ou
religiosas, por recreação ou como forma de enfretamento de problemas, para transgredir ou
transcender, como meio de socialização ou para se isolar, o homem sempre se relacionou com as
SPAs”. Disponível em: http://obid.senad.gov.br/OBID/Portal/index.jsp?idPessoaJuridica=1, último
acesso em: 16/09/2009.
41
monográfico11. Além disso, os dados abaixo também servirão para demonstrar o
objeto de trabalho que utiliza o regime internacional acerca do narcotráfico.
De acordo com a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD)12, as substâncias
psicotrópicas são divididas em três categorias. São elas: as drogas depressoras, as
estimuladoras e as perturbadoras.
2.1.1 As drogas depressoras
Esta categoria de drogas diminui a atividade mental, causando redução da
atividade cerebral. Ademais prejudicam a capacidade de concentração e
memorização do indivíduo, bem como as tensões emocionais. Dentre as drogas
depressoras destacam-se para fins desse trabalho as bebidas alcoólicas, os
tranqüilizantes e barbitúricos e os opiáceos morfínicos.
2.1.1.1 O Álcool
Considerado uma das drogas mais devastadoras da humanidade, não há
convenção ou tratado internacional que regule o uso dessa substância. Seu nome
técnico é Álcool Etílico, classificado como Depressor do Sistema Nervoso Central. É
uma droga legalizada, aceita pela sociedade, e tem seu consumo constantemente
estimulado. Pode provocar danos ao organismo se ingerido em grande quantidade e
levar ao coma alcoólico. Seus efeitos possuem duas fases: uma estimulante e outra
depressiva. É considerado uma droga psicotrópica por causar dependência.
2.1.1.2 Os tranqüilizantes
Muito comercializados no mundo, devem ser ingeridos somente mediante
prescrição médica. Não devem ser misturados ao álcool, nem ingeridos em grandes
11
As informações sobre drogas psicoativas desse capítulo (salvo quando indicado de outra forma)
foram retiradas da “Maçonaria contra as drogas”, Grande Oriente do Brasil, Ed. 2006. e do site da
SENAD http://www.senad.gov.br/obid/obid.html, último acesso em 16/09/2009. 12
A SENAD é um órgão de prevenção ao consumo das drogas e está subordinado ao Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República.
42
quantidades. Caso contrário, podem aumentar o efeito depressor do álcool ou
provocar uma intoxicação grave.
Dentro dessa categoria encontram-se também os barbitúricos. Têm função
sedativa; provocam calma e relaxamento. Se misturado com o álcool, seus efeitos
podem aumentar causando estado de coma no usuário ou dificuldade respiratória.
Causa tolerância no organismo.
2.1.1.3 O ópio, os opiáceos e os opióides
Os opiáceos e opióides são substâncias derivadas do ópio e extraídas da
papoula (Papaver somniferum), as quais também diminuem a atividade do sistema
nervoso central. A princípio, o ópio era utilizado como substância medicinal pelos
sumérios na Mesopotâmia. No século XVIII, o ópio passou a ser um negócio
lucrativo, e com a expansão das rotas comerciais, tomou conta da Europa. Na
década de 90, começou a ser cultivado também na América do Sul, primeiro pela
Colômbia e, posteriormente, estendendo-se pela Venezuela. Do ópio, derivam-se
ainda a morfina, a heroína e a codeína. Causam tolerância e dependência química e
psicológica com maior facilidade.
2.1.2 Drogas estimulantes
Como o próprio nome já diz, possuem efeito estimulante, aumentando a
atividade cerebral, que pode ser seguida por uma fase depressiva. Causam euforia,
bem-estar, mas também provocam irritabilidade e insônia. Nessa categoria
enquadram-se as anfetaminas, a cocaína, a nicotina e a cafeína.
2.1.2.1 As anfetaminas
São drogas sintéticas, elaboradas em laboratórios. Com efeitos estimulantes,
foram muito usadas na Segunda Guerra Mundial, com vistas a evitar a fadiga. Hoje,
é considerada uma droga ilícita, capaz de provocar efeitos danosos no usuário, tais
como sensações de pânico, medo, instabilidade motora, dentre outros. Seu uso é
restrito a necessidades médicas. Nesse caso, é muito utilizado em quadros de
depressão e no tratamento da obesidade.
43
Dentre as anfetaminas que têm seu consumo cada vez mais freqüente,
principalmente entre freqüentadores de festas de música eletrônica e jovens, está o
ecstasy. Foi criado sem nenhuma finalidade medicinal e declarado ilegal nos anos
80.
2.1.2.2 A Cafeína
Droga permitida e amplamente consumida. Serve como estimulante e inibe o
sono. Aparentemente inofensiva, é parte constituinte de todos os refrigerantes no
Brasil.
2.1.2.3 A Nicotina
A nicotina, contida na planta denominada Nicotiana Tabacum, é, também,
uma substância estimulante que gera alterações no humor e sensação de
relaxamento. Seu consumo data de 1000 a.C.. Causa dependência química e
psicológica e é apontada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como grande
causadora de doenças, tais como câncer, pneumonia, derrame cerebral. Apesar de
ser considerada uma droga lícita, há grande contrabando de cigarros na Tríplice
Fronteira correspondente aos limites de Brasil, Paraguai e Argentina. Na década de
1960, estudos associaram o cigarro a malefícios à saúde humana. Contudo, a
indústria do tabaco só cresceu e seu uso se tornou amplamente difundido pelo
mundo.
2.1.2.4 A cocaína
Uma das substâncias de destaque quando se fala em narcotráfico,
principalmente na Região Andina e parte da região amazônica do Brasil, é a
cocaína. Devido a esse fator, serão dadas mais informações acerca desse psicoativo
do que sobre outros nesse capítulo.
Dentre os estimulantes, é considerada a droga mais potente. É extraída das
folhas de uma planta conhecida como arbusto da coca (Erythroxilon coca), muito
encontrada na região dos Andes, principalmente no Peru, Bolívia e Colômbia. A
folha de coca já era consumida pelos índios em seus rituais religiosos, ou para
44
suprimir o cansaço, a fome e a sede. Descoberta pelos Incas, no Peru, em 2500 –
1800 a.C., era chamada de “planta dos deuses” e foi, também, considerada como
remédio, chegando a ser comercializada para fins medicinais no século XIX.
O refino da coca não é tão simples. Primeiro as folhas de coca são
misturadas com ácido sulfúrico ou querosene, obtendo-se, assim, a pasta base de
coca. Posteriormente é adicionado a essa pasta o éter ou acetona e ácido clorídrico.
Após seca, toda essa mistura transformar-se-á em cloridrato de cocaína, ou seja, o
pó da cocaína pura. Antes de ser comercializada, muitas vezes os narcotraficantes
adicionam outros produtos à cocaína, fazendo com que a mesma perca sua pureza.
Devido a isso, muitos usuários deslocam-se das grandes capitais para comprarem a
coca em seus locais de origem, a fim de conseguirem uma melhor qualidade e um
preço mais baixo.
Da pasta base ou pasta da coca obtém-se a merla. Uma droga agressiva e
muito tóxica, que surge da mistura de folhas da planta de coca, com solventes como
a cal virgem, o querosene e o ácido sulfúrico.
Outro subproduto da cocaína é o crack. Ele surge da mistura da pasta base
da cocaína com o bicarbonato de sódio. Foi desenvolvido nos anos 80 e teve seu
consumo alastrado a partir da década de 90, principalmente entre classes de poder
aquisitivo menor. Contudo, atualmente o consumo dessa droga vem aumentando
também junto à classe média.
A cocaína foi considerada um psicoativo ilícito ainda no século XX devido aos
malefícios que causava à saúde humana. No entanto, em alguns lugares, como no
Peru e Bolívia, seu consumo através do chá da folha de coca, ou, ainda, mascandoa continua a ser uma prática permitida.
2.1.3 Drogas Perturbadoras
São drogas consideradas alucinógenas. Alteram o senso de percepção do
indivíduo e pode levar o sistema nervoso central a funcionar de forma desordenada.
Dentre elas, encontram-se a maconha, o LSD, a mescalina, o cogumelo, a
ayahuasca e os anticolinérgicos.
45
2.1.3.1 A maconha
É o psicoativo ilícito mais consumido do mundo. A maconha é o nome dado a
diferentes espécies da planta Cannabis, dentres elas a Cannabis sativa, a Cannabis
indica e a Cannabis ruderalis. É também conhecida como cânhamo, marijuana ou
diamba.
A maconha é conhecida há mais de 5000 anos, sendo utilizada tanto para fins
medicinais como hedonistas. O consumo da planta foi proibido nos anos 60 no
Ocidente, devido ao aumento de sua utilização visando apenas o prazer e seus
efeitos nocivos para o usuário. Apesar dos efeitos indesejáveis ocasionados pela
maconha, a mesma possui também efeitos medicinais como amenizar a sensação
de náuseas e vômitos produzidos por medicamentos contra o câncer e em pacientes
que sofrem de epilepsia.
A resina extraída das folhas da Cannabis origina outro psicoativo, o haxixe. E
o cruzamento das três espécies de Cannabis já anteriormente citadas, deram
origem, na década de 1960, ao skunk, que possui efeitos mais fortes que o do
próprio cânhamo.
Os efeitos da maconha dependerão de uma substância produzida por ela
mesma denominada tetraidrocanabinol (THC). Quanto maior for a concentração de
THC, maior será a potência da substância. Algumas pessoas sentem sensações de
relaxamento, hilariedade. Já outras ficam trêmulas, sentem angústia e tremor, além
de sofrerem prejuízo da memória e das noções de espaço e tempo. Esses e outros
fatores levam a pessoa a ficar impossibilitada de realizar tarefas como dirigir, ou
outras que precisem de certa atenção.
O uso da maconha, sua produção e comercialização foram proibidas em
alguns países na década de 60. No entanto, alguns outros governos ainda permitem
que a maconha seja consumida em pequenas quantidades. Contudo, sua produção
e comercialização ficam proibidas.
2.1.3.2 O LSD
Sua sigla em inglês significa Lysergic Saure Diethylamide, ou ácido lisérgico.
Possui propriedades altamente alucinógenas e não possui nenhuma qualidade
46
medicinal. Em 1968, foi considerada uma droga ilícita. Seu consumo só não é maior
pelo alto custo dessa droga e pelos efeitos perturbadores que ela causa.
2.1.3.3 O cogumelo, a mescalina e a ayahuasca
Substância presente nos Estados Unidos e no México, a mescalina é extraída
de um cacto mexicano denominado Peyote ou mescal. Foi bastante utilizada em
rituais religiosos, assim como a ayahuasca, que era chamada no Peru de “vinho da
vida”.
Já os cogumelos são fungos, com propriedades alucinógenas, antigamente
usados entre os índios na Região Andina. O uso excessivo pode causar efeitos
nocivos ao indivíduo, tais como modificação de humor, efeitos alucinatórios, ou até a
morte, visto que existem alguns tipos de cogumelo venenosos.
O uso de todos é proibido, tendo em vista que os efeitos psicológicos que
produzem são muito perigosos.
2.1.3.4 Os anticolinérgicos
São drogas usadas para bloquear as ações de um neurotransmissor
encontrado no sistema nervoso central. Produzem delírios e alucinações,
taquicardia, dificuldade visual e boca seca, principalmente em casos de serem
consumidos juntamente com outras substâncias perturbadoras. Contudo, é o único
psicoativo,
dentre
as
demais
substâncias
perturbadoras,
a
ser
aceito
internacionalmente pela medicina.
Por fim, vê-se que, independentemente de serem lícitas ou ilícitas, os
diferentes tipos de drogas estão, de alguma forma, comprometendo a saúde
humana, o que gera gastos para os governos e prejuízos na força de trabalho.
Ressalta-se, ainda, o alto consumo de drogas lícitas, que além de provocarem danos
à saúde, também estão relacionados à violência, como é o caso do álcool. No
entanto, drogas como o álcool e o tabaco, por terem o consumo difundido
mundialmente, bem como por possuírem uma indústria com alta margem de lucro,
47
não interessa às elites sociais a equiparação destes com danos provocados por
drogas ilícitas.
Os dados apontados acima servirão de base para o estudo dos regimes
internacionais sobre psicoativos ilícitos e o entendimento de como a problemática do
narcotráfico se desenvolveu na Região Andina e no Brasil.
48
CAPÍTULO 2
A CONFIGURAÇÃO DO NARCOTRÁFICO NA AMÉRICA DO SUL: BRASIL
E PAÍSES ANDINOS
A América do Sul, e, particularmente, os países escolhidos para análise desse
trabalho monográfico, são essenciais para o estudo do narcotráfico. A região ganha
importância nas últimas três décadas do século XX, e tem seu papel no tráfico de
drogas acentuado no século XXI. Vários fatores contribuem para tal, dentre eles temse que desta região fazem parte os maiores produtores e exportadores de cocaína
do mundo, sendo eles a Colômbia, o Peru e a Bolívia. Ademais, características como
flexibilidade das redes narcotraficantes, condições geográficas favoráveis ao cultivo
de ilícitos e facilidade de movimentação de bens e pessoas através dos extensos
espaços territoriais são fatores que contribuem para o desenvolvimento desta
modalidade de crime organizado na região.
2.1 Antecedentes históricos: problemática voltada à América do Sul
Desde os primeiros registros de expansão de drogas, governos de vários
países
do
mundo
buscam
explicações
para
seu
crescente
consumo
e
comercialização, perpassando a culpa entre minorias étnicas, jovens revolucionários,
pessoas com baixo poder aquisitivo. Foi necessário um aumento considerável de
usuários, bem como os impactos econômicos que essas substâncias psicoativas
trouxeram para que passassem a ser consideradas problemas de segurança
nacional por alguns países.
A partir dessa perspectiva, percebe-se que a questão das drogas ganhou
importância ao longo dos anos de acordo com as prioridades tanto de políticas
externas quando internas de cada país. Portanto, tornar-se ou não problema de
segurança nacional dependia das necessidades governamentais daqueles que
detinham maior poder de influência nas relações internacionais. Nesse caso,
destacam-se os EUA, precursores das políticas de criminalização das drogas ao
longo do século XX.
Em 1909, os EUA foram os responsáveis por convocar, em Xangai, na China,
uma conferência internacional com o propósito de discutir o tráfico de ópio entre as
49
nações. Já nessa época, demonstrava-se preocupação com a relação entre o ópio e
a segurança interna, bem como, com o aumento do consumo dessa droga por
soldados norte-americanos. O mesmo discurso foi utilizado quando as atenções
voltaram-se à América do Sul.
Em 1961, realizou-se em Genebra, Suíça, conferência internacional que
aprovava a Convenção Única sobre Entorpecentes de 196113 (PROCOPIO, 1999, p.
120). Nela, incluía-se uma lista de entorpecentes, que estariam sujeitos à
fiscalização. Nessa conferência, houve a inclusão do arbusto de coca e de folha de
coca na lista de entorpecentes. Na América do Sul, Peru e Bolívia, historicamente, já
se destacavam no cultivo dessa planta. A Convenção Única de 61, proibindo a
produção e comércio de cocaína, favoreceu a pressão internacional nos países
supracitados.
Na década de 1960, o consumo de alucinógenos como maconha, LSD, haxixe
aumenta consideravelmente nos EUA e na Europa. À época, os principais
fornecedores de tais alucinógenos eram a Jamaica e o México. Fazendo frente ao
narcotráfico continental, os EUA primam por realizar políticas bilaterais de combate
ao problema. Nesse contexto, realizam operações conjuntas com o México,
investindo considerável quantia de dinheiro nesse país, a fim de que se erradicasse
o narcotráfico.
Houve diminuição da oferta dessas drogas por parte do México e da Jamaica.
Contudo, já existiam outros países aptos a produzirem os mesmos tipos de drogas.
Esse último fator já evidenciava que a erradicação de uma parte da oferta não tem
efeitos sobre a demanda. Ao contrário, as políticas de repressão forçavam o
surgimento de novos fornecedores.
Com a diminuição do tráfico no México e Jamaica, a Colômbia passa a ser a
principal fornecedora de maconha para os consumidores norte-americanos, até o
cultivo da marihuana ser, em grande parte, substituído pela plantação de arbustos
de coca. Esse período de transição entre cultivos na Colômbia, e aumento do
narcotráfico na região, é conhecido como boom da cocaína, entre finais da década
de 1970, início dos anos 1980.
13
A Convenção Única de 1961 entende por tráfico de ilícitos o cultivo ou qualquer tráfico de
entorpecentes, contrários a disposição da referida Convenção.
50
São vários os fatores que facilitaram o amadurecimento do narcotráfico na
região. Oliveira (2007, p.69) destaca
Primeiramente, a existência de organizações, sobretudo na
Colômbia, que já se ocupavam de práticas ilegais (como o tráfico de
maconha, pedras preciosas e variados contrabandos). Essas organizações
estavam preparadas para o transporte e comercialização das substâncias
ilícitas. [...] Outro fator essencial foi o crescente mercado consumidor de
cocaína. O mercado se expandiu rapidamente incluindo não só metrópoles
estadunidenses, mas também européias e sul-americanas.
Além dos pontos acima, ainda havia na região grande quantidade de mão-deobra barata para trabalhar nas primeiras etapas do narcotráfico, plantando e
refinando a droga, por exemplo. Ademais, a Região Andina possuía condições
geográficas, culturais e climáticas ideais para o plantio da folha de coca (OLIVEIRA,
2007, p.70).
Diante de todo esse contexto, foi adotada por parte dos EUA uma política de
enfrentamento bilateral do problema na região sul-americana, buscando, portanto,
estabelecer convênios com os países que abrigavam os principais produtores,
processadores e traficantes de cocaína na região, tais como Peru, Bolívia e
Colômbia. O governo norte-americano, assim como fez com o México, pretendia, por
meio de incentivos financeiros e treinamento das forças armadas e policiais de tais
países, erradicar o cultivo de ilícitos e coibir seu conseqüente tráfico.
Os EUA previam a aplicação de sanções econômicas aos países que não
cumprissem o disposto nas convenções sobre o narcotráfico. E por serem os únicos
cultivadores, processadores e produtores de cocaína, os países da Região Andina
tornaram-se mais visados pela política exterior estadunidense de combate ao tráfico
de drogas. Os EUA desenvolveram, então, uma medida conhecida como processo
de certificação14 (DEL OLMO, 1994, p. 129), que previa, como o próprio nome
sugere, a certificação de que os países andinos estivessem cumprindo as exigências
dos EUA quanto ao combate às drogas.
14
O processo de certificação surgiu da Lei Pública norte-americana nº 99.570, denominada “Lei
Contra o Abuso de Drogas de 1986”. Tal processo previa sanções do Fundo Monetário Internacional
(FMI), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além de embargos econômicos a países
que não seguissem os tratados e convenções acerca do comércio ilegal de drogas, bem como aos
que permitissem lavagem de dinheiro em seu território (PROCOPIO, 1999, p.122).
51
Na década de 1980, o governo norte-americano, liderado por Ronald Reagan,
desenvolve a guerra às drogas, voltada principalmente para a erradicação de
plantações, das quais derivam drogas ilícitas. Para tanto, em 1987, 23 países já
recebiam ajuda norte-americana para programas de erradicação (DEL OLMO, 1994,
p. 130). Além disso, ainda durante seu mandato, o presidente Reagan classifica o
narcotráfico como problema de segurança nacional e também sugere a conexão do
terrorismo com o tráfico de psicoativos ilícitos.
Internamente, o governo Reagan criou uma sentença mínima obrigatória que
incrementava o castigo por possessão de drogas (DAMMERT, 2009, p. 120). Essa
medida almejava reduzir a quantidade de consumidores dentro do país, já que os
EUA lideravam o ranking de país consumidor de drogas ilícitas. Essa medida interna
impactou a população consumidora de drogas ilícitas nos EUA, no entanto, não
houve diminuição de consumo, mantendo-se, assim, estável.
Percebe-se, portanto, que os EUA priorizavam uma política externa de
intervenção, já que consideravam que o problema do narcotráfico estava nas origens
do processo, ou seja, na plantação. A ingerência em outros países era, então,
explicada pelo fato de que sendo o narcotráfico problema de segurança nacional, o
País estava habilitado a interferir internamente naqueles que produziam ou
facilitavam a produção e o transporte de drogas. Além disso, a guerra às drogas
desenvolvida pelo governo Reagan apenas consolidou o viés militar do combate ao
problema.
Analisando a situação à luz das idéias trabalhadas por Cervo (2002, p. 457), a
política de repressão às drogas adotada pela América do Sul, e, em especial, pelos
países de estudo desse trabalho monográfico, reflete a condição de Estado
subserviente do centro hegemônico. Nela, o Estado sem condições de lidar sozinho
com uma situação, se submete às coerções e diretrizes de uma potência maior. Ou
seja, na medida em que se aumentava a produção e tráfico de drogas na América
do Sul, o problema tomava proporções maiores, e o narcotráfico inseria-se cada vez
mais no Estado. Sendo um problema de caráter transnacional, não há como
erradicar o narcotráfico sem cooperação e ajuda externa. E é aí que os EUA tornamse financiadores das políticas de repressão e erradicação do cultivo de drogas.
No entanto, na América Latina a percepção do problema das drogas,
inicialmente diferenciava-se da visão norte-americana de ameaça à segurança
nacional, já que o narcotráfico gerava empregos e renda em regiões pobres, além do
52
cultivo de algumas substâncias consideradas ilícitas serem culturais. Esses fatores
dificultam ainda hoje a erradicação total de plantações de coca nos países andinos.
2.2 O boom da coca
Tal como tratado no item acima, a marijuana começa a ser produzida e
exportada na Colômbia em meados de 1970. No entanto, devido a um processo de
erradicação realizado pelo governo, em 1979, perde a importância, dando lugar ao
cultivo de outras substâncias psicotrópicas, em larga escala, e, em meados de 1990,
a criação de uma indústria de papoula.
Tanto o Peru quanto a Bolívia detinham historicamente o cultivo de arbustos
de coca. Nos anos 1980, a produção de folhas de coca na Bolívia concentrava-se,
principalmente, em regiões como o Chapare, Yungas, Departamento de La Paz e
Departamento de Cochabamba (DUPAS, 2005, p. 156). Dentre elas, a região do
Chapare é a que possuía maior concentração de famílias dependentes do cultivo de
coca para sobreviver.
Segundo Procopio (1999, p.121), após a Convenção de 1961, o governo
boliviano, presidido pelo Doutor Víctor Estenssoro, estabeleceu convênio com os
Estados Unidos que previa a erradicação gradual de arbustos de coca na região de
Yungas, de la Paz. Dito fator foi responsável por grande migração populacional para
a região do Chapare. Mais tarde, a densidade campesina nessa região, bem como
os ganhos com o narcotráfico, fez com que o Chapare fosse escolhido como local
em que seriam implementadas as primeiras políticas de erradicação de cultivos no
País.
Portanto, a configuração do narcotráfico no início dos anos de 1980 era a
seguinte: o cultivo e transformação em pasta base da folha de coca acontecia no
Peru e na Bolívia; posteriormente, a pasta base era enviada para a Colômbia e lá
era refinada; os países vizinhos, como o Brasil15, a Venezuela e o Equador eram
considerados, à época, apenas países de trânsito.
15
Segundo Procópio (1997, p. 93), o transporte da droga no Brasil é realizado através de aeroportos
clandestinos, pistas de aterrissagem em fazendas, caminhões transportadores de madeira e de gado
com fundos falsos, além de automóveis particulares.
53
O mapa 1 demonstra a densidade da participação da Região Andina na
produção e cultivo de cocaína, o que, por tal motivo, a torna alvo de políticas
repressoras ao narcotráfico.
Os anos 80 são marcados por uma mudança nesse cenário, já que a
Colômbia começa a também produzir grande parte da cocaína mundial. Essa
transição da condição de país refinador a país também produtor de folhas de coca
se deve à capacidade de rearticulação do narcotráfico, denominado por Dupas
(2005, p. 159) de efeito balão. Portanto, quando os governos do Peru e da Bolívia
intensificaram as políticas de erradicação do plantio de drogas, a produção
aumentou na Colômbia. Assim como, quando o Plano Colômbia é colocado em
prática, a Bolívia deixa de ser apenas produtora de folhas de coca, e passa a
também refiná-las. A flutuação do aumento e diminuição do cultivo de coca nesses
países ocasionado pelo efeito balão é demonstrado na Tabela 1, que segue.
Tabela 1: Evolução do cultivo da coca na Região Andina
Fonte: Coca Cultivation in Andean Region (UNODC, 2008)
54
MAPA 1: Densidade do cultivo da coca na Região Andina, 2007
Fonte: Coca Cultivation in the Andean Region (UNODC, 2008).
55
Atualmente, segundo dados da United Nations Office on Drugs and Crime
(UNODC), a Colômbia detém 55% da área global de produção de coca, seguida por
Peru, com 30%, e Bolívia, com 16%. O que demonstra a concentração da produção
desse psicoativo ilícito nesses três países. Consequentemente, as maiores
apreensões também são realizadas nesses países, bem como grande parte das
refinarias de droga concentram-se nessa região.
A dependência social de países como a Bolívia em relação às plantações de
coca é um dos fatores que dificultam o êxito das políticas de erradicação, já que
considerável parte da população tem como base econômica a venda de folhas de
coca. Erradicar todas as plantações desestabilizaria muitas famílias.
Contrapondo-se a esse fato, foram criadas políticas de substituição de cultura,
ineficientes, já que sua eficácia dependeria de grande incentivo financeiro na região,
possibilitando aos cocaleros, não só produzir outro produto, como também exportálos. No entanto, isso não aconteceu. Segundo Dupas (2005, p. 163)
Na estrutura orçamentária do Plano Colômbia16 75% do orçamento
são dirigidos a compras de equipamentos e pulverizações e menos de 25%
à reforma do Judiciário, substituição de cultivos, política de direitos humanos
e ajuda para pessoas deslocadas.
Nesse sentido, a política de substituição de cultura tornava-se praticamente
inviável, já que a plantação de cocaína trazia aos agricultores da coca um
rendimento muito maior do que qualquer outro produto traria. Segundo Dammert
(2009, p. 122), havia um incremento de mais de 500 vezes entre o preço inicial da
cocaína produzida na América Latina e o preço de venda no EUA, o que demonstra
a lucratividade de todo o processo.
Além disso, uma das razões para o aumento considerável do preço da
cocaína, o que, consequentemente, ocasionou o boom de sua produção e de sua
comercialização, foi o aumento da presença de narcotraficantes da região nas
últimas três décadas. Além de negociarem a droga, ainda financiavam sua produção.
Mais tarde, com o aumento de seu poderio, passaram a, também, controlar
territórios.
16
O Plano Colômbia é detalhado no Capítulo 3, item 3.5, deste trabalho. 56
Na região dos Yungas, na Bolívia, a coca tem aproximadamente quatro mil
anos de cultivo. O que remonta às épocas coloniais até os dias de hoje. No entanto,
quase a totalidade da produção nessa região era destinada ao mercado legal e era
comercializada para fins medicinais e religiosos.
A chegada dos narcotraficantes na região incrementou significativamente o
preço do produto, antes vendido em grande parte para finalidades lícitas. O pequeno
produtor, portanto, passa a vender seu produto a quem lhe pagar mais. Sem
alternativa, inúmeras famílias são inseridas no narcotráfico. Percebe-se assim, que,
ao atacar a oferta de drogas, essas famílias também são atingidas. Contudo, quem
faz o tráfico de fato acontecer são pessoas muito mais influentes, tanto econômica
quanto politicamente.
No entanto, após o boom da coca na região e seguindo a linha
estadunidense, os países andinos militarizaram seus programas de combate ao
narcotráfico. Ou seja, usavam de forças policiais e militares para enfrentar possíveis
infratores da lei envolvidos no narcotráfico. Na Bolívia foi criada a UMOPAR (Unidad
Móbil de Patrullage Rural), força antidroga boliviana. No Peru, a DINANDRO
(Dirección Antidrogas de la Policía Nacional del Peru). Os Estados Unidos
contribuíram significativamente para a militarização do combate às drogas na região,
fornecendo equipamentos, capital e treinamento.
Além disso, a erradicação do cultivo também era feita por meio da
pulverização. A tabela 2 demonstra que apesar da diminuição de áreas de cultivo de
folhas de coca na Bolívia, Peru e Colômbia, a produção de cocaína continua estável,
já que, mesmo com menos hectares destinados a produção desse ilícito, é aplicada
alta tecnologia no processo, o que possibilita melhores rendimentos.
TABELA 2: Potencial global de produção de cocaína (mt), de 1997 a 2007
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Bolívia
200
150
70
43
60
60
79
98
80
94
104
Colômbia
350
435
680
695
617
580
550
640
640
610
600
Peru
325
240
175
141
150
160
230
270
260
280
290
Total
875
825
925
879
827
800
859
1008
980
984
994
Fonte: Coca Cultivation in Andean Region, p. 17 (UNODC, 2008).
57
O envolvimento das forças armadas e policiais no combate ao narcotráfico,
bem como as técnicas de pulverização17 do cultivo de drogas prejudicam
principalmente os agricultores que cultivam ilícitos como produtos de agricultura
subsistente, já que o combate às drogas na região é voltado para a oferta das
drogas. A pulverização tem, também, efeitos negativos sobre o meio ambiente,
prejudicando áreas que poderiam ser destinadas a outros cultivos. Os precursores
químicos utilizados no cultivo e refino das drogas atingem o solo provocando danos
ecológicos imensos.
Segundo Dupas (2005, p. 161), “O uso de forças policiais e militares violam os
direitos humanos, combinado à pulverização de áreas de economia de sobrevivência
de pequenos cultivadores, aumentam a deslegitimação social do Estado”.
Tais iniciativas de repressão ao cultivo e comercialização de drogas vão
contra as Convenções de Repressão ao tráfico, que prevêem a erradicação do
cultivo ilícito de substâncias psicotrópicas. Como consta no texto da Convenção
contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988, as
medidas adotadas para erradicação deverão “respeitar os direitos humanos
fundamentais e levar em devida consideração, não só os usos tradicionais lícitos,
onde exista evidência histórica sobre o assunto, senão também a proteção ao meio
ambiente”.
Para evitar a pulverização, muitos produtores “recorrem a terrenos cada vez
menos acessíveis, incluindo reservas ambientais” (DAMMERT, 2009, p.121).
Segundo
Dammert
(2009,
p.121),
“estima-se
que
17,5%
de
áreas
de
desenvolvimento alternativo no Peru foram desflorestados para produção de coca e
mais de 2,5 milhões de bosques amazônicos foram desflorestados para o mesmo
fim”.
Além dos impactos sociais, econômicos e ambientais apontados, cabe
ressaltar os impactos políticos gerados pelo tráfico de cocaína. A fins de
exemplificação, vê-se na Bolívia a ascensão ao poder, em 2006, do presidente Evo
Morales. Ex-cocalero, defende a descriminalização e revalorização da folha de coca,
considerada, segundo a Convenção Única de 1961, substância ilícita.
17
“Aviões borrifam herbicidas altamente prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente. Esses
compostos químicos provocam no homem, doenças – algumas chegam a ser cancerígenas ou até
genéticas – e, no meio ambiente, destroem grande variedade de espécies vegetais” (citação em
INACIO, 2009, p.7).
58
Apesar da folha de coca ser um símbolo nacional, há evidências de cultivos
crescentes em áreas não tradicionais na Bolívia. Além disso, o Presidente boliviano
prioriza políticas de apoio aos cocaleros. Contudo, apesar de na Bolívia o uso da
folha de coca ser cultural, bem como, seu cultivo em determinada área estar
permitido por lei, o governo nem sempre cumpre o que o previsto, admitindo o cultivo
em áreas proibidas.
2.3 Dos cartéis colombianos às redes narcotraficantes
Os cartéis colombianos eram estruturas hierarquicamente conformadas e
costumavam ser direcionados para um único produto. No entanto, não podem ser
comparados a uma máfia. A hierarquia existente na formação da máfia, que funciona
através de um sistema de reconhecimento de méritos, permite aos seus membros
ascenderem de posição (MONTOYA, 2007, p. 113). Ademais, os cartéis são
organizações que possuem sustentação em capacidades operativas próprias,
podendo ou não, manter vínculos com outras estruturas delitivas, a fim de maximizar
seus ganhos (PROCOPIO, 1999, p. 72).
Cartel, segundo Montoya (2007, p. 110),
é um termo econômico utilizado no jargão econômico para designar os
acordos implícitos ou explícitos firmados entre certos produtores de um
mesmo setor industrial, em nível nacional ou internacional, para limitar a
produção, determinar quotas de vendas, de fabricação e de distribuição,
além de dividir os lucros entre cada um dos membros, fixar os preços e
repartir o mercado.
Destacavam-se na Colômbia dois cartéis: o cartel de Medellín e o cartel de
Cali. O primeiro era comandado por Pablo Escobar, famoso por utilizar inusitadas
práticas de violências, além de esbanjar dinheiro, como também, aplicá-lo em
diversas obras públicas ou de caridade. Os dois últimos fatores facilitaram sua
captura, sendo morto em 1993 (NAIM, 2006, p. 73).
Apesar da prisão e morte de seus comandantes principais e da aparente
perda de poder dos cartéis, o monopólio das drogas foi, então, subdividido em
grupos menores e a Colômbia continuou a liderar a produção e o fornecimento de
cocaína para o mundo. Tanto guerrilhas de esquerda como as FARC quanto
59
oponentes de direita começaram a comandar territórios dedicados à plantação de
coca no País (NAIM, 2006, p.70).
Diante disso, já é subtendida uma das principais características das atuais
redes narcotraficantes: a flexibilidade. Esse ponto confere ao grupo criminoso o
poder de se reorganizar sempre que necessário. Nesse caso, não haveria apenas
um grupo principal que comandaria todo o processo. Mas sim, as etapas do
narcotráfico seriam divididas entre outros grupos menores, cada qual responsável
por uma fase do tráfico. Já na década de 1990 haviam de 10 a 14 organizações
coordenando o narcotráfico na Colômbia (FARER, 1999, p. 114).
As novas organizações responsáveis pelo narcotráfico são menores, discretas
e estruturadas em torno de pessoas anônimas e desconhecidas (MONTOYA, 2007,
p.112). Dependendo da área em que atuam dentro da organização, são pessoas
especializadas, que possuem uma nova logística de comunicação e não mantêm
contato direto entre si. Isso permite que, caso algum membro da organização seja
preso, ele não tenha conhecimento acerca dos demais membros, uma vez que não
houve contatos significativos entre eles.
As redes narcotraficantes dividem-se, portanto, em vários subgrupos, que
serão exemplificados a seguir. Os subgrupos correspondem aos responsáveis pela
produção, processamento ou refino da droga, transporte, venda e distribuição do
produto.
Logo, têm-se os camponeses que plantam, e, quando necessário,
transformam a droga em pasta base18, a fim de facilitar o transporte do ilícito. Há,
também, fabricantes responsáveis exclusivamente por refinar cocaína e heroína.
Acima dos últimos, existem grupos maiores responsáveis por coordenar o
contrabando e venda dos psicoativos ilícitos para outros países. Na Colômbia, há,
ainda, grupos guerrilheiros que detém poder sobre diversas áreas de cultivo de
cocaína do país, como já dito, os quais cedem território para narcotraficantes
instalarem suas refinarias, e para camponeses plantarem seu produto. No entanto,
são cobradas taxas pelo uso dessas regiões.
18
Segundo Wilson (1995, p.7), para produzir a pasta, os mezcladores primeiro agregam querosene
ou gasolina e ácido sulfúrico às folhas de coca secas. No Peru e na Bolívia contratam-se pisadores
que moem a mistura até se formar uma pasta de coca. Tal como a colheita, esse procedimento exige
trabalho intensivo de mão-de-obra e não requer equipamento sofisticado. Processar as folhas de coca
requer, no entanto, insumos e precursores químicos, assim como conhecimento especializado para
se preparar a mistura.
60
Ademais, para que o narcotráfico logre êxito é essencial que existam
profissionais na política, no judiciário, na polícia, que facilitem o processo. Dentre
eles há advogados, químicos, políticos, conselheiros financeiros, organizações paramilitares e profissionais do setor financeiro responsáveis por lavar o dinheiro do
tráfico.
Todos os grupos supracitados que participam direta ou indiretamente do
narcotráfico, mostram o quão entranhado essa modalidade de crime organizado está
no Estado, e consequentemente, nas relações internacionais. Ou seja, o narcotráfico
se faz presente onde o Estado não atua, como em lugares com policiamento
deficiente, ou com população com carência financeira e em instituições estatais com
funcionários passíveis à corrupção.
Outra dificuldade apresentada pela nova configuração do narcotráfico é que,
sendo um negócio muito lucrativo, grupos praticantes de outras espécies de crime
organizado se envolvem no negócio das drogas. Assim como os narcotraficantes,
muitas vezes, são forçados a investirem no tráfico de outras drogas, devido às
pressões da concorrência. O narcotráfico, portanto, está atrelado também a outros
tipos de crime organizado, como o tráfico de armas e de pessoas, negócios também
muito lucrativos, além de estar ligado também ao trabalho escravo.
As altas taxas de retorno que o crime organizado proporciona, permite aos
narcotraficantes a expansão de seus negócios e de seu poder econômico e político.
A lucratividade do tráfico na região andina e amazônica é pautada principalmente
pelo alto valor agregado sobre seus produtos. Naím (2005, p. 81-82) exemplifica
esse argumento
‘Controle na fonte’ [ou seja, a política de controle do narcotráfico na fonte de
produção] e uma ênfase na repressão simplesmente adicionaram valor às
drogas que conseguem chegar ao mercado. Guardas fronteiriços a se
evitar, as batidas policiais das quais têm-se que fugir, e os subornos que se
têm que pagar, todos são integrados aos custos do negócio, aumentando
preços e os potenciais de lucros sem nenhum efeito demonstrável na
demanda.
Estando paralelo ao Estado, o narcotráfico não precisa lidar com burocracias
estatais para realização de suas atividades e para a utilização de seu dinheiro,
tendo, portanto, um acesso facilitado a diferentes tipos de tecnologia; fator que faz
com que esses grupos criminosos estejam a um passo à frente do Estado.
61
O lucro ainda maior é gerado pela quantidade de organizações criminosas
existentes atualmente, fator que aumenta o montante da oferta e propicia a
diminuição no preço da droga no mercado ilegal. Ademais, o incremento das redes
narcotraficantes e a facilitação do acesso à tecnologia para fabricação de diferentes
tipos de drogas ilícitas, contribuíram para que países que antes serviam apenas
como rota de escoamento da produção se tornassem também produtores e
consumidores de ilícitos. Tal como é o caso do Brasil.
2.5 De países de trânsito19 a produtores e consumidores
Antes considerado rota de escoamento de drogas para os grandes centros
consumidores mundiais, tais como a Europa e os EUA, agregou-se ao Brasil a
condição de produtor e consumidor de psicoativos ilícitos.
Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas (WDR) (UNODC, 2009, p. 56), o
Brasil concentra a maior população de usuários de opiáceos na América do Sul.
Além disso, o relatório também destaca o crescimento no consumo de cocaína,
anfetaminas e maconha no Brasil.
Como já demonstrado nesse trabalho, onde há demanda, há oferta. O
crescente número de usuários favoreceu o desenvolvimento de laboratórios e
refinarias em territórios brasileiros, bem como em territórios venezuelanos e
equatorianos. Registram-se nesses países, respectivamente, 17t de cocaína
apreendida no Brasil, 32t na Venezuela e 25t no Equador. Essas estatísticas indicam
o aumento da importância desses países para o narcotráfico, bem como o aumento
da demanda, já que grande parte das drogas que passam por eles, também é
destinada ao consumo interno. As apreensões em maior quantidade na Venezuela e
no Equador indicam serem esses os países mais reportados como trânsito de
drogas na região.
Segundo Procópio (1997, p.90) “a estrutura do narcotráfico no Brasil nasceu
vinculada ao contrabando, à evasão de riquezas nacionais e à corrupção
19
A Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988,
entende por “Estado de trânsito”, o país através de cujo território passam de maneira ilícita
entorpecentes, substâncias psicotrópicas e substâncias que figuram no Quadro I e no Quadro II desta
Convenção, e que não seja nem ponto de procedência nem o ponto de destino final dessas
substâncias.
62
governamental”. Tais condições favoreceram o estabelecimento de organizações
localizadas no Brasil responsáveis pelo trânsito e comercialização da droga para
centros consumidores. Contudo, estes fatores demonstram as diferenças em relação
à configuração do narcotráfico em países produtores e países não produtores.
Enquanto os países produtores necessitam de vários atores para a realização da
produção, comercialização e transporte da droga, no Brasil destacam-se dois
seguimentos do narcotráfico, sendo eles: os responsáveis pelo tráfico internacional,
movimentando grandes quantidades de drogas e dinheiro, mas com o número de
pessoas reduzido, e os responsáveis pelo tráfico interno, seguimento que mobiliza
um número maior de pessoas (PROCOPIO, 1997, p. 90). Os responsáveis pelo
contrabando e tráfico internacional têm suas ações facilitadas já que a Polícia
Federal só pode agir até os limites fronteiriços do Brasil com outros países, não
podendo ultrapassá-los.
O Brasil, apesar de já produzir alguns tipos de drogas, não possui muitos
laboratórios, se comparados com os centros produtores da região que possuem
mais de 99% dos laboratórios de processamento de coca, sendo eles Peru, Bolívia e
Colômbia (UNODC, 2009, p.67). No entanto, chama a atenção o aumento de tráfico
de ATS (estimulantes, como por exemplo, o ecstasy) no Brasil. Tanto a quantidade
de consumidores aumentou no País, como as apreensões também evidenciaram
crescimento. Em 2007, o Brasil entrou na lista dos 22 países com maiores
apreensões de substâncias do grupo ecstasy, além de que, em 2008, foi descoberto
o primeiro laboratório clandestino de ecstasy no País, no Paraná (UNODC, 2009, p.
125-142).
O local onde se localizava o laboratório sugere que a produção de drogas se
adaptará ao local em que houver uma maior quantidade de consumidores. Ainda
segundo o WDR (UNODC, 2009, p. 141), em fevereiro de 2009, a Polícia Federal
apreendeu 55 pessoas de uma quadrilha internacional de drogas que trocavam
cocaína por ecstasy na Europa e retornavam ao Brasil para vender a droga
estimulante. Tal transação entre grupos narcotraficantes demonstra a mobilidade do
crime organizado, que, convenientemente, realiza escambo quando necessário a
seus interesses.
A essa capacidade de agilidade e adaptação nas negociações entre
diferentes grupos narcotraficantes, Procópio (1999) define como integração paralela.
Ou seja, uma integração entre redes que acontece à margem do Estado.
63
Às rotas de trânsito de drogas no Brasil, soma-se a existência de uma malha
de transporte interligada a outras regiões. Antes a políticas de repressão e também o
destino das drogas era voltado aos grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e
São Paulo. No entanto, nota-se um incremente do tráfico em regiões mais
interioranas, assim como a região Centro-Oeste. Também em locais como o
Nordeste, que possuem grande fluxo de turistas, evidenciam o aumento do
narcotráfico, já que a demanda nesse local aumenta.
O fato é que o narcotráfico está espalhado pelo Brasil envolvendo várias
pessoas em suas operações. Diante dessa perspectiva cabe ressaltar que uma rede
de narcotraficantes preocupa-se em utilizar recursos humanos treinados e
experientes a fim de obter maior êxito em suas atividades. Essa é uma das idéias
defendidas por Prócopio (1999), quando mostra que pequenos agricultores no Brasil,
que vivem da agricultura de subsistência, muitas vezes foram obrigados a sair de
seu local de origem porque estavam localizados em reservas indígenas. Esses
agricultores muitas vezes não são recrutados nem pelo narcotráfico, tornando-se
marginalizados. As reservas indígenas por sua vez, dão grande margem de ação
para as redes do tráfico, inclusive há casos de indígenas envolvidos com o
contrabando de drogas.
A dimensão geográfica do Brasil, bem como suas extensas fronteiras com os
principais produtores de cocaína da região, facilita o narcotráfico. Contudo, enquanto
os narcotraficantes adaptam sua logística de escoamento da produção e estão
continuamente mudando suas rotas, as políticas de repressão ao problema
continuam as mesmas, ainda voltadas para os portos marítimos de maior relevância
e para os principais centros comerciais. A ausência do Estado em áreas cruciais
para o narcotráfico apenas favorece o mesmo.
64
CAPÍTULO 3
REGIMES INTERNACIONAIS CONTRA O NARCOTRÁFICO
A transnacionalidade do narcotráfico, bem como sua configuração em rede
fez com que o enfrentamento a esse problema se desse por meio de cooperação
entre Estados, levando à formação de regimes específicos. Ademais, a necessidade
de construção de um regime específico para o tráfico de psicoativos ilícitos se deve
ao fato de que em sua prática não estão envolvidos somente Estados, como em
conflitos convencionais. O narcotráfico envolve diversos outros atores, destacandose, inclusive, a emergência de grupos sociais dentro de um país. Tais fatores levam
a crer que a problemática transcende a capacidade de Estado de erradicar essa
modalidade de crime organizado, ou de apenas considerá-la problema de política
interna, elevando a condição do narcotráfico a problema de política externa.
3.1 Regime Internacional de repressão aos psicoativos ilícitos
Apesar do uso de substâncias psicoativas estar presente em vários
momentos da história, sua regulamentação começou a ser planejada apenas no
século XX. A necessidade da criação de mecanismos legais que regulassem a
produção, o comércio e o consumo das substâncias psicoativas nasceu por um lado
dos interesses políticos e econômicos das nações influentes à época, e por outro de
pressões da sociedade civil por medidas a serem tomadas em relação à saúde e
segurança pública.
As primeiras substâncias psicotrópicas descobertas eram, em princípio,
utilizadas para fins medicinais, ou em rituais religiosos. Seu consumo hedonista
também era recorrente. Todavia, as drogas eram consumidas em menor quantidade,
já que seu consumo em práticas religiosas era regulado por autoridade maior, e, em
algumas sociedades como a inca “o consumo de folhas de coca era um privilégio
dos nobres, ficando o uso pelos servos e soldados condicionado à autorização real”
(RIBEIRO, p. 1).
Contudo, à medida que outras propriedades dos psicoativos foram sendo
descobertas, seu uso para fins hedonistas superou sua utilização tradicional e
65
medicinal. O aumento de consumidores elevou também os pontos de oferta, fazendo
com que o comércio de drogas ganhesse um papel cada vez maior na sociedade.
A necessidade de regulamentação de substâncias psicotrópicas surge tanto
pelos impactos graduais que tais substâncias estariam causando à saúde pública,
como pelo envolvimento crescente do tráfico em atividades lícitas. As primeiras
tentativas de políticas contra o comércio e produção de psicoativos eram voltadas ao
combate e erradicação da oferta de drogas.
Teoricamente, a mudança de foco das políticas repressoras da oferta para
uma visão do problema como um todo, englobando o peso da demanda no
narcotráfico, acontece progressivamente, e ganha destaque maior a partir da década
de 1990. Todavia, ver-se-á que na prática é diferente. Grande parte dos recursos
financeiros volta-se principalmente para o combate ao narcotráfico, sobrando um
montante menor à prevenção e tratamento de dependentes químicos.
3.2 A influência norte-americana no combate ao narcotráfico
Os EUA firmaram seu primeiro tratado sobre psicoativos ainda no século XIX,
com a China, que proibia a comercialização de ópio por cidadãos estadunidenses no
outro país (OLIVEIRA, 2007, p. 49). Já no início do século XX, é realizada em
Xangai, na China, a primeira Convenção Internacional sobre o tráfico de ópio.
Os esforços estadunidenses com vistas ao combate de drogas tornaram-se
mais influentes com a visibilidade que o país norte-americano adquiriu. Logo, a
questão dos psicoativos também teve alcance interno, influenciando a opinião
pública norte-americana a respeito dos perigos sociais e de segurança que o uso
das drogas poderia gerar.
Portanto, percebe-se que a opinião pública norte-americana, bem como
setores religiosos do país, tiveram papel importante no desenvolvimento de
estratégias contra o abuso e tráfico de drogas forçando o governo americano a
tomar medidas contra o problema. Visto que promover políticas públicas de
repressão à demanda requer mais dinheiro, o governo optou por combater a oferta,
focando esforços em marginalizar aqueles que estavam envolvidos nessa etapa do
narcotráfico.
66
Os esforços no combate ao narcotráfico por parte dos EUA cresceram à
medida que sua população consumidora também crescia (vide Tabela 3). O País,
portanto, aumentou progressivamente seus gastos com políticas de combate ao
narcotráfico, principalmente a partir da década de 1970, quando ocorria o boom da
cocaína.
TABELA 3: Número estimado de usuários de drogas ilegais em relação à
população entre 15-64 anos, por região e sub-região em 2007
(estimativas mais baixas e mais altas, em milhões de pessoas)
Região e sub-região
Maconha
Opiáceos
Cocaína
Anfetaminas
Ecstasy
28,85 a 56,39
1,00 a 2,78
1,15 a 3,64
1,39 a 4,09
0,34 a 1,87
3,67 a 9,32
0,12 a 0,49
0,03 a 0,05
0,24 a 0,51
sem estimativa
16,10 a 27,80
0,55 a 0,65
0,75 a 1,32
sem estimativa
sem estimativa
África Oriental
4,49 a 9,03
0,10 a 1,33
sem estimativa
Sul da África
4,57 a 10,95
0,23 a 0,31
0,30 a 0,82
0,21 a 0,65
0,21 a 0,40
Américas
41,45 a 42,08
2,19 a 2,32
9,41 a 9,57
5,65 a 5,78
3,13 a 3,22
América do Norte
31,26 a 31,26
1,31 a 1,36
6,87 a 6,87
3,76 a 3,76
2,56 a 2,56
América Central
0,58 a 0,58
0,02 a 0,03
0,12 a 0,14
0,31 a 0,31
0,20 a 0,30
Caribe
1,11 a 1,73
0,06 a 0,09
0,17 a 0,25
0,12 a 0,25
0,03 a 0,13
América do Sul
8,50 a 8,51
0,08 a 0,84
2,25 a 2,31
1,45 a 1,46
0,51 a 0,51
40,93 a 59,57
8,44 a 11, 89
0,40 a 2,56
5,78 a 37,04
3,55 a 13,58
4,1 a 19,86
2,80 a 4,97
0,31 a 0,99
4,60 a 20,56
2,25 a 5,95
Sul da Ásia
27,49 a 27,49
3,62 a 3,66
sem estimativa
sem estimativa
sem estimativa
Ásia Central
1,89 a 2,02
0,34 a 0,34
sem estimativa
sem estimativa
sem estimativa
Oriente Próximo e Médio
7,44 a 10,2
1,68 a 2,91
sem estimativa
sem estimativa
sem estimativa
Europa
28,89 a 29,66
3,44 a 4,05
4,33 a 4,60
2,43 a 3,07
3,75 a 3,96
Europa Central e Ocidental
20,81 a 20,94
1,23 a 1,52
3,87 a 3,88
1,59 a 1,69
2,11 a 2,12
Europa do Leste e Sudeste
8,08 a 8,72
2,21 a 2,53
0,46 a 0,72
0,84 a 1,38
1,54 a 1,83
Oceania
2,46 a 2,57
0,90 a 0,90
15,16 a
21,13
0,34 a 0,39
0,57 a 0,59
0,81 a 0,88
15,63 a 20,76
15,82 a 50,57
11,58 a 23,51
África
Norte da África
África Central e Ocidental
Ásia
Leste e Sudeste Asiático
Estimativa global
142,58 a 190,27
sem estimativa sem estimativa
Fonte: World Drug Report 2009, p.14 (UNODC, 2009).
Além dos investimentos em países produtores de drogas, os EUA tomaram
medidas internas, tais como a criação do Drug Enforcement Administration20 (DEA),
20
A DEA está presente em várias operações de prevenção e combate as diferentes etapas do
narcotráfico na América do Sul, dentre elas o combate à lavagem de dinheiro, a destruição de
laboratórios clandestinos, bem como, investigações de possíveis rotas e transportes.
67
em 1973. Hoje, o DEA é um dos principais órgãos norte-americanos no combate às
drogas. A fim de exemplificar o gradual crescimento de influência deste órgão, vê-se
que, em 1973, o DEA contava com 2.898 empregados, e recebia um montante de
US$
74,9
milhões.
Em
1974,
o
número
de
empregados
aumentou
21
consideravelmente para 4.075 e recebeu para US$ 116,2 milhões . Ainda hoje, a
DEA demonstra um aumento constante tanto de empregados como de recursos
financeiros. Em 2009, possui 10.784 empregados e um aporte de US$ 2.602
milhões.
Embora os gastos com políticas de repressão às drogas permaneçam altos,
estimativas do World Drug Report de 2009 indicam que o número de consumidores
continua elevado. Tal fator indica que políticas de repressão às drogas não estão
obtendo resultados significativos, já que a demanda permanece estável.
Além disso, o alto número de apreensões divulgado principalmente na
América do Sul e na América do Norte (vide tabela 4), apenas demonstram que a
oferta da droga é amplamente presente nessas regiões, respectivamente por
representarem a maior região produtora de psicoativos ilícitos e a maior
consumidora.
TABELA 4 – Apreensões globais de cocaína, 1987-2007
Fonte: World Drud Report 2009, p. (UNODC, 2009)
21
Dados extraídos da página na Internet do DEA (http://www.justice.gov/dea/agency/staffing.htm),
último acesso em 18 out. 2009.
68
3.3 Convenção Única de 1961
A Convenção Única de 1961 foi a primeira Convenção sobre substâncias
psicoativas desenvolvida no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). O
organismo internacional antecessor a ela, denominado Liga das Nações, também
versou sobre o assunto, promovendo a Conferência de Genebra, em 1925. Tal
Conferência foi dividida em duas etapas: à primeira caberia a discussão acerca do
ópio preparado para o consumo; a segunda tratava dos três mais importantes
produtos naturais usados na fabricação de psicoativos (o ópio bruto, a folha de coca
e a planta cannabis) e seus derivados (a heroína, a cocaína, a maconha e o haxixe)
(OLIVEIRA, 2007, p.51).
À época, países como França e Inglaterra foram contra a proibição do ópio
preparado, já que esse produto fazia parte de suas exportações. Contudo, a
segunda Convenção que tratava do ópio bruto, maconha, coca e seus derivados,
decidiu pela criação do Opium Advisory Committee, que, segundo Oliveira (2007,
p.51), “seria o órgão responsável pelo controle das movimentações das citadas
substâncias visando impedir desvios para canais ilícitos, aqueles que não
abastecessem uso medicinal”. Apenas na década de 1920, com a criação desse
órgão, que o uso e cultivo da coca e da maconha foram regulamentados por lei.
A Convenção Única de 61 abarcava todos os outros tratados relativos à
produção, comércio e consumo de ilícitos. Todavia, diferentemente da Conferência
de Xangai que versava sobre o ópio, a Convenção de 61 tinha outro foco, sendo
eles: os países considerados grandes consumidores (dentre eles EUA e países
europeus) e os países ditos produtores das plantas restritas pela Convenção (nesse
grupo incluíam-se países da América Latina, da Ásia, da África).
Os países consumidores responsabilizavam os produtores pelo tráfico e
aumento de viciados em seu país. Essa mudança de perspectiva pela Convenção
sugere que os regimes relacionados ao narcotráfico possuem um viés muito mais
político e preocupado com efeitos econômicos do que um enquadramento social. O
argumento sustenta-se no fato de que apesar da Convenção incluir a proibição ao
cultivo do arbusto da coca e, consequentemente, a produção de seus derivados, ela
não prevê políticas de inserção de culturas substitutivas ou afins. Argumenta-se,
portanto que
69
O rigor da Convenção Única cai particularmente sobre três
entorpecentes tradicionalmente produzidos e consumidos em algumas
regiões subdesenvolvidas do mundo. Essa tríplice proibição empresta ao
texto rigorosa característica. Para compreendê-la, é suficiente imaginar um
tratado internacional interditando a cultura do vinho ou do tabaco em razão
do prejuízo que causam à saúde das populações do Terceiro Mundo o
alcoolismo e o tabagismo. A Convenção Única, neste aspecto, aparenta
injusta: os países produtores de ópio, de coca e de canabis, alguns deles
entre os pobres do mundo, sacrificam parte de seus recursos pelo bemestar das populações ricas no mundo ocidental que abusam da heroína, da
cocaína e do haxixe. Este sacrifício sem compensações é verdadeira
expropriação pela causa da utilidade pública, pois a Convenção não prevê
nenhuma medida de indenização ou reconversão das culturas (citação em
Oliveira, 2007, p.59).
Ademais, não se leva em conta a utilização cultural da folha de coca na
Região Andina e Bacia Amazônica, fator que dificultaria a aplicação universal da
Convenção. Não sendo igualmente aplicada em todos os países partícipes, não há
como obter resultados concretos, o que já indicava que os resultados esperados
pela Convenção seriam impossíveis.
A proibição e destruição das culturas de drogas ilícitas na Região Andina
apenas contribuíram para o desenvolvimento de canais ilícitos de escoamento de
drogas, além de culturas em locais de difícil acesso. Fator parecido já havia ocorrido
nos Estados Unidos, quando foi instituída a Lei Seca que proibia o consumo,
comercialização e produção de bebidas alcoólicas no país. Tal lei apenas contribuiu
para o aumento da comercialização, fazendo surgir uma economia ilícita de
fornecimento de bebidas alcoólicas compatível com a demanda que permanecia a
mesma.
3.4 Consolidação das Convenções relacionadas ao tráfico de substâncias
ilícitas nos anos 70 e 80
No ano de 1971, foi realizada Conferência das Nações Unidas sobre
Substâncias Psicotrópicas. A Convenção de 1971 é, portanto, criada com a
finalidade de complementar a Convenção de 1961. Para tanto, os países partícipes
da Conferência indicaram, na construção do texto da Convenção, preocupação com
a saúde física e moral da humanidade, bem como com os problemas sociais que as
substâncias psicotrópicas causam.
70
São inseridas na Convenção de 1971 várias outras substâncias que
completam a lista desenvolvida pela Convenção de 1961. A preocupação com os
problemas sociais, bem como com a saúde da humanidade esbarram no fato de
drogas como o álcool e o tabaco não entrarem na regulamentação de substâncias
proibidas. Mesmo apesar de serem drogas que provocam efeitos muitas vezes mais
danosos do que, por exemplo, a maconha.
O fato, é que a construção de regimes internacionais sempre esbarra na
vontade de atores mais influentes, sejam eles países, ou seguimentos de suas elites.
O fato da indústria de tabaco ou álcool ser muito forte inviabiliza a proibição de tais
psicoativos.
Já a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Narcóticos e
Substâncias Psicotrópicas de 1988 foi elaborada com o intuito de aperfeiçoar as
atividades voltadas ao combate de tal modalidade de crime organizado
transnacional. O texto da Convenção prevê que sejam aperfeiçoadas políticas de
cooperação entre países, bem como, regulamenta, em seu artigo 6, a extradição de
indivíduos envolvidos de alguma forma no narcotráfico.
O reconhecimento da importância da cooperação entre países no combate ao
tráfico de drogas mostra que a tendência já não era mais responsabilizar os países
produtores de drogas pelo crescimento do tráfico. Passa-se a idéia de que cada vez
mais o narcotráfico é problema transnacional passível de atingir qualquer que seja o
país. Portanto, é imprescindível a coordenação de políticas repressoras ao
problema, além da assistência mútua jurídica e de capacitação de pessoal para o
combate a essa espécie de crime organizado. Essas medidas devem ser feitas não
apenas entre Estados, mas também, incluindo a participação de organizações
internacionais ou regionais que versem sobre o tema, ou sobre alguma vertente
dele.
A Convenção de 1988 bem lembra que o consumidor deve fazer parte das
políticas de repressão ao narcotráfico. Para tanto, cada Estado deverá promover
políticas públicas que tratem da reabilitação do usuário. As demais Convenções, de
1961 e 1971, ainda não previam tal disposição, concentrando esforços apenas do
que concernia aos países produtores.
Apesar de que nos anos 1980 já se admitir a dimensão do problema, e prever
iniciativas de cooperação em âmbito econômico, tecnológico, de inteligência, para a
resolução do mesmo, as políticas adotadas na América Latina ainda estavam aquém
71
dessa realidade. Mais uma vez, os EUA como precursores das políticas de
repressão às drogas, exerce o poder de sua vontade, realizando políticas bilaterais
de combate ao narcotráfico na América do Sul e, principalmente, na Região Andina,
oferecendo ajuda tanto financeira, quanto de capacitação militar. Contudo, a
configuração em rede, e sua operacionalidade internacional de organizações
narcotraficantes deixam claro que as políticas de repressão a tais grupos criminosos
devem possuir uma amplitude internacional, a fim de se evitar o efeito balão, como
mencionado por Dupas.
Portanto, um dos exemplos mais marcantes de influência norte-americana na
Região Andina é o Plano Colômbia, o qual será detalhado no próximo item, com
vistas a demonstrar que apesar da evolução do regime internacional que versa sobre
psicoativos ilícitos, são priorizadas políticas bilaterais de combate ao tema na região
andina.
3.5 O Plano Colômbia
Os Estados Unidos não realizaram apenas o Plano Colômbia na região. No
entanto, a ênfase a esse plano justifica-se pelas proporções que esse tomou. Dois
anos antes da implementação do Plano Colômbia, os EUA, à época sob o comando
do governo Clinton, assinaram um acordo com o Equador a fim de transformar a
base aérea de Manta em Base Avançada de Operações dos Estados Unidos,
garantindo assim a presença norte-americana na região.
O Plano Colômbia foi desenvolvido por iniciativa colombiana e não possuía
foco apenas nas questões relacionadas ao narcotráfico no país. O plano foi
elaborado abrangendo cinco eixos temáticos, sendo eles: restabelecer a economia
colombiana, promover a paz, fomentar o desenvolvimento social, eliminar o cultivo
de drogas ilícitas e fortalecer a democracia na Colômbia (INACIO, 2009, p. 1).
O governo norte-americano aprovou o Plano Colômbia em 1999, na gestão
Clinton. A priori, o Plano consistiria na assistência técnica, financeira e militar dos
EUA para Região Andina e, em especial, para a Colômbia. Além de que a maior
parte da ajuda financeira seria, em tese, destinada ao fortalecimento do Estado
colombiano através de investimentos sociais e substituição de plantios de coca
(DUPAS, 2005, p. 171). Contudo, como mostra Inácio (2009, p.1), de
72
1,6 bilhão de dólares financiados pelos EUA, 750 milhões foram destinados
ao Exército colombiano, 205 milhões a polícia e forças navais, 410 milhões
a medidas de segurança a países fronteiriços. [...] dos 180 milhões
restantes foram direcionados: 50 milhões para a Colômbia, 90 para a Bolívia
e 40 para o Peru para a substituição de cultivos ilícitos. Já para a realização
de reformas judiciais com o intuito de garantir a paz e os direitos humanos
foi previsto um orçamento de 100 milhões de dólares.
A guerra norte-americana às drogas baseava-se, então, na erradicação do
plantio, na interdição do tráfico e na criminalização do consumo. A aderência ao
Plano Colômbia por parte dos EUA se deu, portanto, principalmente devido a
questão das drogas. As prioridades do Plano foram gradualmente sendo modificadas
durante sua vigência (MONTEIRO, 2005, p.1), indicando progressivamente o viés
militar que caracterizaria o Plano Colômbia. Ademais, a situação política colombiana
à época da implementação do Plano era instável. A transição de governo foi
realizada de forma conturbada, já que o então presidente Ernesto Samper (19941998) era acusado de financiar o narcotráfico. Tal fator ia contra a política norteamericana de combate às drogas, o que levou o governo estadunidense a impor
duras sanções a Samper, bem como financiar investigações de seu envolvimento
com o narcotráfico (INACIO, 2009, p.2).
A instabilidade no governo favoreceu a atuação de grupos como as Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional
da Colômbia (ELN). As FARC começaram a ser associadas ao tráfico e produção de
drogas. Portanto, a repressão ao narcotráfico na Colômbia englobava também o
combate às guerrilhas, questão que dificultou ainda mais as negociações entre o
governo e estas. Além disso, porque ainda em 1997 os EUA e a Colômbia
retomaram o acordo de extradição ao território norte-americano de traficantes de
drogas colombianos.
Sendo mais divididas, as atuais redes narcotraficantes especializam-se
preferencialmente em determinada etapa do narcotráfico. Em caso de ser preso, o
narcotraficante não será julgado por todas as etapas do processo, mas por aquelas
em que esteve envolvido. O acordo de extradição firmado entre EUA e Colômbia é
um dos motivos para que os narcotraficantes dividam-se em células menores e
mantenham apenas o contato necessário entre si.
Quando Samper sai do poder, assume o presidente Andrés Pastrana (19982001), que durante seu mandato buscou tanto uma negociação com as FARC, como
uma aproximação com o governo norte-americano através do Plano Colômbia. Para
73
tanto, Pastrana concedeu às FARC uma zona desmilitarizada no departamiento de
Meta que correspondia a 40 % do território colombiano (INACIO, 2009, p. 3). Dessa
forma, enquanto o governo tomava medidas internas de contenção à guerrilha,
também, por meio do Plano, abria espaço para atuação norte-americana no país.
Com a intensificação da repressão ao narcotráfico, grupos guerrilheiros como
as FARC e a ELN, passaram a cobrar impostos dos produtores de psicoativos
ilícitos, bem como cobrar taxas às refinarias de drogas localizadas em território
comandado por qualquer que seja a guerrilha. Em troca, os grupos guerrilheiros
ofereciam o direito de utilizar território em que detinham poder, além de protegerem
os narcotraficantes. Tal relação entre narcotraficantes e grupos guerrilheiros é
denominado por alguns como narcoguerrilhas.
Um dos focos da política externa norte-americana com o fim da Guerra Fria
era o narcotráfico. Contudo, posteriormente aos ataques de 11 de setembro de 2001
ao World Trade Center (WTC), o governo dos EUA elege como ameaça principal à
segurança nacional o terrorismo, e passa a também vincular o tráfico de drogas às
práticas terroristas. Mais tarde classifica como grupos terroristas as guerrilhas como
as FARC e o ELN na Colômbia, e o Sendero Luminoso no Peru.
A instabilidade das instituições colombianas e a emergência de guerrilhas
fizeram com que a estratégia elaborada pelo Plano Colômbia ganhasse um caráter
cada vez mais militarizado, o que demonstra uma dicotomia em relação as suas
idéias iniciais, que, por sua vez, previam a pacificação do país. Cabe, também,
ressaltar que a redução dos problemas que o Estado colombiano enfrentava, ou
seja, relevar como problemas principais a questão do narcotráfico e seu vínculo com
grupos guerrilheiros apenas restringe a implementação do Plano na Colômbia, bem
como a seus resultados.
Passa-se, portanto, a impressão de que erradicando o narcotráfico, os demais
problemas do País estariam resolvidos. Tal afirmação seria um equívoco, se fosse
lembrado que o narcotráfico floresce em regiões instáveis, onde ocorre
recorrentemente corrupção e impunidade. Ademais, a atividade do narcotráfico não
determina a existência de uma guerrilha, apenas serve como fator gerador de renda.
Mesmo que o tráfico de substâncias entorpecentes seja erradicado, à que se lembrar
a existência de outros produtos como armas, objetos falsificados, animais raros, que
também podem ser objetos do tráfico. Além disso, as redes narcotraficantes
possuem grande capacidade de se reestruturarem.
74
Para agravamento da situação, o uso das Forças Armadas e da Polícia no
combate ao narcotráfico “não tem mensurado diferença entre os fatores do conflito
armado interno da Colômbia e os do narcotráfico” (citação em INACIO, p. 4). Por
conseguinte, as famílias campesinas envolvidas no cultivo e produção de drogas
ilícitas também são marginalizadas.
Em suma, o Plano Colômbia parece ter perdido o foco ao longo de sua
implementação. O que inicialmente previa a reestruturação do país, posteriormente
focou na militarização e combate ao narcotráfico, por fim, com os ataques de 11 de
setembro, tanto os EUA quanto o próprio governo colombiano passam a focar
esforços no combate a guerrilha, classificando-a como grupo narcoterrorista.
3.6 Desdobramentos das Políticas de Repressão ao Narcotráfico na Região
Andina
A Região Andina, assim como o Brasil, há muito possui regiões onde são
tradicionalmente cultivados arbustos de coca. De acordo com definições medicinais,
a folha de coca tem um efeito leve, e no século XIX começa a ter seu uso difundido
além dos países que a produziam.
A cocaína foi descoberta na Alemanha em 1855 por cientistas que estudavam
propriedades de plantas exóticas (WILSON; ZAMBRANE, 1995, p.10). Descoberto
efeitos de tal psicoativo, ele passa a ser usado para fins medicinais, e receitado
como analgésico.
Alguns anos depois, no ano 1863, é desenvolvido o vinho de Mariane, que
possuía folhas de coca inteiras em sua composição. Essa mercadoria ganhou
espaço no mercado norte-americano e europeu e abriu espaço para que outras
substâncias derivadas da folha da coca começassem a ser produzidas, como, por
exemplo, a Coca-cola que anteriormente utilizava folhas de coca em sua produção.
Para a produção de derivados da folha de coca, a pasta base da planta era
exportada para os EUA e processada em território norte-americano. Parke-Davis,
companhia estadunidense, com vistas a diminuir os custos de transporte da pasta
base da coca, instalou fábricas processadoras em países produtores na América do
Sul. Criava-se, portanto, uma logística para a produção da cocaína na região.
Vê-se que já no século XIX a coca era um produto de caráter transnacional.
Mas mesmo conhecendo os efeitos de seus derivados, ela só é regulamentada, tal
75
como consta no item 3.2 deste trabalho, quando é desenvolvida a Convenção Única
de 61.
Após sua regulamentação, o narcotráfico na região andina ganha visibilidade.
À medida que políticas contra a produção de drogas eram implementadas,
aumentam-se migrações internas dentro e entre países produtores. Esse é um dos
impactos recorrentes do narcotráfico. A população migra para fugir da violência
provocada pelo crime organizado, ou visando o lucro decorrente desse. Para manter
o equilíbrio populacional nas regiões de um país, seria necessário incentivo
financeiro e abertura de mercado a seus produtos lícitos. Foi o que a União Européia
fez na década de 1990 aos países latino-americanos
A EU iniciou a concessão de créditos destinados a amenizar a
crítica situação econômica e social na qual se encontram vários pequenos
assentamentos campesinos e de mineiros localizados particularmente no
norte do Estado de Potosí. Com essa ajuda econômica, pretende-se manter
estes campesinos e mineiros em suas regiões de origem e, dessa forma,
frear, dentro do possível, o processo migratório permanente para as cidades
e para as zonas produtoras de folha de coca (PROCOPIO, 1999, p. 129).
Internamente, na Bolívia, foram criadas leis que previam o desenvolvimento
alternativo e substituição de cultivos de coca. Tais leis almejavam fornecer
condições aos plantadores e produtores de coca, para que fossem capazes de
produzir um produto lícito alternativo ao que produziam, e que trouxesse um
rendimento igual ou proporcional à folha de coca. É uma tarefa complexa, visto que
seja em países produtores, consumidores ou de trânsito, a reinserção na sociedade
o indivíduo envolvido com o narcotráfico exigiria grandes investimentos
O desenvolvimento alternativo ao cultivo de outras drogas prevê, portanto, a
substituição da economia ilegal, por ganhos legais. O narcotráfico apenas possibilita
ao produtor da folha de coca condições básicas para sua sobrevivência. E é de
interesse não só das famílias que vivem dos ganhos do narcotráfico, como também
do Estado possibilitar a geração de riqueza e o aumento da qualidade de vida de tais
pessoas. Ou seja, não basta só tentar erradicar as atividades do crime organizado;
há que se desenvolver outras fontes de geração de renda para atuarem em seu
lugar, já que o dinheiro ilícito está entranhado à economia lícita, e provocaria grande
instabilidade financeira se, de uma vez, deixasse de existir.
Ainda no que concerne aos efeitos provocados pelas políticas de repressão
ao narcotráfico na Região Andina, vê-se a forte presença da agência norte-
76
americana DEA em território sul-americano. As operações da DEA na década de
1990 na região concentraram-se principalmente na Colômbia, podendo ou não
expandir a outros países, caso conveniente. Nesse caso, a agência norte-americana
promove convênios com outros países, para que possa ocupá-los e promover suas
atividades nele, ou atua de maneira ilegal, em um âmbito mais operacional, tal como
consta em entrevista anexa no corpo desta monografia.
3.7 O Brasil no combate às drogas
Em contraposição às medidas militaristas de combate ao narcotráfico
adotadas por alguns países da Região Andina, dentre eles Colômbia, Bolívia e Peru,
o Brasil procura soluções pacíficas de enfrentamento ao problema. Sua política
defende a não-ingerência em assuntos internos de outros países. Contudo, devido a
grande extensão fronteiriça que o Brasil possui com os três maiores produtores de
cocaína na região ele realiza operações conjuntas entre as Forças Armadas, a
Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) de combate e prevenção
ao narcotráfico em sua faixa de fronteira.
Organismos Internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU),
tratam o crime organizado como problema transnacional. Nesse caso, as políticas
relacionadas ao combate ou erradicação do narcotráfico em todo o mundo devem
possuir caráter multilateral.
Contudo, como já demonstrado, a Região Andina é
marcada pela forte influência das políticas de repressão norte-americanas. Por
conseguinte, tais políticas refletem também no Brasil, já que, apesar de realizar
medidas internas de combate ao narcotráfico, externamente, adota uma postura
multilateral de combate ao problema.
A política de combate estadunidense na região possui viés fortemente militar.
O Brasil, apesar de possuir políticas de prevenção e recuperação de usuários
realizadas pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), também, de
certa forma, prioriza à repressão ao problema. As Forças Armadas também estão
envolvidas em ações de repressão principalmente na região fronteiriça aos países
andinos. Contudo, as políticas para segurança nacional não estão a cargo apenas
das Forças Armadas. “Em 1998, FHC criou o Ministério da Defesa, fundindo nele os
três ministérios militares, então dissolvidos” (CERVO, 2008, p. 146). Ou seja, a
77
política externa brasileira para manutenção da segurança não prioriza o uso da força
para alcançar interesse interno do país.
Portanto, para lidar com o problema do narcotráfico o Brasil possui diferentes
órgãos de repressão, prevenção e responsáveis por políticas públicas, dentre eles
têm-se: a SENAD e o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), o
Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID) e o Fundo Nacional
Antidrogas (FUNAD); a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), cujo objeto de
trabalho é o levantamento de informações acerca das atividades, causas e
conseqüências do narcotráfico; o Ministério das Relações Exteriores (MRE) através
da Coordenação-Geral de Combate aos Ilícitos Transnacionais (COCIT) e de
colaborações com o Ministério da Justiça (MJ); a Polícia Federal, através do
Departamento de Combate ao Crime Organizado; e, por fim, as Forças Armadas,
apesar de não possuírem poder de polícia, também auxiliam na repressão e
combate ao narcotráfico.
O combate ao narcotráfico e ao crime organizado transnacional como um todo
no Brasil acontece por meio das atividades dos órgãos anteriormente citados e a
troca de informações entre eles. Logo, a eficácia das políticas de enfrentamento ao
narcotráfico só terão efeito se tais órgãos possuírem pessoal capacitado, e
cooperação e compartilhamento de informações entre si.
De acordo com Cervo (2008, p.120), é inegável a influência que os Estados
Unidos possuem na região, bem como a relação estreita e conveniente que
historicamente o Brasil mantém com essa potência. Cervo ressalta ainda a
disposição brasileira de transmitir uma imagem de país pacífico e pacificador. Por
isso, foi contra a idéia norte-americana, em 1995, de direcionar as Forças Armadas
Brasileiras apenas para o combate ao narcotráfico (2008, p. 141), o que não significa
que as Forças Armadas estejam presentes, como já dito, em operações repressoras
ao narcotráfico. Ademais, o Brasil vai contra os novos conceitos impostos pelas
grandes potências de dever de ingerência e boa vontade (CERVO, 2008, p. 142),
considerando essas iniciativas como unilaterais e discriminatórias contra países
fracos.
Ademais, vale ressaltar que por ser anteriormente classificado apenas como
região de escoamento de psicoativos ilícitos e outras substâncias químicas
necessárias à fabricação de drogas, as políticas de repressão ao narcotráfico eram
centralizadas nos principais portos brasileiros, além de serem realizadas operações
78
policiais em grandes centros urbanos, para onde eram destinadas parte da droga
que entrava no País. Contudo, no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi
inaugurado em Manaus, Amazonas, o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM),
com vistas a controlar o espaço aéreo brasileiro e prevenir contra possíveis
invasões, contrabandos ou danos ambientais na região. O Brasil reforçava, portanto,
a vigilância na Região Amazônica, uma das principais portas para o contrabando de
substâncias ilícitas, devido sua extensão e a porosidade de sua fronteira. Segundo
Inácio (2009, p.10)
Ao projeto SIVAM são incluídos um conjunto de 25 radares, 8 aviões, 87
estações de recepção de imagens via satélite, 200 plataformas de coleta de
dados, assim como uma centena de outros equipamentos. O SIVAM inclui
também unidades de vigilância e alarme compostas por radares fixos, sendo
três delas distribuídas nas cidades de Tabatinga, São José de Cachoeira e
Tefé, além de censores de imagens aeroespaciais e terrestres. As unidades
de vigilância e interceptação aéreas abrangem cerca de 2,19 milhões de
Km² da região amazônica. Conforme apontam as autoridades brasileiras,
dos 1500 voos não autorizados que sobrevoam a região amazônica
anualmente, 90% são dedicados a atividades ilegais, dentre elas, o
narcotráfico.
Medidas
contra
o
narcotráfico
devem
ser
implementadas
também
internamente. No entanto, em 1994 e 1995, o Brasil realizou as Operações Rio I e II,
envolvendo as Forças Armadas numa tentativa de “restituir a presença e atuação
dos instrumentos de Estado em algumas áreas que se achavam sob controle do
narcotráfico” (PROCOPIO, 1997, p.79). O insucesso das Operações Rio trouxe a
tona outro fato também levantado por Procopio (1997, p.79) “de que a ação militar
desencadeada pelas Forças Armadas se restringia a combater os sintomas do
narcotráfico, ou seja, a violência urbana e não suas causas”. As causas levantadas
por Procópio deveriam, portanto, ser combatidas pelo Estado através da melhoras
nas áreas da educação, saúde, habitação, segurança.
O envolvimento das Forças Armadas em tais operações e ainda sua presença
nas regiões fronteiriças do Brasil com os países andinos refletem muito mais
tentativas de projeção de poder do país nas regiões onde há maior incidência de
atividades ilícitas, do que um envolvimento essencialmente militarista em relação ao
problema.
As operações de repressão voltadas para os centros urbanos, onde também
há o maior número de consumidores de psicoativos ilícitos, denota que o país,
79
apesar de considerar o narcotráfico com problema transnacional, ainda mantém
políticas voltadas principalmente ao combate do narcotráfico nacional. Contudo,
grande parte do montante de droga que transita pelo território brasileiro é
proveniente de outros países, o que indica necessidade de maior atenção as
fronteiras fluviais, terrestres e aéreas do Brasil com outros países, visto que são
portas de entrada para drogas em território brasileiro.
Tal como destaca Procópio (1997, p. 94),
a inteligência que controla e fomenta o narcotráfico, sua estrutura de
produção e logística de distribuição para o país e para o exterior não estão
necessariamente nas capitais aonde à as políticas repressoras são mais
intensas, podendo estar no exterior.
Essa é a lógica do narcotráfico na região. Envolvendo diferentes grupos,
geralmente não localizados em um mesmo país com o intuito de facilitar o fluxo de
bens por meios aéreos, fluviais ou terrestres.
3.8 Descriminalização e legalização do uso e produção de drogas
O narcotráfico, por ser um fenômeno presente praticamente em todos os
países da região, com mais intensidade em uns que em outros, gera um efeito spill
over em relação aos países andinos e o Brasil. Uma melhor visualização desse
fenômeno se dá devido ao deslocados internos, pessoas que, muitas vezes em
conseqüência do narcotráfico, são levadas a migrarem de região.
Devido aos efeitos negativos do narcotráfico sobre o Estado, há muito fala-se
em
descriminalização
e
legalização
do
uso
e
produção
de
drogas.
A
descriminalização consiste em não criminalizar o dependente pelo uso de
psicoativos ilícitos. Nesse caso, o usuário é considerado dependente químico, e não,
transgressor da lei. Portanto, diante dessa perspectiva, esforços políticos e
financeiros devem ser voltados para políticas públicas de enfrentamento ao
problema.
Nesse sentido, permitir o uso pessoal da maconha não implica em abrir
mercado para uma indústria similar à do tabaco ou a de bebidas alcoólicas, cujo
principal objetivo é multiplicar o número de consumidores (DAMMERT, 2009, p.
124).
80
Já a legalização prevê que tanto o consumo, quanto a produção e
comercialização de drogas ilícitas tornem-se legais. Ou seja, não só o consumo será
permitido, como também, haveria uma indústria, assim como as de bebida alcoólica
e de cigarros, que produziriam e comercializariam drogas. Para tanto, as empresas
do tráfico, se converteriam em legais, e passariam a pagar impostos, não
precisariam mais usar da violência para exportar seu produto, nem precisariam de
seguranças para proteger sua atividade. Ademais, a qualidade da droga poderia ser
melhorada, diminuindo, assim, problemas na saúde pública.
Qualquer que seja a medida a ser tomada, nenhuma teria efetividade se não
fosse tomada em conjunto com outros países. Legalizar o consumo e a produção
das drogas apenas em alguns países não acabaria com o narcotráfico em outros,
além de que muitos consumidores seriam levados a tal país com a perspectiva de
consumo legal e fácil.
Além disso, o comércio ilícito sempre crescerá à medida que a repressão
aumentar, visto que a pressão gera um custo maior e, caso o número da demanda
permaneça invariável, os lucros do comércio das drogas ganham proporções
maiores.
Contudo, vê-se que a questão do narcotráfico ainda é tratada principalmente
pela vertente legal. Nesse sentido, a criminalização do usuário não vem surtindo
efeitos maiores no combate ao crime organizado. Por isso, alguns países vêm
descriminalizando o uso de certas drogas, como a maconha, por exemplo, que
detém grande quantidade de usuários. Enquanto
fenômeno
transnacional,
a
erradicação do tráfico de drogas seria alcançada progressivamente, através de
cooperação de Estados e instituições.
81
CONCLUSÃO
O estudo das Relações Internacionais abrange a análise de diferentes tipos
de atores que progressivamente influem na configuração do sistema internacional.
Diante dessa perspectiva, escolheu-se como objeto principal de estudo deste
trabalho o narcotráfico. Tal modalidade de crime organizado aprimora-se e ganha
espaço nas relações inter-estatais à medida que a globalização favorece o fluxo de
bens, capitais e pessoas. Ademais, o aumento da demanda por psicoativos ilícitos,
principalmente em países detentores de grande poder de influência, contribui para
que o narcotráfico seja elevado à condição de ameaça a segurança e economia.
Já na década de 1960, com criminalização do cultivo de folhas de coca e do
arbusto da coca, as atenções são voltadas à América do Sul. Tradicionalmente, Peru
e Bolívia já produziam esta planta. Seu consumo, portanto, estava arraigado à
cultura desses países há décadas. Contudo, o aumento da demanda pelos
derivados dessas plantas, particularmente nos Estados Unidos, forçou o governo
norte-americano a adotar uma postura quanto ao problema.
Os EUA, então,
baseiam os malefícios ocasionados pelo narcotráfico no crescente número da oferta.
A influência norte-americana também era refletida nos regimes internacionais
voltados a erradicação do narcotráfico. As primeiras Convenções que versavam
sobre o tema trabalhavam prioritariamente uma das vertentes de tal crime
organizado, criminalizando e exigindo a erradicação dos pontos de oferta. Ou seja, o
problema não era abordado como um todo, esquecendo-se das causas que
favoreciam a inserção deste na sociedade, no governo e na economia legal.
Portanto, as políticas de repressão ao narcotráfico desenvolveram-se sob um viés
militarista, priorizando o enfrentamento armado aos grupos narcotraficantes, bem
como às conseqüências das ações de tais grupos – um exemplo claro é a violência
urbana.
Entretanto, como demonstrado no trabalho, a Região Andina possuía
organizações ligadas a práticas de contrabando. As políticas repressoras ao
narcotráfico na região apenas favoreceram a ligação de tais organizações
criminosas com o tráfico e produção de substâncias psicoativas. Tal premissa
baseia-se no fato de que as tentativas de eliminação da oferta não geraram
impactos significativos sobre a demanda. Portanto, as políticas de repressão apenas
elevam o custo do psicoativo ilícito, já que os ramos do crime organizado que o
82
produzem terão maior dificuldade em realizar desde a produção até o escoamento
do produto devido às ações repressoras, e em contrapartida, os usuários
continuarão a consumi-lo.
O sucesso das organizações narcotraficantes na Região Andina deveu-se
tanto a sua flexibilidade, quanto a capacidade de adaptação sempre que necessário.
Um grande exemplo é a reestruturação dos cartéis colombianos quando da perda de
seus líderes, desmembrando-se em organizações menores, interligadas entre si e
sem um comando central.
A importância do Brasil para o estudo coube ao fato de que o país tem
fronteira aérea e terrestre com quase todos os países da Região Andina. A extensão
e porosidade desta facilitam o trânsito de mercadorias ilícitas entre os países da
região. Contudo, o Brasil, que anteriormente era classificado como rota de
escoamento
de
psicoativos
ilícitos
destinados
principalmente
aos
centros
consumidores denota acréscimo no consumo interno, o que faz com que parte da
produção destinada à exportação fique no País. Ademais, quando necessário, a
produção também é realizada em território brasileiro, com vistas a atender demanda
interna. A mesma perspectiva é compartilhada por Equador e Venezuela.
Além disso, e estudo do narcotráfico tem importância para o Brasil porque,
conforme demonstrado no desenvolvimento deste trabalho, a configuração desta
modalidade de crime organizado no Brasil, bem como as políticas voltadas a sua
repressão possuem caráter diferente do que é aplicado aos países da Região
Andina. Portanto, a vinculação que o governo norte-americano confere às guerrilhas
colombianas e o terrorismo chama à atenção do governo brasileiro. Essa afirmação
baseia-se no fato de que o país preocupa-se pelo não transbordamento do conflito
interno colombiano para território brasileiro, bem como com o deslocamento de
vítimas do narcotráfico para o Brasil.
A integração paralela firmada por organizações criminosas que se configuram
em rede na região demonstra que as conseqüências do narcotráfico terão efeito spill
over sobre os países em que está modalidade de crime organizado esteja presente.
E é devido à transnacionalidade do narcotráfico que não um país, mas uma região
foi escolhida como objeto de estudo deste trabalho. Ademais, tal fator elucida a
importância do estudo para as Relações Internacionais, visto que tal modalidade de
crime organizado influi diretamente na configuração do sistema internacional.
83
Conclui-se, portanto, que o regime internacional que versa sobre o
narcotráfico influenciou a formação de políticas de repressão a esse fenômeno tanto
na Região Andina, como no Brasil. Tal fator confirma o marco teórico, o qual
demonstrou através de uma perspectiva neo-liberal que os agentes transnacionais
ou intra-governamentais influenciam na formulação das políticas de Estado e
configuração do sistema internacional.
Na região de estudo deste trabalho, as políticas de repressão à oferta são
realizadas principalmente nos grandes centros urbanos, nos quais está localizada
parte da população consumidora, bem como nos campos, promovendo políticas de
erradicação e substituição de culturas ilícitas por produtos lícitos. Tais iniciativas não
ocasionaram diminuição da demanda, nem da oferta por drogas. Logo, é necessária
uma mudança de diretriz das políticas que marginalizam o produtor e o usuário de
drogas, para iniciativas que ajudem essas pessoas a inserirem-se na sociedade de
maneira legal.
Grande parte das regiões produtoras de cocaína em países andinos como a
Bolívia, o Peru e a Colômbia, possui significativa dependência social quanto ao
cultivo da planta da qual deriva esse ilícito. Ou seja, a erradicação completa dos
cultivos deixaria muitas famílias sem condições básicas para a sobrevivência.
Portanto, para que logre êxito, as políticas de substituição de culturas nesses países
devem ser acompanhadas por investimentos que possibilitem o agricultor da coca a
desenvolver a cultura de outros bens e poder exportá-los. Nesse caso, países
devem fazer concessões aos produtos lícitos provenientes destes a fim de que os
ganhos para as famílias dependentes do narcotráfico ao menos sejam iguais ao
lucro que tinham com o cultivo da coca.
Em contrapartida, sugere-se também que países com alto índice de
população usuária de drogas foquem esforços em políticas de recuperação de
dependentes, bem como, de prevenção ao uso de psicoativos ilícitos. Para tal, os
governos dos países da região andina devem mudar o foco de suas políticas,
deixando de lado investimentos apenas destinados à repressão armada, e investir
no fortalecimento de suas instituições, na melhoria da saúde, da infra-estrutura e da
educação.
Portanto, estando o narcotráfico amplamente entranhado na economia global,
principalmente por meio da lavagem de dinheiro, não há como erradicá-lo
imediatamente. Isso ocasionaria um grande impacto na economia lícita, visto que o
84
crime organizado movimenta grande montante de capital. As discussões acerca da
descriminalização ou legalização da produção e uso de drogas não poderá ter efeito
se os países atingidos pelo narcotráfico não realizarem medidas semelhantes e
paralelas. Cabe ressaltar, que as redes narcotraficantes estão preparadas para
adequarem-se a diferentes situações. Devido a esse fato, muitas organizações
envolvem-se em mais de uma modalidade de crime organizado.
O presente trabalho abre espaço para a realização de outras pesquisas
acadêmicas, tais como: a relação entre as redes narcotraficantes da Região Andina
com outras modalidades de crime organizado, como o contrabando de bens
preciosos, tráfico de armas, ou lavagem de dinheiro; e também uma análise das
iniciativas brasileira e chinesa de repressão ao narcotráfico em perspectiva
comparada, ou mesmo de uma análise das políticas de repressão utilizadas pelos
países da Região Andina comparativamente a outros países onde é adotada
perspectiva diferente de combate ao narcotráfico.
Diante dos pontos elucidados, conclui-se que as nações devem trabalhar em
conjunto, através da cooperação internacional, do compartilhamento de informações
e da realização de políticas públicas de erradicação de demanda para que as
atividades do narcotráfico sejam amenizadas. Portanto, as políticas de combate ao
narcotráfico e às suas causas devem ser realizadas em âmbito multilateral,
respeitando as possibilidades de cada país.
Por fim, conforme demonstrado acima nota-se que a hipótese deste trabalho
foi parcialmente confirmada, contudo os efeitos negativos ocasionados pelo
narcotráfico nos países da região ocorrem com mais intensidade em uns que em
outros. O narcotráfico gera conseqüências negativas na economia daqueles que são
mais dependentes desta modalidade de crime organizado, seja através da
dependência social da população em relação ao cultivo de ilícitos, seja pela
crescente economia informal, ou pelo montante de dinheiro proveniente do
narcotráfico que é inserido à economia lícita. Todos estes fatores acharam-se
presentes nos países dessa região de estudo.
Por conseguinte, nota-se que os efeitos sociais, econômicos e de segurança
estão interligados. Em contrapartida, a desestabilização política, ou seja,
instabilidade e desconfianças em relação às instituições governamentais não são
geradas pelo narcotráfico, contudo é fator facilitador de tal crime. Portanto, não
sendo ocasionada, mas sim agravada pelo narcotráfico, a desestabilização política,
85
conforme demonstrado nesse estudo facilita a ação de práticas ilícitas no país. Do
mesmo modo, a falta de diretrizes concretas e eficazes objetivando a erradicação do
narcotráfico possibilita o agravamento dos problemas sociais e de segurança na
região.
86
5.
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5.2
Outras
5.2.1 Documentais
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Secretaria Nacional de Políticas Públicas, 2008.
POLÍTICA Nacional sobre Drogas. Brasília, Presidência da República, Secretaria
Nacional Antidrogas, 2005.
92
ANEXO A
Entrevista realizada segundo fonte de inteligência do Estado
1)
Qual é a conceituação de crime organizado/ crime organizado
transnacional e de narcotráfico utilizados pela ABIN?
Segundo a lei brasileira, qualquer conluio que se realize com vistas a uma
atividade criminosa é uma “organização criminosa”. A Lei fala em “formação de
quadrilha ou bando”. O crime organizado tem como objetivo a prática de delitos.
Pode ter uma estrutura informal como as gangues de rua, por exemplo, ou formal.
Um dos exemplos de crime organizado são as famílias mafiosas, que possuem uma
estrutura organizacional e de comando.
Há, ainda, modalidades de crime organizado em nível quase empresarial. Ou
seja, o grupo criminoso possui divisão de tarefas, de poder, de objetivos. Nesse
grupo se enquadram os narcotraficantes dos morros, que trabalham com divisão de
tarefas. Nesse caso, tem-se o narcotráfico de consumo. Já o narcotráfico
internacional é mais complexo e é dividido em, pelo menos, quatro etapas: há os
financiadores, os intermediários, os transportadores e os seguranças.
O Crime Organizado na maioria das vezes se organiza em “células”. Ninguém
conhece a organização como um todo. “Se um cair” a organização não cai como um
todo. Por exemplo, o fornecedor só conhece o intermediário e o receptor. Exemplos
de organizações celulares são as que praticam os crimes de colarinho branco ou de
lavagem de dinheiro.
Fernandinho Beira Mar praticava o crime de lavagem de
dinheiro através de compras de fazendas.
Em suma, o fato criminoso, ou delituoso, praticado por um grupo de
indivíduos que mantém entre si níveis de obediência, divisão de tarefas e/ou níveis
de responsabilidade pelo ato caracteriza o crime organizado. Essas organizações
criminosas agem com um determinado objetivo e, quanto maior a organização, em
mais níveis é subdividida, tornando o combate e a apuração do fato criminoso mais
difícil.
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2)
E qual seria a definição de segurança e defesa utilizadas?
Não falando especificamente sobre conceitos, mas como se dão as ações
que visam à segurança e a defesa do País, vê-se que para combater o crime
organizado em geral devem existir acordos com outros países. Além disso, o País
deve ter organismos capazes de prevenir, fiscalizar e reprimir essa modalidade de
crime. O Brasil, por exemplo, tem o COAF, órgão de repressão aos crimes
envolvendo lavagem de dinheiro. Em prol da defesa e segurança do país, faz-se
necessário a especialização do recurso humano para o enfrentamento ao crime
organizado. Ou seja, pessoal treinado que seja capaz de decodificar linguagens,
conhecer procedimentos, entender o mecanismo do objeto de seu trabalho. O crime
organizado se combate com inteligência. O trabalho deve ser integrado. Nem
sempre só a repressão policial é necessária. A infiltração, a interceptação telefônica,
a análise contábil ou de contatos são medidas adotadas para a identificação e a
neutralização de organizações criminosas.
3)
Há realmente ligações comprovadas entre máfias e narcotráfico no
Brasil?
Não existe narcotráfico se não houver uma estrutura internacional de suporte
por trás disso. Leiam-se grandes organizações. Porque o investimento tanto
financeiro como de recursos humanos é alto.
4)
Se possível, fornecer informações sobre quais rotas os narcotraficantes
utilizam (as mais conhecidas; regiões em que se localizam).
Rotas são chamadas conexões. Existem várias dezenas de rotas-conexões.
Cada organização tem as rotas que têm condições de explorar. A cocaína sai da
Colômbia, entra no Peru, entra na Bolívia, entra no Brasil pelo Acre, Mato Grosso,
Rondônia. Parte desse itinerário é feita a pé, por “mochileiros. Há, também, aviões
de pequeno porte que saem da Bolívia e entram no Brasil por Rondônia a baixa
altura (abaixo de 1000 metros) para fugir dos radares. Posteriormente, passam a
droga para motoqueiros. Há, ainda, a rota da maconha: Paraguai – São Paulo, em
que a cannabis vem muitas vezes misturada a carga dos caminhões. Nesse caso, é
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ainda mais difícil a fiscalização vez que as cargas podem ser de madeiras pesadas e
a maconha estar prensada entre elas. Existem rotas da coca que ligam os centros
produtores (Bolívia, Colômbia, Peru) com os centros consumidores. Existem rotas
consorciadas, por exemplo, traficam coca em troca de exctasy. Cada rota tem sua
especificidade, seus mecanismos de distribuição e transporte.
5)
Como se dá a atuação da ABIN no que concerne ao combate ao
narcotráfico? Nesse sentido, como funciona também a permutação de
conhecimento ABIN- CONAD (Conselho Nacional Anti-Drogas), bem como o
papel de ambos no combate ao narcotráfico?
A ABIN não faz combate ao narcotráfico. Ela estuda os óbices sociais,
estruturais e financeiros que essa atividade criminosa pode trazer ou apresentar
para o estado brasileiro. A CONAD também não se enquadra como órgão de
repressão. A Polícia Federal é a responsável por essa atividade. A ABIN avalia os
impactos na ambiência social brasileira, além de analisar as causas e efeitos do
narcotráfico. A SENAD cuida das políticas públicas referentes à prevenção,
tratamento e combate ao uso de drogas.
6)
Atualmente a ABIN trabalho efetivamente em conjunto com a Polícia
Rodoviária Federal e com as Forças Armadas em operações para combater o
narcotráfico? Ou ainda existe carência nesse sentido havendo necessidade de
um diálogo maior (troca de informações) entre esses órgãos?
Para garantia da lei e da ordem na faixa de fronteira é necessário troca de
informações para subsidiar as análises. Há uma necessidade de fluxo maior de
informações. Quanto mais informações, melhor o produto da inteligência (análise).
A ABIN mantém contatos com todos os parceiros do SISBIN em uma
atividade de complementaridade dos dados obtidos. Com mais dados é possível
fazer uma análise de melhor qualidade.
95
7)
Quais as dificuldades encontradas pelo serviço de inteligência no
combate ao narcotráfico?
As principais dificuldades são: a falta de dados e a carência de recursos
humanos qualificados.
8)
Em que regiões ou estados se concentram as operações de combate ao
narcotráfico? Por quê? Esse pergunta baseia-se no fato de que a imprensa
divulga muitas operações de combate ao crime organizado concentradas na
região sudeste – Rio, São Paulo. E quanto a região centro-oeste,
compreendendo o Mato Grosso, e a região Norte; a ABIN tem presença efetiva
nesses locais?
As operações de combate ao narcotráfico concentram-se principalmente nas
chamadas rotas de acesso ao território brasileiro. Há que se concentrar esforços nas
fronteiras secas, fluviais e no espaço aéreo, o último devido ao uso de aeronaves de
pequeno porte e pistas de pouso clandestinas.
A ABIN realiza coleta de dados no local e através dos órgãos parceiros com
vistas a subsidiar as análises. Em alguns casos existem operações conjuntas entre a
ABIN e órgãos parceiros visando à coleta desses dados.
9)
Existe de fato a participação crescente de algumas tribos indígenas no
narcotráfico? O que é feito para prevenir o problema?
Existe, na Amazônia principalmente. Seja na utilização do indígena como
facilitador nas atividades de transporte e apoio a traficantes, seja no fornecimento de
insumos. Muitos índios servem ao Exército, aprendem táticas de guerra e quando
saem das Forças Armadas utilizam o aprendizado para o narcotráfico. O índio acaba
sendo um facilitador. Quando sai do serviço militar e não tem o que fazer, acaba
sendo “absorvido” pelo narcotráfico.
96
10)
Os Estados Unidos da América têm influência na política de repressão
ao narcotráfico do Brasil e região andina?
A política dos EUA é voltada para combater a produção das drogas. Se não
há consumo, por que haverá produção? O custo do combate ao consumo é muito
mais caro, então eles preferem combater a produção. Logo, fazem acordos com
países que sejam responsáveis pela produção ou passagem de drogas, visando o
combate da mesma. A DEA, por exemplo, atua de forma legal através de acordos
firmados com outros países e/ou ilegal, atuando de uma maneira mais operacional.
11)
O Brasil, tal como os outros países da região, tem uma política de
repressão à oferta de drogas. Não seria importante investir também em uma
política de repressão ao consumidor (usuário) da droga, tal como ocorre na
China? Quais seriam os prós e contras de uma mudança de perspectiva?
Reprimir o consumo é mais caro, mais difícil e traumático do que reprimir a
produção. A visão chinesa é diferente. No Brasil existe uma política de repressão a
produção e ao consumo e de prevenção ao consumo. Só que a política de repressão
esbarra em modismos, linguagens. A prevenção não tem o mesmo apelo do que a
oferta de drogas. A linguagem da prevenção está distante do público alvo.
12)
Uma das formas de repressão ao narcotráfico pelos países andinos é a
substituição de cultura. Esse método seria eficaz, tendo em vista a quantidade
de pessoas que vivem da plantação de coca, por exemplo? Qual seria a
alternativa mais viável?
O Plano Colômbia previa isso. Não funcionou. A tradição cultural é um óbice
forte para essa questão. Está arraigado nas populações indígenas dos altiplanos o
uso de mascar a folha de coca. É como no polígono da maconha, onde o cultivo da
maconha é mais rentável que o de outros itens.
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13)
Concorda que o Brasil mantenha um posicionamento diplomático de
não-interferência em território estrangeiro, sendo assim não interferindo
diretamente no combate ao narcotráfico nesses países?
Para se ter influência é preciso ter poder (dinheiro). Quando a Bolívia expulsou a
DEA de seu território, em 2008, o Brasil ofereceu ajuda da DPF. É necessário ter
poder de influência sem interferir na autodeterminação de cada povo.
14)
O que fazer para combater grupos como o Sendero Luminoso que vem
crescendo novamente?
Tanto o Sendero como o Tupac Amaru possuem um cunho místico muito
grande. Há suspeitas de que estejam apoiando mochileiros, encobrindo, assim, o
narcotráfico. O combate a esses grupos necessita de um forte trabalho de
Inteligência.
15)
Na sua opinião o narcotráfico é um problema que possa ser realmente
amenizado ou essa idéia foge a realidade? Por quê?
Pode ser amenizado, mas exige uma atividade de inteligência de Estado
muito grande, aliada a políticas públicas de repressão ao tráfico e de tratamento do
dependente. Deve haver cooperação internacional. Um país sozinho não faz
combate ao narcotráfico.
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ANEXO B
Mapa do tráfico global de cocaína em 2007
Fonte: World Drug Report 2009, p. 85. (UNODC, 2009)
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Juliana Medeiros de Oliveira - Universidade Católica de Brasília