DE TRAPEIROS E VENCIDOS
efabulação e história em Raul Brandão
Otávio Rios Portela
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas).
Orientador: Profa. Doutora Luci Ruas Pereira
Rio de Janeiro
Março de 2012
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FICHA CATALOGRÁFICA
RIOS, Otávio.
De trapeiros e vencidos: efabulação e história em Raul Brandão / Otávio
Rios Portela - Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
xiv, 280f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Luci Ruas Pereira
Tese (Doutorado em Letras Vernáculas – Literaturas Portuguesa e Africanas)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2012.
Bibliografia: f. 220-234; Anexos: 235-280.
1. Brandão, Raul (1867-1930) – El-Rei Junot, História dum Palhaço, Memórias:
crítica e interpretação. 2. Narrativa portuguesa – séc. XIX-XX. 3. Literatura e História.
I. Pereira, Luci Ruas. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
III. Título.
CDD: 869.369
Esta pesquisa recebeu financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), de
Lisboa, e está em consonância com as normas de formatação dos Programas de PósGraduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Email do autor:
[email protected]
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DE TRAPEIROS E VENCIDOS
efabulaçao e história em Raul Brandão
Otávio Rios Portela
Orientadora: Profa. Doutora Luci Ruas Pereira
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras (Letras
Vernáculas), na área de concentração em Literaturas Portuguesa e Africanas.
Esta investigação tem por corpus de análise três obras do escritor português Raul
Brandão (1867-1930): El-Rei Junot (1912), História dum Palhaço (1896) e Memórias
(1919, 1915 e 1933, em três tomos). O objetivo norteador desta pesquisa é o de
evidenciar que o autor dá voz àqueles que foram emudecidos ao longo do processo
histórico de dominação, em desfavor dos vencedores – os que escrevem a história –,
fazendo saltar da sua escrita a imagem do trapeiro, esse sujeito esfarrapado que desafia
os preceitos positivistas do século XIX. Portanto, a filosofia da história de Walter
Benjamin está no cerne do arcabouço teórico traçado. A presente tese distingue-se por
eleger como objeto de leitura crítica a parcela menos estudada da escritura de Raul
Brandão, ele próprio, um autor à margem do cânone literário. Diferencia-se, ainda, por
dar a conhecer manuscritos e documentos, alguns inéditos, que compõem o espólio do
escritor depositado na Biblioteca Nacional Portuguesa. A crítica literária ora
apresentada constrói a partir da hipótese de que literatura brandoniana provoca uma
ruptura com a concepção de uma história monolítica para abraçar a idéia de uma história
em ruínas e fragmentos, como é, aliás, a estrutura da maior parte de sua obra. Neste
sentido, a literatura, ao ser articulada com a matéria histórica, assoma como palco para
que os vencidos se estabeleçam como legítimos protagonistas das narrativas em análise.
Esta crítica abre, assim, espaços para novos paradigmas para se pensar a escritura de
Raul Brandão.
Palavras-chave: 1. Raul Brandão: crítica e interpretação literária; 2. Narrativa
portuguesa finissecular; 3. Fronteiras entre literatura e história; 4. Trapeiros e vencidos.
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DE TRAPEIROS E VENCIDOS
efabulaçao e história em Raul Brandão
Otávio Rios Portela
Orientadora: Profa. Doutora Luci Ruas Pereira
ABSTRACT
The corpus for this disseration is composed of three book by the Portuguese novelist
Raul Brandão (1867 – 1930): El-Rei Junot (1912), História dum Palhaço (1896) and
Memórias (1919, 1915 and 1933, in three tomes). The investigation aims at evidencing
that this author gives voice to those who have been muted throughout the long historical
process of domination, in disfavor of the winners, namely those who write history.
Brandão thus builds in his writing the image of the swindler, a lame individual who
challenges the 20th century positivist principles. Hence, Walter Benjamin`s philosophy
of history is central to the theoretical framework that guides this research. This
dissertation , thus, focuses its critical reading on the most understudied part of
Brandão`s oeuvre, himself a writer on the margins of the literary canon. Another
distinguishing feature of this investigation is the fact that it makes public manuscripts
and documents, some of them unpublished, which are part of the writer`s estate, kept at
the Portuguese National Library. Grounded on the hypothesis that the brandonian
literature provokes a rupture with the monolithic conception of history, the literary
critique offered here constructs history as ruins and fragments, which reflects, by the
way, the narrative structure of part of the author`s oeuvre. In this sense, literature
articulated with the historical matter appears as a stage for the losers to establish
themselves as the legitimate protagonists of the narratives under scrutiny. This critique
thus paves the way to new paradigms within which we may understand Raul Brandão`s
literature.
Key-words: 1. Raul Brandão: literary critique and interpretation; fin-de-siècle
Portuguese Literature; 3. Boundaries between literature and history; Swindlers and
losers.
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DE TRAPEIROS E VENCIDOS
efabulaçao e história em Raul Brandão
Otávio Rios Portela
Orientadora: Profa. Doutora Luci Ruas Pereira
RESUMÉN
Esta investigación tiene como corpus de análisis tres obras del escritor portugués Raul
Brandão (1867-1930): “El Rei Junot” (1912), “História dum Palhaço” (1896) y
“Memórias” (1919, 1915 y 1933, en tres tomos). El objetivo principal de esta
investigación es el de poner en evidencia que el autor da voz a aquellos que estuvieron
silenciados a lo largo del proceso de dominación, desfavoreciendo a los vencedores –
los que escriben la historia-, haciendo surgir de su escritura la imagen del tropero, ese
sujeto desharrapado que reta los preceptos positivistas del siglo XIX. Por lo tanto, la
filosofía de la historia de Walter Benjamin está en el cierne del referencial teórico
trazado. La presente tesis se distingue por elegir como objeto de lectura crítica la
parcela menos estudiada de la escritura de Raul Brandão, él mismo, un autor al borde
del canon literario. Se distingue, también, por dar a conocer manuscritos y documentos,
algunos de los cuales inéditos, que componen el espolio del escritor depositado en la
Biblioteca Nacional Portuguesa. La crítica literaria aquí presentada se construye a partir
de la hipótesis de que la literatura brandoniana provoca una ruptura con la concepción
de una historia monolítica para abrazar la idea de una historia en ruinas y fragmentos,
como, a lo mejor, lo es la estructura de la mayor parte de su obra. En este sentido, la
literatura, al ser articulada con la materia histórica, se asoma como escenario para que
los vencidos se establezcan como legítimos protagonistas de las narrativas bajo análisis.
Esta crítica abre, así, espacio para nuevos paradigmas para que se piense la escritura de
Raul Brandão.
Palabras-clave: 1. Raul Brandão: crítica e interpretación literaria; 2. Narrativa
portuguesa de fin de siglo; 3. Fronteras entre literatura e historia; 4. Traperos y
vencidos.
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À UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ), que adotei como casa
ao longo dos últimos anos; e, sobretudo, ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas e à Cátedra Jorge de Sena para Estudo Literários Luso-afro-brasileiros da
Faculdade de Letras – distintos espaços de pesquisa sobre a Literatura Portuguesa
neste lado do Atlântico;
À FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN (FCG), de Lisboa, que por meio do Serviço
Internacional dispensando à Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-afrobrasileiros da Faculdade de Letras da UFRJ, financiou esta investigação. A FCG
tornou possível a estada em Portugal para a realização de estágio-sanduíche com
vistas à pesquisa no arquivo de Raul Brandão depositado na Biblioteca Nacional
Portuguesa;
À BIBLIOTECA NACIONAL PORTUGUESA, pelo acolhimento em dias de inverno e
pela generosidade com que seus funcionários facilitaram o acesso a livros e ao espólio
de Raul Brandão;
À SOCIEDADE MARTINS SARMENTO, em Guimarães, cujos esforços mantêm viva a
memória de Raul Brandão por meio de seu valoroso acervo documental e biblioteca;
À Faculdade de Letras da UNIVERSIDADE DE LISBOA, pelo acolhimento em sua
biblioteca pública e salas de estudo, em cujos espaços esbocei a parte inicial desta
investigação;
À Faculdade de Letras da UNIVERSIDADE DO PORTO, pelas pontes acadêmicas
construídas ao longo dos últimos anos, iniciadas com o acolhimento formal do estágio
sanduíche realizado sob a supervisão do Professor Doutor Pedro Eiras;
À UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS, em cuja experiência docente pude
amadurecer profissional e intelectualmente nos últimos anos, pela tranquilidade que me
proporcionou e por suscitar o desejo de querer ir muito além;
À memória de RAUL BRANDÃO, cujo texto profundo permite que eu e que outros
investigadores mergulhem em espaços literários repletos de sabor e de saber;
AGRADEÇO.
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À professora Luci Ruas, na certeza de que construímos uma relação íntima e
inabalável, pautada no respeito e afeto mútuos, a eterna gratidão daquele garoto que,
um dia, chegou à Faculdade de Letras da UFRJ com o sonho de estudar Húmus, de
Raul Brandão. Obrigado por ter me orientado não apenas pelos caminhos daquele e de
outros textos literários, mas também pelos sinuosos percursos da vida (acadêmica);
Aos meus professores na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
janeiro: Ângela Beatriz, pela relação sempre cordial; Gilda Santos, pelas primeiras das
aulas na pós-graduação; Edson Rosa da Silva, em cuja disciplina travei contato com a
filosofia da história em Walter Benjamin; Teresa Cristina Cerdeira, pelo acolhimento
carinhoso na Cátedra Jorge de Sena e pelo saber transmitido pelas trilhas dos textos;
Monica Figueiredo, com quem aprendi muito e ri mais ainda; Cleonice Berardinelli,
cuja presença em meu coração será eterna;
Ao professor Pedro Eiras, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pela
confiança no trabalho empreendido e pelas muitas portas abertas;
Ao professor Jorge Valentim, cujo entusiasmo não me deixou soçobrar, pelas mãos
sempre estendidas e prontas a ajudar com sua extrema generosidade;
Ao professor Mário César Lugarinho, que com sua competência e amizade me ensinou
que fazer uma tese, embora seja trabalho árduo, não é um bicho de sete cabeças – e por
isso decidiu fazer uma outra;
Aos professores Paulo Motta de Oliveira e Maria Theresa Abelha, que, em presença ou
à distância, continuam incentivando o caminho acadêmico até aqui percorrido, desde
que nos encontramos pela primeira vez na cidade de Feira de Santana (BA), em 2006;
Aos professores Dalva Calvão e Sérgio Nazar David, pela leitura atenta e pela
disponibilidade em arguir esta tese;
À Maria Teresa Neves e Adelaide Serra, pela salutar convivência diária na
BIBLIOTECA NACIONAL PORTUGUESA;
À Maria Urânia Pacheco, secretaria do Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Faculdade de Letras da UFRJ, pela prontidão em ajudar e pelas
palavras de encorajamento;
Às professoras Coema Damasceno e Edna Carlos Holanda, princípio de tudo;
Ao amigo Heber Tavares, que me abrigou em horas de desabrigo, e que digitalizou os
manuscritos em anexo;
À Marcela Magalhães de Paula, parceira de muitos anos, pelo auxílio na tradução
para o vernáculo dos versos da ópera Pagliacci;
AGRADEÇO SINCERAMENTE.
9
Aos diletos amigos cariocas Emerson da Cruz Inácio e Rosemary Granja, que, sempre
mais otimistas que eu, acreditaram, entre uma conversa e um afeto, que esta tese
nasceria a contento;
Ao Rodrigo Borba, que jamais ousaria não estar presente neste dia em que se encerra
este trabalho que ele acompanhou de muito perto, entre filmes e passeios pela Cidade
Maravilhosa;
Aos amigos Carlos Felipe Pinto, Cinthya Machado, Diana Neves, Mirella Miranda e
Renata Moreira, que comigo, antes ou depois, iniciaram percursos paralelos na pósgraduação em Letras, pelas numerosas horas de desabafo e pelo carinho inesquecível;
Aos colegas de pós-graduação da Faculdade de Letras da UFRJ: Gabriela Ventura,
Luciana dos Santos Salles, Luiz Fernando de Moraes Barros, Marcelo Pacheco,
Mônica Genelhu Fagundes, Roberto Nunes Bittencourt e Vinícius Carvalho Pereira,
pelos laços que até hoje se cruzam e fecundam;
Aos amigos Bernardo Lima, Cláudia Souza, Elisângela Menezes, Ismahelson Luiz
Andrade, Margarida Fernandes e Nuno Ribeiro, que fizeram da estada em Portugal
uma aventura prazerosa;
Aos amigos da Universidade do Estado do Amazonas, sobretudo Carlos Renato Rosário
de Jesus, Joab Grana Reis, Juciane dos Santos Cavalheiro, Mauricio Gomes de Matos,
Neliane Alves, Raimundo Barradas e Veronica Prudente, por serem laços de
fraternidade em terras amazônicas;
À Flávia Ruas, pelas duras palavras quando precisava senti-las;
Ao Roberto Mibielli e ao Mário Petter, pelo incentivo;
À Juliana Sá e ao Ed Bibiani, que me permitiram a tranquilidade necessária já perto do
fim;
À Adriana Aguiar, Cristiana Mota, Débora Renata Braga, Priscila Lira, Socorro
Fonteles e Sônia Lima, porque a melhor forma de aprender é ensinando;
À Mariana Marques de Oliveira, que depois ser minha orientanda, entrego nas mãos de
Luci Ruas – outro ciclo começa;
OFEREÇO.
10
À Silvana Rios e Maria Lenita Rios Portela, irmã e mãe, não sei mais em que ordem,
por serem porto-seguro, ainda que à distância;
&
À memória de meu pai, Djacir de Miranda Portela, que desde o berço acreditou que eu
chegaria longe, o meu amor, para sempre, que com esta obra a ti
DEDICO.
11
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO......................................................................................................... 14
Capítulo I ........................................................................................................................ 19
PAPÉIS NO CAMINHO ............................................................................................ 19
1.1. Nuances da crítica ............................................................................................ 20
1.2. Experiências do arquivo ................................................................................. 52
Capítulo II ....................................................................................................................... 70
A TENTAÇÃO HISTÓRICA .................................................................................... 70
2.1. Fronteiras das narrativas .................................................................................. 71
2.2. Intermezzo ........................................................................................................ 80
2.3 El-Rei Junot, a história como drama ................................................................ 88
Capítulo III ................................................................................................................... 117
DE TRAPOS E TRAPEIROS .................................................................................. 117
3.1. O procedimento alegórico ............................................................................. 118
3.2. Ressonâncias e desconcertos ou “Triunfo do barroco” ................................. 137
3.3. No bojo da tradição........................................................................................ 149
Capítulo IV ................................................................................................................... 165
QUANDO OS VENCIDOS SAEM ÀS RUAS........................................................ 165
4.1. Por que ler as Memórias de Raul Brandão? .................................................. 166
4.2. O estatuto literário da escrita memorialística ................................................ 168
4.3. Memórias, histórias, testemunhos: uma poética em farrapos ........................ 175
4.4. Erosão e ruína: o levante dos vencidos .......................................................... 203
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 212
6. BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 220
ANEXOS ...................................................................................................................... 235
12
SINOPSE
0 Apresentação e primeiros contatos com o texto de Raul Brandão. I Perspectiva dos
estudos brandonianos no decurso do século XX. A crítica contemporânea e o estado
atual de investigação de obras de Raul Brandão. A função do arquivo brandoniano,
depositado na Biblioteca Nacional, no interior desta crítica. Os objetivos da presente
investigação e exposição do principal suporte teórico: a filosofia da história em Walter
Benjamin. II A Poética e a distinção entre poesia/literatura e história. A questão da
linguagem como representação. Revisão teórica da concepção positivista da história. As
novas perspectivas da história no século XX. Formas de articular literariamente o
passado: romance histórico, drama histórico e “história como drama”. Raul Brandão e a
preocupação histórica. Leitura crítica de El-Rei Junot. III O palhaço como alegoria
finissecular. A ópera Pagliacci. O conceito de alegoria e o procedimento alegórico. O
drama barroco alemão à luz do pensamento de Walter Benjamin. Os conceitos de
barroco e neobarroco. História dum Palhaço pela perspectiva do Trauerspiel. Cotejo de
História dum Palhaço com A Ruiva, de Fialho de Almeida. O palhaço brandoniano
como arauto de uma história em ruínas. IV O estatuto literário da escrita memorialista.
O pacto autobiográfico. As Memórias e a redenção dos vencidos. Ficcionalização da
memória. Leitura crítica das Memórias. A matéria histórica no memorialismo de Raul
Brandão. 5 Últimas considerações.
13
O velho mundo esfarela-se: já não há artifício que o sustente em
pé.
[RAUL BRANDÃO. El-Rei Junot, 1912]
[...] era apenas um palhaço de circo... Caída na lama a sua
quimera parecia grotesca.
[RAUL BRANDÃO. História dum Palhaço, 1896.]
Tenho o senhor José diante de mim todo branco, com os socos
nos pés e a camisa entreaberta no peito cheio de grenha cinzenta
e vermelho como o monco dum peru. É assim que me aparece
todo esfarrapado.
[RAUL BRANDÃO. Memórias, tomo III, 1933]
14
APRESENTAÇÃO
A introdução é, precisamente, momento que marca a última vez em
que alguém fala pelo texto e, também, perturbadoramente, a primeira
vez em que se pode começar a sentir quão distante este texto ficou.
Como as autobiografias, as [...] [apresentações e] introduções também
começam pelo fim. (MOLLY, 2003, p. 13).
Há certo paradoxo na escrita acadêmica que faz com que o texto com o qual o
leitor inicia o acompanhamento desta crítica sobre a literatura de Raul Brandão seja,
justamente, o produto final de uma longa reflexão. Raul Brandão é, à época em que
concluo esta tese de doutorado, um conhecido de longa data, com quem venho
caminhando desde o percurso iniciático da licenciatura em Letras e com quem
permaneço até o presente. Entretanto, tão diversa e vasta é a produção brandoniana que,
quase sempre, estudei o autor olhando-o sob ângulos distintos. Do escritor, a meu ver,
simbolista, nas primeiras leituras, hoje não resta quase nada. E do interesse por fazer
também o meu exercício de crítica sobre Húmus, engendrado na dissertação de
mestrado, defendida também na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, permaneceu a inquietação, que impulsiona o crítico a buscar novos textos
literários. Portanto, as páginas que se seguem são, ao final de tudo, também uma
autobiografia, a escrita de uma história de investigação, que não pode ser apartada do
percurso crítico do sujeito que a redigiu – e que continua a redigir, eternamente no
presente, no espaço do leitor. Assim, acabo por tentar me identificar com o percurso de
Georges Duby quando, em A história continua, entrelaça o próprio caminho ao caminho
da investigação:
A história que vou contar começa em 1942, no outono. Estamos em
plena guerra, que entrou em sua fase mais dura. Eu acabo de me tornar
15
agregée. Ensino história e geografia num liceu de província. Minha
firme intenção é não ficar nisto, e decidi preparar uma tese de
doutorado. [...] Falta-me agora escolher um tema. (1993, p. 7)
Lancei-me também, certamente com menos ambição – e talvez competência –, à
tarefa de escrever uma tese que, continuando os estudos despendidos no mestrado,
aprofunda e contribui, de forma sistemática, para o alargamento dos estudos
brandonianos. Não apenas porque é esta condição sine qua non para a existência de uma
tese, mas porque, sobretudo, estaria fazendo jus à memória de um escritor que me
instiga desde 2004. Escrever sobre Raul Brandão é uma forma de rememorá-lo, de
colaborar para que a eclipsagem que se lhe abateu durante décadas – como se sublinha
no interior desta crítica – fosse dissipada, porque ora se intenta dar a “conhecer a fundo
o quanto foi dito sobre o mesmo argumento pelos demais estudiosos.” (ECO, 1988,
p.2).
Na esteira de Duby e, certamente, na de todos os outros que se aventuram pela
experiência do doutorado, busquei uma tese, uma ideia, um fio que me mantivesse
focado e que não me permitisse soçobrar, obstruído por uma “pedra no meio do
caminho”, mas, paradoxalmente, por ela incitado a progredir. E, nesse percurso,
continuei a descobrir que “elaborar uma tese é como exercitar a memória” (ECO, 1988,
p. 5), memória não apenas do sujeito que a (d)escreve ou memória que deseja ser agente
de uma canonização do autor
(não é este o motivador da crítica literária?). É,
sobremaneira, exercitar a memória daqueles que antes de mim pensaram o texto de Raul
Brandão e que, dessa forma, permitem agora revisitar, de uma outra maneira, essa
mesma escritura. Esta tese não tem, portanto, a pretensão de ser mais do que ela é:
“citação como uma matéria que existe dentro de mim” (COMPAGNON, 1996, p. 33).
Esta crítica é, inevitavelmente, o resultado de um esforço coletivo e dedicada (no
sentido de que “se empenha, que se entrega”; HOUAISS, 2001, p. 924) ao coletivo, em
16
especial aos ensaios mais rememorados ao longo das páginas que se sucedem, é o “work
in progesss” (REYNAUD, 2000) que a relação especular – na forma de uma salutar
obsessão – com a escritura de Raul Brandão permite e persegue: uma escrita que parece
não ter fim, em que apenas o outro parece ser capaz de arrematar o ponto derradeiro.
Está-se diante de um “working paper” (COMPAGNON, 1996, p. 33), de um “trabalho
em processo” com o qual o “texto [vai] se construindo” (Ibidem).
Se, como disse, esta crítica é o espelho do percurso engendrado, “é preciso dar-lhe
um rosto, fazê-lo falar com a voz do autor, pela última vez.” (MOLLOY, 2003, p. 13).
Por conseguinte, é necessário ressaltar que a introdução desta pesquisa desdobra-se em
dois momentos: este, de pendor avaliativo, impulsionado por uma visão já, agora, mais
distanciada, e o capítulo inicial. É, portanto, em “Papéis no caminho”, ao embaralhar –
no sentido próprio do jogo textual – a fortuna crítica brandoniana, em suas diversas
fases, que se expõe, de forma detida, o tema condutor da presente crítica, a tese que se
explora e persegue, o corpus literário interpretado e a sustentação teórica que permite
ler Raul Brandão como o autor que facultou aos trapeiros e vencidos exercitar
literariamente o levante contra os vencedores, porque, na escritura do autor, são os
esfarrapados os agentes da ação.
Assumindo a forma de quatro capítulos é que esta tese de doutorado construiu-se.
A “Papéis no caminho” segue-se “A tentação histórica”, em que se pontua, a partir da
leitura de El-Rei Junot, a relação do escritor com a história e a preocupação de que nela
se façam refletir também os sujeitos à margem da sociedade, esses homens e mulheres
que vivem uma história de sujeitos sem história. Em seguida, prossigo com “De trapos e
trapeiros”, que se detém na História dum Palhaço para mostrar que, já no final do
século XIX, no decurso da elaboração de seu texto literário, o autor permite entrever
uma intuição peculiar de história, sobretudo se se levar em consideração que o
17
oitocentos esteve orientado a partir dos preceitos da filosofia positivista, que se
materializaram, do ponto de vista da escritura, em narrativas que, intrinsecamente,
apostavam na ideia de progresso e, portanto, de linearidade. Na contramão do cânone,
História dum Palhaço rompe com a narração tradicionalmente estruturada para, a partir
de então, mostrar-se como texto que é, ele próprio, edificado sobre escombros e
destroços, para se revelar uma obra literária em que o palhaço emerge como arauto que
anuncia uma história – numa visão finissecular – incessantemente em ruínas. Por fim,
em “Quando os vencidos saem às ruas”, o foco da análise repousa sobre os três volumes
das Memórias, texto em que “confessamente o Autor se desdobra” (COELHO, 1996, p.
296), iluminando a si e aos outros como personagens de uma história cujo objetivo
constituiu-se em evidenciar o papel dos homens e das mulheres de um Portugal,
sobretudo nas cidades do Porto e de Lisboa, que se levantam, frenéticos e atônitos,
contra o stato quo da monarquia, da corrupção, da dominação das classes abastadas. É
o ser esfarrapado que se torna o agente de uma outra história e que assume a posição de
legítimo protagonista, tanto nas Memórias quanto nas demais narrativas em análise
nesta investigação. É, portanto, pelos meandros da literatura que o escritor faz falar os
que foram emudecidos no processo de dominação.
Vale a pena, ainda, sublinhar a capital importância e contribuição dos estudos de
Vitor Viçoso, talvez, entre todos nós, o mais apurado dos leitores de Raul Brandão. Daí
que a presença de sua crítica seja uma constante, porque pelas mãos do ensaísta a
escritura brandoniana parece ter sido verdadeiramente redescoberta, e esses ecos não
deixam de estar presentes na leitura aqui proposta e na crítica contemporânea que
trespassa a todos. Na forma de contribuição a essa referida crítica, a presente tese
pretende ser, portanto, um sinal positivo de que Raul Brandão continua vivo, porque seu
texto emerge não apenas como herança literária para os romancistas do século XX, mas,
18
sobretudo, como marca inequívoca de que o decadentismo português está pleno de um
ideal de modernidade.
19
Capítulo I
PAPÉIS NO CAMINHO
Agora, a sessenta anos de distância, é que [...] parece duma
actualidade mais viva e mais admirável. Agora, que assistimos à
experiência novelística dos anos 30 (Régio, Gaspar Simões, o
Rodrigues Miguéis de Páscoa Feliz) e, mais recentemente, ao surto
duma Agustina Bessa-Luís, dum Vergílio Ferreira, dum Almeida
Faria, da ficção dum José Gomes Ferreira (O Mundo dos Outros),
medimos melhor o significado de Raul Brandão na literatura
portuguesa, vemos nele um expoente e um grande precursor.
Principalmente quando nos voltamos para o Surrealismo e o
Existencialismo.
[JACINTO DO PRADO COELHO. A Letra e o Leitor, 1996]
20
O capítulo intenta apresentar os primeiros papéis que norteiam
a investigação em curso, notadamente quando faz um
levantamento de significativa parcela da crítica brandoniana ao
longo do novecentos e da primeira década do século XXI.
Destaca-se, na segunda seção, a experiência de manipulação do
espólio de Raul Brandão, depositado na Biblioteca Nacional,
em Lisboa, e o modo como o contato com esses manuscritos
impulsionaram este estudo rumo à busca por uma concepção de
história, esboçada ao longo da produção literária do escritor.
1.1. Nuances da crítica
Silêncio e repetição, ou posso dizer de modo mais específico: a repetição do
silêncio e o silêncio sobre a repetição. O quiasmo que se forma como um jogo de
palavras aparentemente despropositado é o artifício aqui adotado para dar início à
exposição sobre a investigação empreendida em torno da obra de Raul Brandão: escritor
português da virada do século XIX para o XX, mas que a mera justaposição (como
forma adjetiva) do termo finissecular ao seu nome não é suficiente para dar conta da
totalidade e da diversidade de seu pensamento e estética.
Digo repetição do silêncio porque, durante décadas, o meio universitário fechou
os olhos para textos tão significativos, como verdadeiramente o são, para citar apenas os
de minha predileção: A Farsa, El-Rei Junot, Húmus e as Memórias. Ao observar o
percurso da crítica que se debruça sobre a produção literária brandoniana – produção
que tem início ainda na longínqua década de 1890 e segue até a morte do escritor no ano
de 1930 –, percebe-se que, como terei oportunidade de mostrar no interior da presente
investigação, durante algum tempo (quase) nenhum juízo estético lhe foi atribuído,
centrando-se em questões de interesse artístico (o valor da arte) ou acadêmico (o
interesse pelo estudo aprofundado). Por conseguinte, não poderiam, a princípio, entrar
em causa as evocações elogiosas emitidas por Teixeira de Pascoaes, com quem Raul
21
Brandão desenvolveu longa amizade e profícua colaboração intelectual, que, à guisa de
ilustração, diz sobre o texto brandoniano, em artigo publicado na revista A Águia:
Eis o Verbo em delírio! E eis a Tragédia, e nova tragédia e
profundamente lusíada! E assim, Raul Brandão deve ser colocado
entre os nossos raríssimos gênios criadores e representativos. É triste
que esta obra, tão intensa e profundamente dramática, tão reveladora
do nosso Povo, não possa ser compreendida, por enquanto, em
Portugal, onde o gosto literário não vai além dum certo lirismo
exterior e musical... (PASCOAES, 2005, p. 150).
O poeta do saudosismo invariavelmente ascende o escritor da Foz do Douro à
condição de maior expoente de sua geração, num juízo que fica comprometido pelo
afeto e pela opção retórica, mas que, ainda assim, traz aspectos relevantes do conjunto
da obra de Raul Brandão, a exemplo da carga lírico-dramática e de certo nacionalismo
incipiente – não de todo concebido, mas que se desvela no interesse do escritor em
retratar senão a categoria cênica, os tipos sociais ou ainda os processos históricos da
nação portuguesa.
Outrossim, quando se trata de mergulho na crítica brandoniana, é forçoso
descrever qual crítica a presente seção deseja circundar. Refiro-me a três momentos
específicos: a) à crítica de formação, produzida em grande parte pelos integrantes de
círculos literários e políticos próximos ao autor em estudo e que se compreende entre a
década de 1920 e a década seguinte; b) à crítica de reabilitação, centrada na década de
1960 e que aborda um Raul Brandão que, embora ausente do cânone da literatura
portuguesa, influi decisivamente para a consecução do romance português, sobretudo na
segunda metade do século XX; c) à crítica contemporânea, que, herdeira das gerações
anteriores, busca romper com o impressionismo do primeiro período e deslocar, por
meio da sustentação de ideias e argumentos, o papel de destaque para a escritura
brandoniana nas primeiras décadas do século XX – e não apenas nessas, mas no
22
decorrer de todo o século. É a esta crítica (itens b e c) que atribuo o adjetivo de
estruturada. Não porque as anteriores carecessem de textos bem redigidos, mas porque é
desde as décadas de 1960 e 1970 à atualidade que se observa o interesse sistemático
pelo estudo das obras de Raul Brandão, bem como a sequência de pesquisas de fôlego,
que tem princípio com as publicações de Vergílio Ferreira (1991; 1995) e, sobretudo, de
Guilherme de Castilho, com Vida e Obra de Raul Brandão, em 1979, e segue até aos
ensaios de Pedro Eiras e a esta própria tese.
Não obstante a maior parte dos estudos sobre a obra do escritor do Douro serem
desenvolvida a partir de universidades e centros portugueses, a pesquisa brasileira figura
em papel de destaque no que tange à tentativa de deslocá-lo, senão da periferia do
sistema literário lusitano à posição central, ao menos a uma situação confortável. A
crítica brandoniana fundada deste lado do Atlântico encontra espaço para produção,
sobretudo no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, tendo ganhado impulso ainda no alvorecer
da década de 1990 e contribuído para a publicação de artigos e ensaios dispersos que
resultam, em última instância, na execução desta pesquisa de doutoramento na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Há de se dizer, portanto, que, da mesma forma
que se sublinha a intenção original e inédita desta investigação, é preciso destacar a
absoluta consciência de que não se funda neste texto o marco zero da pesquisa em Raul
Brandão e sua literatura.
De volta ao mergulho na crítica brandoniana, quando refiro ao silêncio por essa
engendrado, afasto para segundo plano, portanto, juízos motivados por outras questões
que não a de ordem estética, como corriqueiramente se fez, durante a década de 1920,
em que Brandão se ligou ao grupo de intelectuais da Renascença Portuguesa, editora da
revista Seara Nova, tendo sido ele próprio fundador e membro da direção do periódico.
A orientação que se toma nesta investigação elege o pensamento fornecido por uma
23
crítica já amadurecida, fruto da reflexão demorada e elucidada, que se organiza em
camadas de leituras sucessivas e comprometida com o senso acadêmico dos estudos
literários, dividindo-se, a meu ver, em antes e depois da publicação do texto seminal de
Guilherme de Castilho, reeditado no ano de 2006 pela Imprensa Nacional Casa da
Moeda. O texto destacado, embora possa ser criticado quanto às concepções teóricas,1
ainda se firma como trabalho valoroso e exaustivo sobre o período formativo do escritor
e as suas principais obras, tornando-se referencial para uma iniciação na crítica
brandoniana. Esse compêndio possui uma organicidade bastante diversa do livro levado
a cabo por João Pedro de Andrade, com o título Raul Brandão – A Obra e o Homem,
que, vindo a lume no ano de 1963 pela Arcádia Editora (obtendo nova edição em 2002
pela livraria Acontecimento), se estabelece a partir de bases notadamente
fotobiobibliográficas, configurando-se pesquisa documental e de interesse pelo resgate
da memória do escritor, em vez de se debruçar por uma proposta de análise e crítica da
escritura brandoniana.
Como exposto no início do capítulo, de súbito silêncio passou-se à eufórica
celebração. Aqui se deve recordar particularmente o ano de 1967, por ocasião das
efemérides do centenário de nascimento do escritor e dos cinquenta anos de publicação
da primeira versão de Húmus,2 livro sobre o qual vieram a incidir os direcionamentos e
esforços de parte significativa da crítica subsequente, podendo-se mesmo detectar nítida
filiação às ideias que se cristalizaram no ensaio “No limiar de um mundo, Raul
1
Em vida e obra de Raul Brandão (2006), Guilherme de Castilho não se furta a compor painel biográfico
do escritor em estudo, perseguindo os primeiros estágios da escritura brandoniana para, em seguida,
abordar o texto literário como objeto de sua leitura, percorrendo desde o opúsculo Os Nefelibatas até
Portugal Pequenino, publicação de Raul Brandão em parceria com sua esposa, Maria Angelina Brandão.
2
O volume reúne os textos apresentados no Colóquio Raul Brandão. Homenagem no seu centenário, de
1967. Participaram do evento, quase todos com depoimentos sobre a forma como conheceram o escritor
das Memórias ou sobre suas primeiras impressões das leituras de seus livros, Álvaro Dória, Acúrcio
Pereira, Almeida Faria, Aníbal Mendonça, Arsênio Mota, Assis Esperança, Augusto Casimiro, Carlos
Carneiro, Cruz Malpique, Eugénio de Andrade, Ferreira de Castro, Hernani Cidade, Ilídio Sardoeira, João
José Cochofel, João Pedro de Andrade, José Ferreira Monte, Luis Francisco Rebello, Luís de Oliveira
Guimarães, Manuel Mendes, Maria José Teixeira de Vasconcelos, Mário Dionísio, Reis Brasil, Roberto
Nobre, Rogério Paulo, Sant’anna Dionísio, Santos Simões, Túlio Ramires Ferro e Vergílio Ferreira.
24
Brandão”, de Vergílio Ferreira (1991), motivado por uma relação que ultrapassa a do
interesse universitário e se avoluma como identificação estética entre escritores, ambos
de estilo convergentes,3 em que o debate acerca da existência do homem ganha relevo
na tessitura , e na “Releitura do Húmus”, de David Mourão-Ferreira (1992), seguido de
outro ensaio de mesma autoria, que se detém no teatro brandoniano.
Os dois (ou se preferir, os três) estudos vêm rebater juízos negativos sobre a
escritura de Raul Brandão – com especial atenção ao que disseram João Gaspar Simões,
sobretudo em O mistério da poesia (1971), e ainda Castelo Branco Chaves (1934) ou
José Régio (1952)4 – e contraporem-se às reminiscências dessa crítica conservadora e
pouco renovada, que encontra espaço para ecoar nas palavras de professores com
trajetória de destaque, a exemplo de Óscar Lopes:
Devido a tais repetições, em inúmeras variantes de vários temas ou
simples motivos, como estes que já aparecem no seu primeiro livro;
devido ao inacabamento da sua estrutura propriamente ficcionista,
cujo máximo equilíbrio se nos depara, ainda assim, na peça O Gebo e
a Sombra, a obra brandoniana não pode deixar de aparecer a quem
leia em mais de dois ou três livros, o máximo, como uma espécie de
diário de memórias ou reflexões em busca de uma filosofia ou de
uma cristalização literária, ora lírica, ora dramática, ora em narrativa
imaginária, géneros que se interferem e até reciprocamente se anulam
a cada passo. A improvisação está sempre à vista, mesmo na
arrumação do material erudito nos volumes de reconstituição
histórica. (1999, p. 182).
Ao se referir ao texto literário como fruto da improvisação, Óscar Lopes, em 5
Motivos de meditação (1999), corrobora o que já havia dito sobre o autor do Húmus e
das Memórias em capítulo publicado no volume Entre Fialho e Nemésio (1987), desta
3
Para tal convergência, ver, por exemplo, o ensaio “Húmus e Signo sinal ou o diálogo possível entre
romances de um tempo de crise”, apresentado por ocasião do VI Congresso da Associação Internacional
de Lusitanistas (AIL), em 1999, de autoria de Luci Ruas.
4
A intenção dos comentadores citados não parece ser a de denegrir a poética brandoniana, mas, como se
percebe, acaba por colocar em xeque as qualidades do texto em vez de contribuir para sua difusão.
25
feita à página 346,5 praticamente indo na contramão do que havia proferido em Ler e
Depois: crítica e interpretação literária (1969), em que afirma ser Raul Brandão dotado
de “uma permanente preocupação estilística” (LOPES, 1969, p. 175). E, todavia ainda,
o crítico parece não tomar ciência do complexo trabalho de pensar o próprio texto e
partilhá-lo com os contemporâneos, como não deixa dúvida o volume contendo as
cartas trocadas entre o escritor da Foz do Douro e o poeta Teixeira de Pascoaes,
coligidas por António Mateus Vilhena & Maria Emília Marques Mano, em 1994, e
sobre as quais Maria João Reynaud (2000) sustenta, em parte, o processo de
metamorfoses ou alterações na escritura brandoniana que será o cerne de sua pesquisa
de doutoramento, que estuda as três versões do Húmus, publicadas respectivamente nos
anos de 1917, 1921 e 1926.
Por outro lado, no texto que serviu de encerramento às comemorações, na cidade
de Guimarães, do centenário de nascimento de Raul Brandão, Vergílio Ferreira, em sua
crítica refundadora, ao largo de todos os juízos estéticos que apontam para uma falha
estrutural na escritura brandoniana, presente não apenas no Húmus mas no conjunto da
obra, assevera: “Claramente, Raul Brandão luta contra os padrões da ficção tradicional,
cedendo paralelamente ao desejo de se adiantar à matéria romanesca” (FERREIRA,
1991, p. 214), e completa mais adiante: “Na oscilação indicada, na atracção de valores
contraditórios, na tentativa de criar um novo tipo de novelística, obviamente Raul
Brandão teria de muitas vezes falhar” (Ibidem, p. 215). Desta forma, em lúcida
argumentação, Vergílio Ferreira desloca para plano secundário o estudo do caráter
formal da narrativa brandoniana, tônica da crítica de formação, para tomar centro no
5
Nas palavras de Óscar Lopes: “O mais visível traço estrutural da obra de Raul Brandão é o de uma certa
deficiência de estrutura. Nenhum outro escritor português acata de um modo tão óbvio o célebre dito de
Napoleão segundo o qual a repetição é a figura de estilo mais necessária. Todos os seus livros são, no
fundo, refundições do mesmo livro. Os temas, as personagens, os pequenos motivos e fórmulas
estilísticas reaparecem constantemente, em versões sempre mais ou menos retocadas” (LOPES, 1987, p.
346).
26
conteúdo do texto, mesmo que o aspecto interno venha a modificar a estrutura maior,
neste caso o modelo de romance praticado no século XIX.
Desejo voltar outra vez à longa citação de Lopes (1999, p. 182), em que merece
destaque o fato de imputar a necessidade de que a literatura promova uma busca pelo
equilíbrio, quando é sabido amplamente que o texto brandoniano é, quase todo, uma
nebulosa criação em que se manifesta o absurdo da vida, mitigada pela dor, pelo
grotesco da existência e pela nevrose de um fim-de-século6 em suas múltiplas facetas, e
que posicionará a obra de Brandão no que José Carlos Seabra Pereira chama,
acertadamente, de “encruzilhada”, “período de substancial renovação, que altera a
correlação de forças entre os sistemas estético-ideológicos” (1995, p. 19).
Não obstante incoerências internas no seio de sua própria crítica brandoniana,
aspecto que revela o sempre retorno ao texto de Raul Brandão como objeto estético de
sua eleição – o crítico de 1969 não é o mesmo de 1987, tampouco o de 1999 –, Óscar
Lopes possui méritos no que se refere à reabilitação literária do autor de Húmus: aponta,
quando poucos sequer lembravam, a face histórica da produção de Brandão, embora ela
impute o valor de reconstituição e não o de literatura. E, ainda, propõe uma leitura que
toma como ponto de partida e/ou articulação o simbolismo-decadentismo, ou sinaliza a
obsessão pela ruína que subjaz latente na escritura brandoniana.
Sobre a face da prosa historiográfica talvez arriscasse mesmo a dizer que é por
meio do interesse que Lopes (1969) demonstra no El-Rei Junot, livro que apresenta “o
peculiar D. Joao VI brandoniano”, que a “perspectiva histórica” (1969, p. 191) encontra
substrato para emergir, de acordo com Guilherme de Castilho, na forma de uma teoria
metafísica da história em que “[...] não podemos perder de vista, se queremos cingir
mais de perto a razão específica que teria levado o escritor a lançar-se na senda da
6
Sobre este aspecto, afirma A. M. B. Machado Pires: “fica-se com a convicção de que uma aguda
consciência dos males da técnica e uma sistemática desconfiança perante o progresso inquietaram o
homem finissecular” (1992, p. 126).
27
História,7 a circunstância de estar na base, como motor causante desses acontecimentos,
o próprio homem” (2006, p. 318). E, há de destacar que, antes de Óscar Lopes (1969),
apenas Vergílio Ferreira, outra vez em seu ensaio incontornável, havia apontado para
essa sedução que a História desperta no escritor: “O que o seduziu foi o contraste entre
o aparato com que se representa a História e a miséria com que se fez – ou a dos seus
actores” (FERREIRA, 1991, p. 180). Essa faceta é a porção quase obscura de um Raul
Brandão, reconhecido como poeta dos pobres e dos vencidos, habitante incontido deste
Portugal decadente e desta Europa finissecular que Eça de Queiroz já sublinhara em
Notas contemporâneas (“A decadência do riso”): “Eu penso que o riso acabou – porque
a humanidade entristeceu. E entristeceu por causa de sua imensa civilização” (s/d, p.
165). Entre os colaboradores da crítica contemporânea, seguindo os passos da ensaística
reabilitadora de Vergílio Ferreira, é Jacinto do Prado Coelho que, em breve
apontamento, observa a compleição com que a história assoma na escritura
brandoniana, ao assinalar: “marcado para a vida inteira pela angústia do fim-de-século,
tem uma visão apocalíptica da história contemporânea” (2003, p. 298, grifo meu).
Ao pontuar a “aguda consciência dos males”, António Machado Pires (1992)
permite inserir, ao lado dos vetores artístico-literários, a sintomática percepção da
derrocada irreversível do império colonial lusitano e, na mesma esteira, do modo de
pensar as ciências, antes tão ávidas por se travestirem de um rigor positivista imposto
por um “princípio racional” (KELLY, 1998, p. 256), que, no campo da história,
permitiu
“aos
historiadores
reivindicar[em]
a
posse
de
um
plano
médio
epistemologicamente neutro que se supõe existir entre a arte e a ciência” (WHITE,
7
Na contemporaneidade, os teóricos têm evitado divergir entre as grafias História (com letra maiúscula) e
história (com letra minúscula), ao passo que se tem convencionado utilizar-se da primeira forma quando
se faz referência ao conceito abstrato ou à disciplina (área) do conhecimento humano, e da segunda forma
no sentido de história que se constrói como narrativa, ou ainda as diversas concepções de história, tais
como história tradicional, nova história, micro-história, história vista de cima, história vista de baixo,
história dos vencidos, história dos vencedores, história do cotidiano – termos utilizados largamente no
meio universitário e apresentados no segundo capítulo desta investigação, sobretudo na primeira seção.
28
2001, p. 39), dotando a disciplina de um discurso e método. Em outras palavras, é
também nos rumores da esquina dos séculos que o discurso da ciência histórica conhece
o processo de corrosão e que se faz urgente a busca por novas metadiscursividades,
capazes de auferir que o historiador é aquele que busca a verdade e que o escritor é o
que se deleita com o espaço da ficção. No entanto, o que se percebeu ao longo do século
XX, no campo da Teoria da História, é que, mais importante que forjar uma distinção
palpável para os dois modelos narrativos, foi o uso que se pôde fazer a partir da
aceitação da interdisciplinaridade ou, em segunda definição, intranarratividade (o
sintagma literatura versus história é substituído por literatura e história). O fim-deséculo revela-se, portanto, como momento social (porque é estético, literário, histórico e
sociológico) seminal para a configuração de modelos de pensamento que dão forma aos
anos novecentos, seja no campo da arte, seja no interior da crise de uma ciência
positivista.
Voltando ao balanço da crítica brandoniana: como disse anteriormente, tem-se
investido com bastante frequência na problemática ou incapacidade de determinação
genológica dos textos de Raul Brandão, num dispendioso esforço para encontrar o
motivo de um recorrente e sistemático desajuste do corpo do texto, tateando, às escuras,
por um caminho que Luís Mourão, nos ensaios Um romance de impoder (1996) e Sei
que já não, e todavia ainda (2003), circunscreve, desvia e ultrapassa ao perguntar se
“poderemos ler Húmus sem a mediação museológica que o ilumina com a notoriedade
dos mortos que se lembram” (MOURÃO, 2003, p. 13). Interrogação que estendo ao
conjunto da obra, quanto mais lembro Maria Alzira Seixo, ao dizer no princípio de A
palavra do romance: “Os estudos literários do século XX têm sido em boa parte
dominados pelo desejo de entendimento, sob perspectivas críticas diversas e
29
privilegiando ângulos de consideração diferenciados das estruturas e do ordenamento
peculiar que pode ser atribuído à forma romance” (1986, p. 13).
Não que essa necessidade de definição, de equacionar o texto literário, seja
desinteressante ou desprovida de mérito; o que se pretende apontar aqui é apenas o fato
de que a busca por um preceito estrutural já não encontra campo tão propício como há
décadas, em que o pendor estruturalista vigorava. Parece, por conseguinte, que essa
discussão é secundária ou periférica quando se pensa em termos de crítica literária. O
aspecto formal da escritura brandoniana, bastante perseguido pela crítica de formação,
perde espaço para a análise das construções estilísticas, intelectuais e conceituais que,
mesmo sem o desejar (aqui a intencionalidade do autor não deve ser o cerne das
considerações), o texto de Raul Brandão permite inferir e, mais que isto, observar.
Desejo, de momento, registrar o pensamento de David Mourão-Ferreira, que acerta, ao
antever os trabalhos da crítica:
(Que eu saiba nem o próprio Raul Brandão lhe [Húmus] terá
chamado romance. Pelo menos, a edição que tenho diante dos olhos
(que é a segunda, publicada pela Renascença Portuguesa em 1921 e
impressa na tipografia do Anuário do Brasil, no Rio de Janeiro) – à
qual, de resto, João Pedro de Andrade não faz referência no seu livro
– mostra-se inteiramente omissa no que tange à indicação do género.
Mais estranho se torna, por isso mesmo, que os melhores dos seus
críticos tenham levantado semelhante problema, embora para
unanimemente concluírem – como acabámos de ver – que o Húmus,
no final de contas, não será um romance. Porquê (sic) tamanha
preocupação em afirmar que o livro não é aquilo que o autor, por seu
lado, e segundo parece, nunca disse que fosse? (1992, p. 182).
A David Mourão-Ferreira imputa-se, na sequência da crítica revelada no breve
ensaio de nove páginas, o questionamento de uma ensaística de poucos caminhos,
abrindo amplo movimento de redescoberta não apenas da prosa de Brandão, mas de
escritores que produziram num tempo inscrito sob a égide do simbolismo-decadentismo.
30
Atestam essa virada nos estudos brandonianos, que, a partir deste marco crítico,
perseguem novas nuances da poética e buscam inserir a obra do escritor no contexto
maior da literatura portuguesa da esquina do século XIX com o XX, Guilherme de
Castilho, ensaísta pertencente à última geração da presença, que alicerça e apresenta
denso estudo como tese de doutoramento, ao qual referi anteriormente (e já em 1971
publica artigo no segundo número da Colóquio/Letras); Álvaro Manuel Machado, que
escreve e publica em 1984, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, o ensaio Raul
Brandão entre o romantismo e modernismo (1999), volume pouco extenso, mas cujo
mérito de popularizar, em certa medida, o nome de Brandão e o livro Húmus não se
pode negar (atualizado e reeditado pela Editorial Presença no ano de 1999); Vitor
Viçoso, que empenha parte das décadas de setenta e oitenta substanciando o ensaio que
defende como tese, com o título A Máscara e o Sonho – vozes, imagens e símbolos na
ficção de Raul Brandão, no ano de 1987, publicada em livro pela editora Cosmos
somente em 1999; Maria João Reynaud, que se fixa na proposta de edição das três
versões do Húmus e submete a tese Metamorfoses da Escrita, logo chegada às
bibliotecas portuguesas com a veiculação em livro pela Campo das Letras. A
investigadora foi encarregada, na sequência, em função da experiência que desenvolveu
no cotejamento das edições, a montar, em três volumes, o que se tem chamado de
fixação definitiva do Húmus, sendo dois volumes fac-similados e o último com aparato
crítico, notas e introdução.
Os textos de Castilho (2006), Machado (1999), Viçoso (1999) e Reynaud (2000)8
podem ser considerados, em conjunto, eixo central dos estudos brandonianos
contemporâneos, servindo de base ou ponto de partida para novas investigações.
Dialogam e contribuem para a tessitura de uma série de pequenos escritos sobre Raul
8
Deve-se atentar para o fato de que as edições princeps dos livros aqui referidos são publicadas,
respectivamente, nos anos de 1979, 1984, 1999 e 2000.
31
Brandão, empreendidos por docentes renomados, mas que, com algumas exceções que
serão apontadas aqui, pouco inovam no que tange às ideias contidas em trabalhos
anteriores, mas se destacam por criar e ampliar espaços de leitura e discussão sobre a
obra do escritor.
De uma forma ou de outra, chamo a atenção para esses pequenos escritos (assim
os denomino não por depreciação, mas em referência ao tamanho e mesmo às
pretensões desses trabalhos se comparados ao núcleo principal dos estudos
contemporâneos) que servem, e continuam servindo, para cristalizar conceitos que, se
hoje se pode falar em lugar-comum, constituíam a fronteira dos estudos brandonianos:
que a escritura de Brandão é digna de investigação acadêmica, que Húmus é um marco
na nossa modernidade literária em língua portuguesa, que o escritor pode ser encontrado
na raiz genealógica (e genológica) de narradores portugueses e brasileiros da primeira e
da segunda metades do novecentos, que é detentor de estilística singular. Parece, para
arrematar o quiasmo que deixei em suspenso, que não apenas Raul Brandão continuou a
ser, embora de outro modo, o escritor de “temas e simples motivos” (LOPES, 1999, p.
182), de um livro único, mas que a crítica especializada se especializou de tal forma que
não tem enxergado para além do Húmus outro texto brandoniano digno de investigação
de fôlego ou mesmo de incentivo para leituras livres de interesses acadêmicos. É o que
se pode chamar de silêncio sobre a repetição ou de licença reiterada para repetir.
É preciso dizer que as gerações de estudiosos fizeram com propriedade seu
trabalho de leitura e análise literárias, e a prova irrefutável da qualidade da crítica
desvelada (que se não é numerosa é, ao menos, competente) é que concepções antes
consideradas ousadas ou pouco aceitas sobre a escrita de Raul Brandão, hoje se
tornaram consenso e são o ponto de partida para que se possa pensar a escritura
brandoniana, projetando-a, do ponto de vista da crítica, para novo momento, no qual
32
esta tese penetra: o (re)posicionamento crítico do texto literário do autor a partir da
relação que estabelece com a matéria histórica – uma preocupação ou intuição histórica.
Daí que se pode reavaliar e pôr em discussão o que hoje se tem concebido como centro
da produção de Raul Brandão, admitindo-se que há, portanto, centro e margem/periferia
dentro de cada microssistema literário ou ainda, se se aceitar que o escritor em destaque
é um artista à margem da fixação do cânone, que há um centro relativo e uma margem
absoluta.
A insistência em discutir ideias consolidadas, que se evidenciam no empenho
despendido por estudiosos para validar ou refutar opiniões emitidas ainda nas primeiras
décadas do século passado, como a que sustenta que Raul Brandão constrói no trajeto de
sua constante reescrita dos textos um livro único,9 embora basilares para a formação de
fortuna crítica especializada, tem-se tornado, não raras vezes, em fator de prédirecionamento das investigações, o que se faz patente, por exemplo, quando se verifica
que antes desta pesquisa, apenas uma dissertação de mestrado, defendida na
Universidade de Lisboa,10 tenha tomado as Memórias como material literário de análise,
ou ainda que se desconheçam pesquisas que priorizem a leitura de obras como El-Rei
Junot ou Vida e Morte de Gomes Freire, para ficar apenas no eixo da narrativa de fundo
histórico.
Outra parcela da produção literária de Brandão a que a crítica se tem dedicado de
modo insuficiente11 são as narrativas breves e o próprio teatro, a revelia do notável
9
Em A experiência estética de Raul Brandão, dissertação de Mestrado defendida na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Professora Doutora Luci Ruas Pereira, afirma-se: “a temática
trabalhada no Húmus não é necessariamente [...] original, mas um exercício de escrita que já vinha sendo
praticado [...] isso reforça a idéia de um livro único, apontada por Maria João Reynaud em sua Tese”
(RIOS, 2007, p. 107).
10
Trata-se de O lugar do eu e do(s) outro(s) nas Memórias, de Raul Brandão, dissertação apresentada por
Felipa Mendes Barata (2008). O estudo tem como eixo central a verificação da construção do sujeito
escritor a partir dos postulados teóricos da autobiografia, memorialismo e escrita de si. No 4º capítulo,
dedicado exclusivamente às Memórias, há crítica contextualizada sobre o trabalho da estudiosa.
11
Há de se fazer uma ressalva e lembrar, aqui, o acurado trabalho desenvolvido por Rita Martins em Raul
Brandão – do texto à cena, dissertação de Mestrado publicada na forma de livro pela Imprensa Nacional
33
componente dramático que permeia toda a obra e que a torna, nas palavras de David
Mourão-Ferreira, a “definitiva criação do teatro português de todos os tempos” (1992, p.
179). Jorge de Sena, antes mesmo de Mourão-Ferreira, em crítica à encenação que se
fez de “O Gebo e a Sombra” (In: BRANDÃO, 1970), recomenda que “Há de se ver esse
drama admirável de um dos raros génios de que a nossa literatura pode autenticamente
orgulhar-se” (SENA, 1988, p. 216).
Por seu turno, se o comentário de David Mourão-Ferreira, é, todavia, apologético,
converge para o pensamento de Luciana Stegagno Picchio, que em sua História do
Teatro Português, obra referencial para a análise do gênero dramático em Portugal,
afirma que, em Raul Brandão, “Toda a temática dos anos vinte, a concepção de vida
como farsa trágica, e o filosofismo dissolvente, que em Itália conduzirá ao Pirandello e
na Alemanha ao expressionismo, se encontram já nestes textos dolorosamente grotescos
em que a gargalhada sabe a escárnio e a vómito“ (PICCHIO, 1969, p. 310), alinhando,
deste modo, o escritor português a nomes representativos do teatro europeu de Itália e
da Alemanha. Ainda sobre a notável qualidade do teatro brandoniano, Luiz Francisco
Rebello afirma: “o teatro de Raul Brandão, ao mesmo tempo em que afasta da linha
naturalista dominante, propunha uma, então insólita, problemática existencial, ao
transcrever, com exasperado dramatismo, o conflito” (1972, p. 101); e, ao fazê-lo, o
crítico reconduz a produção brandoniana ao lugar cimeiro do teatro em Portugal, não
sem contextualizar sua poética no fértil período finissecular.
Papéis têm sido continuamente emendados, aprofundando a sensação de paralisia
da crítica para a produção de novas ideias que, como as personagens dos dramas
estáticos de Raul Brandão, repetem. Vejamos, a título de ilustração, o que publica
Casa da Moeda em 2007. Todavia, como esta pesquisa não se debruça sobre o corpus dramático de Raul
Brandão na forma de suas peças teatrais, o livro de Martins (2007) não será objeto de reflexão mais
detalhada ao longo destas páginas. Entretanto, é preciso sublinhar que se trata, muito provavelmente, do
mais importante estudo sobre o teatro do escritor de Guimarães publicado até hoje.
34
Eduardo Prado Coelho, sob o título de “Um novo paradigma ficcional (Raul Brandão)”,
compilado em A escala do olhar:
Podemos colocar a questão nestes termos: será que faz sentido
afirmar que o Húmus de Raul Brandão é uma obra tão importante
como o Livro do Desassossego de Fernando Pessoa? Se
considerarmos não o conjunto da produção dos respectivos autores,
mas as duas obras em si mesmas, creio que a resposta deve ser
positiva. Húmus é texto tão denso e perturbador para a literatura
portuguesa como é o Livro do Desassossego. São duas obras-primas
da literatura europeia, que marcam entre nós todo o século XX.
Ambas indecisas na fixação da sua textualidade ou arquitectura, e no
entanto ambas abrindo um novo espaço no curso da modernidade.
Contudo, o destino que tiveram foi diferente. Enquanto a obra de
Raul Brandão teve a sua primeira versão em 1917, Fernando Pessoa
trabalhou longa e descontinuamente no projecto do Livro do
Desassossego, mas a primeira versão deste livro aparece já no final
do século. Depois disso, sucederam-se edições e traduções, e cada
uma recombina os materiais existentes de um modo que quase
permite dizer que inventa um novo livro. (2003, p. 24).
Com respeito ao intelectual, autor de obras importantes nos estudos de literatura
portuguesa, é preciso dizer que o parágrafo com o qual o breve ensaio inicia não traz,
como já evidenciado pelo uso de citações anteriores, componentes antes desconhecidos
ou perspectivas inovadoras para os estudos brandonianos. E nem o poderia fazer, uma
vez que as palavras de Coelho assumem o papel de comentário de leitura e mesmo de
resenha crítica com vistas à divulgação do trabalho empreendido por Maria João
Reynaud (2000).
Ao evocar a possível relação entre Húmus e Livro do desassossego, esquece-se,
por exemplo, de que o texto posteriormente estruturado, a partir dos escritos dispersos
deixados sob a assinatura do heterônimo Bernardo Soares, é evidência colocada à
mostra desde que, pelo menos, Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha recolheram e
transcreveram o material deixado pelo poeta de Orpheu. Parece-me ter sido Eduardo
Lourenço quem primeiro, entre os renomados críticos portugueses, apontou a
convergência entre duas escrituras, ao mesmo tempo vistas como opostas e
35
complementares entre si, quando da publicação do ensaio “Metamorfose da ficção
contemporânea (temporalidade e romance)”, ainda na década de 1980, antecipando
pensamento que Eduardo Prado Coelho depois vai glosar:
Mais intelectual, menos patético no seu expressionismo puro, Raul
Brandão não estaria longe daquele texto supremo da nossa literatura
deste século, aquele que instalado no coração da própria ficção a torna
luminosamente supérflua. Refiro-me ao Livro do Desassossego. Como
o texto de Pessoa, embora sem o seu humor devastador, a ficção de
Raul Brandão tem um só personagem e esse personagem impede que,
a qualquer título – salvo como figura indiferente da suprema evidência
vital – se converta em personagem propriamente dito. (LOURENÇO,
1993, p. 307).12
A comparação entre os textos literários reportados na citação de Eduardo
Lourenço perpassa os interesses apontados para esta investigação. Não é interesse fazêlo, mas tão somente apontar como as ideias lançadas pelo filósofo português proliferam
com fecundidade em curto espaço de tempo. Além disso, como bem lembra Eduardo
Prado Coelho, o Livro do Desassossego é resultado de um trabalho de arquitetura e
organização posterior, cuja primeira edição foi liderada por Jacinto do Prado Coelho e
publicada no ano de 1982. Portanto, como comparar as duas obras? E mais: como pode
o ensaísta dizer que as duas obras “marcam entre nós todo o século XX” ou que são
“obras-primas da literatura europeia” (COELHO, 2003, p. 24), quando uma delas
simplesmente não existia enquanto corpo fixado no decorrer de quase todo o século,
12
O texto referido data de 1988, conforme indicação de fim de texto do próprio autor. Ainda sobre a
relação entre Húmus e o Livro do Desassossego, Eduardo Lourenço, outra vez na esteira do
expressionismo – como faz Maria João Reynaud ao publicar Sentido Literal (2004) –, afirma: “Sem as
reticências, poderíamos imaginar que estávamos lendo algumas passagens do Livro do desassossego.
Húmus, na verdade, visto de hoje, tem visos de Livro de desassossego do pobre. A menos que seja o
Livro do desassossego seja o Húmus do rico... (sic) Ou que ambos – com Unamuno de permeio – façam
parte da mesma constelação da alma, mas não da escrita, o que é capital para o nosso caso, pois o Livro
do desassossego, nessa perspectiva, nada tem de expressionista, embora o seu fundo desolado o coloque
nas paragens do desespero nu do expressionismo nórdico. Na verdade, ao contrário de Pessoa, Raul
Brandão não se exprime a partir de qualquer visão de mundo mais ou menos lógica, ou de uma
pluralidade incompatível delas. Raul Brandão fala apenas da interior-exterior imersão num acabrunhante
tempo nulo, matriz de uma espécie de ausência física [...]” (LOURENÇO, 2001, p. 34).
36
porque não recebeu do autor a atenção demorada, de uma escrita desejosa de si e que
sempre revisita a si própria, mesmo após ser materializada em livro?
Ainda Eduardo Prado Coelho, nas páginas que seguem à citação anteriormente
oferecida, afirma que o insistente trabalho de refazer sisificamente o próprio texto – e a
isto voltarei outras vezes no decorrer desta leitura – questiona três preconceitos
amplamente divulgados sobre a escritura brandoniana: a primeira, exposta por João
Gaspar Simões e evocada em páginas anteriores desta investigação, de que o autor da
Foz do Douro teria um “jeito desordenado ou inarticulado de escrever” (1971, p. 25); a
segunda, formulada por José Régio, de que “se trata de uma obra mal acabada” (1952,
p. 26); a terceira ainda incutida ao mesmo Régio, de que Raul Brandão teria uma
incapacidade “para se situar num gênero” (Ibidem). Os textos lembrados foram
publicados, respectivamente, nos anos de 1931 e 1952, o que permite inferir que,
passadas sete décadas, a fortuna crítica volta-se corriqueiramente aos ensaios dos
mentores da presença. Ainda assim, é possível evidenciar que Eduardo Prado Coelho
esteve atento aos juízos emitidos pela crítica brandoniana e que, reconhecendo o valor
estético na produção de Raul Brandão, dedica-lhe espaço para reflexões naquilo que,
repita-se, são mais comentários de leitura que ensaios com pretensões maiores.
Desejo retomar o passo da citação de Eduardo Prado Coelho em que se refere à
crítica brandoniana em seu período de formação. Quando se verificam as fontes
primárias evocadas, observa-se que Gaspar Simões ressaltou em seu texto não
propriamente a desarticulação da prosa de Brandão – que disto se encarregou Chaves13
ao dizer: “Brandão pertence a esta espécie de artistas confiados somente à sua
13
Por rigor, há de se ressaltar que Castelo Branco Chaves, na conferência pronunciada na Universidade
Popular Portuguesa a 17.05.1934, tinha, entre as suas intenções, como destaca a Advertência, escrita por
António Sérgio à separata impressa pela empresa cultural Seara Nova, afirmar que “Raul Brandão foi um
dos nossos; teve em nós grandes amigos; nesta pequena casa seareira continua a viver o seu espírito,
nimbado aos olhos de todos pela nossa admiração e pela saudade” (SÉRGIO, 1934, p. 5). O fato é que,
talvez, as palavras dos críticos da Renascença Portuguesa tenham sido mais prejudiciais que favoráveis à
imagem de Raul Brandão e à obra do escritor do Douro.
37
inspiração interior, estando sempre antes a sua obra “á ver lo que sale” (sic); e ainda
mais adiante: “um improvisador e um comovido” (1934, p. 13) –, mas o seu vetor
fundamentalmente poético, no qual se sustenta não apenas a literatura do Húmus e de
seu autor, mas de um conjunto de escritores desse período. Basta que se lembre, por
exemplo, de António Nobre, António Patrício, Camilo Pessanha, Guerra Junqueiro,
Teixeira de Pascoaes ou Trindade Coelho. É, em parte, nesse argumento de que os
textos do fim-de-século se utilizam de uma linguagem embebida de forte teor líricopoético, que se vai sustentar a formação do binômio simbolismo-decadentismo, do qual
se lança mão quando a distinção ou problematização entre as duas estéticas não é
necessária ou não é possível.
Sobre a imprecisão no uso dos termos (i.e, simbolismo e decadentismo), Fernando
Guimarães, nas páginas introdutórias à Poética do simbolismo em Portugal, diz: “A
partir desse conjunto de ocorrências estabeleceu-se uma periodização mais ou menos
ambígua, pela qual se demarca uma separação entre Decadentismo, geralmente
considerado como a fase inicial [...] [dos] movimentos, e Simbolismo” (1990, p. 11),
referindo-se, neste caso, à literatura francesa. Em outro livro, desta feita Simbolismo,
modernismo, vanguardas, Guimarães aponta para o desinteresse da crítica no estudo do
período que vai do final século XIX até aos anos 1930, destacando que
[...] tanto o Decadentismo como o Simbolismo têm sido por vezes
incorretamente valorizados. Na sua generalidade, o desinteresse
quanto ao estudo desse período resulta de duas razões. Uma delas
provém de os seus críticos ainda hoje se fixarem, não raro, na ilusão
normativa que consiste em duvidar do bom gosto que a generalidade
destes poetas teriam (e que, certamente, alguns deles não passaram a
ter quando, mais ou menos arrependidos, desvalorizaram com o
assentar dos anos os momentos mais polémicos da sua poesia). Estaria
a outra razão na acusação feita a decadentistas e simbolistas de serem
tão-só formalistas, puros defensores da arte pela arte, em face de uma
poesia de intervenção ou empenhamento cuja ênfase se prolonga de
Junqueiro ao Neo-Realismo típico dos anos 40. (2004, p. 10-11).
38
Se, para os críticos e leitores do final do século, a literatura de pendor crepuscular
possui forte vinculação ao interesse pela forma, parece, no entanto, que a este preceito
não se ajusta à literatura de Raul Brandão. Ao contrário, o escritor desestabiliza a forma
da novelística para lhe conferir um estatuto híbrido, espécie de ambiguidade da
escritura. Esta se configura num dos veios analíticos que, continuamente abordado pelos
estudiosos da literatura portuguesa, se interessa pela presença do lírico14 na obra de Raul
Brandão e de seus herdeiros estéticos, o que Luís Mourão identifica como o rastro da
“presença de Húmus, ou daquilo que na sua restante obra ficcional e dramática é lido
sub specie Húmus” (2003, p. 11). Nesse microssistema, Mourão ressalta o lugar da
escrita de Vergílio Ferreira, que comporta um debate tanto na seara das influências
finisseculares, como possibilita um avanço das análises para as décadas seguintes do
século XX, mantendo viva e fecunda a narrativa de matizes líricos, como assegura Rosa
Maria Goulart:
É, aliás, curioso notar que as interferências líricas na nossa literatura
finissecular se fiquem pela notação fragmentada, pela divagação
impressionista, pelo conto breve, mas não tenham lugar em nenhum
grande romance. Crise da narrativa? – Perguntar-se-á.
Incompatibilidade da lírica, pela intensidade emocional que
pressupõe e respectivas repercussões a nível técnico-compositivo,
com a maior extensão do romance? (1991, p. 67).
É preciso ter em conta que a investigadora lança mão de uma categoria a que
chama de romance lírico, apontando-o como vetor de superioridade em uns (escritores)
e relegando-o à condição de segundo plano em outros, sem elucidar as fronteiras entre
os modos do discurso, fronteira que, naturalmente, não é definível. Se, por um lado,
Goulart enxerga o romance de Vergílio Ferreira na perspectiva do poético, i.e. do texto
14
Entre os críticos brasileiros, também Dalva Calvão faz coro quando se pensa o texto de Húmus na
“fronteira entre poesia e prosa”, [...] e em seu “descompromisso com a continuidade linear” (VERANI,
2001. p. 63).
39
lírico, cotejando-o, portanto, com o modelo de narrativa inaugurada por Raul Brandão –
esse estatuto híbrido a que referi anteriormente –, por outro, Luci Ruas visualiza o
entroncamento dos processos ensaísticos e literários na escritura vergiliana, fazendo
com que o autor de “No limiar do mundo, Raul Brandão”, escrito em 1967, transpusesse
para a narrativa aquilo que primeiro havia manifestado em ensaio: a presença de Raul
Brandão. Diz a estudiosa, impulsionadora dos estudos brandonianos no Brasil:
Daí podermos afirmar que Signo sinal, escrito seis décadas depois dos
gritos lacerados das figuras que se movem na paisagem da narrativa
brandoniana, também em tempo de crise, prolonga, de modo mais
aprofundado, as interrogações e torna realidade o romance que
Vergílio Ferreira tão bem reconheceu como o romance do nosso
tempo: aquele que, esquivando-se ao espetáculo (e o espetáculo está
em ruínas em Signo sinal), aponta para a interrogação que obriga o
olhar mais aprofundado, olhar que, em vez de passear pela paisagem,
incide sobre ela, fazendo abalarem-se os alicerces de um sujeito que
vive num mundo cujos alicerces já se abalaram. (RUAS, 2001, p. 1)
A palavra de Luci Ruas abre duas janelas em que é proveitoso debruçar-se: a
primeira é a retomada do conceito de romance-espetáculo/romance-problema sugerido
por Vergílio Ferreira no longínquo “Situação actual do romance”.15 O ensaísta
português vê na obra de Raul Brandão o aflorar do romance-problema no alvorecer da
modernidade, ao dizer, sem desvios, que a obra do escritor da Foz do Douro “abre-nos,
com efeito, perspectivas para o que se vem chamando ‘romance-ensaio’ e eu prefiro
chamar ‘romance-problema” (FERREIRA, 1990, p. 214), uma escritura da renovação da
escrita. A segunda janela é a imagem do sujeito abalado, em ruínas, que revela, ele
próprio, o soçobrar de uma estética, mas, sobretudo, aponta para uma alegoria contínua
(e contígua) à novelística de Brandão e de Ferreira.
É, com efeito, pelas mãos da pesquisadora, que a alegoria brandoniana da ruína
foi-me revelada, ainda nos idos da dissertação de mestrado, quando, no Húmus, aponta
15
Observar que a edição original do ensaio, publicada em Espaço do Invisível, volume 1, data de 1965.
40
para o estado de caos em que se encontra a vila embolorada que serve de pano de fundo
ao livro, e no Signo sinal evidencia o terremoto que acomete não apenas o espaço mas a
estruturação da narrativa vergiliana. Mais comentários e implicações sobre a imagem da
ruína na poética brandoniana são reservados para os passos subsequentes desta tese. De
momento, deve-se lembrar de que o estatuto híbrido da obra de Raul Brandão resulta da
intersecção entre o prosaico e o lírico, residindo, nesta dissolução das fronteiras, a
singularidade e o paradoxo da modernidade, como sustenta Matei Calinescu em As 5
faces da modernidade (1999).
Dessa forma, retornando ao pensamento de Rosa Maria Goulart, “o romance
contemporâneo mostrou-se, portanto, capaz de não só prolongar como enriquecer a
prestimosa herança do Decadentismo e do Simbolismo” (1991, p. 68), entendida sob a
forma do lirismo finissecular, o que faz lembrar diretamente o Vergílio Ferreira de
“Situação actual do romance”, que diz: “O romance está em crise – toda a gente o
proclama. Esta crise, porém, referindo-se ao romance como género literário específico,
vem a enquadrar-se afinal também na crise geral da arte” (1990, p. 175); crise que se
revela, ela mesma, extremamente criativa na busca de novas formas e novos valores
para a escrita.
O estudo sobre as peculiaridades da estrutura do romance do século XX não é
tema fulcral para o desenvolvimento desta pesquisa, que daí resultaram outras
investigações. O que se deseja ressaltar é que continuar o debate sobre a impossibilidade
de definição dos gêneros na escritura de Raul Brandão – à semelhança do que apontou
Eduardo Prado Coelho (2003, p. 26) como sendo um tema relevante sobre o qual se
debruçou Maria João Reynaud (2000) – é tarefa levada a cabo pelas gerações de
pesquisadores que me precederam sem que, todavia, tenham chegado a consenso. Esse
tipo de discussão teve seu papel e importância na crítica brandoniana e, embora
41
continue a respingar na crítica contemporânea, não parece que se configure como
terreno fértil que propicie um mergulhar intenso nas formas, condições e perspectivas
que a escritura brandoniana abre para a literatura portuguesa do século que findou e
deste século que inicia.
Há de se fazer o destaque, no entanto, de que a investigação de Reynaud realiza a
sedição de uma crítica agora anacrônica, de tempo passado, como se fizesse um esforço
de contra crítica na intenção de afastar os fantasmas e preconceitos pretéritos, como
bem sublinhou Eduardo Prado Coelho (2003), e ver, por exemplo, na recorrência dos
temas, não uma fator de desagravo, mas de unidade na diversidade de uma intuição
estética.
Ainda sobre a elucubração de ser ou não a narrativa brandoniana proposta
singularmente ousada de poesia em forma de prosa, Fernando Guimarães, desta vez por
ocasião do “Colóquio Ao Encontro de Raul Brandão”, realizado na Universidade
Católica Portuguesa em 1999, aproxima o escritor do Douro de seus contemporâneos,
quando estes, inseridos num momento estético comum, acabam por convergir para o
amolecimento das estruturas narrativas que o próprio Brandão praticava, sem, no
entanto, apregoar:
(Como se sabe, Raul Brandão nasceu no mesmo ano, ou seja 1867,
em que António Nobre e Camilo Pessanha também nasceram. É dois
anos mais velho que Eugénio de Castro e que um poeta com quem
conviveu e com quem colaborou ocasionalmente numa obra comum,
Júlio Brandão. António Patrício – outro escritor que, além de poeta,
se apresenta nas suas obras teatrais como um caso extremamente
significativo daquilo que são “poetas em prosa” – tinha cerca de dez
anos menos. Fernando Pessoa era mais novo vinte e um anos e é
também um autor que soube transgredir consequentemente os
géneros e as fronteiras que entre prosa e poesia existem. Raul
Brandão pertence, portanto, à geração de simbolistas[-decadentistas],
geração essa que irá confinar com outra, a do Modernismo [de 1915].
(GUIMARÃES, 2000, p. 29-30).
42
O crítico lusitano situa o escritor de Guimarães entre António Nobre e Camilo
Pessanha, acalentando Raul Brandão no seio do simbolismo-decadentismo stricto sensu,
a escola dos “poetas em prosa” (Ibidem),16 imputando-lhe o papel de figura ascendente
e referencial no grupo dos nefelibatas portuenses, cenáculo de escritores que, a exemplo
dos Vencidos da Vida, grupo a quem o crítico António José Saraiva chama de tertúlia
ocidental (“Chamamos a este grupo ‘tertúlia ocidental’ porque o seu encontro se dá na
linha ‘onde a terra acaba e o mar começa’, no ocidente da Península, ora em Coimbra,
ora em Lisboa, ora no Porto, cidades onde se reuniu o grupo”; SARAIVA, 1990, p. 14).
O grupo dos nefelibatas marcou a história da literatura portuguesa a partir da publicação
de breve opúsculo, sob o pseudônimo de Luís de Borja, e que teve, muito
provavelmente, a liderança de um Raul Brandão iniciante, mas que então acenava para a
função central que o escritor desempenhará em sucessivos círculos literários e
publicações periódicas até o fim da vida.
16
Desde a crítica de reabilitação até a crítica contemporânea, o juízo de Túlio Ramires Ferro (1949), que
conferia à escritura brandoniana o estatuto de arte simbolista – muito em função de o escritor de
Guimarães ter sido contemporâneo de Eugénio de Castro e de António Nobre, de quem foi amigo pessoal
–, parece superado. Ensaístas de projeção, a exemplo de Vergílio Ferreira, Guilherme de Castilho e Vítor
Viçoso, buscam alternativas para fugir ao simbolismo como filiação estética da obra de Raul Brandão. É
nesse ponto, ou seja, com essas duas últimas fases dos estudos brandonianos, que ganha corpo a ideia do
decadentismo no escritor de Guimarães, muito porque é na segunda metade do século XX – e, sobretudo,
nas duas últimas décadas do referido século – que o conceito de decadentismo propalou-se no cenário
acadêmico internacional. Por conseguinte, julgo que considerar a obra em estudo nesta investigação como
escritura atravessada por essa estética finissecular é o posicionamento mais apropriado – e menos
perigoso – à crítica de hoje, que atualiza a crítica do passado em função do tempo presente – este também
milenarista como o fim do século XIX e primeiras décadas do novecentos. Muito embora desde a crítica
de reabilitação não seja plenamente aceito insistir numa ótica de Raul Brandão como simbolista, há
estudiosos que, por motivos que fogem ao escopo desta pesquisa, insistem em glosar – ou ainda ecoar – o
juízo de Túlio Ramires Ferro, seja porque desconsideram que é já quase pacífico visualizar Raul Brandão
como decadentista, seja porque, insistindo que o escritor de Guimarães não se propunha a escrever em
prosa (porque,como asseverou a crítica de formação, o autor não sabia escrever em prosa, conforme se
observa nas páginas deste capítulo), desqualifica-o como sujeito que materializa no corpo do texto uma
concepção moderna de narrativa, o que permite sustentar, na esteira de Vergílio Ferreira (1991), que se
trata de uma escritura que se abre – e por que não dizer inaugura – para o romance moderno em Portugal.
Dos artigos e ensaios da critica contemporânea que ainda posicionam a escrita de Raul Brandão na seara
do simbolismo, destaca-se o posicionamento de Maria Wellitania de Oliveira Cabral, pelo caráter recente
da publicação: “O estilo de Raul Brandão, hipermetafórico e ondulante, mais próximo da poesia que do
romance, acompanha as fases evolutivas de sua carreira literária. Mais poeta que ficcionista (ou
prosador), tornou-se quem melhor realizou a tendência fundamental da prosa simbolista, acabando por ser
o mais importante prosador do Simbolismo português.” (2010, p. 312).
43
Se Fernando Guimarães enxerga um Brandão que é, ele próprio, produto do
decadentismo finissecular, vejo no escritor da Foz do Douro a ponte ou o elo que liga o
Antero dos últimos sonetos, embevecidos de angústia e dor, à presença de Teixeira de
Pascoaes, esta ocupando a função de pilar nacionalista no discurso literário
brandoniano. Sim, porque o autor de A Farsa, Os Pobres, Húmus e O pobre de pedir
embrenha-se no que Vergílio Ferreira pontua como os dois cernes da escritura de
Brandão (“Os dois grandes problemas, ou as duas grandes séries de problemas na obra
de Raul Brandão situam-se, como disse, na esfera econômica e na metafísica”;
FERREIRA, 1991, p. 176)17 para tratar de uma questão que, se é por um lado universal,
é, sobretudo, portuguesa e ainda regional. Dessa forma, Raul Brandão eleva a
efabulação em torno de personagens descentradas e antitéticas de um possível norte de
Portugal à problemática da condição humana, revelando, neste caminhar, uma visão
particular da história, que é o que se confronta na presente investigação. Em outras
palavras: o interesse pelas novas perspectivas históricas na/da literatura brandoniana.
Sobre o folheto Os Nefelibatas, Guilherme de Castilho dedica-lhe algumas
páginas, centrando-se em três questões principais: a) na cronologia, que resolve com
facilidade (“No que respeita à data, pode fixar-se, sem lugar a erro, entre Outubro de
1891 e Abril de 1892”; 2006, p. 109); b) na autoria da pequena publicação de 28
páginas, em busca de se delimitar se o escritor teve ou não o papel decisivo na
consolidação do “manifesto iconoclasta” (Ibidem, p. 110), hipótese que, nas palavras de
Castilho, “parece não ser já tão fácil aclarar” (Ibidem), para se desdizer logo a seguir
(“Sem muita hesitação responderemos ter sido Raul Brandão o autor material do
<<delito>>”; Ibidem, p. 111); (3) na “análise do próprio texto”, afirmando-o ser
17
Fazendo eco às palavras de Vergílio Ferreira, Jacinto do Prado Coelho ratifica: “No Húmus, o problema
existencial e o problema metafísico interpenetram-se, conjugam-se.” (1996, p. 298). Embora o ensaísta
tenha pontuado essas tensões apenas no livro de 1917, nem por isso se pode deixar de ver que o
econômico e o existencial, ou, como quer Coelho, o social e metafísico, estão presentes na literatura
brandoniana.
44
“opúsculo de extrema raridade (o exemplar que possuímos pertenceu a António Nobre)
cremos valer a pena usar da transcrição até ao limite para que possamos ter uma ideia
mais ou menos exacta do conteúdo”18 (Ibidem).
Também Vitor Viçoso dedica comentários ao folheto, considerando-o como
“delirantemente decadentista” (1999, p. 71) e, na esteira da sequência percorrida por
Guilherme de Castilho, debruça-se em comentários sobre a questão da cronologia
(“Portanto, conclui-se que o opúsculo teria sido editado entre 15 de Dezembro de 1891
e a primeira semana do ano seguinte”; Ibidem, p. 71), pelo incógnito da autoria e pela
necessidade de se tomar a pequena produção como texto literário que é, fazendo notar
que Brandão e seus colaboradores criam o mito do Poeta, verdadeira “dramatis persona
que esconde e emblematiza [...] um provável criador colectivo” (Ibidem, p. 73), e o
gérmen de uma poética em que se afigura “já com nitidez o progressivo fascínio
brandoniano pelos noctâmbulos filósofos, pelos grotescos e sonhadores que irão mais
tarde proliferar em Os Pobres [...] e cuja matriz estará também no Gabiru de Húmus”
(Ibidem, p. 77). Desse modo, o ensaio de Vitor Viçoso evidencia a presença do onírico e
da “estesia dolorista” (Ibidem, p. 16) na fase formativa de Raul Brandão, compondo um
mapa detalhado de manifestações simbólicas e imagéticas na ficção do escritor –
incipiente em Os Nefelibatas e História dum Palhaço –, passando a centrar-se, no
segundo momento, na análise do Húmus, sobre o qual diz:
Ora, o livro dos livros do autor é, indubitavelmente, Húmus, aquele
que contém todos os outros e onde mais adequadamente, pela eficácia
da rede simbólica, numa homologia entre húmus e as profundidades
do eu, consegue esboçar essa sombra simultaneamente fugitiva e
cativa e que funde os fantasmas individuais e colectivos. É também
nela que a enunciação, enquanto espaço de estranheza face à sua
própria voz e aos seus mitos, atinge o seu acme. (1999, p. 15).
18
Esta pesquisa teve a oportunidade de consultar edição diplomática do folheto Os Nefelibatas, na
Sociedade Martins Sarmento, por meio de exemplar da série limitada a cem exemplares que foi publicada
pela instituição de Guimarães, por ocasião do centenário da editio princeps.
45
Elegendo a versão de 1926 como guia, o ensaísta dedica-se a evidenciar a riqueza
e a plurissignificação latente na narrativa brandoniana, associando-a, não raras vezes, ao
inconsciente da criação literária, o que faz por meio da sugestão do sistema psicanalítico
(ego – o eu, id – o oculto), em que, na contramão da recorrência teórica, não busca nas
fontes de Freud ou de Lacan sua sustentação, mas tão somente dela se utiliza para
conferir ao próprio estudo um isomorfismo temático e conceitual que atenda à própria
realidade do fim-de-século brandoniano. Ao fazê-lo, não corre o perigo de, portanto,
tornar-se crítica anacrônica,19 mas a utiliza para salientar como a atmosfera do sombrio
e do grotesco que completa a união, por vezes questionável, entre o tempo cronológico e
sociológico e os impulsos artísticos da criação.
Percebe-se que o trabalho empreendido por Viçoso faz um recorte do todo
apresentado originalmente por Castilho (2006), buscando, a partir de uma linha crítica
interessada pela identificação das redes simbólicas, as camadas subterrâneas do texto
com o auxílio de um substrato filosófico (“Mas, mesmo neste caso, não existirá,
contudo, uma certa analogia entre a mobilidade ascendente das forças inconscientes, em
Húmus, e a vontade-de-viver schopenhaueriana?”; VIÇOSO, 1999, p. 334-335).
É somente nas páginas finais de seu estudo que Vitor Viçoso se preocupa em
apontar o livro, a meu ver, mais canônico do escritor (porque Húmus tem sido o mais
trabalhado pela crítica, que o toma como baliza da estética brandoniana),20 como reflexo
de um tempo de crise e, por isso mesmo, uma escrita da própria crise. Então, passa à
19
Lembremos que A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, encontra sua publicação inicial em
1899, embora se possa afirmar que, “Herdeiro de Dostoievski e contemporâneo de Freud (embora decerto
Raul Brandão ignorasse Freud ainda em 1917), Raul Brandão, ao mesmo tempo que nos pinta o homem
em toda a crueldade dos seus instintos, multiplica os quadros de miséria e degradação, revoltado e
fascinado pelo espetáculo da dor.” (COELHO, 1996, p. 299).
20
Acrescente-se que, quando me refiro ao Húmus como o mais canônico livro de Raul Brandão, refirome, naturalmente, ao trabalho desenvolvido pela crítica desde os tempos de formação e que o tornam,
portanto, a obra mais difundida do escritor. Não avalio qualidades estéticas e, de imediato, não tenho o
propósito de discutir a fronteira entre o centro e a margem no conjunto literário de Brandão, embora esta
investigação, no seu todo, venha a colocar em xeque o privilégio dado ao livro de 1917 quando, no corpo
de sua análise, opta por títulos pouco explorados ou ainda não estudados em profundidade.
46
discussão sobre o tempo na narrativa brandoniana (tempo vectorial e tempo vertical;
Ibidem, p. 341 e ss.) e sobre as antíteses morte-vida (do ser e de Deus), assinalando que
a obra em questão é “um texto monótono, por vezes, quase uma litania – a reiteração de
um lexema ou de um grupo de lexemas [...]; das mesmas estruturas fônicas [...],
semânticas e sintáticas” (Ibidem, p. 361). E mais à frente acrescenta: “As frases ora
crescem e rebentam em bolhas de sangue ou de espanto, ora se ressecam e encolhem,
como fluxos e refluxos que ritmam o corpo textual – vagas crispadas e patéticas
alternando com declínios e tempos mortos” (Ibidem, p. 362), com as quais termina o
ensaio, deixando ao leitor a certeza de que se debruçou sobre trabalho vigoroso, cujo
mérito de por o tema do decadentismo finissecular entre as nuances centrais da poética
brandoniana não pode ser esquecido nem minorado.
Vitor Viçoso estabeleceu um recorte e uma linha próprios para a construção de sua
investigação a partir das sugestões deixadas por Guilherme de Castilho (2006). Por sua
vez, Maria João Reynaud deu continuidade à tendência de delimitação, escolhendo
apenas Húmus, entre as obras selecionadas por Viçoso, para compor sua pesquisa,
abandonando o campo da filosofia ou da leitura interpretativa dos símbolos e imagens
para abraçar o trabalho da crítica textual e genética, cotejando linha a linha as três
versões do livro, e mapeando, a partir da correspondência trocada por Brandão &
Pascoaes (1994), a cronologia da redação e das alterações no corpo do Húmus.
O que desejo por bem sublinhar é o modo como se desenvolveu a crítica
brandoniana, tendo como eixo principal as teses que venho elencando: olhares críticointerpretativos sobre um conjunto de livros ou um livro específico, circundando o
núcleo central da escritura de Raul Brandão. Quando digo central, não é porque julgo
ser, por exemplo, Húmus peça fundadora e a mais importante desse mosaico (é quase
impossível avaliar, sem se trair, qual a obra mais valorosa de um conjunto poético), mas
47
tão somente porque se deseja dar a dimensão de que, até na literatura de um escritor per
si considerado à margem (como parecem ser quase todos os simbolistas-decadentistas),
encontra-se um centro e uma periferia, textos que são frequentemente visitados pela
crítica e outros esquecidos ou relegados a segundo plano, num fenômeno de
(de)formação que tende ao limite de criar a margem da margem ou, em outras palavras,
o refugo da crítica. É esse refugo que interessa: o avesso que instiga.
No conjunto, a crítica brandoniana deflagrada a partir de 1967 é unânime em
declarar a modernidade da literatura de Raul Brandão, indo mesmo encontrar no seio de
sua escritura traços dum modernismo que se situa entre o latente e o pujante, numa
tensão que se encontra na fronteira do paradigma narrativo do século XIX e a busca por
um novo conceito, que está, justamente com Brandão e outros escritores (lembremos os
círculos paralelos aos da tertúlia portuense, como o grupo de Orpheu), em formação e
debate. Todavia, é improvável negar que o pensamento de Fernando Pessoa tenha
galgado uma repercussão sui generis no século XX, em oposição às ideias do autor das
Memórias, que se torna conhecido no seio de uma intelectualidade restrita e, sobretudo,
acadêmica, ou ainda por breves e descontextualizados fragmentos textuais, de valores
telúricos,21 como se lê em manuais e livros escolares. Não é à toa que Álvaro Manuel
Machado, em consonância com a tendência de se pensar a literatura de Raul Brandão
em parelha com o nouveau roman (e mais uma vez é Húmus o livro eleito),22 alinha o
escritor do Douro a Marcel Proust, propondo a hipótese de que há “um Portugal que
precisamente por ser visto de Paris é cada vez mais essencialmente português, um
Portugal infinitamente mitificado que o espelho francês reflete dia-a-dia” (MACHADO,
1999, p. 89). No entanto, como observa o ensaísta, “Trata-se antes de um mero reflexo
21
Uma análise do telúrico na obra de Raul Brandão será enfeixada mais adiante, quando da leitura crítica
das Memórias (cf. capítulo “QUANDO OS VENCIDOS SAEM ÀS RUAS”).
22
Reflexão traçada, anos antes, por David Mourão-Ferreira no memorável ensaio diversas vezes aqui
referido, e ainda nos ensaios de Vergílio Ferreira (1991 e 1995).
48
estético vindo de Paris através de um poeta tipicamente parisiense, um poeta ‘moderno’,
poeta da cidade estrangeira, Baudelaire” (Ibidem, p. 91), no contexto histórico-cultural
em que a Cidade Luz é o modelo perfeito de babel cosmopolita, avant la lettre e
artificiosa, lugar em que habitam o dândi (“um dândi nunca pode ser um homem
vulgar”; BAUDELAIRE, 2002, p. 871) e o flâneur, imagens que se destacam num
tempo de aristocracia e modernidade. Desta feita, diz Álvaro Machado, enlaçando
Brandão e Proust (e o fim-de-século português e o existencialismo francês), e
encontrando, ambos os escritores, na fecundidade baudelairiana o momento precursor:
Aliás, não é casualmente que cito Proust nesta abordagem inicial de
Húmus como síntese inovadora de toda ficção brandoniana. De facto,
a tentação é grande de estabelecer um paralelo comparativista com o
autor de À la recherche du temps perdu, quanto mais não seja porque
Proust e Raul Brandão, quase exactamente contemporâneos (Proust
nasceu quatro anos depois, tendo morrido em 1922), sofrem igual
influência determinante de Baudelaire e sobretudo dos decadentistassimbolistas, transpondo ambos para o romance como gênero total
(aquilo a que Umberto Eco viria a chamar “romance aberto”) essa
linguagem simbolista da poesia finissecular. E, enfim, também
porque para ambos o tempo é, estruturalmente, através da
aprendizagem filosófica bergsoniana (mais a da estética de Ruskin
em Proust) a personagem tutelar de toda a elaboração narrativa, em
ambos no eu do “artista” que se confessa e interroga. (MACHADO,
1999, p. 70).
O autor de Raul Brandão entre o romantismo e o modernismo, apesar de propor,
como se lê na citação, um “parelelo comparativista” do volume que concebe como
“síntese inovadora de toda ficção bandoniana” (Ibidem) com a arte francesa, não
pavimenta o caminho apontado nas páginas de seu ensaio, uma vez que parece deixar
conscientemente a lacuna para que seja preenchida no futuro, fato que em si não
desmerece o labor intelectual empreendido por Machado.
É Pedro Eiras quem dá corpo à investigação que toma para si a necessidade do
viés comparatista, não apenas sugerindo, mas efetivamente alinhando Brandão a outros
49
escritores – e desta vez portugueses, sem lançar mão de um sistema centro-periferia na
literatura portuguesa, mas avaliando, de forma orgânica e convergente os temas e
matizes que emergem das escrituras de Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria
Gabriela Llansol, textos que se comunicam porque possuem vozes narrativas (cf.
ABBOTT, 2002, p. 63-66; REIS & LOPES, 2000, p. 422-423) proeminentes em
detrimento de um percurso ideal de narração. O autor de Esquecer Fausto (2005)
compõe quatro ensaios distintos, e, em cada um deles, a estruturação está por si
completa (embora estejam unidos por um fio que se delineia a partir de conceitos-chave,
como “sujeito”, fragmentação”, “perda da unidade”, “a necessidade da escrita”, “ética”,
“modernidade”), com o que se pode afirmar que o livro de Pedro Eiras, se por um lado
não é uma tese estritamente sobre a escrita brandoniana, cumpre o desafio lançado por
Álvaro Manuel Machado (1999, p. 70), além de dar nova roupagem teórica a temas
recorrentes nos estudos sobre Raul Brandão, incluindo Deleuze, Freud, Lacan e
Nietzsche. Por outro lado, Húmus, mais um vez, é posto como metonímia da biblioteca
brandoniana – a parte pelo todo – , em nova demanda para se evidenciar a modernidade
desse texto de três versões e, por consequência, de toda uma escrita ou, melhor dizendo,
uma prática de escritura.
Por outro lado, já em Tentações (2010), Pedro Eiras distancia-se da espinha dorsal
dos estudos brandonianos, isto é, desta crítica que busca colocar de pé os núcleos
centrais da investigação em torno da obra do escritor, levando o ensaio proposto para o
limite do que se poderia vislumbrar em termos possíveis para uma análise comparatista
do Húmus, acompanhado por outros textos literários do prosador. O ensaísta toma para
si a tarefa de colocar em parelha duas figuras, de imediato, opostas ou incompatíveis:
Sade e Raul Brandão, o que faz por meio da comparação entre o livro de 1917 e Justine,
de 1791. A morte, o medo e a palavra ganham destaque no exercício criativo de Eiras.
50
Com habilidade, justapõe dois livros numa escrita inusitada, que, como assegura em
“Nota”, não é mais que uma “intuição” (EIRAS, 2010, p. 7), de toda forma sedimentada
e amplamente fundamentada como também o é seu Esquecer Fausto.
A leitura crítica do autor de Tentações faz lembrar o ensaio de Edson Rosa da
Silva, publicado na revista Semear (2000), em que discute o conceito de “Museu
Imaginário” proposto por André Malraux. Retomando o artigo “Bibliothèque et musée:
diffusion et métamorphose de la littérature et de l'art dans la réflexion d'André
Malraux”, artigo publicado em Estudos Neolatinos (1998), o ensaísta diz-nos da
liberdade de fronteiras que se estabelece no seio desses espaços da imaginação.
Dispensando a fisicalidade e o ordenamento, que são a tônica dos museus ditos
convencionais ao redor do mundo, o Museu de Maulraux permite reunir, no espaço da
virtualidade e da mente criativa, todos os monumentos e peças artísticas dispersas.
A biblioteca de que fala Edson Silva (2000) tem a mesma capacidade de
embaralhar, agora palavras e livros, mas contraditoriamente os torna rede única, em
tessitura barthesiana que se consolida na mente do leitor. Penso que esse apagamento,
proporcionalmente mais produtivo quanto mais se esvai, é o núcleo de condensação da
crítica brandoniana contemporânea, porque, ao lado do Húmus, podem-se ler as
Memórias, e, ao lado destas, História dum Palhaço, sem que haja critérios de primazia,
importância ou hierarquia para o crítico que investiga o escopo brandoniano. Quando se
tem uma percepção global (que é diferente de dizer que se tem o conhecimento total,
posto que este nunca estará à mão), os temas avultam e se, como permite a biblioteca
em questão, a história da crítica pode ser revisitada e repaginada, é possível tentar
levantar outros temas a partir de outras teorias. Julgo que é hora, portanto, de passar aos
meandros metodológicos e teóricos desta investigação, para que o leitor não se canse de
vislumbrar na tentativa de recuperação do passado desses estudos, pois que isto está
51
feito – e digo que bem feito pelos investigadores que me antecederam – e posto que
minha tese é outra.
Portanto, é preciso reformular, em síntese, o que se almeja desenvolver e elucidar
ao longo desta investigação, qual seja: se, por um lado, busco na relação entre a
literatura e a história a consistência teórica desta pesquisa, por outro, não vislumbro o
enquadramento natural e quase acomodado da história na ficção. Deseja-se, ao analisar
outra parcela da escritura brandoniana, aquela que está à margem de Húmus, entender
como a percepção e apreensão dos processos históricos transcorridos no final do século
XIX e primeiras décadas do século XX implicam literariamente no que se pode
formular como intuição histórica ou ainda tentação da história em Raul Brandão, que,
se se materializa nos textos ditos de fundo histórico, está, de outro modo, presente em
todo tecido textual brandoniano por meio de contextos que vão ao encontro dos estudos
históricos. É, por exemplo, sabido que as ideias benjaminianas estão enraizadas na
escola dos Annales – e aqui me refiro especificamente à primeira fase –, mas pouco se
percebe que a literatura de Raul Brandão dialoga com a filosofia de Walter Benjamin
porque são, ambas, reflexões que retornam, obsessivamente, à imagem da ruína e às
formas de catástrofe num mundo finissecular e depressivo que é a Europa em tempos
sombrios.
A escritura de Brandão propõe, nessa medida, a erosão do olhar monolítico e
monocromático sobre a matéria histórica. Na esteira desta investigação, surge,
naturalmente, uma hipótese principal: que a visão brandoniana da história comunga com
a visão benjaminiana, sem que, todavia, Brandão tenha sido leitor de Benjamin –
embora os dois tenham sido, em grande parte, contemporâneos. Desse modo, o escritor
de Guimarães toma para si a missão de narrar uma história pelo viés dos vencidos – os
52
trapeiros – e em desfavor dos vencedores. No texto do escritor espreita-se uma história
sem aura.
Retomando o ensaio de Vergílio Ferreira, se Raul Brandão “luta contra os padrões
da ficção tradicional” (1991, p. 214), também torna patente o desajuste em continuar a
fazer narrativa histórica ao modo do cânone do século XIX e, em última instância, em
pensar a própria história como se ainda estivesse mergulhado no contexto do oitocentos.
Ao contrário de tudo que as tendências positivistas impuseram, na retina de Raul
Brandão estão pintados um novo uso e um novo modo de trabalhar os símbolos, signos,
imagens e alegorias alinhavados à história. Daí a necessidade de que antes de se
abordar os textos literários propriamente ditos seja preciso discorrer como a presente
investigação encontra seu caminho em meio ao arquivo literário de Raul Brandão
depositado na Biblioteca Nacional em Lisboa e, ainda, o modo como a filosofia
benjaminiana da história pode iluminar a crítica brandoniana desvelando nova
perspectiva de análise ora consubstanciada.
1.2. Experiências do arquivo
Até agora, tenho me detido em, na medida do possível, escrever um percurso da
crítica brandoniana, fazer a crítica da crítica, apresentando não apenas parcela
considerável da fortuna (sobretudo da crítica de reabilitação e da crítica
contemporânea), mas sinalizando, desde então, que o presente estudo busca um
caminho próprio. Parti de imersão realizada no arquivo de Raul Brandão, que pertence
à Sociedade Martins Sarmento, instituição sediada em Guimarães, e disponibilizado em
meio digital pela Biblioteca Nacional, em Lisboa.
O acervo brandoniano não possui a extensão monumental dos papéis de Fernando
Pessoa, mas nem de longe pode ser considerado um pequeno espólio documental: trata-
53
se do conjunto23 de mais de mil e cem documentos, muitos dos quais contendo dezenas
de páginas manuscritas e/ou dactiloscritas, computando, invariavelmente, mais de dez
mil imagens individuais que precisaram ser observadas – e muitas vezes decifradas –
uma a uma, tarefa por si só de difícil execução e que, dado o número de documentos
inéditos revelados e também outros que foram revisitados, ampliaram o objetivo inicial,
que era o de promover um estudo da recepção do texto brandoniano a partir da
correspondência recebida pelo escritor e de publicações veiculadas nos periódicos A
Águia, Seara Nova e em jornais de circulação à época.
No contato com a correspondência, que além de referendar a existência de
relações com intelectuais revela novos correspondentes de Raul Brandão (a exemplo de
António Botto, António Patrício, José Rodrigues Miguéis, Mário Beirão e de
importantes figuras do movimento republicano), fui surpreendido na forma como as
Memórias, livros de nuances memorialísticas, autobiográficas e historiográficas, ou
ainda os volumes de teatro e os textos de viagens e paisagens (tal como As Ilhas
Desconhecidas e Os pescadores) despertaram leitores apaixonados e, não raras vezes,
frenesi nos jornais lisboetas e portuenses. Ao lado de um escritor profícuo, que se pode,
sem medo, considerar um polígrafo, emerge o jornalista capital, que, mesmo longe da
redação, espaço fundamental para sua formação literária e humanística na década de
1890, continua a dar vazão a uma estética muito particular de ver o mundo ao seu redor,
seja por meio do impressionismo, seja do expressionismo, tão caros a Raul Brandão, e
que o ligam particularmente à pintura, como de fato está, não apenas pela técnica de
escrita, costumeiramente plástica, mas pela relação de longa data com o pintor
Columbano Bordalo Pinheiro.
23
O inventário do arquivo, elaborado pela equipe da Biblioteca Nacional, dividiu os materiais
encontrados em 1161 lotes de documentos, de tamanhos variados, embora a experiência in loco tenha
apontado para o total de 1164 materiais.
54
É tarefa árdua rastrear quem primeiro sublinhou o expressionismo de Raul
Brandão, apontado por Vitor Viçoso como uma estética “que teria as suas raízes numa
das vertentes do imaginário decadentista: o dolorismo fantástico, voluptuoso e
nocturno” (1999, p. 95).24 Encontram-se ecos não apenas entre os estudos acadêmicos,
mas inclusive entre os leitores contemporâneos de sua escrita, como se pode ler em
carta datada de 16 de janeiro de 1927 e remetida de Paris ao escritor da Foz do Douro:
Raul Brandão pintor. Grande pintor, de uma hora para outra! Enfim, a
pintura estava em ti, em sentimento e em arte. O colorista maravilhoso
dos “Pescadores” e o profundo pintor naturalista dos “Pobres”, obra
sem paisagem, que de um muro de pátio e de uma única árvore
emparedada na sombra, conseguiu fazer uma dúzia de quadros à
Rembrandt [.] Tinha dentro de si um pintor de gênio, sem dúvida. Para
passar das palavras aos pincéis só lhe faltava a técnica. E faltava.
Como diabo a teria ele adquirido, como se teria senhoriado (sic) dela?
Este é o mistério que ninguém desvendará.25
O próprio Raul Brandão deu a tônica de sua literatura expressionista (“O autor
envolve-o com uma aura expressionista”; VIÇOSO, 1994, p. 178) quando, por diversas
vezes, apontou em seus textos uma predileção e interesse pela pintura, seja ela em claroescuro, seja nas pincelas coloridas das paisagens à beira-mar, sendo costumeira a
aproximação escrita/pintura desde os tempos da crítica de formação. Há certa obsessão
pelo uso das cores, por vezes contrastivas entre si como se, desse modo, o autor
pudesse, ao pintar com as palavras, colocar o leitor diante de um mundo que é uma
imensa tela cinzenta, representação pictórica de uma Europa embebida em melancolia,
que raras vezes permite o entrar fortuito de uma cor mais vivaz em seus domínios.
Todavia – volto à carta acima exposta –, o missivista parece não ter ciência de que Raul
24
Dentre os primeiros críticos portugueses, encontra-se Eduardo Lourenço (1993, p. 307 – citado
anteriormente) e José Carlos Seabra Pereira (1995).
25
Carta inédita, cota BN D2/27, escrita por Filinto de Almeida (n. 1857, m. 1945). A ortografia dos
originais está adaptada à norma brasileira ainda vigente no ano de 2012. Por questões técnicas, optou-se
por incluir, na forma de apêndice, os manuscritos autógrafos e outros materiais também inéditos
encontrados no arquivo brandoniano e aqui diretamente referidos.
55
Brandão há tempos convivia com o mundo das artes plásticas, como desvela carta de
Columbano, enviada ainda em 21 de junho de 1896, ano em que, como se sabe, o
escritor publicou a primeira versão da História dum Palhaço: “Já estou instalado no
meu novo ateliê, n’aquele casarão, que você muito bem conhece. Tem uma luz
lindíssima, não imagina, chega a ter um ar respeitável. [...] Peço-lhe que me escreva de
quando em quando.”26
Na última carta enviada por Columbano Bordalo Pinheiro a Raul Brandão, datada
de 4 de abril de 1928, na iminência da morte do primeiro, é revelado que o escritor da
Foz avança nas técnicas de pintura, dedicando-se, à época, à pintura de flores, não mais
à natureza morta ou à caricatura: “Soube pela carta da Senhora D. Maria Angelina,
escrita a minha mulher, que o meu amigo se está agora dedicando ao estudo da pintura
de flores. Tenho muita curiosidade de ver essa nova feição dos seus trabalhos”.27 A
breve exposição da correspondência, que antecipa em si o estudo feito no arquivo
literário brandoniano, tem por função evidenciar que a predileção de Raul Brandão por
uma literatura essencialmente plástica não é acaso fortuito, e que a preocupação e o
interesse que a pintura desperta no escritor pode ser mapeado, seja pelo material
trocado, seja pelos textos que escreve desde a remota década de 1890, seja ainda pela
análise que Raul Brandão faz sobre a pintura de Columbano, publicada na Revista
d`Hoje, em janeiro de 1895, como elucida Vitor Viçoso:
Já no artigo anteriormente focado, o seu elogio da pintura
decadentista, exposta em Paris, contrastava com a crítica negativa que
fazia à pintura portuguesa de então [...]. Ora, o que Raul Brandão [...]
sobreleva na pintura do retratista português é essa capacidade de fuga
à ‘educação da cor’, aos modelos cromáticos impostos
institucionalmente e a adopção duma ‘visão pessoal’ noturna, saliente
sobretudo nos retratos onde predominam as cores escuras e o fundo
nego. (VIÇOSO, 1999, p. 97).
26
27
Cota BN D2/460, de autoria de Columbano Bordalo Pinheiro (n. 1857 – m. 1929).
Cota BN D2/469, também de autoria do pintor português.
56
Não apenas em A máscara e o sonho (1999) Viçoso debruça-se sobre essa faceta
da escrita brandoniana. Em artigo publicado nas Actas do Colóquio Ao Encontro de
Raul Brandão, assevera: “o estigma decadentista-simbolista, que caracteriza a sua
prosa, aproxima-se de um expressionismo grotesco, frequentemente carregado de
tonalidades apocalípticas” (2000, p. 39, grifo meu), para completar mais adiante: “Na
obra de Raul Brandão, o real é sobretudo um efeito de simulacro, e esta ilusão de
contornos barrocos amplifica-se através de um atroz ou caricato desfile de máscaras”
(Ibidem, p. 44, grifo meu). Para o crítico, o expressionismo surge como uma tendência
crepuscular e contrasta de forma evidente com um simbolismo, que, em sua acepção
mais à risca, encontrará menos repercussão em Portugal do que o decadentismo
finissecular. É, portanto, na força da caricatura, no traçado em preto e dourado e numa
plasticidade sustentada por uma capacidade cinética de base (quase) nula que Raul
Brandão se apoia para moldar singular estilo que permeia sua obra desde a História dum
Palhaço até aos últimos livros, como em O pobre de pedir.
Na esteira de Vitor Viçoso, também Eduardo Lourenço (veja-se o comentário
anterior sobre o tema), dedica-se ao estudo do expressionismo28 e sua presença no
cabedal das estéticas do fim do século. O filósofo português aponta Fialho de Almeida e
Raul Brandão como os legítimos representantes da tendência no seio da literatura
portuguesa, ao destacar o papel cimeiro da escritura brandoniana: “O nosso
‘expressionismo’, na fraca medida em que existiu – e só a partir de Fialho podemos
detectar sua presença – é um ‘expressionismo’ mais de ressentimento do que de
afirmação, [...] ou do protesto humilde à Raul Brandão, autor, por antonomásia, dos
Pobres.” (LOURENÇO, 2001, p. 32).
28
É precisa lembrar de que a tese de doutorado de Vitor Viçoso, que deu origem ao livro homônimo, foi
defendida no ano de 1987, antes, portanto, de Eduardo Lourenço esboçar o seu pensamento sobre Raul
Brandão e o cabedal expressionista do final do século.
57
É Jorge Valentim quem primeiro aponta, entre os críticos brasileiros, o diálogo
intersemiótico que reside na literatura brandoniana, ao partilhar os agravos de Saturno
com Columbano Bordalo Pinheiro, a quem o escritor do Porto dedica a primeira das
versões de Húmus:
Diante destas constatações da inquestionável importância de
Columbano, enquanto homem e artista de Portugal oitocentista
finissecular, entendemos a razão de, muito justamente, o autor de
Húmus dirigir-se ao criador de Antero como Mestre e a ele dedicar a
obra. Como o Mestre Columbano, Raul Brandão se debruçava sobre
os seus personagens, apresentando-se como um típico retratista
psicológico. [...] É sob o mesmo signo columbano da ambiguidade, da
dualidade pictórica, que Raul Brandão recria e pinta [...] a realidade
portuguesa finissecular (2004, p. 40-41).
A positiva insistência de Valentim em abordar a relação especular entre as obras
do eminente pintor e de Brandão parece encontrar seu ápice quando, ao discorrer sobre
a importância da técnica do artista plástico na composição textual do autor de História
dum Palhaço, sintetiza: “acreditamos que o Mestre Columbano é mais que
homenageado. Ele é chamado para dentro do próprio texto” (Ibidem, p. 45). E adiante
complementa: do “olhar cavernoso e catastrófico do Antero de Columbano, o autor de
Húmus parece tirar o olhar grotesco, a atmosfera brumosa e a angústia ressentida do
pensamento de Gabiru” (Ibidem, p. 46).
Também Raul Brandão, em entrevista ao jornal Diário de Notícias de 7 de janeiro
de 1927, explana sobre sua relação com a pintura, mostrando o modo pelo qual passou a
fazer quadros a óleo, despertando estranheza e admiração entre escritores e artistas
plásticos. Responde o autor, quando instigado pelo repórter: “Eu trouxe alguns desses
quadros comigo, mas recomendei na minha casa que os escondesse, pois o mestre
58
Columbano podia aparecer por lá e rir-se de mim. Houve, porém, quem lhe fosse dizer
que eu pintava. E no dia em que foi visitar-me quis ver os quadros”.29
O desvio até aqui foi longo, e, ainda sobre a relação Columbano/Brandão, voltarei
oportunamente. De momento, é necessário retomar o impacto que tive ao estabelecer
contato com o espólio brandoniano, sem me contradizer ou perder a coerência interna,
uma vez que este próprio desvio só foi possível e engendrado a partir de documentos
encontrados no arquivo. O conhecimento do acervo reescreveu os passos que se tinha
para a investigação: Húmus cedeu o papel ao El-Rei Junot, à História dum Palhaco e às
Memórias, posto que a correspondência e outros papéis que integram o espólio facultam
perceber o destaque ocupado por esses textos no conjunto da literatura brandoniana.
Logo, os temas e os símbolos, dispersos e evocados na leitura de Vítor Viçoso (1999),
condensam-se na imagem do trapeiro, que, por vezes, toma a forma do clown/palhaço
(do livro de mesmo nome): porta-voz do pessimismo e da melancolia decadentistas. O
palhaço brandoniano, tal qual o trapeiro benjaminiano, emerge como arauto do fim-deséculo, espécie de anjo torto que não mais detém a sua auréola (BAUDELAIRE, 2002,
p. 333: “a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu
no lodo do macadame. [...] Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do
que ter os ossos rebentados.”) e que se irmana com o anjo da história que Walter
Benjamin vê a partir do Angelus Novus (de Paul Klee).
Além das Memórias, tecido sintético (não por ser artificial, mas por ser síntese de
uma estética plural) da produção literária brandoniana, em que todas as tendências e as
temáticas se reencontram e se cruzam, a efabulação de fundo histórico, contraponto
natural e definitivo ao argumento de que Raul Brandão não sabia escrever de forma
estruturada, ganha relevo, assumindo-se como tema para capítulo desta pesquisa. Aliás,
29
Cota BN D2/939. Trata-se do rascunho da matéria jornalística, cujo título é “Raul Brandão: pintor”. A
consulta aos arquivos do Diário de Notícias não se configurou como estritamente necessária à
investigação.
59
é preciso ressaltar que não há, no Brasil ou em Portugal, investigações que priorizem
El-Rei Junot ou Vida e Morte de Gomes Freire como obras dignas de interesse
acadêmico.
O trabalho com o arquivo literário permite tanto uma investigação de base
genética quanto de caráter da recepção do texto de Raul Brandão – e sobre isto se
discute mais adiante. No entanto, se se pensava em adentrar pelos meandros específicos
dos arquivos literários, tornando, portanto, o acervo um objeto central da investigação, o
contato com o espólio redimensionou os passos desta crítica, fazendo com que o desejo
inicial de realizar um estudo da recepção crítica da literatura brandoniana, ao momento
de sua veiculação, fosse substituído pelo interesse em investigar a percepção da história
em textos literários menos difundidos do escritor. Outrossim, o arquivo de Raul
Brandão, longe de ser peça acessória ao estudo proposto, conduziu a um
amadurecimento crítico, a fim de que propusesse a tese e a hipótese principal dispostas
em páginas anteriores deste capítulo, as quais se reiteram a fim de tornar ainda mais
nítidos os caminhos projetados: (tese) a escritura de Brandão enseja a erosão do olhar
monolítico e monocromático sobre a história trazendo nos textos literários El-Rei Junot,
História dum Palhaço e Memórias uma visão particular de concepção de história, que
põe em xeque as concepções alicerçadas no século do positivismo, porquanto (hipótese)
partilhe com Walter Benjamin a obsessão por uma narrativa dos vencidos em
detrimento dos vencedores,30 do micro em vez do macro, do fragmento em contrário à
totalidade. Por conseguinte, o escritor utiliza-se no decurso de sua construção literária a
30
Ao lançar mão dos termos “vencidos” e “vencedores”, é preciso explicitar o que afirma Michael Löwy
sob a perspectiva benjaminiana encampada entre as classes dominantes e as classes dominadas: “Ele
[Benjamin] acusa o historicismo de identificação com os vencedores. Evidentemente, o termo ‘vencedor’
não se refere, aqui, às batalhas ou às guerras comuns, mas à ‘guerra de classes’, em que um dos campos, a
classe dirigente, não cessou de vencer os oprimidos – desde Spartacus, o gladiador rebelde, até o
Spartakusbund (Liga Espartaquista) de Rosa Luxemburgo, e desde o Imperium romano até o Tertium
Imperium hitlerista.” (2005, p. 71). A observação faz-se necessária porque Raul Brandão escreveu grande
parte de sua obra na iminência da guerra ou sob o signo da barbárie que a Primeira Guerra e o pós-1918
espalhou pela Europa.
60
imagem obsessiva da ruína e a alegoria do trapeiro, este como personagem funcional (e
não personagem-tipo) que povoa não apenas História dum Palhaço, mas que subjaz e
atravessa as obras eleitas para análise e interpretação.
É necessário dizer que a manipulação de arquivos de escritores tem despertado
interesse por parte da crítica especializada e de instituições e organismos que se
preocupam em preservar a memória de uma escrita e de seu autor. Multiplicam-se no
Brasil, em Portugal e ao redor do mundo redes de investigadores empenhados na
(re)leitura de obras à luz de documentos inéditos ou simplesmente ignorados em virtude
do contexto de uma prática da investigação literária que desprezava o potencial desses
papéis.
No célebre ensaio “A morte do autor”, o intelectual francês Roland Barthes
(2004a) propõe um reposicionamento dos estudos literários, cujo novo foco deveria
refletir um deslocamento, partindo da instância autoral em direção à função do leitor.
Como resultado desse reposicionamento, o texto passa a ser o objeto central da
investigação. O que poderia ser, em primeiro aspecto, lido como esvaziamento do autor
– e, em certa medida, tal esvaziamento se refletiu nas investigações dos primeiros anos e
décadas após a publicação do texto barthesiano –, é rediscutido pela crítica literária
contemporânea como um redimensionamento, que acaba por tornar o estudo do texto o
foco central das pesquisas e leituras críticas que se fazem a partir de então. Roland
Barthes, por meio do sepultamento metafórico do autor, não busca o encerramento
definitivo dos significados lançados a partir do emissor do texto, mas um equilíbrio
necessário entre autor/texto/leitor.
Por conseguinte, tendo em vista que o trabalho com arquivos literários feito pela
crítica atual tem por objetivo último o manuseio do próprio texto literário em questão, o
esclarecimento e o enriquecimento dessa crítica de texto, não há por que ter receio de
61
lançar mão de papéis arquivados, como se, ao manuseá-los, houvesse por resgatar do
limbo o autor sucumbido por Barthes. Com o trabalho no acervo, emerge o desejo de
desvelar o próprio texto literário, de tornar a interpretação mais densa e rica, lançando
mão do conhecimento que reside nos manuscritos e datiloscritos, sejam eles do próprio
autor, sejam de terceiros (sobre o autor). Foi este o espírito investigativo norteador: os
papéis depositados na Biblioteca Nacional em Lisboa abrem outras perspectivas para a
leitura critica da escritura brandoniana, entre as quais a de que o texto de Raul Brandão,
antecipando-se às formulações teóricas que os historiadores do século XX tecem, rompe
com a concepção de história em voga no positivismo do século XIX e torna a escrita
literária em espaço de expressão daqueles que foram excluídos pela historiografia
tradicional oitocentista. Ao autor de El-Rei Junot, História dum Palhaço e Memórias
importa narrar os emudecidos.
A pesquisa em arquivos literários não rejeita o postulado barthesiano de colocar a
linguagem como plano primeiro da investigação, uma vez que, se essas práticas
recorrem a questões da ordem dos bastidores da criação, o fazem para elucidar
problemas de ordem textual. Além disso, a recuperação da noção de autor vem
ganhando força desde as décadas de 1970 e 80, como salienta Rosa Maria Goulart
(2001, p. 45); e estudiosos reunidos por ocasião do Coloquio Internacional Homenaje a
Roland Barthes já apontavam, em seus escritos acadêmicos, evidências de que o autor
continua agindo sobre o texto. Nessa esteira, diz Marília Rothier Cardoso:
Hoje, com décadas de exercício de interpretação textual, os conceitos
propostos por Barthes e seus contemporâneos perderam a
radicalidade. Não é o caso de recuperar-se a autoridade do escritor,
mas tem-se procurado rastrear as marcas de seu corpo, inscritas no
texto, como índice de inserção história do mesmo. Quando se atenta
para essa dimensão, fica patente que os traços datados do trabalho da
escritura transportam, em seu deslizamento pela página, o conjunto
de saberes e valores coletivos da cultura. Assim, longe de apresentarse neutro, o texto testemunha o conflito acirrado de forças históricas,
62
presentes na sua construção e desdobradas nos casos de sua
divulgação (2003, p. 44).
Desta feita, o que foi considerado lixo literário ou mero resíduo laboral do autor
passou a figurar como material de trabalho para a linha de pesquisa que “combina o
conhecimento dos arquivos com a perspectiva cultural”, em busca de “desenvolver uma
vertente muito específica de crítica” (Ibidem, p. 44) que, ao reciclar os velhos papéis
(CARDOSO, 2001), inova e reinventa, tirando-os da condição de espólio (morto e
inútil) para o da constituição do arquivo ou acervo (vivo e útil), cuja função primordial é
a preservação de determinado patrimônio cultural a fim de que os materiais encontrados
sejam organizados, catalogados e disponibilizados a pesquisadores e estudiosos.
A formação de acervos de escritores não segue um processo padronizado, único, e
resulta da prática do colecionismo, pelo que se infere que o material que está sendo
conservado possui valor histórico-artístico. Ivo Castro (1990, p. 13) propõe, embora
sem se deter no tema, uma tripartição dos tipos de arquivos, classificando-os em
artificiais (ou terciários), passivos e ativos. São terciários quando outrem, que não o
próprio autor, acumula manuscritos dispersos, correspondências, notícias publicadas em
jornais e revistas; passivos, quando resultam de coleção formada pelo próprio autor, que
vai guardando seus papéis sem um objetivo definido e sem uma organização precisa; e
ativos, quando o produtor dos materiais possui o objetivo claro de legar a coleção em
formação à posteridade, organizando-a cuidadosamente. Sejam terciários, passivos ou
ativos, os arquivos evidenciam uma nova concepção da obra literária e da figura autoral,
motivo pelo qual se faz necessário que os materiais advindos da criação literária, e que
circundam as esferas pública e privada da vida do autor, sejam colecionados e
conservados, ação que ganha força, sobretudo, a partir do romantismo, quando a noção
de autor, como a conhecemos, se estabelece.
63
A prática da manutenção e preservação de arquivos literários está atrelada a uma
política de Estado, seja porque os materiais envolvidos são de interesse coletivo, seja
porque é dispendioso custear-lhes a conservação. Além da consolidação da noção de
autor e de obra literária no século XIX, o surgimento dos primeiros acervos dependeu
da visão crítica de estudiosos que viram nesse tipo de material expressiva fonte de
pesquisa, bem como de bibliotecas e instituições universitárias que acolheram a nova
proposta de investigação e socialização desses materiais, forçando-os a serem colocados
sob o manto do Estado moderno.
Seja qual for o arquivo literário, podem-se encontrar, fundamentalmente, três tipos
de materiais: 1. manuscritos autógrafos e idiógrafos; 2. apógrafos; 3. epitextos públicos
e privados. Essa tripartição abarca a divisão, proposta por Genette, em Paratextos
Editoriais (2009), em peritextos e epitextos, pois os manuscritos e os apógrafos estão
repletos de informações peritextuais, que circundam o texto propriamente dito, tais
como notas de rodapé, títulos de capítulos e livros, anotações à margem, dentre outras.
O manuseio de acervos literários, com fins investigativos, depende do tipo de pesquisa
que se pretende construir com os materiais analisados, mas, grosso modo, pode-se
estabelecer a relação entre estudos de gênese e os manuscritos e apógrafos (peritextos),
assim como entre as pesquisas de recepção de textos literários e os materiais
peritextuais, sobretudo cartas trocadas entre escritores, artigos e resenhas publicados em
jornais e revistas da época, entrevistas concedidas a veículos da mídia.
Ainda no âmbito da contextualização do que vem a ser trabalhar com arquivos
literários e, neste caso com o de Raul Brandão, algumas últimas e breves considerações
sobre o tema são necessárias. Primeiro, que as investigações anteriores que se
debruçaram sobre a prosa brandoniana não se beneficiaram da existência do acervo
(organizado pela Biblioteca Nacional Portuguesa), uma vez que é somente por volta de
64
2008, embora as bobinas de microfilme datem de março de 2006, quando a presente tese
começou a ser esboçada, que os materiais foram colocados à disposição do público
interessado, embora seja verdade que eventuais buscas individuais nos papéis de Raul
Brandão já tenham sido realizadas por João Pedro de Andrade (2002), em conjuntura
teórico-investigativa bastante distinta da que nutre esta crítica, e que alguns
contemporâneos do escritor tenham revelado, ao longo do tempo, documentos em suas
posses.
Segundo, que dado o volume de informações – tais como cartas enviadas para o
escritor do Douro por intelectuais portugueses, leitores, críticos literários e editores
estrangeiros, cartas amorosas de Raul Brandão à Maria Angelina Brandão, recortes de
jornais e outros periódicos da época, manuscritos de diversos textos que revelam o
processo de construção e realização da escrita, fotografias, acordos e dispositivos
contratuais assinados entre o autor e casas editoriais, os abundantes cadernos de capa
preta em que estão registradas as impressões sobre o dia-a-dia lisboeta e portuense a
partir da visão do escritor, planos de realização de obras futuras e das que estavam em
andamento, desenhos (caricaturas, sobretudo) e plantas baixas –, é imprescindível que
investigações realizadas encontrem no acervo um suporte documental, atestando, para
além de pormenores biográficos, concepções e ideias do escritor.
Terceiro, que a presente investigação, quando recorre à articulação com o espólio
do escritor, fá-lo investindo no trabalho com a correspondência (nomeadamente a que
foi recebida pelo escritor) contida no acervo para, assim, tentar retirar da sombra certa
parcela da obra de Raul Brandão. Foi esta que, ao final das contas e ao cabo de toda a
pesquisa in loco, possibilitou a construção de uma visão analítica da obra, resultando na
opção pela margem também no eu diz respeito aos textos literários. Daí o interesse em
se fixar não mais no que o próprio Brandão designou de “A história humilde do povo
65
português”, como atesta Maria Angelina em entrevista a João Marques (ANGELINA
BRANDÃO, 1952, p. 9), mas pelos textos que não têm sido ou foram objeto de
perspectiva demorada.
Qual é, portanto, o papel dado ao arquivo brandoniano nesta investigação?
Comece-se por dizer que a eleição de El-Rei Junot, História dum Palhaço e das
Memórias não reflete um caso fortuito. Ao contrário, a escolha das obras justifica-se por
comporem, no conjunto, um painel amplo, ao mesmo tempo diversificado e integrado,
dessa relação de meias paredes com a história, a qual subjaz no texto literário de Raul
Brandão. O segundo livro, se não aponta, diferentemente dos tomos memorialísticos
que o seguem, aspectos ou momentos históricos da sociedade portuguesa, traz à baila a
imagem desse palhaço/trapeiro que é, a seu modo, uma alegoria do fim-de-século que
experimenta uma crise histórica: envolto em brumas, embebido de melancolia, patético
e grotesco como uma figura barroca, à beira do caos.
O espólio é, desse modo, ponto de partida para que se ligue, em que pese uma
leitura crítica do texto, a literatura brandoniana às teorias críticas da nova história, entre
as quais ganha destaque o pensamento anti-historicista de Walter Benjamin, que insiste
que é preciso “acordar os mortos e juntar os fragmentos” (1994, p. 226) daqueles que
foram emudecidos pelo tropel dos vencedores, esses homens que “participam do cortejo
triunfal, em que os dominadores [...] espezinham os corpos dos que estão prostrados no
chão” (Ibidem, p. 225). O escritor de Guimarães e o filósofo alemão partilham dessa
sensação apocalíptica e fragmentária de uma história em ruínas, em que os mortos e os
vencidos são silenciosamente esquecidos, o que se pode evidenciar, por exemplo, a
partir de fragmentos das teses “Sobre o conceito da história”: “O dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de
que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo
66
não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 1994, p. 224-225). E não se pode conceber o
historiador também como o escritor que se preocupa em dar “um salto de tigre em
direção ao passado” (Ibidem, p. 230) para tornar esse passado redimível, citável e
memorável, para que fique, enfim, a salvo da manipulação dos dominadores?
No arquivo do escritor, verifica-se que muitos foram os missivistas para quem o
palhaço converteu-se em alegoria-chave da narrativa de Raul Brandão. Parece-me que é,
portanto, com a publicação deste segundo livro31 que a escrita brandoniana se firma
como prática consciente de pensar o próprio texto e pensar a exterioridade de uma
sociedade portuguesa e europeia em convulsão. Observe-se esta carta inédita, datada de
25 de maio de 1926, ano de publicação da edição refundida da obra em questão:
Recebi o seu formoso e simpático livro [, pelo] que sinceramente lhe
agradeço [,] e que guardarei como uma lembrança aparte, entre tantas
outras que a si me prendem. Apesar de continuar muito doente já li
uma grande parte do volume, que é um dos mais belos que têm saído
de sua pena. Se não estou em erro, o meu amigo retocou algumas
passagens da edição primitiva. Refiro-me, em especial, à Morte do
Palhaço, que, lida após tantos anos agora, sobre a leitura que outrora
fiz, me parece mais emocionante e mais intensamente dramático. Seja
como for, o livro é ótimo e, através dele, continua a afirmar-se o raro
temperamento do seu autor, verdadeiro prescutador (sic) de almas.32
Ao dizer que a escritura de Raul Brandão possui a capacidade de perscrutar, de
investigar as almas, o missivista aponta para a perspectiva psicológica da narrativa
brandoniana, em que constrói personagens plenos de conflitos, emparedados entre a dor
(o real) e o sonho (o desejo). Não é justamente esta a tônica da História dum Palhaço de
1896? Não reside neste texto caracteristicamente finissecular uma espécie de testamento
ou legado literário da geração de 1890, da qual o escritor da Foz do Douro fez parte e na
31
Impressões e Paisagens, vindo a lume na data de 1890, é o primeiro livro do escritor, editado pela
tipografia de A. J. da Silva Teixeira. Exclui-se desta sequência de obras o opúsculo Os Nephelibatas, pela
particularidade de ser obra coletiva, além de não trazer em sua capa a assinatura do escritor, embora a
leitura do texto permita forte evidência de uma matriz literária brandoniana no corpo do texto.
32
Carta inédita, cota BN D2/18, datada de 25 de maio de 1926 e escrita por António José de Almeida (n.
1866, m. 1929), político republicano e sexto Presidente da República.
67
qual se formou? Há no arquivo de Brandão missiva datada de 10 de novembro de 1926,
portanto alguns meses após a carta apresentada anteriormente. O documento foi
redigido por Justino de Montalvão na esteira da edição refundida da História dum
Palhaço e, da mesma forma, apoiada ainda nas edições que eclodiram nesse ano
particularmente profícuo para o escritor.33
Justamente ando a acabar de escrevinhar uma imensa papelada que te
diz respeito. Imagina tu que comecei (como sabes) por fazer o
prefácio para a Morte do Palhaço que te tinha anunciado. Mas de tal
modo foi inchando, inchando que em vez dum prefácio dá um livro.
Nesse livro, que tenho quase pronto – em vez de tratar só da tua obra ,
comecei a meter tudo o que me vinha à mente [,] tudo o que me vinha
vindo à cabeça sobre a nossa mocidade. E de tal maneira a imaginação
foi tecendo, tecendo... [...] Vou pois publicar um livro (um volume de
cerca talvez de 150 páginas) junto ao que tinha primeiro escrito com a
intenção do prefácio – toda a história pitoresca da nossa geração, com
este título genérico “Os Insubmissos”. Será uma série da qual o
primeiro é o volume em que falo de ti. O segundo será referente ao
Nobre, etc.34
A carta é bastante longa para ser transcrita na íntegra. O que se continua a
observar nas páginas que seguem é como a narrativa de História dum Palhaço continua
a ecoar nas produções seguintes de Raul Brandão e como o texto em destaque é peçachave para a leitura da poética brandoniana. Guilherme de Castilho (2006) considera-a
uma obra de transição, vista ainda desta forma pela crítica de reabilitação. Vitor Viçoso
debruça-se sobre ela, na perspectiva de uma narrativa decadentista, em cujo interior
desnuda-se “certa falta de coerência ou de lógica organizativa, parecendo, por vezes,
mais uma desconexa acumulação de textos – uma coleção de ‘papéis’ escritos ao sabor
de inspirações momentâneas” (1999, p. 157).
33
As Ilhas Desconhecidas. Notas e Paisagens (Aillaud & Bertrand, 1926), A Morte do Palhaço e o
Mistério da Árvore (Seara Nova, 1926: 2ª edição refundida), Jesus Cristo em Lisboa (Aillaud & Bertrand,
em colaboração com o poeta Teixeira de Pascoaes).
34
Carta inédita, cota BN D2/325, escrita por Justino de Montalvão (n. 1872 – m. 1949), que foi ministro
plenipotenciário da República, no ano de 1925.
68
Vista sob esse prisma, a refundição de 1926 efetua outra estruturação interna (que,
afinal, não é tão diferente assim nas duas edições da obra), mas não se encarrega de lhe
conferir outra roupagem que não a de papéis colados, numa espécie de narrativa
anárquica, que tem em seu bojo a proposta do trapo, do fragmento, do desequilíbrio, do
desajuste, da própria ruína materializada textualmente. No entanto, para que se possa ler
História dum Palhaço por esse viés é preciso revestir-se de um intuito que se afaste da
preocupação estrutural e buscar cada vez mais outros olhares a partir da escritura
brandoniana. Volto, portanto, à pergunta lançada anteriormente: qual o papel conferido
ao arquivo de Raul Brandão no interior desta pesquisa? O texto que se construiu até este
passo parece ser a própria resposta: ser suporte, ser ponte, fonte que fecunda e enriquece
o estudo do texto.
Se, no percurso da investigação, parte-se da imagem do palhaço para questionar a
forma como a matéria histórica subjaz ao texto literário, não é o livro de 1896 a única
obra em que se analisa detidamente o texto brandoniano. A complexa teia emaranhada
entre os escritos literários e os escritos históricos na narrativa de El-Rei Junot e os três
volumes das Memórias, livro que tem, para além do teor literário, o valor de representar
historicamente os anos conturbados do início do século XX, completam o corpus
literário da análise. Sobre o conjunto de textos ora proposto pesa um silêncio
incompreensível por parte da crítica, que, quando os interpretou, o fez a partir de
pressupostos claramente filiados à crítica de formação, hoje distante do valor que se
tem conferido ao texto de Raul Brandão.
É inquirindo a prosa historiográfica disposta nas páginas de El-Rei Junot,
problematizando a alegoria neobarroca da história que se fixa como imagem finissecular
na História dum Palhaço, e questionando a intrincada relação entre escrita
memorialística e escrita (auto)biográfica no relato dos momentos finais monarquia e
69
primeiros anos da República portuguesa (Memórias, em três tomos) que a presente
investigação se desenvolve. Em acordo com a ordem aqui explicitada, os capítulos
subsequentes encarregam-se da leitura crítica dos livros, percorrendo distintos caminhos
teóricos com o intuito de evidenciar que, para Raul Brandão, “nada do que um dia
aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (BENJAMIN, 1994, p. 223).
70
Capítulo II
A TENTAÇÃO HISTÓRICA
A corte portuguesa era nessa época um paraíso de delícias fáceis: a
existência moldava-se no tipo das cortes italianas, com excepção das
orgias de punhal e veneno. O paço era um teatro: o rei comia,
adormecia, ouvia os conselheiros para tratarem dos negócios públicos
ao som de músicas permanentes.
[MARTINS, Oliveira. História de Portugal, 1987.]
71
Neste passo da investigação, analisa-se a prosa historiográfica
de El-Rei Junot. Inicialmente, dedica-se ao estudo teórico das
fronteiras entre as narrativas literárias e históricas. Entretanto,
a maior parte do capítulo é dedicada à leitura crítica do livro
publicado em 1912, em que se discute a manifestação intuitiva
da latência histórica na obra de Raul Brandão. A primeira e a
última seções estão ligadas por um intermezzo, que, sem desejar
deter-se demasiadamente nas questões de gênero literário,
apresenta conteúdos necessários à análise apresentada na
sequência, tais como romance histórico, drama histórico e
ainda “história como drama”.
2.1. Fronteiras das narrativas
Há muito que a relação entre literatura e história é alvo de especulações.
Aristóteles debruçou-se sobre o tema, buscando articular de que forma poesia e história
apresentavam pontos divergentes. O filósofo antigo legou à sociedade ocidental a
concepção apriorística de que o discurso poético35 distingue-se do discurso histórico.
Uma vez que o primeiro, por se debruçar sobre questões mais universais, atinge um
patamar superior, o segundo, por outro lado, é classificado como produção mais vizinha
ao mundo particular dos homens, da observação da verdade.36 Aristóteles, menos que
apontar a relação dicotômica entre poesia e história, legou à poesia – e à literatura, sua
herdeira conceitual, sobretudo a partir do século XVIII37 – o posto cimeiro das
faculdades linguísticas do homem no seu processo de representação:
35
Aprofundar os conceitos esboçados por Aristóteles não é objetivo desta investigação. Por isso, não se
faz uma definição precisa do termo ficção na forma que a utiliza o filósofo grego, bastando, portanto, que
o vocábulo possa substituir, momentaneamente, o conceito de literatura. Ao passar ao largo dessa
discussão de bases aristotélicas, busca-se avançar para questões mais específicas elaboradas ao longo da
segunda metade do século XX e que, portanto, apresentam-se como mais úteis ao estudo da produção de
Raul Brandão. No entanto, para maiores esclarecimentos, o livro de Luiz Costa Lima (2006) é de valor
inquestionável por repousar no estudo teórico da representação literária o seu interesse de estudo.
36
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, em introdução à tese de doutoramento defendida na Universidade
Federal do Rio de Janeiro e publicada pela editora Dom Quixote, lança suas suspeitas de que o discurso
histórico é o da procura da verdade, em oposição ao discurso literário na sua especificação como ficção:
“E o discurso ficcional não seria, também ele, uma procura da verdade feita através da visão mágica que a
criação permite? Pelos caminhos da ciência e da arte, da razão e da emoção, não pretende o homem
chegar a um ponto comum – o da revelação do mistério de existir? “(SILVA, 1989, p. 24).
37
Vítor Manuel de Aguiar e Silva recupera a história do conceito de literatura, ponderando que “foi na
segunda metade do século XVIII que, em virtude de importantes transformações semânticas, o lexema
literatura adquiriu os significados fundamentais que ainda hoje apresenta: uma arte particular, uma
72
Pelas precedentes orientações se manifesta que não é ofício do poeta
narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a
necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por
escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em
verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história,
se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz
um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por
isso é a poesia algo de mais filosófico e mais sério do que a história,
pois refere aquela principalmente o universo, e esta o particular.
(ARISTÓTELES, 1992, p. 53-55).
Ao formular o conceito de verossimilhança, na forma de mecanismos estruturais
implícitos que conferem ao texto poético38 unidade e coerência, Aristóteles reserva para
o domínio da história o que julgou estar em plano inferior, isto é a noção de real, ou
melhor, de verdade histórica. O moderno conceito de literatura absorveu os
pressupostos aristotélicos, tornando-se patente, sobretudo, nos séculos iluministas, a
distinção entre literatura (divertimento) e ciências (conhecimento). Sendo, portanto,
espaço da arte, é somente na literatura que reside o divertimento, não no sentido a que
Umberto Eco acertadamente adverte (“Divertir não significa di-vertir, desviar dos
problemas. [...] Divertindo-se, de certo modo aprendeu.”; ECO, 1985, p. 48), fazendo
lembrar os preceitos da Poética: “Eu, grande admirador da poética aristotélica, sempre
pensei que, apesar de tudo, um romance deve divertir também e sobretudo através da
intriga.” (Ibidem, p. 49).
específica categoria da criação artística e um conjunto de textos resultantes desta actividade criadora.”
(1993, p. 10). Da forma como o conceito de poesia e literatura distinguiram-se, acrescenta: “Dentre de tal
condicionalismo, não era possível impor a designação genérica de poesia a uma produção literária em que
avultavam cada vez mais, quer sob o aspecto quantitativo, quer sob o aspecto qualitativo, os textos em
prosa. Poesia passou a designar prevalentemente os textos literários que apresentavam determinadas
características técnico-formais ou então passou a designar uma categoria estética susceptível de qualificar
quer obras artísticas não-literárias, quer determinados aspectos e manifestações da natureza ou do ser
humano. Tinha de se adoptar portanto outra designação genérica mais extensiva. Essa designação foi
literatura.” (Ibidem, p. 12-13).
38
Na extensão desta investigação utilizar-se-á, a partir deste passo, o termo literatura em substituição ao
poético, usado por Aristóteles.
73
O romance a que o ensaísta italiano refere-se é de sua própria autoria, O nome da
Rosa.39 Nesse sentido, fundindo, portanto, literatura e história, ainda assim a capacidade
de divertir não está anulada, porque o entendimento caminha no sentido de que a
história também pode ser divertimento: “Um século depois de apagar-se, recolhida atrás
das opacidades da erudição, a história séria fazia assim sua entrada no campo das
produções literárias de grande consumo.” (DUBY, 1993, p. 108). Os pensamentos de
Eco (1985) e Duby (1993) encontram-se na perspectiva de que o primeiro se propõe a
escrever um romance histórico e o segundo a escrever uma história como romance,
história como narrativa em que a expressão literária está inalienavelmente incrustrada.
Claro está que se a distinção proposta na Poética de Aristóteles balizou, por muito
tempo, os caminhos teóricos para o debate das relações entre literatura e história. Essas
veredas vêm sendo reavaliadas à medida que a expansão dos estudos históricos no
século XX, sobretudo na segunda metade, questiona a distinção que há tempos inquieta
os teóricos da literatura. No entanto, o que pode parecer uma insistência despropositada,
posto que seja pacífico que a antiga dicotomia (literatura versus história) já não suporta
a ruptura das fronteiras a que a modernidade nos obriga, é, ao contrário, necessário
quando se observa que há muito que problematizar nas relações entre literatura e
história. É da própria complexidade da linguagem que representa (ou imita, se se
preferir), que advém a polêmica contenda, das mais atuais no aspecto teórico:
39
Se, como esclarece Umberto Eco, a trama de O nome da Rosa é constituída sobre as bases de um
romance policial (“Só me restava escolher [...] a mais metafísica e filosófica, o romance policial”; 1985,
p.45), o processo de construção da narrativa obedece aos modelos do romance histórico: “Na verdade,
não decidi apenas contar sobre a Idade Média. Decidi contar na Idade Média, e pela boca de um cronista
da época.” (Ibidem, p. 19). Mais adiante, esclarece os meandros da escritura do romance, discorre sobre
as especificidades do romance histórico, em que diz do próprio livro: “a Idade Média é a nossa infância
no estilo de Excalibur. Nesse caso, o problema é outro e não pode ser ignorado. Que significa escrever
um romance histórico? Creio que existem três maneiras de contar o passado.” (Ibidem, p. 62). Em outro
passo do ensaio, afirma: “Nesse sentido certamente eu queria escrever um romance histórico” (Ibidem, p.
64).
74
Hoje se derivou para a história do cotidiano, história das
sensibilidades. Há muitos nomes que podemos dar a esse esforço, que
acho notável, de enriquecer os conteúdos mesmos. Mas, apesar desse
reconhecimento, eu ainda tenderia a dizer que a ficção, incluindo o
que pode ser, incluindo o imaginário, incluindo a poiesis, é diferente.
(BOSI, 2001, p. 140).
Se, como sublinha Alfredo Bosi, há uma salutar diferença entre o discurso da
literatura e o registro da história, por outro, é ponto pacífico que o século XX
experimenta uma tendência ao apagamento das fronteiras entre os gêneros40 históricos e
literários. Por conseguinte, em função do caráter interdisciplinar em que esta
investigação se fundamenta, é produtivo abandonar, momentaneamente, a contenda pelo
nosso lado de conforto – o dos estudos literários – e lançar-se pela seara da teoria e dos
métodos da história a fim de pavimentar o caminho para o desenvolvimento desta crítica
sobre a obra de Raul Brandão.
Pode-se indubitavelmente sublinhar que a ficção penetrou os domínios do
discurso histórico, esse “discurso sobre o passado [que] é uma elaboração presente de
um determinado sujeito sobre os factos passados” (SILVA, 1989, p. 24), fato patente
desde que, no ocidente, interessou-se por ambientar as narrativas em tempos pretéritos.
Resulta daí, também, a história penetrar a seara da ficção. Dos mais significativos
exemplos a que se pode remeter é o caso da produção histórica de Michelet – “poeta da
mais orgânica criação político-moral do Ocidente” (LOURENÇO, 1988, p. 94) – para
quem a história é “o espaço mágico da ressurreição do passado, que só pode ser atingida
através do encontro com o poético” (Ibidem, p. 25), ou ainda o de Georges Duby
(1993), que, em A história continua, dá a conhecer notável labor (meta)historiográfico,
compondo a sua escrita da história e enlaçando-a ao discurso literário. Se o ensaísta
40
Walter Mignolo suscita que a narrativa histórica possa ser considerada como um gênero particular de
narrativa: “E há alguma dúvida de que a questão entre literatura e história é um caso de fronteiras e de
configurações discursivas (ainda que não adequadamente) identificadas como “gêneros”? (MIGNOLO, p.
2001, p. 126).
75
francês da nova história traça um percurso híbrido, na confluência de uma teoria da
história e do registro autobiográfico de seu ofício de historiador, destaca ainda que os
livros de história caíram no gosto do grande público leitor, tornando, eles próprios,
objetos de entretenimento: “Um século depois de apagar-se recolhida por trás das
opacidades da erudição, a história séria fazia assim sua entrada no campo das produções
literárias de grande consumo.” (DUBY, 1993, p. 108).41
Com efeito, essa concepção moderna da escrita da historia tornou-se possível,
sobretudo, pelo esforço intelectual de um grupo de historiadores, que, reunidos em torno
da revista Annales d`histoire économique et sociale, fundada em 1929 por Lucien
Febvre e Marc Bloch, preocupou-se, entre outros aspectos, com “o problema da
dialética do tempo curto e do tempo longo” (VOVELLE, 2005, p. 123), tentativas de
construções teóricas que sinalizaram a abertura de novos paradigmas da história e dos
próprios estudos da área, como assevera Jacques Le Goff, ao assinalar que a nova
história almeja ser uma
História dos homens, de todos os homens, não unicamente dos reis e
dos grandes. História das estruturas, não apenas dos acontecimentos.
História em movimento, história das evoluções e das transformações,
não história estática, história quadro. História explicativa, não história
puramente narrativa, descritiva – ou dogmática. História total, enfim...
Esse programa da história nova, que tem mais de dois séculos, vai ser
retomado por Chateaubriand e Guizot na primeira metade do século
XIX. (2005, p. 52).
Essa nova concepção pressupõe que o historiador desempenha uma ação
interventiva na escrita da história e que esta é, pois, um tipo particular de escrita,
41
Registra Georges Duby: “Num ensaio de ‘ego-história, já expus em outra ocasião o meu itinerário
profissional, mas muito brevemente, limitando-se às circunstâncias, às quais não preciso voltar aqui, e
sem falar verdadeiramente do meu ofício. Pois é do que falarei agora, sobriamente, familiarmente.
Falarei, melhor dizendo, do nosso ofício, pois vamos todos pelo mesmo caminho, nós, os historiadores,
em companhia dos especialistas de outras ciências humanas. [...] O mesmo vento nos empurra, e
geralmente navegamos em conjunto. Em conseqüência, esta história não é apenas minha. É a história, que
se estende por meio século, da escola histórica francesa.” (1993, p. 7-8). Quem pode contestar o valor
histórico dessa escrita?
76
enquanto a história é, ela própria, escritura, por vezes se aproximando do ensaio, gênero
incerto em que a literatura rivaliza com a análise (cf. BARTHES, 2004b). Compreender
o papel da École des Annales na formulação de novos paradigmas na concepção da
história é fulcral para que se possa enxergar o fato de que entre o texto literário e o texto
histórico há certo elo inolvidável. Peter Burke assevera que uma “definição categórica
não é fácil” (1992, p. 10), que “a nova história é a história escrita como uma reação
deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional” (Ibidem); que representa uma renovação na
percepção de todo o campo da história e da historiografia, rompendo com o que
“poderíamos também chamar [...] de a visão do senso comum da história, não para
assinalar que ele tem sido – com muita freqüência – considerado a maneira de se fazer
história, ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do
passado” (Ibidem).
A oposição das ciências às letras parece frágil. Todavia, é nessa corda-bamba que
a Teoria da História vem nutrir suas reflexões, mostrando as contradições e
inconsistências de um saber que é antigo como Heródoto, o “primeiro narrador grego”
como lembra Walter Benjamin (1994, p. 203). Saber que se reinventa com frequência,
faz-se e desfaz-se, recua e avança, mas que apenas na primeira metade do século XIX
adquire status de disciplina acadêmica. Heródoto inaugurava, mesmo sem o desejar ou
ter ciência de que o fazia, “essa História política que é, por um lado, uma histórianarrativa e, por outro, uma história dos acontecimentos, uma história fatual (sic), teatro
de aparências que mascara o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores
e nas estruturas ocultas” (LE GOFF, 2005, p. 40). Heródoto contribuiu para essa história
ao assentar a primeira pedra da história-monumento, tecendo a história dos grandes
feitos.
77
Por sua vez, Walter Benjamin ajuíza: “O historiador é obrigado a explicar de uma
ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em
representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o que faz[em] [...] os
cronistas medievais, precursores da historiografia moderna” (1994, p. 209). Desta
maneira, o narrador da história atua de forma ativa sobre o texto histórico, não mais se
contentando em contemplar os fatos do passado, porque se dá conta de que já não é
mais possível “realizar o velho sonho do historiador positivista: assistir passivamente à
produção ‘objetiva’ da história pelos documentos” (LE GOFF, 2005, p. 70). É
proveitoso relembrar Adorno (2003, p. 55), quando se refere ao romance
contemporâneo: “Do ponto de vista do narrador, isso é uma decorrência do
subjetivismo, que não tolera nenhuma matéria sem transformá-la, solapando o preceito
épico da objetividade”. Escrever a história é, mesmo a contragosto, intervir.
Nessa esteira, pode-se dizer que o historiador contemporâneo é aquele que antes
ou depois dos Annales contesta o modelo rankiano de história monumental e estática,
que atua na cena da história porque a tenta recriar, porque a filtra, porque busca
encontrar não somente uma causa-efeito linear como leitor que só percebe a primeira
camada do texto, mas que é capaz de conectar os pequenos tecidos da história, indo e
voltando ou cobrindo as lacunas, quase sempre se apropriando do dever de interpretar,
fugindo ao olhar inocente do historiador arrogante: “o historiador precisa ‘interpretar’ o
seu material, preenchendo as lacunas das informações a partir de inferências ou de
especulações” (WHITE, 2001, p. 65). A mera existência dos fatos não faz a história, e,
por isso, “torna[-se] imperativo considerá-los na indissociável coesão que os reúne se
queremos compreender o funcionamento do sistema” (DUBY, 1993, p. 13).
Ao considerar a história como tipo particular de narrativa, em que a necessidade
da interpretação se faz patente, vêm à mente os modelos esboçados por Northrop Frye e
78
explicados por White (2001). O trabalho do historiador é, portanto, dotar a massa
disforme e amorfa da história de um suporte em forma de texto; ou, de forma mais
precisa, de um gênero ou moldura em que o texto cumpra o papel que lhe é imbuído.
Frye enxerga na produção dos historiadores oitocentistas íntima relação entre gêneros
literários e intenção historiográfica, como se, ao tomar a forma do romance, da tragédia,
da comédia ou da sátira, a história neles se emoldurasse, servindo-se da literatura como
fio norteador.
Há diversos modos de urdir os fios do texto histórico, que vão além da escolha do
gênero em que se vai concretizar o relato. Implica necessariamente “preencher as
lacunas do registro por meio de uma dedução dos fatos que ‘devem ter ocorrido’, a
partir do conhecimento dos fatos que se sabe terem efetivamente ocorrido” (WHITE,
2001, p. 76). Michelet narra a Revolução Francesa na forma do romance enquanto
Tocqueville representa o mesmo período na forma da tragédia: feituras diferentes
porque os dois historiadores têm concepções distintas sobre os caminhos da história
europeia – caminhos que contribuíram para desembocar em 1789 – e também os que se
esboçaram a partir da data referencial. Ora, ao escolher o romance e não a tragédia,
Michelet assume o caráter interpretativo de sua historiografia. Não se afirma, entretanto,
que pensar o texto histórico como artefato literário é prerrogativa do historiador francês
– muito ao contrário. Todavia, menos ainda se deve afirmar que o exemplo de Michelet
não é apropriado, uma vez que pode ser considerado como propositor de modelo que
foge às regras da ciência e que, portanto, aproxima-se dos ideais literários. Avulta saber
que “a maioria das seqüências [...] pode ser contada de inúmeras maneiras diferentes, de
modo a fornecer interpretações diferentes daqueles eventos e a dotá-los de sentidos
diferentes” (Ibidem, p. 101). O historiador estabelece contato com registros escritos,
orais, pictóricos, mas eles não falam por si. É preciso interpretá-los, moldá-los,
79
aproximando, em nossa contemporaneidade, a escrita da história ao processo de
elaboração do ensaio.
A história da França não é intrinsecamente heroica, irônica ou trágica, assim como
a história do Brasil e da chegada dos europeus às terras ameríndias não é
necessariamente a história dos vencedores ou a história dos vencidos, a história da
vitória do modelo civilizacional sobre a cultura da barbárie e da ignomínia. No entanto,
os que escrevem esse período da história – o das grandes navegações – estão investidos
de um olhar europeu: ou porque são europeus, ou porque se formaram em escolas em
que o pensamento europeu, emergente na forma do etnocentrismo, vigora. Silviano
Santiago declara: “Vemos, portanto, que as descobertas [...] e a posterior ocupação das
terras [...] serviram não só para alargar as fronteiras visuais e econômicas da Europa,
como também para tornar a história europeia em História universal, História esta que,
num primeiro momento, nada mais é do que estória, ficção, para os ocupados” (1982, p.
16). Ao tratar da unidirecionalidade do relato histórico, o crítico brasileiro põe o dedo
na questão da interpretação da história. Contudo, Michelet não é caso isolado. Também
os annalistes, no exercício de narrar a história – que é, afinal, o ato de pôr a linguagem
em movimento para construir modelos (narrativas) possíveis daquilo que se quer retratar
–, recorrem ao imaginário.
Essa ruptura, da qual a nova história é uma das mais significativas perspectivas de
se enquadrar o objeto histórico, parece ecoar – ou ainda produzir-se paralelamente – na
filosofia da história de Walter Benjamin e na obra de Raul Brandão, ambos pensadores
do início do século. Benjamin e Brandão operam fraturas no modo positivista de
compreender a história e sua narrativa, mesmo que o façam por caminhos diferentes
mas com análoga intuição de que é preciso narrar uma história dos vencidos, em
desfavor dos vencedores, portanto. Nessa esteira, El-Rei Junot é o texto de partida para
80
que se evidencie de que forma matéria histórica e expressão literária se articulam de
modo a marcar significativa ruptura com os padrões estético-literários e historiográficos
do século XIX.
2.2. Intermezzo
Disposto numa plêiade de possibilidades de estruturação, não é de se estranhar
que Umberto Eco vislumbre três formas de narrar o passado, matéria da qual se
constitui um dos mais conhecidos gêneros literários que articulam matéria histórica e
expressão literária. Opto por problematizar esse tipo particular de romance porque,
como é desenvolvido ao longo deste capítulo, embora a escritura de Raul Brandão
(sobretudo no El-Rei Junot) não possa ser definida pelo gênero ora exposto, é plausível
que seja considerada por alguns estudiosos como manifestação particular que tem no
romance histórico um ponto de articulação teórico-crítico.
O ensaísta italiano distingue modos diferentes de construir o passado nas
molduras da narrativa literária: o primeiro, lança mão “[d]o passado como cenografia,
pretexto, construção fabulística, para dar curso livre à imaginação” (ECO, 1985, p. 62);
o segundo, como texto que “escolhe o passado ‘real’ e reconhecível [...] para torná-lo
reconhecível [e povoado] [...] de personagens já registrados na enciclopédia”, fazendolhes “realizar certar ações que a enciclopédia não registra [...] mas que também não a
contradizem” (Ibidem, p. 62-63); e o último modo, a que define como romance
histórico, atribuindo ao desempenho das personagens o papel primordial na
configuração do gênero: “O que os personagens fazem serve para compreender melhor a
história, aquilo que aconteceu. Acontecimentos e personagens são inventados,
entretanto dizem sobre a Itália da época coisas que os livros de história disseram com
tanta clareza.” (Ibidem, p. 63-64). O conceito de Umberto Eco sobre romance histórico
81
sinaliza na direção que György Lukács expõe na sua ensaística, pautando-o na produção
literária de Walter Scott como modelo inicial do romance histórico no contexto europeu:
Ambos os críticos evidenciam a função estratégica das personagens no
âmbito da composição: É óbvio que Scott não aplica essa forma de
figuração apenas às grandes personagens representativas,
historicamente autênticas e universalmente conhecidas. Ao contrário,
em seus romances mais importantes, o papel de destaque é
desempenhado justamente por personagens históricas desconhecidas,
históricas apenas em parte ou puramente fictícias. (LUKÁCS, 2011, p.
55).
O romance histórico, tanto sob o ponto de vista de Umberto Eco, quanto pelo viés
de Lukács, partilha tacitamente que não se pode narrar um passado recente.42 Ao menos,
esta é uma das prerrogativas fundamentais do que se concebe por romance histórico
tradicional, admitindo-se, portanto, que à maneira do romance, esta forma complexa que
se reinventa constantemente,43 o romance histórico não se funda na homogeneidade da
forma com que o passado é representado. À parte as especificidades de O nome da
Rosa, em que o tempo da enunciação e o tempo da ação estão ambos recuados no
passado (mas, mesmo assim, é um Adso velho que narra os acontecimentos decorridos à
época da juventude), importa observar, com Lukács, que o romance histórico “não se
trata do relatar contínuo dos grandes acontecimentos históricos, mas do despertar
ficcional dos homens que o protagonizaram.” (LUKÁCS, 2011, p. 60).
No âmbito da literatura portuguesa, Alexandre Herculano é quem primeiro se
projeta pela escrita na forma de romance histórico. No conto “O Bispo Negro (1130)”,
42
Esclarece Maria de Fátima Marinho, quando trata da diegese do romance histórico de Walter Scott: “O
hiato de sessenta anos marcaria assim a distanciação suficiente não só para criar uma boa perspectiva
crítica, mas também para afastar o momento da enunciação (que idealmente seria também, grosso modo,
o da leitura) do tempo em que decorre a acção.” (1999, p. 11).
43
Da multiplicidade de forma que admite o romance no século XX, justamente quando Raul Brandão
escreve El-Rei Junot, assevera Jean-Yves Tadié: “O romance no século XX vai de uma afirmação a uma
negação, de uma presença amontoadora a uma ausência total, de um imenso ruído a um silêncio quase
completo. Duas tendências parecem compartilhar o género ao longo do século: uma consiste em abalar as
convenções objectivas da ficção para dar à voz do autor uma extensão proliferante; a outra, pelo
contrário, abole essa fala para anunciar a morte do escritor e talvez da escrita.” (1992, p. 11)
82
mais que narrar a tensão entre o príncipe Afonso Henrique e a Santa Sé, personificada
na figura do cardeal D. Bernardo, e que resulta na eleição de outro bispo, este obediente
às ordens do intempestivo governante, Herculano assume a preocupação em resgatar a
história de Portugal, tornando-a literária e, por conseguinte, acessível ao leitor com o
intuito de restituir a verdade dos fatos:
Se a história se contenta com o triste espetáculo de um filho
condenado ao exílio aquela que o gerou, a tradição carrega as tintas do
quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a arrastar
grilhões no fundo de um calabouço. A história conta-nos o facto; a
tradição os costumes. A história é verdadeira, a tradição verosímel; e o
verosímel é o que imporá ao que busca as lendas da pátria.
(HERCULANO, 1998, p. 247-248).
A escritura de Alexandre Herculano, na busca por recuperar o passado distante de
Portugal, engendra o projeto estético do romantismo português. O imaginário mítico da
nação, consolidado no oitocentos, constitui-se, em grande parte, graças aos esforços
despendidos pelo romancista, que julga, com sua escrita interpretativa (e de bases
documentais), a possibilidade de que a história portuguesa seja resgatada, restituindolhe à monumentalidade que a historiografia positivista persegue. Remexendo entre o
factual e o ficcional, corrobora o princípio aristotélico, segundo o qual a distinção
fundamental entre os dois gêneros (i.e, literário e histórico) é a de que “diferem, sim, em
que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”
(ARISTÓTELES, 1992, p. 53, loc. cit.). Herculano intentava que o leitor absorvesse o
texto como restituidor da verdade histórica. O projeto histórico que o movimenta é, em
princípio e grosso modo, o intento que também moverá Oliveira Martins: debruçar-se
sobre o fato como categoria fundamental da historiografia, buscar a relação de causa e
efeito nos acontecimentos, narrar, na linearidade possível, a história (in)interrupta da
nação lusitana desde a fundação, e, quase sempre, buscar as origens do povo português
83
antes mesmo do advento de Portugal como primeiro Estado moderno europeu. A
diferença fulcral reside em que o olhar romântico enaltece a nação, busca “descobrir o
perfil do nosso rosto, a cor da nossa aventura no conjunto da aventura maior da História,
no grande espelho [...] da Civilização” (LOURENÇO, 1988, p. 98), ao passo que o filtro
realista busca no fluxo do passado as causas para a decadência instalada44. Sobre o viés
nacionalista de produção historiográfica do novelista do romantismo, observa-se:
Quando, no século XIX romântico, Alexandre Herculano investe na
história e na ficção como formas de revigorar o seu presente através
de um projecto de restauração do passado, elege, entre muitos outros,
esse tempo da Dinastia de Avis para aí buscar uma das casas
fundadoras da nacionalidade que é o próprio Mosteiro da Batalha.
Historiador e ficcionista ele próprio, escreve o texto que fará do
monumento arquitectónico a metáfora concreta da história nacional
nas lutas pela independência portuguesa. Mais que isso, transforma o
monumento no livro em que se inscreve a história do artista.
(CERDEIRA, 2000. p. 22-23).
Fato é que, na escrita de Lendas e narrativas – e poder-se-ia dizer que em quase
toda a sua produção –, a expressão literária se sobrepõe à matéria histórica45, residindo a
estruturação do texto no desejo de restaurar o passado – monumental, como lembra
Teresa Cristina Cerdeira (2000). Para fazê-lo, preenche as lacunas deixadas pelos que
escreveram o tempo passado na nítida direção de interpretar a história portuguesa como
uma narrativa heroica. O conto “O Bispo Negro (1130)” é seminal quando se pensa na
formulação do herói no romance histórico de Alexandre Herculano, posto que a
figuração do príncipe leva ao entendimento de que é graças ao empenho e força política
de Afonso Henriques que o Estado pôde nascer.
44
Ao longo da análise de El-Rei Junot esboça-se o cotejo entre Oliveira Martins e Antero de Quental,
lembrando que o primeiro deve ao segundo a visão pessimista da história portuguesa como Estado
decadente no contexto peninsular, também em decadência.
45
Sobre o componente intrinsecamente efabulativo na sua composição histórica, Maria de Fátima
Marinho sublinha: “Se, por um lado, o estudo da História apaixonou intelectuais românticos, ao ponto de
Herculano, por exemplo, ter percorrido o país à procura de documentos que esclarecessem a vida
medieval portuguesa, por outro, não é menos verdade que uma certa efabulação com base histórica, isto é,
a criação de universos, simultaneamente fictícios e referenciais, foi também uma constante de um período
específico do Romantismo europeu e português.” (1999, p. 53).
84
A orientação histórica ensejada no texto literário reforça as bases para o
recrudescimento do absolutismo monárquico, demonstrando que é no fortalecimento do
poder régio que também se fortalece a nação. Como se depreende, o romance histórico
de Herculano privilegia a representação de acontecimentos do passado distante,
propositadamente esquecendo-se do descalabro trazido pela Dinastia de Borgonha. O
texto do romancista romântico investe na individualização do herói como categoria
narrativa capaz de dar unidade e sentido à restauração do passado. Apenas
representando um passado distanciado parece ser possível intervir de tal modo na
configuração da personagem que, ao fazê-lo, o romancista não comprometa a “ilusão da
verdade num mundo inventado” (MARINHO, 1999, p. 35). Talvez seja esse, aliado à
orientação de dignificação do passado nacional, o motivo que direcione Herculano à
escrita de um passado medieval. Também Umberto Eco (1985) elegeu a Idade Média
como objeto de sua reflexão, aliando à vantagem conferida pelo distanciamento a
pesquisa histórica meticulosa de que se utilizou para construir os ambientes, as
personagens, o próprio modo de pensar naquele tempo das catedrais46. Esta
configuração corresponde ao modelo tradicional do romance histórico, mas este não é,
como bem salienta Eco (1985), a única estrutura possível, mas pode ser o ponto de
partida para o estudo de El-Rei Junot.
Lukács ensina que o romance histórico inglês, notadamente o de Walter Scott,
busca sempre o caminho do meio como forma de representar o equilíbrio político e
econômico da Inglaterra ao longo de séculos em que a Europa mergulha em crises e
guerras (“O ‘herói’ do romance scottiano é sempre um gentleman inglês mediano[.]”;
LUKÁCS, 2011, p. 49). A narrativa de El-Rei Junot, entretanto, parece configurar-se
como proposta de leitura historiográfica dos extremos, repleta de momentos dramáticos,
46
A ambientação referida contribui para a constituição do sentido de “colorido local”, como intui György
Lukács (2011, p. 69), ao qual se pode definir como “um simulacro do passado, mas que nunca o pode
nem pretende reproduzir.” (MARINHO, 1999, p. 36).
85
assim como, na sua constituição, abandona o protótipo do herói do romance romântico,
individualizado e psicologicamente lapidado. As personagens da narrativa, quando
figuradas de forma precisa, são objetos do escárnio do narrador, que deles lança mão na
busca de um padrão eminentemente histriônico, beirando o deboche. Na sua escritura,
os monumentos são abalados, as bases do edifício nacional soçobram, restando ao
escritor retratar o homem português em seus conflitos. De certa forma, a escritura de
Raul Brandão afasta-se de um marco institucional de concepção da história para abraçar
os agentes de uma história em ruínas. Por isso, não me parece que se possa considerar
El-Rei Junot romance histórico, porque não o é, não ao menos nos moldes que a teoria
do romance concebeu.
Se, no romance de Walter Scott, “a necessidade histórica é sempre um resultado”
(LUKÁCS, 2011, p. 79), a narrativa brandoniana abre-se para a necessidade histórica
como pressuposto, ponto de partida: à história como ornamento sobrepõe-se a história
como forma, como matéria dramática. Raul Brandão tem por intuito narrar os agentes
do período das invasões napoleônicas, desmonumentalizando a história, buscando a
ruptura com o viés positivista que norteia a prática historiográfica no século XIX. Sem
propor-se a uma narrativa da luta de classes, o escritor estrutura El-Rei Junot em torno
“[d]o conflito de forças sociais em seu ponto mais extremo e agudo” (Ibidem, p. 125),
qual seja: a tensão entre vencedores e vencidos. Daí que seja proveitoso observar o
“nexo na vida entre o conflito dramático e a convulsão social” (LUKÁCS, 2011, p. 127)
presente na obra. A forma dramática é eminente conhecida de Raul Brandão, seja na
ordem específica do teatro, seja na teatralização a que os textos se submetem. No
entanto, como pensar um conceito de drama histórico? Ou seria mais propício apontar a
história como drama, a história como teatro de um mundo em crise?
86
O conceito de drama histórico, “expressão por que são comummente (sic)
apelidados os dramas da autoria dos chamados românticos da primeira geração e que
tentaram
dar
um
qualquer
enquadramento
histórico
às
tramas
tecidas”
(VASCONCELOS, 2003, p. 45), é, certamente, menos conhecido que o de romance
histórico; seja porque os estudos literários elegeram a forma do romance entre as
prioridades de suas análises, seja porque o drama é um conceito que se avizinha do
teatro enquanto gênero literário específico, seja porque corriqueiramente se confunde
com “dramalhão”47, forma exagerada, que de alguma maneira remete à imagem
distorcida que se tem do barroco na literatura. A rigor, e para fins de baliza estéticoliterária, o drama histórico encontra em Almeida Garrett, com o Frei Luís de Sousa,
modelo mais bem lapidado do gênero em Portugal, como explica Luiz Francisco
Rebello: “A uma primeira, e linear, leitura, Frei Luís de Sousa é um drama histórico no
sentido mais abrangente da expressão, uma vez que na sua base estão factos e pessoas
reais extraídos de um passado ‘comparativamente recente”. (2007, p. 38). Deve-se
acrescentar, a fim de esclarecer os limites a que o autor do romantismo se impôs na hora
de resguardar-se quanto às exigências de objetividade e veracidade históricas
perseguidos à época, que Almeida Garrett opera o texto dramático “suprindo lacunas ou
alterando alguns dados, sempre que a necessidade da efabulação dramática a isso
compelia” (Ibidem, p. 38-39), com o fito de evidenciar a “consciência da nossa
fragilidade histórica” (LOURENÇO, 1988, p. 85). Daí que o autor construa uma obra
que é “fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser
imaginário (ou mesmo fantasmagórico) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e
lugar na História.” (Ibidem).
47
Para maior esclarecimento sobre o subgênero conhecido como “dramalhão”, observar a valiosa
contribuição de Luiz Francisco Rebello (2007) em estudo sobre o drama histórico em Portugal.
87
György Lukács também se debruça sobre o conceito de drama histórico,
reconhecendo-lhe importância entre as formas literárias do século XIX:
Entretanto, justamente em razão do novo sentido atribuído à história
muitos escritores puderam dar a suas figurações ficcionais uma tal
quantidade de detalhes empíricos, de fatos simples, que a necessidade
histórica, em sua plenitude, só podia aparecer de modo abstrato. Pois
toda potência ou necessidade histórica figurada no drama é abstrata,
em sentido ficcional, quando não se incorpora de modo adequando e
evidente em homens concretos, em destinos concretos de seres
humanos. (LUKÁCS, 2011, p. 139).
Da forma exposta, o ensaísta húngaro aponta o drama histórico como forma – é
delicado atribuir-lhe o estatuto de gênero, porquanto salienta Ana Vasconcelos que esse
tipo de produção, em que predomina a expressão literária sobre a matéria histórica,
resulta “da confluência de duas componentes – história e Ficção – que, à partida, se
situam em esferas opostas e de difícil articulação48” (VASCONCELOS, 2003, p. 26) –
abstrata em que, à semelhança do romance histórico, a matéria histórica serve de
ornamento ao texto literário. No entanto, o texto de El-Rei Junot não se quer matéria
abstrata, pois é sobre a história que essa escrita se espraia. Estamos, portanto, diante de
caso singular na literatura portuguesa do início do século XX, em que se pode partir do
pressuposto de que Raul Brandão constitui sua prosa historiográfica nas raias da
expressão literária, não o contrário. A parte isso, a narrativa brandoniana está repleta de
valor estético e é sobretudo por sua qualidade literária que importa à investigação.
48
Frederic Jameson argumenta na mesma direção, imputando ao romance histórico a necessidade de
suave articulação entre o histórico e o ficcional: “O romance histórico não deve mostrar nem existências
individuais nem acontecimentos históricos, mas a intersecção de ambos: o evento precisa trespassar e
transfixar de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e seus destinos. A esse respeito, gosto de
citar o grande poema de Brecht: ‘Ó vicissitudes do tempo, vós, esperança do povo!’etc.” (2007, p. 92).
Desta forma, pode-se caminhar, com mais segurança, na distinção entre romance histórico e drama
histórico.
88
2.3 El-Rei Junot, a história como drama
Neste olhar sobre El-Rei Junot, dentre as abordagens que se fazem necessárias, a
composição estrutural da obra não é menos interessante. O escritor de Guimarães
construiu a narrativa na forma de dez capítulos, em que se podem ler não apenas
quadros da história portuguesa, mas também uma análise acurada do cenário europeu
nos anos imediatamente posteriores à Revolução Francesa. Para tanto, não abriu mão de
erigir posicionamentos críticos e interpretativos a partir do subsídio de toda a plêiade de
papéis com que se depara no decurso da pesquisa histórica.
Convém assinalar que Raul Brandão utiliza o primeiro capítulo da obra, a que
atribui o título de “Introdução”, para pavimentar o aparato teórico que sustenta a
concepção de história que norteia o livro. Não obstante se leia que “A história é dor, a
verdadeira história é a dos gritos” ou, ainda, que “Todo o século XVIII resume-o na luta
da Revolução contra fórmulas arcaicas” (BRANDÃO, 1982, p. 19), Guilherme de
Castilho (1982), em estudo introdutório à obra, reafirmando opiniões exaradas quando
da publicação de Vida e Obra de Raul Brandão, como se verá mais adiante, concebe ElRei Junot mais como biografia49 que literatura em que a história se infiltra. Aliás, na
direção oposta à que sustento, Castilho afirma: “De facto, se na história da nossa
literatura existe escritor em que se congreguem os traços marcantes do que se poderia
chamar o anti-historiador, esse escritor é por certo Raul Brandão.” (CASTILHO, 1982,
p. 9-10). Não se deve enveredar por uma leitura crítica que distancie o escritor das suas
faculdades de historiador [ou de, no mínimo, severo admirador da matéria histórica,
sobre a qual se debruça, mesmo que de forma ainda não profissional]50, posto que, como
49
Guilherme de Castilho (1982, p. 12) sugere, sem se aprofundar no tema, que El-Rei Junot pode
funcionar como biografia do general francês a serviço das tropas napoleônicas, como se, desse modo,
solucionasse a tensão que o ensaísta enxerga entre a matéria histórica e a escrita literária.
50
Mais adiante, ver-se-á que, por pouco, Raul Brandão não abraçou a historiografia como objeto
privilegiado de sua ocupação, tornando-se historiador a serviço do governo de Portugal.
89
elucidado ao longo da primeira seção deste capítulo, as fronteiras entre literatura e
história são fluidas e, em todo o caso, a presença da matéria histórica não elimina as
potencialidades literárias no bojo do texto que se inscreve.
A recepção que o livro mereceu quando de sua publicação permite ainda verificar
que os leitores de El-Rei Junot não identificaram no hibridismo de sua composição fatos
que por si sustentassem polêmicas de ordem genológica. Ao contrário, alguma crítica
veiculada em jornal de grande circulação dá a impressão de que Raul Brandão se
beneficia do estatuto de escritor (de textos literários) da mesma forma que tenta se
firmar como historiador, aproximando-se de Michelet, cuja historiografia se avizinha da
forma romanesca:
Dirão os que têm da História a velha noção hierática e sisuda, que
Raul Brandão não faz história, porque faz romance. Mentira. As
personagens que lhe dançam entre os dedos enolavinhados aparecem
tais como são. Não se lhe encobrem as mazelas. Mas também não se
lhes empanam as virtudes. A História deve ser assim – justa. [...] Há
nas páginas deste livro um tal sabor a Michelet que faz bem ver como
ainda em Portugal há quem saiba olhar bem o passado e tratá-lo e
interpretá-lo com grandeza. 51
Ainda no que diz respeito à ideia de história que se delineia no capítulo
introdutório de El-Rei Junot, distingue-se o modo como Raul Brandão concebe a
história a partir de um processo permanente de revolução. É certo que os estudos
históricos também foram impactados com os acontecimentos nos anos finais do século
XVIII, em Paris, sobretudo porque ficou patente aos historiadores que o abalo do
Antigo Regime, o soçobrar do edifício social e político que vinha regendo as relações
sociais na França (ainda em parte herdeira do rígido sistema de classes que vigorou
durante o feudalismo), implicou pensar a escrita da história não mais como suave correr
51
A afirmação foi extraída de recorte de jornal que integra o espólio de Raul Brandão, aparentemente
registrado sob a cota D2/39. É preciso sublinhar que não foi possível a leitura precisa do código referente
ao espólio.
90
do fio dos acontecimentos, mas como série de abalos, desordens e transformações que,
embaraçando o novelo da duração,52 demonstram que o homem não possui poder sobre
a história, não a domina e não a sujeita, daí que ganhe força a ideia de uma histórianatureza.53
Em 1789 não é um trono que cai, não é só o mundo exterior que
desaba – é o mundo interior que rui para sempre. Até Goethe, o frio
Goethe, se comove; Klopstock reza, e Kant, o de ferro, di-lo Michelet,
sai do seu caminho (toda a vida, às mesmas horas, como um pêndulo,
passeia absorto no mesmo sítio) sai do seu caminho e do seu sistema e
interroga, pergunta, quer saber. (BRANDÃO, 1982, p. 31).
A imagem que Raul Brandão dá a conhecer, na esteira de sua obsessão pela ruína,
põe em relevo os rumos que a historiografia, sobretudo a de origem francesa, seguiu nos
anos seguintes aos da revolução burguesa. Se, de um lado, havia os historiadores
apocalípticos, por outro recrudesceu a compreensão de que era preciso defender a idéia
de progresso, divergindo, inclusive, da abordagem histórica no texto brandoniano, para
quem a matéria não pode ser abordada sob o partidarismo do positivismo:54 “A defesa
do progresso após a Revolução Francesa tinha de resultar necessariamente em uma
concepção que demonstrasse a necessidade histórica da Revolução Francesa”
52
Para não alongar na discussão do conceito, importa explicitar que o utilizo de acordo com as
proposições de Marc Bloch (2001, p. 60), nas quais se permite depreender que o tempo é apenas a
percepção que o ser humano tem do fenômeno da duração.
53
Sobre este conceito, a presente investigação deter-se-á apenas no terceiro capítulo desta investigação,
quando da realização de um drama barroco alemão e da teoria benjaminiana da história.
54
Embora esta tese dialogue com as teorias e métodos da história, não é sobre os estudos históricos que
assenta. Daí que se traga, neste espaço, o comentário de Georges Duby sobre a história e o positivismo:
“Quando comecei meus estudos universitários, a história ainda não se desvinculara da missão messiânica
que começara a assumir na Europa muito cedo, já no século XII, quando ainda estava a serviço de uma
teologia, quando, impressionados com o permanente recuo das terras incultas, a extensão das
aglomerações urbanas, o enriquecimento rápido dos negociantes e a audácia dos construtores de igrejas,
os sábios que meditavam sobre o curso dos acontecimentos na clausura dos mosteiros convenceram-se
pouco a pouco de que o mundo criado não é tão mau, de que se torna cada dia mais radioso, pelo esforço
dos homens, e de que o gênero humano não é arrastado aos solavancos, em meio a suores e angústias, em
direção às glórias e tormentos sobrenaturais, mas que vai em frente, num passo firme, pelos caminhos da
Terra. Encontrava-se aí o gérmen de uma crença num progresso material que é necessário orientar, para
que conduza à felicidade. Este gérmen, plantado durante a primeira fase do crescimento econômico da
Europa, amadureceu, e ao ter início a segunda fase, na era das Luzes, esta crença desabrochou, impondose. Pois continuava de pé nos anos trinta.” (1993, p. 77-78).
91
(LUKÁCS, 2011, p. 43). Também Raul Brandão, na compreensão de que “a história
passou a se interessar menos pelos fatos que pelas relações” (DUBY, 1993, p. 59),
estabelece analogias entre as diversas nações europeias acometidas pelas invasões
napoleônicas – ou, ainda, antes e depois do período revolucionário (1789-1798) –, quase
que numa espécie de comparatismo entre os quadros históricos, fazendo ler nas páginas
de seu livro retratos da resistência na Espanha e o apoio capital oferecido pela Inglaterra
à coroa portuguesa, não sem interesses particulares. Em todo o caso, cumprindo
momentaneamente uma historiografia dramática, em que a escrita da história não pode
ser pontual por ser rede textual, o escritor oferece ao leitor passagens de significativo
valor estético:
Um velho barco de madeira largara das costas de Inglaterra no século
dezassete. Aproa a América. Leva dentro um bando de perseguidos.
São pobres mulheres, de mãos delicadas, fidalgos que vão arrotear a
terra, abrir alicerces, construir casas, através duma existência incerta.
Atravessam o mar. Que pesa na existência do mundo e na convenção
das cortes o velho barco Mary Flower, perdido na escuridade da
bruma, com um bando de heréticos a bordo? (BRANDÃO, 1982, p.
28).
No seu ofício de narrador, resgatando o período da colonização da América pelos
“peregrinos do Mayflower”55 (LOURENÇO, 2001, p. 47), rememorando a “grande vaga
migratória do fim do século passado e do princípio do nosso século”, quando “o inglês
vai para os Estados Unidos, como o português para o Brasil” (Ibidem, p. 50-51), Raul
Brandão põe em relevo, outra vez, a figura dos proscritos, dos excluídos da história. A
narrativa desses homens e mulheres, vítimas da intolerância religiosa dos séculos
posteriores à Contrarreforma, só pode ser focalizada sob a influência de um escritor que
55
Ao utilizar-se do nome Mary Flower para nomear o navio que transportou os peregrinos da Inglaterra
até a costa do que viria a ser os Estados Unidos em vez de Mayflower, Raul Brandão cai em erro,
conforme evidencia a citação de Eduardo Lourenço, no ensaio “A nau de Ícaro ou o fim da emigração”
(2001).
92
afastou o positivismo para abraçar as tendências finisseculares. Distingue-se o modo
como o escritor apreendeu as angústias e as apreensões das populações do novo mundo,
sobretudo por reforçar a dificuldade da navegação com o uso de substantivos, tais como
“escuridade” e “bruma”. Nessa “existência incerta”, atravessando o mar para unir as
duas margens do Atlântico, o autor de El-Rei Junot faz com que o leitor estabeleça laços
de empatia com os peregrinos ingleses, que, tal como os portugueses nos séculos XV e
XVI, viajaram “Por mares nunca de antes navegados” (CAMÕES, 2000, p. 1). A
imagem dos desgraçados que deixaram a Inglaterra, país que, ao olhar de Raul Brandão,
se esbate entre “o mar, as esquadras, os cofres abarrotados de oiro e um misto de ódio,
de orgulho e de sonho” (BRANDÃO, 1982, p. 44), remete ao imaginário desse
território-Ilha, condição geográfica que valeu à nação mais rica da Europa de então a
proteção natural contra os ataques de Napoleão. Se, no século XVII, os ingleses
aportavam de ilha em ilha, partindo de Londres em direção ao vasto oceano, também os
portugueses, superado o período das navegações, viveram a sua nação prolongadamente
em decadência, como navio à deriva. É indispensável lembrar, neste sentido, dos versos
de Fernando Pessoa, quando diz na Mensagem:
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como que o fogo-fatuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem.
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro.
93
É a Hora!56 (2008, p. 126)
O sentimento que se desprende do poema aponta para uma nova oportunidade que
se abre com o prenúncio do Estado Novo, ao mesmo tempo em que pode ser
interpretado como desejo de redenção messiânica do passado português por meio da
instauração de um governo de características sebásticas (“Quando termina Mensagem,
glosando pela última vez a litania da nossa imemorial inconsciência, Pessoa julgava
ainda que chegara a Hora, o momento da vinda do novo rei Sebastião de que ele fora o
João Baptista moderno”; LOURENÇO, 1988, p. 116), que seria concretizável apenas
com a improvável restauração de uma história aurática de um passado dinástico glorioso
– talvez o de Avis, casa que conduziu a nação pelos caminhos nevoentos do mar –, ou
ainda como insinuação de “que a nossa história literária nos últimos cento e cinquenta
anos [...] foi orientada ou subdeterminada [...] pela preocupação obsessiva de descobrir
quem somos e o que somos” (Ibidem, p. 83). Se a Inglaterra assume a imagem da nação
mercante, desse novo porto que liga a Europa à América, ilha também é o país disposto
na costa ocidental da Península. A ilha portuguesa engendra a percepção de
cerceamento, de isolamento, e é ilha em que pulula o imaginário lusitano: Portugal
como território místico, refúgio do rei encoberto. Quanto mais acuada pelas guerras
napoleônicas, mas se recorre ao metafísico.
No momento crucial do processo histórico português, em que o príncipe D. João e
a corte estão ausentes e o general Junot assume, improvisadamente, as funções de rei,
recrudesce o sentimento nacional, rememoram-se as incertezas do passado, incita-se o
povo à resistência e a acreditar na providência messiânica de um rei encoberto57: “Na
56
A grafia e a fixação do texto estão de acordo com a edição crítica organizada por Cleonice Berardinelli
e Mauricio Matos (PESSOA, 2008).
57
Sobre a presença do sebastianismo neste livro de Raul Brandão, deter-se-á mais adiante, ainda que não
de modo específico ou com o detalhamento que a matéria poderia exigir, caso se tratasse de uma
investigação sobre o imaginário português.
94
alma desta gente há pingos de cera, [...] e não sei que estranhos restos de sonho extinto,
que por vezes remexe, [...], cisma sem tom nem som, na ilha encoberta, em D.
Sebastião, numa claridade vaga e imensa” (BRANDÃO, 1982, p. 127).
No intuito claramente dramático de Raul Brandão, quando se propõe a expor a
história dos humildes e dos vencidos, nada parece ficar solto no conjunto de sua obra,
não há espaço para aleatoriedades. A despeito de a matéria histórica ocupar um espaço
desprivilegiado por parte da crítica brandoniana especializada, como se reiterou ao
longo do primeiro capítulo desta investigação, o percurso historiográfico do autor
engendra uma unidade poucas vezes verificável, quando se trata de sua escritura. Se em
El-Rei Junot, pode-se ler que “A pior revolução está ainda por fazer – é a dos
desgraçados” (BRANDÃO, 1982, p. 24), é nas Memórias que essa revolução por-se-á
nas ruas, seja na forma das personagens que experimentam os anos finais da monarquia
portuguesa e saem às ruas para tornar possível a proclamação da República a 5 de
outubro de 1910, seja na forma com que o escritor também modifica o tratamento até
aqui dispensado ao conteúdo histórico no âmbito da literatura portuguesa. Parece ter
sido Jacinto do Prado Coelho o pioneiro a estabelecer uma intrínseca relação entre o que
se pode designar por levante dos vencidos e o tempo histórico em que o escritor de
Guimarães escreveu parte significativa de sua produção literária, mirando sempre o
antes, o durante ou depois da catástrofe da Primeira Guerra mundial, da qual Portugal
tomou parte: “Na primeira edição, a obra [Húmus] termina pela descrição duma
insurreição universal dos oprimidos, de proporções épicas, finalmente esmagada pelas
classes dirigentes, que instauram a ditadura” (1996, p. 299). Da mesma forma que no
livro de 1917, em El-Rei Junot o levante dos vencidos, desses seres esfarrapados, não
chega a concretizar-se, mas lança o gérmen da revolução silenciosa que os pobres, na
escritura brandoniana, almejam alcançar.
95
Claro deve ser que não proponho que o escritor de El-Rei Junot seja alçado à
categoria de melhor ou mais bem lapidado detentor de uma concepção da história, em
substituição a Alexandre Herculano ou Oliveira Martins, mas que, diferentemente
desses, Raul Brandão já sinaliza o benefício de uma série de pensamentos críticos e
teóricos sobre uma história que relativiza, a partir de então, a sintaxe linear do processo
histórico e a tendência pujante do progresso. Esses posicionamentos sobre uma história
em franca renovação entranham-se, sobretudo, no meio universitário, com destaque para
o francês, e a partir deste para o restante da Europa pós-Revolução de 1789.
Se, como permite a leitura do conto “O Bispo Negro”, Herculano põe em relevo a
personalidade individual de Afonso Henriques58, para quem o príncipe é vulto maior da
nação, o autor de El-Rei Junot retira das mãos da coroa ou da Igreja a capacidade de
conduzir o país para colocá-la nas mãos do próprio povo português, a quem em
sublevações por todo o território nacional, cumpre levar Portugal ao êxito na resistência
às invasões napoleônicas. Tampouco a figura de Napoleão ou de seus generais de
primeira linha ocupam em plenitude as páginas desse livro, que ironicamente carrega o
nome de um militar ensandecido. Em seu delírio e arrogância, Junot presume ser
possível que o soberano francês o proclame rei de Portugal: “Cada um, mesmo as
figuras subalternas, segue entre as galas e a ópera, a sua própria ambição. Junot cisma
em ser rei, Ega em ser ministro, Loison no oiro, Delaborde nos quadros...”
(BRANDÃO, 1982, p. 154). No entanto, são poucos os momentos em que é dada a
palavra ao general Junot, figurando, quase sempre, a sua presença no texto de forma
indireta, por meio de relatos dos populares, homens do povo: “Está doido. Em 1792
acertou-lhe uma bala na cabeça; outra em 1796. Daí em diante sofreu sempre. As
58
Assim registra o texto de Alexandre Herculano: “Aproxima-se o meado do duodécimo século. O
príncipe de Portugal Afonso Henriques, depois de uma revolução feliz, tinha arrancado o poder das mãos
de sua mãe. Se a história se contenta com o triste espetáculo de um filho condenando ao exílio aquela que
o gerou, a tradição carrega as tintas do quadro, pintando-nos a desditosa viúva do conde Henrique a
arrastar grilhões no fundo de um calabouço.” (HERCULANO, 1998, p. 247-248).
96
primeiras excentricidades manifestaram-se quando governador de Paris. Tempo antes da
invasão já Marbot lhe notara a alucinação do olhar...” (Ibidem, p. 203).
No seu fazer literário, Raul Brandão desloca a imagem histórica inicial atribuída a
Junot para reescrevê-la sob um olhar que, permeado por uma escrita irônica, se alicerça
numa história ao mesmo tempo lírica e histriônica.59 Talvez seja por essa dupla
peculiaridade que Guilherme de Castilho não corrobora a autonomia da produção de
cunho histórico no todo da obra brandoniana, no que afirma:
Assim, de certa maneira, a sua obra histórica é a continuação, o
prolongamento, na dimensão histórica, da sua obra dita novelística. Se
esta é uma tentativa de sondagem do humano no plano intemporal,
aquela é um prolongamento dessa mesma sondagem com raízes no
passado. (2006, p. 319).
É difícil chegar a uma equação que permita estabelecer o equilíbrio entre a
pesquisa histórica e o caráter essencialmente literário do texto de El-Rei Junot, assim
como de outras produções do escritor, a exemplo do prefácio e notas de O Cerco do
Porto – Pelo Coronel Owen, publicado na Renascença Portuguesa em 1915. De certa
forma, a crítica literária reluta em admitir a feição híbrida de significativa porção da
escritura brandoniana. A tentação histórica a que alude Maria de Fátima Marinho em
sua análise do livro de 1912, em cotejo com Vida e Morte de Gomes Freire (“De 1912 a
1915, [...] deve ter sentido uma espécie de tentação histórica, que aliás se enquadrava
perfeitamente no gosto e nas tendências da época”: MARINHO, 2005, p. 135), não se
revela pontual no percurso literário de Raul Brandão e não me parece poder ser admitida
pela crítica como extensão ou mero prolongamento de sua produção canônica, a
exemplo do que ajuíza Guilherme de Castilho (2006). Essa latência histórica está
presente desde os primeiros escritos e, se isso não for suficiente para uma defesa do
59
As evidências textuais que levam a pensar a história em Raul Brandão atrelada ao lírico e ao histriônico
são empreendidos mais adiante desta leitura crítica.
97
lugar que a matéria histórica deve ocupar nos estudos brandonianos, os documentos
encontrados no espólio depositado na Biblioteca Nacional, em Lisboa, permitem
observar como o escritor relacionou-se com a matéria histórica.
Em um manuscrito sem datação,60 o escritor deixa entrever o plano geral de sua
obra, dividindo-a em partes de acordo com o gênero literário ou com o modo narrativo,
atribuindo à “História da guerra peninsular” o projeto de 2 volumes, do qual o segundo
certamente não se consumou.61 Importa ainda ressaltar que, da segunda parte do
primeiro volume, cujo sumário está disposto no manuscrito, o autor atribui títulos
provisórios às seções, arrematando o livro nas páginas sobre “O acordar dum povo” –
título que por si valoriza o interesse brandoniano pelo processo histórico: “A revolução
é sempre um desenlace: estava feita antes de começar.” (BRANDÃO, 1982, p. 28).
A tentação histórica acompanhou Raul Brandão até o final da vida, como
evidenciam cartas e documentos oficiais datados de 1930, ano em que o autor de El-Rei
Junot foi encarregado pelo Ministério da Instrução Pública de escrever a história das
províncias ultramarinas,62 em diversos volumes, com o fim de atender à demanda
crescente na educação básica. O que chama a atenção são as feições de expedição que
nortearam a demanda, interrompida apenas pelo agravamento da doença e consequente
60
Trata-se do documento registrado sob a cota D2/725, contendo 3 páginas inéditas do autor de
Guimarães. O inventário do espólio de Raul Brandão organizado pela Biblioteca Nacional estima que o
manuscrito autógrafo seja do ano de 1903.
61
Pouco se pode dizer de como o autor executou, no campo da expressão literária, os volumes planejados
para sua “História da guerra peninsular”. O mais provável é que tenha atingido o objetivo condensando
tudo num único volume, este que é peça desta análise.
62
Atente-se para o fato de que a ideologia do Estado Novo já se instalava na política de relações
internacionais portuguesa. O documento inscrito sob a cota D2/668, de autoria de Armando Cortesão (n.
1891 – m. 1977), com esboço de documento a ser enviado ao Diretor da Agência Geral das Colônias em
19 de dezembro de 1929, confirma o interesse do escritor de Guimarães por escrever uma história da
África com o projeto intitulado Portugal Maior. Diz o remetente: “Raul Brandão, que é capitão reformado
da Infantaria, solicita o soldo e a gratificação da atividade e oficial em serviço (sic) nas colônias, durante
o tempo da viagem; vinte mil escudos para despesas de representação que restituirá logo que os livros
estejam feitos, dando metade dos lucros ao Estado até ao integral pagamento dessa quantia; e transporte
de sua mulher, a que tem direito como oficial em serviço; todas as facilidades oficiais e garantias de
alojamentos e transportes. Camara Reys um abono de quinze mil escudos, e a garantia de seus
vencimentos habituais como professor[.] [...] A Edição destes livros será feitas (sic) pelos autores, ou na
Imprensa Nacional pelo Estado, se este assim desejar.” Como se percebe, o interesse pela matéria
histórica é comum aos colegas de Seara Nova/Renascença Portuguesa.
98
morte do escritor a 5 de dezembro de 1930. Raul Brandão lançar-se-ia definitivamente
na seara do historiador, abarcando o ofício como profissão, tendo à disposição um navio
que viajaria pela costa da África, permitindo a observação in loco e a recolha de fontes
críticas, fossem elas de caráter documental ou testemunhal. Com efeito, entre os
escritores da prosa portuguesa, é provável que tivesse sido o primeiro a lançar-se ao
mar, no encalço de ver, de sentir, de observar os territórios de Angola, Moçambique,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, e São Tomé e Príncipe; sentidos que, como bem observa
Fátima Marinho (2005, p. 135), são obsessões do autor: romancista63 e historiador.
Deve-se frisar que, mesmo incorporando a missão do historiador, o escritor de
mantém firmes os traços de estilo que o caracterizam como expoente da geração dos
nefelibatas e do círculo de autores portuenses que orbitaram em torno de periódicos
como A Águia e Seara Nova. A sua escrita da história é prática de quem a concebe
como “tecido esgarçado, cheio de buracos” (DUBY, 1993, p. 39), livre das pretensões
de uma história positivista, que segue sereníssima sobre a bitola do progresso. Poder-seia, então, retrucar: em que perspectiva o texto de Raul Brandão é mais historiográfico
que literário? Num século em que nem mais os historiadores professam a objetividade
do ofício, parece despropositada a pergunta: “Seja como for, afirmo não menos
claramente não acreditar na objetividade do historiador, ou que seja possível distinguir
[...] o mais determinante dos fatores dos quais deriva a evolução das sociedades
humanas.” (DUBY, 1993, p. 80)64. Ainda nesse sentido, é proveitoso o comentário que
Georges Duby faz acerca da prática historiográfica de Lucien Febvre, a quem a escola
dos Annales é notória devedora: “[...] de sua parte, extraindo as informações mais das
63
O uso do termo romancista aqui deve ser interpretado como sinônimo de autor de narrativas literárias.
Ao corroborar o pensamento de Georges Duby não atesto que se desespecifiquem os estudos literários
ou os estudos históricos. Ao contrário, é na busca pelas convergências e divergências entre os dois modos
de narrar que deverão residir o interesse de parte significativa dos críticos das novas gerações. Permanece,
no entanto, a indefinição esboçada por teóricos contemporâneos acerca de qual a peculiaridade que
confere à história um estatuto próprio.
64
99
obras literárias que das cartas e muito mais que das suas estatísticas, sentia-se mais à
vontade neste terreno que em qualquer outro.” (p. 87).
O texto de Raul Brandão, repleto de citações e transcrições de documentos de
interesse público, cartas íntimas, recortes de jornais e quadras populares desafia o leitor
a prosseguir na leitura do volume: não se pode simplesmente pactuar como se
estivéssemos diante de uma narrativa estritamente literária. É possível ler El-Rei Junot
como proposta literária que abarca a história ou é preferível pensá-la como história que
circunda e encharca o tecido literário? Quem pode hoje – ou quem pôde à época da
publicação – ler o livro de Raul Brandão de uma única vez?65 Não é porque nele não
estejam presentes o valor estético e a sutileza da linguagem literária, mas porque me
parece que, à semelhança do texto épico (cuja legibilidade é abalada, sendo substituído
pelo romance, que se populariza em meio à burguesia emergente), o livro de Raul
Brandão rompe um padrão de narrativa, no caso o romance histórico e mesmo o drama
histórico, formas com as quais o século XIX frequentemente trabalhou. El-Rei Junot
instaura, definitivamente, a tentação historiográfica (a necessidade de escrever/pensar a
história) no cerne da escritura brandoniana e propõe uma estrutura moderna para um
drama histórico, apontando que a história resulta de um único drama – o do homem: “O
formidável drama desenrola-se perante a Europa atónita.” (BRANDÃO, 1982, p. 30).
Daí que a obra tenha sido pouco compreendida e não tenha despertado críticos atentos, e
quando o fez – saliente-se que de modo passageiro – estes buscaram enquadrar o texto
de Raul Brandão no clássico padrão do romance histórico romântico português ou
refutaram-lhe a qualidade de narrativa histórica.
65
Carta inédita enviada a 23 de junho de 1914 por Antero de Figueiredo (n. 1866 – m. 1953) a Raul
Brandão afirma: “Li o seu El-Rei Junot, aos poucos, que este não é livro que se leia a correr, tanto a sua
agitação e tumulto fatigam. Todo ele é vibração. Mais: - vertigem. Tem páginas fulgurantes, período em
que o talento chispa como línguas de fogo!”. Cota D2/229 – Biblioteca Nacional.
100
Se, como dito anteriormente, Alexandre Herculano e Oliveira Martins são os mais
notáveis autores de prosa historiográfica no Portugal do século XIX, o autor dessa antiepopeia66 em que se constitui El-Rei Junot põe em discussão – inclusive no nível da
teoria e dos métodos da história – os modelos até aqui adotados na literatura portuguesa.
Na sua história como drama,67 o escritor de Guimarães abre definitivamente um ciclo e
um modo de escrita que consumará nas Memórias, cuja matéria, disposta em cadernos
de anotações, escreve paralelamente ao período de escrita de El-Rei Junot e do Húmus,
com o olhar atento de quem observa o momento lusitano.
Afirmou-se que a história engendrada no livro de 1912 é dotada de qualidades
líricas e histriônicas que, juntas, conferem a El-Rei Junot o estatuto de uma escrita
heterodoxa da história,68 que foge ao padrão a que o leitor está acostumado. De certa
forma, ao distanciar-se da história canônica, contemplativa em vez de analítica e
reflexiva, a narrativa de Raul Brandão orienta-se na mesma direção que a ficção de José
Saramago, nas décadas finais do século XX, também seguirá, porque ambas
aproveitam-se dos interstícios de uma suposta verdade sobre o passado para rasurar a
66
Referi-me à qualidade de anti-epopeia que assume o livro em estudo nesse capítulo. Talvez mais
algumas reflexões sejam necessárias, embora se frise que não é este o foco da investigação proposta. Ao
conceber El-Rei Junot como narração anti-épica, entendo que, diferentemente d’Os Lusíadas, Raul
Brandão privilegia, sobretudo, o registro de momentos trágicos da história portuguesa, em que o próprio
conceito de nação é abalado e a soberania usurpada pelos invasores franceses, ao passo que o vate
português, embora apresente significativos momentos difíceis e trágicos da história de Portugal, busca
evidenciar a construção da nação a partir da superação dos obstáculos. As glórias anteriormente cantadas
por Camões são substituídas pela angústia e pela humilhação do povo, numa espécie de réquiem que se
consuma, embora Portugal se liberte das tropas de França; e se consuma porque, de fato, ao depender da
Espanha e, sobretudo, da Inglaterra, para existir, a nação portuguesa se aniquila por dentro.
67
Para uma melhor observação do uso do termo “narrativa histórica” nesta investigação, voltar ao
subcapítulo anterior (III – A TENTAÇÃO HISTÓRICA: 3.2 Intermezzo), no qual é trazida à baila a
discussão das fronteiras entre literatura e história, vislumbrando-se, portanto, que há uma forma narrativa
literária e uma forma narrativa história. Por conseguinte, narrativa histórica não deve ser interpretada
como romance histórico ou narrativa literária que abarca o conteúdo histórico em seu interior, mas tão
somente na própria escrita da história, que se assenta sobre as bases da técnica da narração.
68
Com efeito, se se pode perceber o heterodoxo como aquele que busca a ruptura com os padrões
anteriores em vigência, Raul Brandão pode, então, ser considerado um autor em cuja escritura a história
se avoluma como matéria privilegiada entre as representações. O modo de articular literatura e história é,
portanto, necessariamente distinto de como o século XIX registrou. Por outro lado, não se deve se
preocupar em atribuir a Raul Brandão o epíteto de narrador da história (que é diferente, como se sabe, de
dizê-lo historiador), pois dois dos melhores narradores portugueses do oitocentos acumulam a qualidade
de distintos escritores. No seu moderno drama histórico, a história se realiza, ela própria, enquanto
categoria dramática.
101
história, reescrevendo-a em prol dos homens – de todos os homens. Teresa Cristina
Cerdeira (2000) pondera que “o passado, mais propriamente, não se recupera, não se
resgata, mas representa-se – naquele sentido mesmo do jogo teatral – isto é, tornar-se
outra vez presente pelo gozo da re-presentação” (p. 199). O pensamento da ensaísta
encontra analogia nas ideias de Georges Duby, que compara o ofício do historiador ao
do encenador, também aqui no sentido teatral do termo:
Construído o palco, plantado o cenário, composto o libreto, trata-se de
montar o espetáculo, de comunicar o texto, de dar-lhe vida, e é isto o
que importa: é precisamente do que nos convencemos quando, depois
de ler uma tragédia, podemos ouvi-la e vê-la representada. Cabe ao
historiador esta mesma função mediadora: comunicar pelo texto
escrito o ‘calor’, restituir ‘a própria vida. Mas não nos devemos iludir:
esta vida que ele tem por missão instilar é a sua própria vida. E nisto
ele tem tanto mais êxito quanto mais sensível se mostra. (1993, p. 61).
Claro está que Duby (1993) e Cerdeira (2000) não se referem à encenação como
faculdade historiográfica. Embora a narrativa histórica, tal como a matéria literária,
possa adaptar-se ao teatro, não reside nessa especificidade a relação que os ensaístas
estabelecem na dialética que se constrói entre tensão histórica e expressão literária: a
encenação da linguagem. Sendo a linguagem o meio pelo qual o homem re(a)presenta a
realidade, cujas peculiaridades estendem-se às narrativas, sejam de ordem histórica ou
literária, pode-se conceber o texto histórico nas mesmas qualidades do jogo e da
encenação da linguagem literária.
No entanto, El-Rei Junot enfrenta duplamente a faculdade da representação:
porque linguagem e porque escritura em que elementos lírico-dramático e irônicocômicos assomam, conferindo-lhe nuances teatrais. Raul Brandão apresenta ao leitor o
teatro do mundo europeu em um de seus momentos mais agudos, e, para tal, lança mão
de elementos próprios à ficção, sem as quais a sua prosa historiográfica seria apenas
uma entre tantas outras: “O dramático e o grotesco são dois sentimentos que estão na
102
base de El-Rei Junot, livro em que alternam o tom de epopeia e da farsa trágica, ou
antes uma epopeia que não chegou a sê-lo” (CASTILHO, 1982, p. 13). É salutar cotejar
o comentário de leitura de Guilherme de Castilho com as argumentações de Maria de
Fátima Marinho, num ensaio em que, embora comungue de alguns posicionamentos de
seu antecessor, a mais das vezes aguça o olhar crítico e embasa de forma mais sólida os
posicionamentos que defende:
Esta forma de fazer História, conciliando o dramático e o grotesco,
humaniza os personagens e acontecimentos, empresta-lhes
sentimentos, desvenda os meandros mais remotos da psicologia e das
motivações e deixa ao autor a liberdade de ironizar (tal como fará o
narrador da metaficção historiográfica pós-moderna, de que Raul
ainda está longe). (2005, p. 142).69
Na chave para a diferença entre a escrita da prosa historiográfica empreendida
pelo escritor de Guimarães e seus predecessores está a forma que concede ao tratamento
das personagens de seus relatos. Sabe-se que as narrativas históricas ou as literárias
dedicam especial atenção a esse que é um dos pilares fundamentais entre as categorias
da narração, daí que Mario Cesar Lugarinho afirme que, na narrativa histórica, os
“elementos estruturais são encontrados dispostos como nas narrativas literárias:
personagens, espaço, tempo, narrador, narratário” (1997, p. 60). O texto de Raul
Brandão, ao ferir a monumentalidade e o caráter épico das figuras históricas que traz
para dentro do tecido textual, coloca-as no mesmo patamar perante o intrincado e
complexo sistema de representações da escrita da história. Em outras palavras: em ElRei Junot não se distingue entre os grandes e os pequenos nomes, porque há a
compreensão de que todas as personagens se encaixam como parte de um todo, em que
69
Não sendo objeto de estudo desta pesquisa, entre as relações possíveis de serem estabelecidas cotejando
os textos de Raul Brandão e José Saramago, pode-se pensar que o primeiro escreve uma história infiltrada
de literatura, ao passo que o segundo, na consciência metalinguística própria aos escritores dos anos finais
do século XIX, escreve uma literatura infiltrada de história.
103
nada pode ficar perdido, recolhido ao limbo do esquecimento.70 Há na estrutura do texto
brandoniano a imanente percepção de que tudo o que “Pronunciam[...] num canto do
globo, v[ai] repercurtir[...] no globo” (BRANDÃO, 1982, p. 28), numa espécie de visão
histórica em que, como salientado anteriormente, tudo se relaciona, tudo está ligado por
força desta concepção a que se pode definir como imaterial, porque se qualifica como
história das consciências – história que privilegia o homem no seu percurso de
autoconhecimento, de si e da sociedade. Portanto, é o tratamento dedicado às
personagens que agora importa para observar o rumo dado à re(a)presentação da história
em El-Rei Junot:
Fealdade e volúpia com magníficos cabelos. Quer sorrir, cheia de jóias
e plumas, mostra os dentes podres. Mais diamantes – um
deslumbramento – carrega-se de diamantes como uma rainha de
lenda: veste-se de sedas e fica pior, com um ombro mais baixo que o
outro, o nariz vermelho e coxa ainda por cima. Laura Junot afirma que
lhe viu os braços sujos: felizmente esse grave ponto da história está
hoje elucidado: era pêlo. (BRANDÃO,1982, p. 68)
A descrição de Carlota Joaquina opõe-se ao preceito de monumentalidade
inseparável de uma história positivista. Com efeito, o narrador da prosa historiográfica
dá vazão ao dito popular, que institui uma imagem negativa da princesa do Brasil,
antipatia construída não apenas por Raul Brandão, mas também pela escrita frequente
de uma historiografia que, nos anos subsequentes ao da Independência, convergiu para
essa figura feminina na manifestação de uma lusofobia, quando por parte de
historiadores brasileiros, ou materializou-se num sentimento xenófobo, quando atestado
por intelectuais portugueses.
No interior do próprio texto, Raul Brandão torna evidente que se apoia em fontes
textuais para compor a caracterização, apontando o diário de Laura Junot, esposa do
70
Para um melhor aprofundamento dos conceitos lembrar e esquecer, consultar o estudo de Jeanne Marie
Gagnebin (2009), o qual será referencial na argumentação teórica do quarto e último capítulo desta tese.
104
general que comandou as tropas invasoras de Napoleão, como documento prévio. E o
faz não sem lançar mão do artifício da ironia, indo às raias de um histrionismo que
também será o alicerce para que na sua re(a)presentação da história, como faz José
Saramago no Memorial do Convento71, os grandes nomes da história cedem lugar aos
homens comuns, a personagens de segundo escalão social, à “arraia miúda” que desde o
texto de Fernão Lopes (embora neste não se possa, a rigor, falar de luta de classes
porquanto inexista ainda uma sociedade baseada numa divisão em classes sociais)
teimam em pairar, silenciosa e obediente, mas já relutam a espreitar incólumes a história
ser escrita pelos vencedores.
Não apenas Carlota Joaquina é objeto do olhar histriônico do narrador da história.
O escritor rompe com a sisudez da historiografia convencional para desarticular o
discurso das classes dominantes, a exemplo de como representa o príncipe D. João,
antes de a personagem histórica sair de cena, quando de sua viagem ao Brasil por
ocasião da invasão das hostes de Junot: “O Príncipe geme. Na véspera tinha-lhe dado,
mais violento um ataque de hemorroidal. “(BRANDÃO, 1982, p. 98)72. Deve se
perguntar se processo semelhante não adota José Saramago quando, ao configurar a
corte de D. João V, escreve sobre D. Maria Ana, rainha de Portugal: “D. João V não
passa toda a noite com a rainha, ao princípio sim, por ainda superar a novidade ao
71
Teresa Cristina Cerdeira afirma, a respeito da concepção de história que guia a escrita de José
Saramago: “Os romances de José Saramago parecem indicar, como Paul Veyne, que a história é uma
espécie de palácio labiríntico onde nunca nos entediamos justamente porque nunca somos capazes de
conhecê-lo inteiramente; por isso indaga sempre os documentos e os faz falar de modo diverso. Desfaz
algumas vezes a sua monumentalidade quando destitui o poder instituído em nome das falas emudecidas.”
(CERDEIRA, 2000, p. 212).
72
Reforçando o conceito de história histriônica, que ultrapassa o mero casualismo da ironia, diz Maria de
Fátima Marinho: “A ironia também poderá estar subjacente na pormenorização de certas características,
como, em El-Rei Junot, à alusão às hemorróides do príncipe, ou ao conteúdo dos caixotes, prontos a
embarcar com a família real. Estes detalhes particulares, têm uma função semelhante, a nível da estrutura
narrativa, à referência aos preços ou ao número de batalhões e sua marcha. Se os segundos pretendem
aproximar o relato do convencionalmente histórico, os primeiros visam introduzir a contra-história, tão
cara aos romancistas.” (MARINHO, 2005, p. 143). De opinião divergente ao que propõe a ensaísta,
apenas o entendimento de que Raul Brandão não faz contra-história, mas rasura a história convencional,
reescreve-a na forma de uma prosa historiográfica heterodoxa daquela vigente na segunda metade do
século XIX, cujos modelos de escrita residem nas produções de Alexandre Herculano e, sobretudo, de
Oliveira Martins.
105
incómodo, que não era pequeno sentir-se banhado em suores próprios e alheios, com
uma rainha tapada por cima da cabeça, recozendo cheiros e secreções.” (SARAMAGO,
1989, p. 15).
Herdeiro das narrativas históricas legadas pelo século XIX, notadamente as
escritas por Oliveira Martins (uma vez que a obra de Alexandre Herculano se utiliza do
histórico mais como pano de fundo de sua produção literária que na forma da
epistemologia), a prosa historiográfica de Raul Brandão ainda tem sido eclipsada pela
do historiador do realismo português, cuja “posição típica é [a] dos intelectuais do final
do século XIX, quando a ideia de progresso se tornou quase um artigo de fé”, e esta tem
“suas raízes na concepção oitocentista da história como progresso da raça humana para
uma cada vez mais elevada nacionalidade” (PONTE, 1998, p. 42). Com efeito, a
produção de Oliveira Martins engendra intimamente o conceito de nacionalidade
portuguesa (“Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, expôr (sic) claramente o
nosso pensamento. Há ou não há uma nacionalidade portuguesa?”; MARTINS, 1987, p.
27), concebendo que as nações existem de forma semelhante aos organismos vivos, que
estão, portanto, inseridas num ciclo vital, ao qual não podem escapar.
Vislumbrando que Portugal se encontra na fase da decadência, o historiador da
segunda metade do oitocentos busca na duração histórica as causas e as conseqüências
do desgaste nacional, não se distanciando muito dos ideais apregoados por Antero de
Quental:73 “um [...] laboratório onde o historiador podia detectar relações constantes
73
Sobre a qualidade notadamente historicista – característica própria à história positivista - dessas
produções, bem como a preocupação com o institucional na forma de narração da nação portuguesa e seu
ideal de grandeza, Mário César Lugarinho diz: “Se, especialmente, Alexandre Herculano e Oliveira
Martins podem ser apontados, como posteriormente, António Sérgio e António José Saraiva, entre outros,
por realizarem uma outra História de Portugal que não levasse em conta as obsessivas relações que o
tempo tradicionalmente sofria nas interpretações míticas e religiosas (que, no fundo, se convertiam em
proposições poéticas), é porque, rasurando a tradição nacionalista, acabavam por inserir interlocutores
universais, isto é, elementos que possibilitavam uma relativização da História nacional ao perceberem
Portugal numa perspectiva historicista ou materialista. Importa perceber aqueles intelectuais numa
tentativa de descobrir o tamanho de Portugal no concerto universal, em que forças além das profetizadas e
divinas atuavam por sobre a História. O Portugal que surge destas páginas é outro; se apequenado no
106
entre os fenómenos e a permitir, por um lado a sua explicação mediante conceitos
naturalistas [...] e, por outro, a indução de leis do desenvolvimento humano”
(MAURÍCIO, 2005, p. 55). O fulcral para a prosa historiográfica de Oliveira Martins é
retratar o movimento das instituições, mais especificamente ainda da nação
portuguesa,74 desfavorecendo os indivíduos: privilegia-se o nacional em detrimento dos
nacionais.75 Na narração cuidadosa e pessimista que faz do período compreendido entre
a Revolução de 1789 e as invasões francesas,76 o historiador silencia quanto ao
sofrimento dos soldados, as humilhações de um povo vilipendiado pelos estrangeiros
que lhes ocupam a terra; importa-lhe é narrar os grandes “indivíduos históricomundia[is]” (LUKÁCS, 2011, p. 65) tornando-os, muitas vezes, caricaturas. Interessa
ainda relatar os acontecimentos privilegiando uma história política, viés que marcará,
quando do aperfeiçoamento dos estudos históricos no século XX, a concepção
tradicional da história. Isto posto, é preciso dizer que em nada diminui a qualidade da
escrita de Oliveira Martins e o vigor de suas análises:
panorama econômico e social, entretanto, é agigantado, ao se debater com todo o peso da sua História.”
(1997, p. 117). Afastando-se, portanto, do paradigma do oitocentos, é que Raul Brandão alicerça sua
prosa historiográfica.
74
Ajuíza-se que o crítico português António Sergio, contemporâneo de Raul Brandão, herda de Oliveira
Martins a sua concepção de história, esta também de caráter nacionalista, institucionalizante, em que a
história de Portugal sobrepõe-se à história dos portugueses. O ensaísta, ao retratar o período das invasões
francesas, assevera: “A 20 de março de 16 morreu a rainha, e o regente foi proclamado rei. Este
continuava no Brasil. Haviam-se invertido os papéis da metrópole e da colónia. A ida da corte,
acompanhada[, como fora,] de uma elite de portugueses, dera ao Brasil um grande impulso,
encaminhando-o para a independência. O acto que para esta mais concorreu foi a abertura dos portos aos
estrangeiros.” (SERGIO, 1976, p. 129). Saliente-se a busca por uma relação de causa e efeito
(historicista) entre os acontecimentos, premissa em voga na história positivista.
75
Segundo informa Teresa Cristina Cerdeira da Silva (1989, p. 21), nas páginas pré-textuais de sua tese
de doutoramento, José Saramago, em visita à Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em 1984, disse: “É preciso deixar de fazer a História de Portugal para se começar a fazer a
história dos portugueses.” Em certa medida, o pronunciamento do Saramago deixa implícita a divergência
fundamental entre as escritas de Oliveira Martins, que escreve a história do Portugal e da península, e
Raul Brandão, que se preocupa com a história dos portugueses.
76
Também Oliveira Martins encarregou-se de historiar as invasões napoleônicas, inscrevendo o período
na análise que faz da História de Portugal (1987), das origens à revolução liberal. Observa-se na obra o
caráter progressista da concepção dessa história, a serviço de um pessimismo entranhado na Geração de
70, mas ainda assim de feições notadamente positivistas.
107
Como havia de o príncipe anuir a isto, se por seu lado o inglês, para o
proteger, guardava a sua costa como uma esquadra? Mas, como podia
lançar-se-lhe nos braços, se a Inglaterra declarara que à invasão de
Portugal pela França, responderia a ocupação do Brasil pelas forças
liberais? Quando o seu defensor afirmava que o saquearia para o
defender, como havia de o príncipe-regente aceitar o auxílio
oferecido? (MARTINS, 1987, p. 398).
Na história sem diálogos e sem documentos de Oliveira Martins, Raul Brandão
encontra na experiência de leitura o empreendimento de que se ocupará logo nos
primeiros anos do século XX. No entanto, se se pode argumentar que o historiador
compõe sua narração na forma da tragédia (PONTE, 1998), isto se faz porque a
derrocada portuguesa é, aos olhos do autor oitocentista, inevitável: improcrastinável
decadência há muito anunciada. Por seu turno, Raul Brandão elabora uma prosa
historiográfica77 mais próxima à expressão dramática, naquilo que tem de teatral,
extraindo de um mesmo momento histórico o escopo de suas análises assolapadas por
um lirismo pungente.
Tudo isto demonstra a qualidade e a acuidade com que o escritor, num
procedimento plenamente consciente de escrita – seja ela da história ou da literatura78 –,
apregoa. Maria de Fátima Marinho diz que em El-Rei Junot “Quase não há uma
personagem (figura histórica) ou um fenómeno que sejam referidos sem uma
apreciação, uma leitura interpretativa do autor.” (2005, p. 141). No entanto, pelo caráter
da composição subjetiva da sua prosa historiográfica esta não se compromete com um
rigor sobre a matéria histórica, uma vez que, ao abandonar o olhar micro em função de
uma leitura macro-analítica e comparada, Raul Brandão põe em xeque as escritas
77
Em linhas gerais, pode se dizer que Oliveira Martins assume a posição de historiador, de profissional da
escrita da história, ao passo que Raul Brandão encampa o ofício do historiógrafo, ou seja, que produz uma
narração da história impregnada de expressão literária, sobretudo na forma do elemento dramático.
78
Dever-se-ia neste passo da investigação ainda continuar a pensar a escrita da história como
procedimento distinto da escrita da literatura? Não seria mais prudente pensar a primeira como forma
particular de gênero literário, adotando a história, nas suas acepções de historiografia e de prosa
historiográfica (ambas distintas mais pelo modo da subjetividade do avaliador que pela concretude do
texto)? Por outro lado, como não distinguir res factae e res fictae? Se a problemática é interessante e, de
todo modo, atual em seus objetivos, não é, todavia, o fito desta investigação.
108
anteriores, planta a dúvida no coração do leitor, questiona o porquê do silêncio dos
vencidos, faz falar os que emudeceram. O autor de Guimarães sabe escavar o “lugar
onde se inscreve a História dos vencidos, a História dos silenciados, a História não
contada, a História dos oprimidos que contestaram o poder” (LUGARINHO, 1997, p.
95). Se a prosa historiográfica brandoniana emproa o debate imanente à história, tal fato
apresenta-se em perfeita consonância com a intencionalidade do historiador, cujo cerne
do ofício consiste justamente em problematizar literariamente a história:
A única modificação – umas das mais importantes, reconheço – dizia
respeito à forma. Eu estava voltando sem rodeios à narrativa. Contava
uma história, seguindo o fio de um destino pessoal. Mas continuava
atendo-me à história-problema, à história-questão. (DUBY, 1993, p.
138).
Contudo, não é apenas com a desmonumentalizaçao desses “indivíduos históricomundia[is]” (LUKÁCS, 2011, p. 65) que o escritor de Guimarães se preocupa no seu
fazer simultaneamente historiográfico e literário. O verdadeiro drama da história, isto é,
o percurso daqueles que efetivamente a fizeram e suportaram a sucessão de catástrofes
que compõe a duração humana, é alvo das atenções do autor. Oscilando entre o discurso
irônico e uma dicção pautada na gravidade, o autor reitera a dramaticidade que imprime
ao texto:
A febre pútrida mata mais soldados depois da batalha de Austerlitz
que a própria batalha – 16 mil homens. Ainda hoje é ignorado o
número de mortos, de abandonados ou esquecidos da campanha de
Itália. Os regimentos ficam muitas vezes reduzidos a (sic) metade. Os
dias de batalha são horríveis; nem médicos suficientes, nem maneira
de tratar os que caem das fileiras. 270 feridos são esquecidos em
qualquer aldeola: quando por acaso se lembram deles, agonizam na
podridão. Depois do combate arrastam-se de cidade em cidade, sem
haver hospital que os recolha. Está tudo cheio. Um granadeiro
implora: – Cortem-me a perna. Estou comido de gangrena, quer ver?
Bem sei que ninguém se importa com os feridos, sem embaraço.
Então acabem-me de uma vez! Antes morrer. (BRANDÃO, 1982, p.
53)
109
Aos olhos da prosa historiográfica de El-Rei Junot, o soldado português é o
principal ator desse teatro de uma história como drama. A performance esboçada é
pungente no efeito de despertar a atenção do leitor para atuação no decurso da história.
Invertendo os preceitos da escrita positivista, Raul Brandão põe os desgraçados, sujeitos
ativos dessa história de catástrofes, no papel de protagonista: é no soldado que se centra
o foco narrativo e, no seu desempenho, eleva-se o sofrimento e a dor, eixos
intransponíveis de uma temática própria à novelística brandoniana.
É preciso sublinhar que mesmo os historiadores acadêmicos reconhecem o valor
do componente dramático no âmbito da estruturação de suas escritas da história. Não
seria diferente, portanto, o entendimento de Raul Brandão, para quem o drama é já uma
obsessão da forma e do estilo. As imagens que figuram na história convencional
ocupam um lugar a custo do drama de seus percursos ou da altivez de sua representação.
A personagem mediana, como lembra Lukács (“Aparece aqui a importância
composicional do herói mediano”; 2011, p. 53), é mais usual no romance histórico que
na prosa historiográfica, sobretudo numa história compreendida como intrinsecamente
dramática, tal como é orientada a produção de El-Rei Junot. Por conseguinte, se a
escrita brandoniana da história pode eleger um herói, no sentido que o termo ocupa
quando se trata das narrativas ocidentais, certamente o faz investindo na representação
dos soldados portugueses ou estrangeiros que resistiram às hostes invasoras na
península ibérica: o herói se, por um lado, engendra a coletividade há muito cantada no
épico nacional, por outro vê-se participante ativo da catástrofe humana, assolapando os
preceitos da épica clássica.
A fala com que o escritor conclui a encenação dramática da história é lapidar e
caminha justamente para conferir ao livro de 1912 a configuração anti-épica, como se
110
depreende do fragmento abaixo, um dos quais, certamente, contribuiu para que
Guilherme de Castilho79 pensasse a perspectiva de história, em sua posição secundária
em relação ao conjunto da narrativa, como uma narrativa histórica de pendores
metafísicos:
Fujam! Fujam! Canhões, homens, Bonaparte, a guerra, tudo isto é
frenético e imenso. Foi grito, é agora vagalhão colérico, diante da qual
reis, ministros, corte, cada vez se sentem mais pequenos e grotescos. É
a Vida. É um século de discussão, de análise, de balbúrdia, de
mixórida, de cóleras, em marcha sobre a Ideia, que os apavora, que
fogem, como diante dum jacto de luz. Por trás do pequeno exército
que avança, há os mortos, há os milhares de milhares infindáveis, há
uma Sombra desmedida que encobre o céu... (BRANDÃO, 1982, p.
85)
A história que se desenrola aos olhos do leitor está comprometida com uma visão
pessimista não apenas da matéria histórica como também da expressão literária. É certo
que a tensão entre pessimismo e sonho compõe uma das bases da produção estética de
Raul Brandão. Ao referir-se aos mortos, ao enaltecê-los, ao ressaltá-los como horda
incontável que se acumula incessantemente como ruínas e como sujeitos arruinados, o
escritor, numa escrita que se anuncia e se antecipa à grande guerra mundial (19141918), prenuncia o surgimento dessa “Sombra”, que é o recrudescimento das ideologias
fascistas por toda Europa. A história histriônica de Junot, títere de Napoleão Bonaparte,
não é reflexo da suavização de uma escrita que pressente o emergir de uma outra
matéria histórica, uma história que, por estar excessivamente próxima e por compor-se
em meio à guerra, consubstanciar-se-á em ditaduras e em barbáries que o século XX,
essa era dos extremos (HOBSBAWN, 2008), conheceu?
79
Maria de Fátima Marinho segue os argumentos de Guilherme de Castilho (2006, p. 317), ao afirmar:
“Possuindo assim uma visão metafísica da História [...], Raul Brandão apresenta, em El-Rei Junot, uma
interpretação do papel que a Igreja e algumas figuras emblemáticas, como Rousseau ou Voltaire,
desempenharam no lento transformar da Humanidade” (MARINHO, 2005, p. 138). De certa forma, ao
associar interpretação à metafísica, os estudiosos fecham as portas para conceber a história como uma
forma de interpretar o passado, tal qual pontuou Hayden White (2001), posto que mesmo a historiografia
como gênero singularizado não prescinde da interpretação como método analítico.
111
No quarto capítulo, que é intitulado “A Fuga”, é proveitoso destacar que há uma
divisão em duas partes, a primeira em que o autor adensa o medo de que as tropas
napoleônicas cheguem a Lisboa; a segunda, em que o Príncipe Regente, numa tomada
que pode ser interpretada tanto como estratégia política como desespero militar (e sobre
isso, Raul Brandão não emite juízo conclusivo, deixando ao leitor a tarefa de fazê-lo),
parte com sua corte rumo ao Brasil, deixando às portas da cidade o general Junot e o
exército enviado por Napoleão Bonaparte para subjugar Portugal. Em ambas as partes
como em todo o livro, acentua-se o caráter de pesquisa histórica, patente nas volumosas
e úteis notas e na transcrição de tratados, cartas e traduções feitas a partir desses
documentos. Em muitas passagens, as notas de rodapé, no caso uma farta documentação
que revela a busca das fontes históricas a fim de embasar a narrativa, rivaliza com o
corpo do texto, não sendo poucas as vezes em que os subterrâneos da investigação
projetam-se como objeto central da escrita de Raul Brandão, e rompem a superfície do
espelho literário dotando-o do valor híbrido antes referido. Ao inserir em sua prosa
historiográfica a crítica dos documentos, o escritor comunica que “A história só é feita
recorrendo-se a uma multiplicidade de documentos e, por conseguinte, de técnicas” (LE
GOFF, 2001, p. 27), e torna a rede textual de El-Rei Junot ainda mais densa e complexa.
A diegese do livro é lenta e demorada (incrustada de detalhes e informações
oriundas de documentos a que Raul Brandão teve acesso durante a produção do livro),
analítica ao mesmo tempo em que descritiva; sucede-se o enredo, mas oscilam as
personagens, que se precipitam ao longo da narrativa, ao passo que as figuras
historicamente reconhecidas, tais como o general Junot, Napoleão Bonaparte, o príncipe
D. João, Pina Manique ou Carlota Joaquina entram e saem do foco dessa narrativa
histórica, fazendo crer ao leitor que a prosa escrita pelo autor de El-Rei Junot, essa
história literária de Portugal e da Europa no período que se segue à Revolução Francesa,
112
desprivilegia os acontecimentos em detrimento de uma leitura do processo histórico.
Leva-se a cabo a massa anônima – e anômala – do povo português, acompanhada dos
insurrectos espanhóis e da soldadesca inglesa. Divergindo da escola positivista, Raul
Brandão enfrenta o desafio histórico a partir de diversos enfoques, agregando à história
política a história econômica, a história militar, a história do cotidiano, a história das
mentalidades, a história das cidades portuguesas com seus desenvolvimentos
urbanísticos e de arquitetura. É, por assim dizer, uma idéia da história que já não se
concebe como mera descrição da sucessão de fatos, dos acontecimentos políticos de
determinada nação, mas que entende que, para compreender o processo histórico, é
imperativo olhá-lo a partir de diversas faces e perspectivas: o texto brandoniano se
propõe a ser uma narrativa híbrida, em que avultam os valores estético-literários sem
abrir mão da preocupação com a história, cuja tentação está instaurada no coração de
sua escritura. Talvez, por isso, tão singular seja o ato de analisá-lo.
Por interessar-se pela história das mentalidades, não seria de estranhar que o
escritor de Guimarães amalgamasse em sua escrita da história as qualidades messiânicas
da nação portuguesa, sobretudo num momento em que a existência do país está
seriamente abalada. O período do início do século XX aprofunda silenciosamente a
dependência entre a identidade portuguesa e seus mitos culturais.80 Daí que Raul
Brandão, nos passos do saudosismo e do projeto histórico-nacional de Teixeira de
Pascoaes, registre em El-Rei Junot, em diversas passagens, a perseverança do referido
80
Com efeito, a história portuguesa foi, desde o século XVI – quando se estabelecem os preceitos da
história moderna em contraposição à crônica medieval –, um discurso mítico construído a partir dos
vultos eleitos do passado, tal como aponta Lugarinho (1997, p. 230): “Recorde-se que a História de
Portugal dominante no imaginário português era a de caráter mítico que tornava o povo português em
eleito de Deus - esta História mítica, alegoria da decadência histórica de Portugal, no desenvolvimento da
modernidade, garantia a manutenção da identidade portuguesa.”. Entre as imagens que sustentam a
qualidade mítica da história portuguesa está, justamente, a emblemática figura de D. Sebastião,
reconfigurado na forma que uma escrita messiânica privilegia.
113
imaginário cultural, alinhavando o recrudescimento do mito de D. Sebastião ao delicado
momento histórico das invasões napoleônicas:
[...] e ainda Lisboa espera por D. Sebastião...Tinham reaparecido as
profecias. Um homem encontrara no quintal um ovo de galinha com
estas letras em relevo D.S.R.P., D. Sebastião Rei de Portugal, e o
bairro alvoroçou-se. Foi gente dos confins de Lisboa examinar o ovo,
que andou pelas casas “em uma salva de prata para se ver”, e o velho
passou à categoria de profeta. São chegados os tempos. Napoleão vem
aí com seus exércitos e então sairá de entre dois montes um homem de
avultada estatura e matá-lo-á. Os sebastianistas exultam com a notícia
do morticínios: “é o signal de que o dia está próximo”. Reaparecem as
trovas do preto do Japão, o atestado dos religiosos de Santa António
dos Capuchos (sic) sobre a ilha encoberta; as profecias do Canada do
Algarve, as do mouro de Granada, e andam em todas as bocas os
versos de Bandarra:
Desamparar o cortiço
Uma abelha-mestra vejo,
As outras com muito pejo
Não têm asas para isso.
Este sonho que sonhei
É verdade muito certa,
Pois lá da Ilha encoberta,
Vos há-de vir este Rei.
(BRANDÃO, 1982, p.163-164)
Eduardo Lourenço destaca que o “sebastianismo é a manifestação histórica, ao
mesmo tempo positiva e negativa, da ruptura entre a vida real e a imaginária, sintoma da
desordem causada pela nostalgia da ordem” (1999, p. 50). Essa fissura possível,
sublimação do real levada a cabo pelos homens e mulheres portugueses, é registrada
pelas lentes de Oliveira Martins não só como fenômeno histórico, mas também
sociológico. Recolhendo toda a sorte de fontes, documentais ou testemunhais, que
possam evidenciar a ascensão do mito sebástico em Portugal justamente quando a
metrópole perde seu rei para a colônia, Raul Brandão dá a dimensão de como os homens
e mulheres do povo, oprimidos pelas hostes de Junot, apegam-se aos fios tênues dos
mitos do passado, ainda plenamente vivos, a fim de resistir, não no aspecto militar mas
114
identitário, às invasões. Nem por isso, o escritor deixa de ter um olhar crítico e irônico
sobre o fenômeno.
As trovas populares cuidadosamente inseridas no corpo do livro fazem falar o
sentimento que se alastra no momento de agonia nacional. As fontes apontadas pelo
autor, em consonância com o que Marc Bloch denomina de crítica das fontes, advertem
aos leitores incrédulos que “seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema
histórico corresponde um único tipo de documento” (BLOCH, 2001, p. 80) Assim, a
utilização de uma pluralidade de fontes, sejam elas documentais ou testemunhais, insere
El-Rei Junot na perspectiva de uma prosa historiográfica do método crítico, que busca
não apenas descrever mas, sobretudo, analisar e elucidar um problema que se apresenta
ao narrador: “Não há como as cartas, os papéis íntimos, para nos dar a psicologia duma
época...” (BRANDÃO, 1982, p. 208).
Por ser obra que contempla sua parcela da análise das mentalidades, é sobretudo o
aspecto nacional dessa mentalidade que se destaca na narrativa brandoniana. As cidades
portuguesas – sobretudo a cidade do Porto (“O Porto (70 mil habitantes) é também uma
cidade feia e espessa, com o rio na alma – o Porto é granito e sonho”; BRANDÃO,
1982, p. 220) – são figuradas como berço da resistência, espaço para onde aportam os
insurgentes. Não é o apoio político ou a frágil campanha militar inglesa em Portugal,
com seus navios fundeados ao largo do Tejo, que tornam possível a resistência e a
vitória portuguesa sobre as hostes napoleônicas. O êxito heroico, empreendido pelos
heróis da nação (é o povo em detrimento dos seus governantes), desnuda uma narrativa
que rompe com os padrões da historiografia tradicional, para quem um reino depende
fundamentalmente de seu rei. Mas a plena vitória nas guerras napoleônicas não é
possível e a Portugal resta o direito de sobreviver como nação sob a tutela de Inglaterra.
115
Raul Brandão atendeu à tentação histórica. A intelectualidade portuguesa desejou
em El-Rei Junot a presença de um texto plenamente historiográfico, da mesma forma
que a sociedade lusitana assim havia recebido a produção de Oliveira Martins: narrador
de uma outra história. Contudo, na sua história como representação dramática lateja a
expressão literária de quem não abre mão de ser romancista. Se essa hibridez de caráter
levou a crítica literária brandoniana a desconsiderar o livro de 1912, por seu turno, os
que leram El-Rei Junot pelo viés da mera pesquisa historiográfica ficaram
desconcertados:
Penso que o historiador precisa de ser crítico, e quem diz crítica diz
serenidade. Felizmente que nesta obra a sua subjetividade tem a contêla os aros em que a história se enquadra. Pobre de uma obra histórica,
eu temo que o seu talento vá até às visualidades que vivem paredes
meias com a morbidez. [...] Carlyle, o seu mestre muito amado (vê-se)
sabe conter-se e dizer o que quer dizer; conhece a arte de moldar as
suas exaltações geniais em geniais plasticidades. Mas isto não quer
dizer que o seu El-Rei Junot não seja interessantíssimo, superior,
notável, cheio de violência, de topo [torpor?], de vida e
extraordinárias evocações.81
Passado um século da publicação original, o livro em que Raul Brandão expôs, de
forma imanente, a sua concepção da história, ainda intimida a crítica, emudecida senão
pelas considerações de Guilherme de Castilho e de Maria de Fátima Marinho, o
primeiro há muito excedido pela ensaísta, nesses dois textos solitários82 que
indisfarçavelmente denunciam uma ferida aberta no coração dos estudos brandonianos.
El-Rei Junot não é pobre de matéria histórica nem é excessivo em expressão literária – é
que sua ideia da história, essa duração em fragmentos, atônita, só pode ser apreendida
81
Cota D2/229, Biblioteca Nacional. A missiva é de Antero de Figueiredo a Raul Brandão e data de 23 de
junho de 1914 (Foz do Douro).
82
Para restituir plenamente a verdade, pode-se encontrar outra análise de El-Rei Junot, desta feita para
apresentação em um congresso no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro que tinha por
tema os duzentos anos de chegada da família real ao Brasil (RIOS, 2008b). A comunicação (“A ficção faz
a história: Raul Brandão (re)escreve o percurso de D. João VI”) apresentada era, no entanto, precipitada,
embora tenha me permitido iniciar as reflexões em torno do livro de 1912. Fica devidamente substituída e
alargada por esta que ora se apresenta.
116
quando concebida como drama, daí que seja impossível conceber o texto apenas como
literatura ou apenas como história – a interdisciplinaridade é inolvidável. Ver nas
páginas desse livro tão diverso o protagonismo dos silenciados pela história positivista
inquieta-nos porque ainda estamos acostumados a pensar a história como matéria
estática, imutável. Raul Brandão abala a fixidez das figurações históricas para construir
na sua prosa historiográfica um paradigma narrativo para a literatura portuguesa no
século XX, embebendo El-Rei Junot com seu projeto de modernidade: “Prá frente! –
Prá frente! – Prá frente – e há desgraçados que para fugirem à dor metem a espingarda à
boca e fazem saltar os miolos! (BRANDÃO, 1982, p. 57). Saltemos, então, ao próximo
texto literário objeto desta investigação.
117
Capítulo III
DE TRAPOS E TRAPEIROS
Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.
Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...
Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .
E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.
[CRUZ E SOUZA, João da. Poesia completa, 1993.]
118
Este capítulo tem por objeto de investigação a narrativa
História dum Palhaço, publicada por Raul Brandão no ano de
1896. A partir da análise do texto literário observa-se que a
imagem do palhaço, esse trapeiro do fim-de-século, sofre o
deslocamento de seu significado inicial para remeter à morte e
à ruína, obsessões da cena finissecular. Nesse contexto torna-se
necessário o estudo da alegoria, especialmente a alegoria
barroca ou moderna, porque é o olhar alegórico o
procedimento estético que permite a ressignificação da imagem
em tela. O conceito de barroco elucida, portanto, o modo de
construção alegórico do texto e ainda as concepções de
literaturas e de história que se articulam no interior da
narrativa brandoniana.
3.1. O procedimento alegórico
Debruçar-se sobre História dum Palhaço é tão mais instigante quanto mais se
pensa que a crítica contemporânea83 tem deixado no limbo do esquecimento esse livro
de Raul Brandão, escrito ainda no fenecer do século XIX, obra que pode se apresentar –
e que é a justificativa para este capítulo – como chave para uma leitura alegórica da
literatura brandoniana. A visão do escritor de Guimarães está alicerçada em um
procedimento alegórico de configurar a própria escritura, para o qual a ruína, efeito
estético da catástrofe, é a imagem que resulta da elaboração de sua arte literária.
Com efeito, se se pode compreender a escritura de Raul Brandão inequivocamente
ligada à modernidade que o século XIX inaugura e o século XX aprofunda, parece-me
indispensável deter-me na observação do livro publicado em 1896 que, tal qual a maior
parte dos livros do escritor, foi refundido nos anos seguintes. Em se tratando de como o
escritor da Foz do Douro distingue-se por sua peculiar concepção de narrativa – uma
estética do trapo –, importa-me ainda mais pensar a partir de um texto que é duplamente
83
Consultar as fases da crítica brandoniana, segundo a divisão proposta no primeiro capítulo desta
pesquisa. Os três estudos críticos que perpassam a narrativa de História dum Palhaço (resultados ainda da
crítica de reabilitação do escritor) serão retomados quando se julgar necessário, ressalvando-se que as
propostas das investigações divergem das aqui apresentadas.
119
tocado pela História: história que obriga a pensar a História; texto que reflete e é
refletido no contexto finissecular.
História dum Palhaço, cujo subtítulo é “A vida e o Diário de K. Maurício”, é,
muito provavelmente, a obra em que Brandão permite que melhor se observe sua visão
barroca e messiânica de uma perspectiva literária da história, que já se distancia do
positivismo oitocentista. Barroca, porque não há como dissociar o conceito de história
em Raul Brandão da ideia de ruína e de catástrofe, o que faz pensá-lo ao largo de
Nietzsche e, sobretudo, de Walter Benjamin; messiânica, porque quanto mais
desesperadoras se mostram as perspectivas de futuro no interior do texto em análise,
mais resiste a esperança e mais se solidifica a alegoria da Árvore.84 A propósito, embora
esta leitura se detenha tão somente na alegoria do palhaço, o próprio autor, ao refundir o
texto e republicá-lo em 1926, deu-lhe outro título,85 deixando à mostra uma dualidade
que se constrói a partir do par Palhaço/Árvore: o homem enquanto resultado de suas
experiências vividas pelo choque86 à beira do fim-de-século, e a necessária comunhão
com o cosmos, o desejo da metafísica.
Helena Carvalhão Buescu sublinha que o “o tempo oitocentista se figura doente
de uma violência para o qual já não há antídoto” (2005, p. 112), associando, na
sequência, o conceito de mal-do-século ao de fim-de-século. O palhaço de Raul
Brandão permite amalgamar, numa única imagem, as figuras tutelares de um Baudelaire
que pensa a modernidade e o espaço da cidade como local privilegiado de sua
84
Vergílio Ferreira, no ensaio “Raul Brandão e a novelística contemporânea”, corrobora o caráter
messiânico da escritura do autor português, ao afirmar que sua obra é atravessada por uma “missão
messiânica” (1995, p. 273).
85
A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore: nesta versão, a reestruturação da narrativa original se torna
patente ao se observar não apenas a disposição dos capítulos/opúsculos ao longo da obra, mas também a
busca por um equilíbrio entre as imagens alegóricas do Palhaço e da Árvore. Na primeira versão do texto,
“O Mistério da Árvore” está circunscrito a pouco menos de quatro páginas, em que a Árvore viabiliza-se
como a leitura possível de um paraíso edênico impossível, porque desgraçado desde o princípio dos
tempos, embora nele residam a esperança e o sonho.
86
Para uma melhor definição do conceito de experiência e seus desdobramentos (a autêntica e a vivida
pelo choque), consultar o ensaio “Experiência e pobreza” (BENJAMIN, 1994, p. 114-119).
120
manifestação: o dândi, o flâneur e o trapeiro. Recolhendo os despojos da violência do
tempo, os cacos de uma história necessariamente fragmentada e arruinada, o palhaço
brandoniano emerge como arauto do crepúsculo, não apenas porque a escritura do livro
marca de forma decisiva o projeto estético de uma geração, a dos Nephelibatas, situada
a meio caminho entre naturalismo e decadentismo, mas também por incitar o leitor à
leitura revigorada do anjo benjaminiano, o qual é descrito na tese IX de “Sobre o
conceito da história”:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um
anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O
anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia única de acontecimentos, ele vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína
e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso
e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechálas. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual
ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso. (1994, p. 226).
O anjo retratado por Paul Klee e apreendido por Walter Benjamin leva a pensar
numa imagem grotesca e trágica, de feições disformes, que luta contra a violência do
tempo, ao passo que também se sente atraído por ele, e é impelido a colar os fragmentos
na tentativa de resgatar os cacos perdidos da história. Como o anjo benjaminiano, o
trapeiro de Baudelaire, esse herói87 que mira a catástrofe, incumbe-se de recolher os
trapos que ficaram dispersos pela Paris da segunda metade do século XIX, colecionando
toda a ordem de “enxurro”, para lançar mão de uma palavra tão ao gosto de Raul
Brandão. Benjamin ainda adverte de que
87
Entende-se por herói o conceito explicitado por Walter Benjamin em sua interpretação da escritura
baudelairiana: o “herói é o verdadeiro objeto da modernidade” (1997, p. 73), encena-a, representa o
próprio papel, cola a máscara à face e não a deixa despregar.
121
Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos; solitários, ambos
realizam seu negócio nas horas em que os burgueses se entregam ao
sono; o próprio gesto é o mesmo de ambos. Nadar fala do andar
abrupto de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade, à cata
de rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo instante, se
detém no caminho para recolher o lixo em que tropeça. (BENJAMIN,
1997, p. 78-79).
A figura trágica do trapeiro, envolto em trapos e colecionando trapos, confunde-se
com a imagem que se constrói do pobre, do desgraçado que, na narrativa brandoniana,
adquire certo status de artista e torna-se peça fulcral no desenvolvimento do conjunto de
sua obra88. Em História dum Palhaço, o escritor de Guimarães já se distancia de uma
história hegeliana, que prioriza o fatum e nele vê o motor do sentido histórico, mas se
aproxima do pensamento de Nietzsche, não apenas por compreender com este último
que o “fatum não é outra coisa senão uma concatenação de acontecimentos, que o
homem determina o seu próprio fatum tão logo ele venha a agir e a criar”
(NIETZSCHE, 2005, p. 64), mas também por colocar em dúvida a existência de Deus,
nem sempre por uma percepção teológica, antes por uma intuição histórica que aponta
para um total desamparo do sujeito homem – o homem entregue à própria sorte.
Neste sentido, é proveitosa a compreensão que Noéli Sobrinho faz do pensamento
histórico de Nietzsche ao afirmar, por contraponto, que “a visão hegeliana [...] afirma
que a história sempre foi escrita pelos vencedores, pelos que obtiveram sucesso” (2005,
p. 34). É neste passo que o pensamento anti-historicista de Walter Benjamin encontra as
bases da filosofia nietzschiana, porque o primeiro ensina que é preciso “escovar a
história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225) e, ainda, que é necessário “preencher
o tempo homogêneo e vazio” (Ibidem, p. 231), ao passo que o segundo assevera que
estamos “corroídos por uma febre historicista” (NIETZSCHE, 2005, p. 69), para depois
88
Utilizar-me-ei da primeira versão autoral (1896) por entender que o texto do final do século XIX é o
que melhor permite apreender de que forma a ideia de ruína começa a se delinear e a manifestar-se na
escritura do autor.
122
ponderar sobre os enganos de se deixar levar por uma história monumental e, portanto,
“acreditar que os grandes momentos da luta dos indivíduos formam uma cadeira
contínua” (Ibidem, p. 84). Nietzsche e Benjamin tornam possível, portanto, a escrita de
uma história dos vencidos, dos pobres, dos operários, dos trapeiros que espreitam à
espera de seu lugar na história. Daí que História dum Palhaço permita chancelar uma
leitura crepuscular da história, porque inserido na esquina do século sob os auspícios do
decadentismo ou ainda porque estritamente apocalíptico, uma história que, anunciada
por seu arauto, se desfaz em ruínas.
A alegoria do palhaço em Raul Brandão conduz à compreensão de que nele
residem, ao mesmo tempo, as figuras do flâneur e do trapeiro, sendo possível ir além e
sugerir que, se é o palhaço um artista de circo, também o é poeta decadente que perdeu
a aura da sagrada arte de fazer rir. Fusão de imagens, o palhaço ganha corpo como
arauto do fim-de-século, seja numa concepção da estética finissecular, seja na
perspectiva de que não é possível a escrita de uma narrativa que não se debruce sobre a
ótica dos vencidos, cuja preocupação ocupou significativa parte da obra brandoniana:
“Ai dos vencidos! pobre dos que hesitam um instante só![...] pra a frente! pra a frente!...
(BRANDÃO, 2005, p. 34).
Sob essa perspectiva, a literatura de Raul Brandão sinaliza um novo modo de
apreender a história, que não seja o de apagar o rastro dos vencedores, mas de resgatar o
papel daqueles que experimentaram e vivenciaram uma sucessão de descalabros. Nessa
esteira, observando que a “atitude revolucionária fundamental consiste em tomar o
partido dos vencidos” (ROUANET, 1990, p. 20), sublinhando que “cada momento
revolucionário impõe a tarefa de transgredir a história dos vencedores, de desarticulá-la,
de imobilizar seu fluxo, [...], de despertar de suas sepulturas os mortos” (Ibidem, p. 20-
123
21), o pensamento anti-histórico89 apontado por Walter Benjamin aproxima-se da visão
brandoniana, e ambos vislumbram uma história que “é objeto de uma construção”
(BENJAMIN, 1994, p. 229) da esfera do texto narrativo.
Na óptica da construção literária, História dum Palhaço tem a peculiaridade de
apresentar mais uma tentativa heteronímica ainda no século XIX: depois de Eça e antes
de Pessoa, é Raul Brandão que se empenha na criação de uma alteridade, fazendo-nos
ler, às primeiras páginas do livro:
Foi numa noite dessas que eu conheci K. Maurício. A sua Vida,
a sua Alma, ele a estatela no livro que se segue, e que deixou escrito.
É um romance incompleto e fácil é de ver que é quase uma
autobiografia: por isso lhe publico, juntando-lhe o que nos seus papéis
encontrei com o título de Diário.
Esta história dum palhaço desgraçado e abatido e sempre
agarrado à sua quimera não é bem a sua história?...
[...]
Eis aqui a história da sua morte[.]
[...]
K. Maurício estoirou a cabeça com um tiro de pistola, e era na
verdade o que ele tinha a fazer de melhor. (BRANDÃO, 2005, p. 3335).
Observa-se que Raul Brandão rejeita, ao assinar essa espécie de apresentação
(parte fundamental da obra), o papel de narrador-autor, desvelando um processo de
ficcionalização da escrita quando confere ao alter-ego K. Maurício a construção
primeira dos textos que se seguem no volume, ao passo que o escritor, sujeito empírico,
é apontado como editor ou narrador-comentador dessas páginas plenas de densidade
psicológica e elevada carga dramática.
História dum Palhaço acentua, assim, a marca de falso diário, reforçado nas
páginas subsequentes, em que se lê: “Decerto que ele nem sempre foi sincero, mas [...]
89
Observe-se que na teoria da imanência da história de Walter Benjamin, a história natural deve ser
encarada como “uma história cega e sem fins” (ROUANET, 1984, p. 35), ao passo que a anti-história é o
contra-movimento empreendido pelo tirano a fim de naturalizar a história, domesticá-la, mesmo sabendo
que a história é sempre indomável. Na seção destinada ao estudo do barroco, e, por conseguinte, da visão
barroca da história, deter-me-ei um pouco mais nestes conceitos.
124
raro pensou que teria leitores, assim como em todas as páginas que eu a seguir
transcrevo, e em muitos pedaços escritos como sentidos e atirados para o papel numa
sofreguidão de se contar” (Ibidem, p. 56, grifo meu), pelo que justifica, em termos de
coerência textual, o narrador-comentador adjetivar o livro de “mal escrito, áspero, com
frases inacabadas” (Ibidem, p. 55). Essa aguda consciência crítica do texto e essa busca
por artifícios que o tornem mais elaborado do ponto de vista da diegese ficam ainda
mais perceptíveis quando, ao transformar o circo em teatro (e nesse processo o artistaespontâneo perde espaço para o autor-arquiteto), o filósofo Pita dispara: “- Fora o autor!
fora o autor!” (Ibidem, p.133).
Importa pensar a escrita brandoniana não somente como escrita literária que
permite apreender uma ideia de história, que ganha corpo no interior da prosa em
questão, desvelando a imagem da ruína como princípio estético da escritura de Raul
Brandão. É preciso entendê-la como literatura que se autorreferencializa, seja porque
revela a percepção do autor no que tange a não posicionar a fronteira entre narrativas
literária e histórica de forma estanque – e nem mesmo os limites entre os gêneros
literários –, como se viu na leitura crítica de El-Rei Junot, seja porque constitui o
próprio marco estético, na esteira de uma obsessão pela ruína, pelo trapo, pelo
fragmento. Se esses (des)contornos – o desajuste milimétrico da narrativa – não estão
ainda plenamente sedimentados em História dum Palhaço, completar-se-ão quando o
fio narrativo não puder mais ser desfeito, porque já não se encontra a sua ponta e, desse
modo, não conduz o leitor a lugar algum, mas apenas o submete ao angustiante labirinto
do sujeito, este um narrador que experimenta o abalo do tempo como categoria formal
da narrativa, um tempo paralítico fugidio e prolongado (“O que sobressai [...] é a
paralisia do tempo, perdido nas ninharias do quotidiano, na insignificância das coisas”
e mais adiante: “o tempo, numa lentidão angustiante, corrói, como o caruncho que
125
atinge a madeira, todas as coisas e pessoas, eternamente”; RUAS, 2001, p. 3).90 Esse
livro, como reitera a crítica, é Húmus: “As velhas, por exemplo, não são más, mas teem
atraz de si seculos de ruina e de destroços. [...] Vae remexer no que estava sepultado ha
dois mil annos, no bolor e no bafio, nas paredes compactadas da Sé, nos santos
immoveis nos seus nichos, na inutilidade e no habito”. (BRANDÃO, 2000b, p. 64-65).91
O escritor dá a entender que o texto que se apresenta em História dum Palhaço
resulta de documentos diversos, papéis deixados por K. Mauricio, entre os quais um
romance autobiográfico. Essa trapaça ao leitor, posto que a narrativa se estrutura em
uma série de encaixes de níveis diegéticos distintos, leva à observação de que o
atormentado K. Maurício multiplica-se em avatares, desdobra-se em outros sujeitos, no
que se pode denominar uma orquestra de contradições: o Pita, o Anarquista, o Doido e o
Palhaço são máscaras de uma mesma personagem-hidra, sujeito oculto de mil faces,
que, por meio de diálogos essencialmente burlescos, fazem do livro em questão uma
obra cuja convergência crepuscular incita a pensá-lo como monólogo de múltiplas
vozes.92 A invocação catártica do sonho passa a fazer frente à inevitabilidade da morte:
“Deixa-me explicar-te isto melhor: é como se eu fosse composto de diferentes seres,
cada um com as suas ideias, os seus sonhos e as suas ilusões” (BRANDÃO, 2005, p.
72).
Vergílio Ferreira já observara que a multiplicação desses vultos, faces de uma
mesma personagem fundamental, contribuiu sobremaneira para a percepção de que a
estrutura da narrativa em questão anuncia um novo mundo narrativo (“Ora Raul
90
Embora a ensaísta aponte para a problemática do tempo especificamente em Húmus, é possível
identificar que o escritor de Guimarães opera na História dum Palhaço um processo semelhante quando
se debruça sobre a categoria temporal.
91
A ortografia foi mantida conforme a edição consultada (1ª edição fac-similada, sob organização de
Maria João Reynaud).
92
Se a ideia do “monólogo de múltiplas vozes” pode, em princípio, parecer contraditória, sustenta-se na
paradoxalidade da escritura de Raul Brandão. No interior do texto, não há propriamente diálogos, mas
monólogos distintos que ecoam pelo texto, numa ressonância de vozes que, além de não permitirem a
identificação individual na narrativa, contribuem para a acentuação do viés dramático.
126
Brandão surge quando todas as estruturas do realismo-naturalismo são postas em causa
e um novo mundo se anuncia”; 1995, p. 272), de viés flutuante, instável como só o
abalo provocado pelos efeitos do sentimento finissecular pôde suscitar. Esse artifício
estético
é
sentido
também
quando
os
textos
brandonianos
comunicam-se
deliberadamente ao fomentar expressiva partilha de personagens, como se cada uma
dessas faces significasse uma máscara, máscaras que também o homem é impelido a
assumir. A repetição,93 como recurso estilístico e mnemônico, de que Raul Brandão
lança mão exaustivamente, entra em ação para dotar o livro de 1896 de uma forma
labiríntica, assumindo quase a forma de litania baudelairiana94 à qual o leitor é exposto:
“A flutuação da organização interna de seus livros – escrevi algures – sentimo-la em A
Morte do Palhaço, em que há a repetição ipsi verbis de um largo trecho” (FERREIRA,
1995, p. 277).
No texto brandoniano, considerando, portanto, o Palhaço como a compósita face
finissecular da narrativa em estudo, o desgraçado artista de circo é tomado de amores
por Camélia, uma comediante ambulante, com quem trabalha. Ao gosto da estética de
Raul Brandão, a narrativa prioriza sua tensão psicológica, entremeando o drama do
amor e o desejo incontido de morte. Desde o princípio da narração, sabe-se que o
Palhaço/K. Maurício encontrará seu fim no suicídio (“Trinta anos, um feitio encolhido,
velho, e nem frescura de alma ao menos. Para que é que eu vivo?”; Ibidem, p. 63) e que
93
Jacinto do Prado Coelho, sublinhando a força dos mecanismos de repetição para uma configuração
estilística na obra de Raul Brandão, diz que “No Húmus, a reiteração é um dos princípios dominantes quer
da composição quer do estilo.” (1996, p. 295).
94
O poema “As litanias de Satã”, publicado em As Flores do Mal, traz à baila o recurso anafórico por
meio do qual Baudelaire opta por exaltar o lado satânico do ser. Por meio do processo alegórico, o poeta
rompe a imagem inicial do anjo, levando-a a um novo patamar de sentido, qual seja: aquele que se
desabriga de uma estrutura moral judaico-cristã para abraçar o mal como estética cimeira da arte do
século XIX. É possível reconhecer no processo de configuração alegórica do palhaço, na obra de Raul
Brandão, os passos sequenciados de uma estética finissecular, que reiteradamente apela ao desajuste, ao
desconcerto, ao mal como organização interna manifestada na forma da desordem. Assim expressa o
poema de Charles Baudelaire: Ó tu, o anjo mais belo e sábio entre teus pares, / Deus que a sorte traiu e
expulsou dos altares. // Tem piedade, ó Satã, de minha atroz miséria!// Ó Príncipe do exílio, a quem
fizeram mal / E que, vencido, sempre te ergues mais triunfal, // Tem piedade, ó Satã, de minha atroz
miséria! // Tu que vês tudo, ó rei das trevas soberanas, / Charlatão familiar das angústias humanas, // Tem
piedade, ó Satã, de minha atroz miséria! [...] (BAUDELAIRE, 2002, p. 207)
127
é por saber-se desgraçado que anuncia uma história em que o triunfo não é possível,
uma história para a qual o progresso nada mais é do que a ilusão que as filosofias do
século XIX assimilaram.
Em História dum Palhaço, Raul Brandão prenuncia o trabalho detido com a
categoria temporal, que será marca indelével de sua narrativa, quando suspende a
exterioridade temporal da ação95 e, em efeito de adensamento, permite ao leitor
debruçar-se sobre a singularidade de cada personagem. O efeito estético obtido resulta
na potencialização da cena dramática, o que parece antecipar o próprio teatro do escritor
e permite pensar a literatura brandoniana como, muito provavelmente, a mais expressiva
cena dramática do teatro do fim-de-século, sem ainda ser teatro propriamente dito.
A morte de Gregório, personagem que se manifesta como umas das faces do alterego K. Maurício, é trazida ao texto como se fosse encenada no centro do palco. Cercada
de palhaços, a multidão anônima observa o falecimento: “E todos se curvaram em volta
do catre, os palhaços mascarados, roxos, púrpuras, a Dona Felicidade, para verem o
último esgar do Gregório, enquanto o Pita berrava: – Pode cair o pano!” (Ibidem, p.
124). A similaridade com a técnica teatral não é apenas insinuada, textualmente
referenciada, torna-se presente em muitos fragmentos do texto, contribuindo para
conferir-lhe o tom moderno de sua elaboração, em especial neste em que se pode
presenciar o conceito de morte como espetáculo ou ainda a morte como rito encenável.
95
Quando digo que o livro de 1896 prenuncia o desmonte do tempo, enquanto categoria do romance, é
porque é no Húmus, vindo a lume quase duas décadas após, que a opção pela suspensão temporal na
constituição do tempo é consolidada, sublinhando o que o escritor de Guimarães apela à paralisia do
tempo. Vergílio Ferreira assinala que “Húmus passa-se num instante que se prolonga. Há a mecânica dos
gestos, ou seja, um gesto único. Um instantâneo fotográfico fixá-lo-ia num ápice da sua realização”
(1995, p. 280). E ainda: “Porque em Húmus não há tempo. É a luz da eternidade que a multiplicidade da
vida aí se nos revela e a eternidade é imóvel.” (Ibidem, p. 279). Entre os colaboradores da crítica
contemporânea que se debruçaram sobre a problemática do tempo na novelística brandoniana, consultar o
ensaio “Húmus, um romance em deriva: notas sobre a problemática do tempo” (RIOS, 2008a), publicado
na revista Diadorim, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre os renomados críticos
portugueses, consultar os ensaios de Jacinto do Prado Coelho (1976: “Da vivência do tempo em Raul
Brandão”) e de Maria Alzira Seixo (1987).
128
Se, como dito, a percepção brandoniana da história é, simultaneamente, barroca e
messiânica, é certo que a afirmação carece de maior explicação e uma passagem pelo
conceito de barroco é necessária para sustentá-la de modo satisfatório. É preciso antes,
no entanto, recuperar o uso benjaminiano da alegoria. Se o símbolo carrega consigo a
perenidade de seu significado, mostrando-se como síntese da imagem que transmite, a
alegoria96 resulta de um processo histórico, envelhece e ressignifica-se com o passar do
tempo, devendo, portanto, ser analisada como produto de uma dada interpretação crítica
que tem, em seu princípio, a arbitrariedade da escolha:
Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e
da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a
linguagem sempre diz outra coisa (allo-agorein) que aquilo que
visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um
sentido último. (GAGNEBIN, 2004, p. 38).
Há de se destacar que, diferentemente do símbolo, cuja significação guarda
relação de motivação com a imagem que representa, a alegoria, por sua singularidade na
significação não pode ser tomada no sentido globalizante, como ajuíza Maurice
Blanchot: “É claro que o símbolo não é alegoria, isto é, não tem como meta significar
uma ideia particular por uma ficção determinada: o sentido simbólico só pode ser um
sentido global, que não é o sentido deste objeto ou desta conduta separadamente” (2011,
p. 87).
Embora se aponte especificamente para o uso da alegoria na expressão literária, a
significação que determinadas imagens adquirem em diferentes culturas pode auxiliar
96
Charles Baudelaire (2002, p. 200-201), assim escreve sobre a alegoria em célebre poema: “É uma bela
mulher, de aparência altaneira, / Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira. / As tenazes do amor, os
venenos da intriga,/ Nada a epiderme de granito lhe fustiga. / Da Morte ela se ri e escarnece da Orgia, /
Espectros cuja mão, que ceifa e suplicia, / Respeitaram, contudo, em seus jogos de horror, / Neste corpo
elegante o rústico esplendor. / Caminha como deusa e dorme qual sultana, / E mantém no prazer uma fé
maometana. / Braços em cruz, inflando os seios soberanos, / Com seu olhar convoca a raça dos humanos.
/ Ela sabe, ela crê, em seu ventre infecundo, / E no entanto essencial ao avanço do mundo, / Que a beleza
do corpo é sempre um dom sublime / Que perdoa a sorrir qualquer infâmia ou crime. / O Inferno
desconhece e o Purgatório ignora, / E quando a negra Noite anunciar sua hora, / Da Morte ela há de olhar
o rosto apodrecido / – Sem remorso ou rancor, como um recém-nascido.”
129
no esclarecimento do conceito. Na maior parte das culturas ditas ocidentais, a caveira ou
ainda o esqueleto humanos provocam sentimentos negativos no espectador, que as
associam à morte, à dor e à inexorável fatalidade humana. No entanto, se se observar o
modo pelo qual a mesma constituinte opera na cultura mexicana, verifica-se que a
caveira ou o esqueleto, cujo valor intrinsecamente alegórico para a cultura do ocidente
se constituiu a partir da Idade Média, adquire outra significação, divergente da primeira
anteriormente apontada. É corriqueiro visualizar crianças brincando com esqueletos,
confeccionados em materiais coloridos, pelos espaços urbanos da capital mexicana,
numa comprovação de que o significado ao qual associamos a imagem não é
intrinsecamente ligado a ela, mas produto de uma construção histórica e cultural,
variável de cultura para cultura e com o passar das épocas. Contudo, o que importa para
a leitura do livro de Raul Brandão é como a alegoria opera no texto literário e na própria
crítica literária.
Em essência, toda crítica literária é alegórica, porque o olhar alegórico implica a
destruição do objeto, a sua desmontagem, para que das partes se possa compreender o
todo. A obra literária, ao ser analisada, é abalada enquanto tecido textual que funcione
per si e para si e renasce “instaurando o saber sobre esse desmembramento”
(CANTINHO, 2002, p. 61). A crítica benjaminiana, por sua vez, ensina que o ato
alegórico não prescinde da violência, é destrutivo, pois arranca a imagem de seu
significado inicial para reposicioná-la de acordo com as intenções do alegorista, uma
vez que “a alegoria despedaça todas as coisas em partes e atribui a cada parte um outro
significado. É como se o objeto tivesse que morrer e ser retirado de seu contexto
original, para que uma nova significação fosse possível.” (MACHADO, 2004, p. 39). A
alegoria constitui-se, portanto, transitória em sua natureza, porém carregada de uma
significação construída, que não aceita a mera identificação entre significante e
130
significado. Na sua base de sustentação, encontram-se a ruína e o fragmento, daí que “o
sentido literal não [...] [seja] o sentido verdadeiro” (GAGNEBIN, 2004, p. 32), e que a
imagem alegórica seja “a única forma possível de expressão da modernidade” (Ibidem,
p. 35); daí que o poeta da modernidade assim interprete a construção alegórica,
ressignificando-a no seio de sua escritura, para qual a imagem do cadáver não é objeto
de repulsa, mas antes de desejo.
Enquanto processo de interpretação, a alegoria diz sempre algo diferente, distorce
a simbologia primitiva para se fazer a partir de nova tecelagem de conceitos. Como
constructo teórico que importa a esta investigação, a alegoria é a melhor expressão do
drama barroco enquanto gênero literário autônomo, o Trauerspiel – que Benjamin
(1984) reporta em sua Tese de Doutorado, e que é objeto de considerações ao longo
deste capítulo –; e este é, por excelência, a materialização textual do barroco, que se faz
“acompanhar sempre pela figura da morte, como uma sombra pairante, a prova extrema
do desamparo e fragilidade da criatura que se encontra em queda” (CANTINHO, 2002,
p. 55). O sentimento que perpassa o Trauerspiel é o da melancolia e o gênero, que
irrompeu na região da Alemanha durante o século XVI, é marcado por exprimir “a
dramática e dialética condição do homem barroco e, portanto, isso, ele encontra a sua
explicação pela incrustação profunda na ordem da história-natureza” (Ibidem, p. 59).
Sergio Paulo Rouanet (1984, p. 9-10), em nota que faz à edição brasileira do
estudo de Walter Benjamin, chama a atenção para o fato de não encontrar vocábulo
completamente apropriado para traduzir o Trauerspiel alemão do século XVII, uma vez
que ao uso do termo “tragédia” somar-se-ia a interpretação como tragédia grega. Como
literalmente o termo original significa espetáculo lutuoso, o estudioso receou traduzir
Trauerspiel como tragédia, desta feita em sua acepção moderna ou barroca, optando,
dessa forma, pela expressão “drama barroco”, reservando o termo tragédia tão somente
131
ao gênero específico que encontra suas raízes na antiguidade97. Na esteira de sua
explicação quanto à estrutura do Trauerspiel, Rouanet lembra que o texto original de
Walter Benjamin não aborda o drama barroco sob a perspectiva da estrutura (“Essa
análise não foi feita por Benjamin”, 1984, p. 29),98 sendo essa, portanto, uma
interpretação do tradutor para o texto do filósofo alemão. Entre as principais questões
que diferenciam o Trauerspiel da tragédia grega,99 observa-se que “o registro da
tragédia é o diurno, ao passo que o do drama barroco é o noturno, pois à meia-noite o
tempo pára, voltando ao ponto de partida” (Ibidem). Verifica-se ainda que o gênero
alemão se identifica por “recorrer a todos os recursos cênicos: pantominas, coros,
grandes massas humanas, telas com pintura perspectivística e máquinas teatrais que
permitiam representar, por exemplo, batalhas aladas entre anjos e demônios” (Idem, p.
23).
O Trauerspiel encontra no Príncipe, portador de uma visão melancólica, o agente
do procedimento alegórico, porque o olhar do monarca transfigura tudo em ruína,
tornando possível a leitura dos cacos, dos fragmentos, dos destroços que se perderam no
decurso da história, encenando um “espetáculo lutuoso, destinado a homens enlutados”
(ROUANET, 1984, p. 29), portador de um olhar entristecido, que arranca o objeto de
seu lugar no tempo e o transforma em alegoria: “sob o olhar alegórico, as fachadas
97
Faço opção metodológica por não aprofundar no estudo da tragédia, por não residir no gênero da
antiguidade o objeto de investigação. Todavia, para maiores esclarecimentos, consultar o compêndio de
Albin Lesky (1996). No entanto, sublinho que Francisco Machado (2004) assim delineia a diferença
fundamental, do ponto de vista do argumento ou fundamento histórico-filosófico: “Originando-se o drama
barroco da concepção barroca de história, de sua revigorada imanência, a sua origem consiste numa outra
do que aquela da tragédia grega, a qual se enraíza no solo do mito.” (p. 36-37).
98
Francisco Machado sublinha alguns aspectos fundamentais do Trauerspiel enquanto gênero autônomo
e distinto da tragédia grega, a saber: “herói-príncipe (como tirano e mártir), local (corte como paraíso e
inferno), tempo (como catástrofe e salvação). Dessa análise, Benjamin chega à conclusão de que a
estrutura do drama barroco fundamenta-se numa concepção imanente do mundo. A história corre nele não
mais como na Idade Média, como história da salvação, mas sim como história natural não teleológica, que
tem duas faces: por um lado, ela significa destino cego e morte, por outro, ela é organizada e estabilizada
através do poder secular do soberano.” (2004, p. 35-36).
99
À semelhança do trabalho empreendido por Sergio Paulo Rouanet (1984), sempre que se utilizar, nesta
investigação, o termo tragédia referir-se-á ao gênero grego, em contraposição a Trauerspiel como drama
barroco alemão.
132
desabam” (ROUANET, 1990, p. 24). É esta alegoria barroca100 que importa para pensar
o texto brandoniano, porque é com a “(des)focagem decadentista do real” (PEREIRA,
1998, p. 9) que se desaba o edifício literário do realismo-naturalismo.
Se o Palhaço é, como tenho dito, o arauto do fim-de-século, interessa sublinhar a
forma como Raul Brandão o constrói: de hábitos noturnos, eternamente melancólico e
atormentado, flâneur que se sente só em meio a multidão que o aplaude, máscara de
sonho e dor101 (para o escritor sonho e dor são faces de uma mesma expressão), portador
de um olhar que em tudo vê apenas o defeituoso e o degenerado. Eis a caracterização da
personagem:
A esse tempo o Palhaço, tendo acabado de riscar a boca de vermelhão
e de empoar toda a calva, luzidia como uma bola de bilhar, espreitou
de cima, do corrimão. O circo visto do alto alucinava: batido da
claridade, como gás a esfuziar raivoso, parecia mover-se, rodopiar,
afundar-se, com a maré de cabeças da multidão a ferver, o galope do
cavalo, que agora recomeçava, a música que enervava, ventania de
raiva a soprar. (BRANDÃO, 2005, p. 107)
Dos muitos aspectos que uma leitura detida na imagem do Palhaço permite
abordar, é forçoso destacar a presença constante da música, 102 transformando o palco do
circo em palco de ópera, numa aproximação com Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo,
ópera em dois atos apresentada pela primeira vez no ano de 1892, no Teatro dal Verme,
em Milão. O próprio texto brandoniano oferece indícios para que a comparação texto
literário/ópera se sustente, pois, se por um lado Pagliacci é uma obra de fundo
100
Para um aprofundamento do estudo da alegoria, em especial a distinção entre a alegoria medieval e a
alegoria barroca (alegoria moderna), consultar Walter Benjamin (1984), em Origem do drama barroco
alemão.
101
Esta ideia já se encontra apresentada em alguns títulos da fortuna crítica brandoniana, dentre os quais
José Carlos Seabra Pereira (1995) e Vitor Viçoso (1999), apenas para citar os mais representativos.
102
A relação entre o texto brandoniano e a música pode ser construída não apenas se utilizando do
argumento de que há um espelhamento possível entre a ópera de Ruggero Leoncavallo e o romance de
Raul Brandão, mas, sobretudo, pelo lirismo característico de sua escrita, cuja construção da frase,
alicerçada em mecanismos prosódicos e de repetição, permite colocar em evidência tal aproximação. Não
raras vezes ainda, o escritor de Guimarães pontua no seu texto a descrição de cenas com uma espécie de
musica ambiente, asseverando o caráter crepuscular de sua arte. Todavia, se essa relação da obra de
Brandão com a música está aqui sugerida, não será objeto de maiores reflexões no decorrer da presente
tese. Fica, portanto, como sugestão a trabalhos vindouros.
133
passional, que tem por personagens principais os artistas de um circo em temporada de
apresentação numa vila da Calábria (região do sul da Itália), por outro, o K. Maurício da
História dum Palhaço, também artista circense, sofre de amores por Camélia, o que o
leva ao suicídio, tendo sido bandido na mesma região italiana em que se passa a ópera
de Leoncavallo. Ao triângulo Canio (Arlequim), Nedda (Colombina) e Silvio (amante),
Raul Brandão aprofunda a relação agônica que envolve K. Maurício, Camélia e um
terceiro comediante, Lídio, a quem a amada do Palhaço dedica o amor.
Uma divergência entre os desfechos das duas obras deve ser pontuada. Enquanto
na ópera, Canio assassina Nedda e Silvio, na História dum Palhaço é K. Maurício quem
se mata com um tiro de pistola, resultando numa epifania do trágico, para a qual a única
expressão possível é a máscara da dor, uma grave silhueta que permite pensar o quadro
de Edvard Munch, O Grito. A letra e a música de Pagliacci são de autoria de
Leoncavallo, cuja composição sob o signo do verismo exigia uma precedência de
inspiração em fato real, conforme Lauro Machado Coelho:
Corria o ano de 1890 e toda a Europa só falava do sucesso retumbante
da Cavalleria e do que ela significa para a ópera italiana em termos de
renovação. Leoncavallo dispôs-se então a seguir o exemplo de
Mascagni compondo uma ópera curta, mais fácil de montar e que,
obedecendo ao recém-estabelecido códice verista, se baseasse num
fato real. Inspirou-se num crime passional ocorrido em Montalvo, na
Calábria, no feriado da Assunção, dia 15 de agosto de 1865. (2002, p.
139).
É certo que a imagem do palhaço, o “bufão que deve rir e fazer rir mesmo com
coração partido” (KOBBÉ, 1994, p. 376), “lugar comum da arte deste meio século”
(FERREIRA, 1991, p. 179), não é novidade numa Europa que há muito se deleitava
com a música cênica e mesmo com o tema privilegiado do Trauerspiel barroco (cf.
CANTINHO, 2002, p. 71). A originalidade da obra de Leoncavallo, quase sempre
montada em conjunto com Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni, reside em
134
exacerbar o verismo ao limite, fazendo-se com que o fato real de sua suposta inspiração
passe a ser encenado no palco, diante dos olhos dos espectadores. Na ópera de 1892,
Canio, o palhaço traído, assassina Nedda e o amante Silvio, fazendo revelar que, à
encenação baseada no crime passional de 1865, se justapõe a complicação da frágil
relação entre os próprios artistas do circo envolvidos que, deixando de encenar, atuam
como se estivessem numa situação de homens reais: “A peça que eles apresentam ecoa a
situação que estão vivendo na vida real” (COELHO, 2002, p. 140).
A astuciosa composição de Pagliacci, num sofisticado mise-en-abîme que, mais
que funcionar como eco e ressonância do que se desenrola no palco, problematiza as
fronteiras entre a música cênica e o teatro, também está presente no texto de Raul
Brandão que, numa poética delirante, onde o jogo das máscaras impede que o leitor
identifique individualmente as vozes que narram o texto (por isto mesmo, prefiro tratálas todas como múltiplas vozes periféricas de um supranarrador ficcionalizado em seus
duplos: o narrador-comentador e, ao mesmo tempo, o narrador-autor, sendo este o
próprio palhaço que tem sua história contada no texto de 1896), escreve: “Nunca como
diante deste trapo de enforcado eu compreendi melhor a minha alma [...]. Eu riome...Mas vamos lá a contar a história do velho clown” (BRANDÃO, 2005, p. 67), para
a seguir acrescentar: “Muitas vezes me contou com redondos olhares de inveja as suas
noites no Circo” (Ibidem).
Um ponto que merece considerações é a forma como Raul Brandão travou contato
com Pagliacci, ópera que correu o mundo em montagens diversas, de Milão a Nova
York, passando por Londres, Paris e Rio de Janeiro103, entre outras cidades importantes
no circuito musical. A hipótese mais plausível parece ser a de que, quase sempre
103
De acordo com Gustave Kobbé, a trajetória de estreias da ópera seguiu o roteiro: “Estréia: Teatro dal
Verme, Milão, 21 de maio de 1892 [...]. Londres, Convent Garden, maio de 1893 [...]; Rio de Janeiro,
Teatro São Paulo, julho de 1893 [...]; Nova York, Grand Opera House, junho de 1893 [...]; Paris, Cercle
de l’Union Artistique, 1899 [...].” (1994, p. 375).
135
encenada em programa duplo com Cavalleria Rusticana, desde que um “espetáculo do
Metropolitan House de Nova York as reuniu em dezembro de 1893”, quando
“raramente se separaram” (COELHO, 2002, p. 133), o acesso a Pagliacci tenha se dado
via Cavalleria Rusticana, obra que, desde a temporada 1894/1895 no Teatro São Carlos,
em Lisboa, vinha logrando êxito de público, conforme evidenciam os dados tabulados
por Mário Vieira de Carvalho (1993, p 362). Na temporada de 1894/1895,
provavelmente encenada conjuntamente com a ópera de Mascagni, Pagliacci pode ter
sido vista em três representações, pelo que se observa o mesmo número de
apresentações na temporada Teatro São Carlos 1895/1896. Por seu turno, na temporada
1896/1897 verifica-se que a ópera de Leoncavallo ocupou o palco lisboeta em quatroze
apresentações solo, desbancando compositores como Puccini, Verdi, Bizet e o próprio
Mascagni.
O sucesso de Pagliacci far-se-á sentir nos anos subsequentes, notadamente até a
temporada 1899/1900, quando, a partir de então, os registros esboçados por Carvalho
(1993, p. 363) passam a apresentar exclusivamente Cavalleria Rusticana. Isto não quer
dizer, na mesma lógica do proposto para a temporada 1894/1895, que o público tenha
ficado sem as encenações da ópera de Leoncavallo. No entanto, mais do que elucidar
uma questão de fonte e influência, importa destacar como Raul Brandão apossou-se da
imagem do palhaço, transformando-o de simbologia reiteradamente explorada no
imaginário europeu desde a Idade Média em alegoria do crepúsculo, esse arauto do fimde-século, a que importa para esta leitura de uma outra concepção de história na
escritura do autor.
No texto de Leoncavallo (2011), o Palhaço (representado pela personagem Canio)
lamenta-se de sua condição miserável de, mesmo imerso em profunda melancolia, ser
136
obrigado a representar e fazer o público sorrir,104 acentuando ainda mais a própria
desgraça, como é possível ler no libreto da ópera. Essa postura estritamente barroca
também está presente no texto de Raul Brandão, indo além dos sentimentos expressados
pela personagem e atingindo a caracterização do Palhaço, este alter-ego de K. Maurício:
Que se sabia da vida do Palhaço? Apenas terminado o seu trabalho
desaparecia mudo, sem um sorriso, e toda a noite ou todo o dia o
passava no covil da casa de hóspedes, a tecer ideias e a sonhar... O
bico aguçara-se-lhe, mais salientes os maxilares, mais funda a ruga
que lhe cortava a face, e, duas ou três mechas de cabelo no crânio
davam-lhe como nunca uma expressão pícara e sinistra. A sua figura
ossuda tomara maiores angulosidades, feitios desengonçados e
torcidos. (BRANDÃO, 2005, p. 110-111)
Entre as passagens autobiográficas de K. Maurício, o trapeiro que enseja a
alegoria do fim-de-século, Raul Brandão pontua o texto com a presença de um narrador
que ora se confunde com o próprio protagonista, ora atua de forma a comentar
heterodiegeticamente sobre os acontecimentos passados numa cidade hipotética, em que
o Palhaço, pondo-se a clownear – e friso que o termo é do escritor –, registra com o
olhar adoecido a vida em tons claro-escuro, anunciando não apenas o triste desfecho que
o aguarda, mas a própria concepção que lateja no texto brandoniano: “Nesta hora
aflitiva do crepúsculo, quantas criaturas, transidas pela vida, se põem a tecer quimeras,
sonhos fugidios, nuvens!... Da terra começa a sair o hálito violeta da sua evaporação”
104
Recitar! Mentre presso dal delirio
non so più quel che dico e quel che faccio!
Eppur è d'uopo... sforzati!
Bah! sei tu forse un uom? Tu se' Pagliaccio!
Vesti la giubba e la faccia infarina.
La gente paga e rider vuole qua.
E se Arlecchin t'invola Colombina,
ridi, Pagliaccio... e ognun applaudirà!
Tramuta in lazzi lo spasmo ed il pianto;
in una smorfia il singhiozzo e 'l dolor...
Ridi, Pagliaccio, sul tuo amore infranto!
Ridi del duol che t'avvelena il cor!
Recitar! Enquanto tomado pelo delírio
Não sei mais o que digo e o que faço!
No entanto é necessário... esforça-te!
Ah! Se tu talvez fosses um homem? Tu és Palhaço!
Veste o casaco e a face enfarinha!
A gente paga e quer rir aqui!
E se Arlequim te rouba Colombina,
ri, Palhaço… e cada um aplaudirá!
Transformando em piadas o espasmo e o choro;
em uma careta o soluço e a dor...
Ri, Palhaço, sobre o teu amor despedaçado!
Ri da dor que te envenena o coração!
Tradução: Alfredo Sorrini e Marcela Magalhães de Paula
137
(Ibidem, p. 141). E logo mais adiante: “Aí vem, aí vem a desesperada hora do
crepúsculo...” (Ibidem, p. 149).
Talvez se pudesse dizer, na esteira de Walter Benjamin (1994, p. 228) nas suas
teses “Sobre o conceito da história”, que a classe oprimida, justamente aquela a que
Raul Brandão dá voz ao subverter a história positivista, ensaia no alvorecer do século a
luta de classes, o levante dos vencidos sobre os vencedores. Por outro lado, a leitura do
texto brandoniano põe-nos a ver uma classe operária que não se subleva, embora se
reconheça vítima de um processo truculento de exploração e de apagamento de sua
história. Ao anunciar a aurora da catástrofe, História dum Palhaço oscila do picaresco
ao sinistro, imergindo, outra vez, na alienação histórica, ou seja, permitindo que o
cortejo triunfal dos que escreveram a história siga seu percurso sem maiores percalços.
O Palhaço é desprovido da ação, não toma parte no processo de construção de uma
outra história, não reivindica um lugar na narrativa da humanidade – apenas lhe cabe a
função de contemplar impotente a violência do tempo.
3.2. Ressonâncias e desconcertos ou “Triunfo do barroco”105
A opção de conferir ao barroco um estudo mais aprofundado deve-se,
naturalmente, à tentativa de conferir ao texto brandoniano, notadamente a narrativa de
História dum Palhaço, o estatuto de estética barroca lida pela modernidade que o século
XIX precipita. O viés barroco de narrativas que estreiam em épocas posteriores ao
barroco histórico tem ocupado sistematicamente um maior número de especialistas em
estudos literários, com especial atenção àqueles que se debruçam sobre a
contemporaneidade.
105
O título desta seção é justa referência ao ensaio de Maria Theresa Abelha Alves (1994), que trata de
como o barroco tem sido relido por nossa modernidade.
138
Os elementos localizados no interior da narrativa de 1896, fazendo coincidir
significativa parte de sua estruturação interna com a construção do Trauerspiel,
aproximam-na do drama barroco alemão, parecendo configurar-se numa espécie de
drama neobarroco, talvez único na literatura portuguesa no que tange à originalidade e
ineditismo da proposta estética, como um gênero parente próximo daquele com que
Walter Benjamin se ocupou. A percepção estética torna-se ainda mais pungente quando
se tomam as palavras de Sergio Paulo Rouanet, ao afirmar que o “Barroco é habitado
pela antecipação da catástrofe, que destruirá o homem e o mundo, mas não é uma
catástrofe messiânica, que consuma a história, e sim a do destino, que aniquila” (1984,
p. 35).
Com efeito, se se pensa que o Trauerspiel não tem por força consolar o enlutado,
representado na figura do Príncipe, “paradigma do melancólico” (BENJAMIN, 1984, p.
165), mas encenar o luto, espetacularizar a imanência de uma história que é sempre
apocalíptica, torna-se patente que o teatro barroco toma a caveira e o fragmento como
alegorias de suma importância: “a alegoria significa a morte, e se organiza através da
morte” (ROUANET, 1984, p. 38). Por seu turno, o texto de Raul Brandão insiste nas
mesmas imagens a que o Trauerspiel se dedica, e da História dum Palhaço emergem
também aquela melancolia e aquele luto que se constituem na base do monarca barroco,
absoluto por excelência, que tenta, em vão, controlar a violência da história, a violência
do tempo. A narrativa brandoniana, assim, à semelhança do Trauerspiel, não possui
personagens em sentido estrito, mas investe no “aspecto de fantoches” (ROUANET,
1984, p. 34). E este é uma das “variedades mais típicas do teatro barroco – porque são
efetivamente fantoches, manipulados pela história-natureza” (Ibidem), como pode ser
observado no próprio Raul Brandão: “Vejo a desgraça em tudo” (BRANDÃO, 2005, p.
61), ou ainda: “Fechei-me no quarto transido, a imaginação a tecer-me pavores e
139
catástrofes” (Idem, p, 88). O texto brandoniano, assim como a narrativa de feições
barrocas, espreita incessantemente a catástrofe.
Como se depreende das passagens, o texto do escritor, a todo o momento, antevê
o apocalipse. Poder-se-ia considerar, por conseguinte, o decadentismo finissecular de
Raul Brandão, especialmente a sua face crepuscular, como o substrato de uma tendência
neobarroca106 nos fins do século XIX e primeiros anos do século XX? Em As 5 faces da
modernidade, Matei Calinescu mostra que a ideia de barroco (e, portanto, de
neobarroco) na segunda metade do oitocentos está, de algum modo, ligada ao conceito
de decadentismo: “Como o barroco, como o qual ele tem numerosos pontos em comum,
o decadentismo é para Croce uma forma historicamente concreta da eterna maldade”
(1999, p. 191). Por conseguinte, ao exercício estético do autor, soma-se a idéia de ruína,
que vai permitindo articular expressão literária e matéria histórica; imagem que é, em
linhas gerais, a que me norteia na função de perscrutar a sua literatura finissecular.
Conceber a escritura brandoniana como um exercício neobarroco107 é possível porque o
próprio barroco tem sido reabilitado enquanto estética literária plena, como ajuíza
Arnold Hauser:
106
O crítico Omar Calabrese ajuíza que o barroco, entendido na forma de conceito estético, pode se
manifestar em qualquer época da civilização. Diz-no que o termo deve ser lido como “categoria do
espírito, oposta à de ‘clássico” (1987, p. 27). Para o estudioso italiano, ao se admitir a existência de uma
arte neobarroca, não significa um retorno ao barroco tal qual ele tenha se manifestado no período
histórico: “Mas preciso desde já que a etiqueta [de neobarroco] não significa que tenhamos ‘retornado’ ao
barroco, nem que o que eu defino por ‘neobarroco’ seja a totalidade das manifestações estéticas desta
sociedade, ou o seu âmbito dominante, ou o mais positivo.”. Mais adiante acrescenta, ao definir
neobarroco como a “procura de formas – e na sua valorização – em que assistimos à perda da integridade,
da globalidade, da sistematicidade ordenada, em troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da
mutabilidade.” (Ibidem, p. 10). Por seu turno, João Adolfo Hansen explicita a relação entre a
informalidade do neobarroco e a vaga expressionista do fim-de-século: “É útil lembrar que, na morfologia
de Wölfflin, ‘clássico’ é definido como ‘formal’. Logo, ‘barroco’ implica ‘informalidade’. A suposta
‘informalidade’, no sentido dedutivo da categoria, foi programaticamente apropriada na vanguarda
expressionista alemã, no começo do século XX” (2006, p. 234-235). A presente investigação não
prescinde da relação entre estética expressionista e o conceito de neobarroco, daí se poder julgar a
literatura de Raul Brandão como representativa do que Omar Calabrese (1987) concebe por idade
neobarroca.
107
A observação sobre a existência de um contínuo estético que oriente a literatura de Raul Brandão em
direção a uma expressão de matizes neobarrocos, é ratificada por Joaquim Carlos Araújo, que diz: existir
de uma “constante tematização do locus horrendus da existência num universo não menos cinzento”
(1998, p. 23).
140
Só recentemente a arte do século XVII, no seu conjunto, tem sido
classificada com o nome de ‘barroco’. Quando surgiu, no século
XVIII, o conceito era ainda aplicado exclusivamente àqueles
fenômenos de arte que sentia, de acordo com a estética classicista
dominante, serem extravagantes, confusos e bizarros. (1997, p. 29).
Em todo o caso, já faz algum tempo que a estética barroca não tem se
caracterizado como degeneração da estética renascentista que a precedeu na maior parte
das literaturas em que se fez presente. A compreensão do barroco como forma não
prescinde de um novo trabalho com o olhar e no saber olhar, porque, como sugere
Ferreira Gullar, o barroco atualiza o olhar renascentista equilibrado e racional para
estabelecer um novo padrão entre observador e o referencial retratado. Segundo Gullar,
“No Barroco você tem a impressão de que o mundo está fora do quadro e o pintor
apreendeu um pedaço desse espaço, mas o mundo está lá fora. Esta é uma característica
[...] ao contrário da visão clássica, da visão renascentista” (2003, p. 220). Logo, é
forçoso pensar que considerar o barroco uma estética que age fundamentalmente sobre e
a partir do olhar, significa, talvez, pensá-lo como efeito que surge primeiramente nas
artes plásticas e na escultura, para somente depois ser instaurado no seio da literatura.
Helmut Hatzfeld (1988, p. 11-51) aponta como os críticos literários aproveitaram os
estudos sobre o barroco, elaborados pelos historiadores da arte, para, de modo peculiar,
estabelecer o parâmetro dessa estética na arte literária que, a par de se concretizar sob
formas diversas, consoante o país em que se manifesta, é um estilo de época
inicialmente europeu que, no bojo das expansões e dos períodos colonizadores que a
seguem, transplanta-se para onde a presença colonizadora europeia se fez mais forte: a
América (hispânica e portuguesa). Hatzfeld elege o método comparativo como o que
melhor permite um estudo do barroco, lembrando que
141
o termo [...] deve ser usado [...] sem levar em conta o orgulho de
espanhóis e alemães, que se orgulham de possuir uma literatura
barroca plenamente realizada, nem o medo que sentem ainda os
italianos e franceses de terem sido atingidos por um estilo que
consideram [...] desgraça” (1988, p. 41).
É justamente o período que compreende o final do século XIX e o início do século
XX, que coincide com o momento em que Walter Benjamin escreve sua tese sobre o
drama barroco alemão, e que Wölfflin “desenvolve o seu sistema assentado em cinco
pares de conceitos, em cada um dos quais se opõe uma característica da Renascença a
uma qualidade do Barroco” (HAUSER, 1997, p. 31), concebendo a estética do século
XVII a partir de uma “visão pictórica da realidade em contraste com a visão linear”
(HATZFELD, 1988, p. 15-16) dos períodos anteriores. Ferreira Gullar, por sua vez,
revela a sensibilidade de artista ao refletir que o barroco
divide a história da arte em duas linhas fundamentais. Uma que ele
[Wölfflin] chama de expressão ‘linear’, em que predomina o contorno,
a linha, a precisão, a definição dos planos, e outra, que ele chama de
‘pictórica’, em que predomina o claro-escuro, o meio-tom, a mancha,
que é basicamente a linguagem do Impressionismo108 e é também a
linguagem do Barroco. (2003, p. 222).
108
Posto que Ferreira Gullar, bem como críticos de arte renomados, a exemplo de Arnold Hauser (1982,
p. 1047-1112), situa o impressionismo na confluência dos preceitos do decadentismo, e observando, como
ver-se-á adiante ainda nesta seção sobre o barroco, que o expressionismo é vinculado a uma forma de
estética neobarroca, julgo por bem esclarecer os termos expressionismo/impressionismo lançando mão do
Dicionário de termos de arte, de Edward Lucie-Smith (1990), que estabelece: a) para o expressionismo:
“1. Primeiramente, um termo popularizado pelo crítico de arte alemão Herwarth Walden, editor da revista
AVANT-GARDE de Berlim ‘Der Sturm’(1910-32), para caracterizar toda a arte moderna oposta ao
impressionismo. 2. Mais tarde arte na qual a forma nasce, não directamente da realidade observada, mas
de reações subjectivas à realidade. 3. Hoje, qualquer arte na qual ideias convencionais de REALISMO e
PROPORÇÃO parecem ter sido destruídas pela emoção do artista, com distorções resultantes na forma e
cor.” (1990, 86); b) para o impressionismo: “Movimento artístico francês do séc. XIX, o qual tentou
utilizar a pesquisa científica contemporânea realizada acerca da física da cor (incluindo o trabalho levado
a cabo por Eugène Chevreul) para conseguir uma representação mais exacta da cor e TOM. A maior parte
dos impressionistas aplicaram a tinta em pequenos toques de cor pura, em vez de pinceladas fortes,
fazendo assim as pinturas parecer [sic] mais brilhantes do que as realizadas pelos artistas de SALON
contemporâneos. [...] Os pintores ligados a este movimento agruparam-se pouco antes da Guerra FrancoPrussiana de 1870-71. A primeira exposição impressionista realizou-se em 1874 e inclui trabalhos de
Monet, Renoir, Sisley, Pissaro, Cézanne, Dégas, Guillaumin, Boudin e Berthe Morisot.” (Ibidem, p. 108).
O primeiro capítulo desta Tese fez considerações sobre o expressionismo em Raul Brandão, sobretudo
quando se estabeleceu o elo entre o escritor e o pintor Columbano Bordalo Pinheiro – elo já apontado por
diversos pesquisadores, entre os quais, pela atualidade e profundidade da abordagem, recomenda-se os
estudos de José Carlos Seabra Pereira (1995) e de Jorge Valentim (2004). Pelo exposto, e ainda por ser o
142
Também Maria Theresa Abelha Alves percebe a linguagem do barroco como
essencialmente pictórica, na qual a visão se destaca em meio a essa poética dos cinco
sentidos, em que se constitui o estilo do século XVII, e ainda transforma cada
observador da arte numa espécie de voyeur que espreita a vertigem e a miragem: “A
emergência do flagelo, insistentemente, fere os olhos do visitante que se transforma em
voyeur da desgraça, através das imagens que, em progressiva repetição, dão conta das
ruínas em que se metamorfoseiam a triunfal Lisboa” (ALVES, 1994, p. 4).
Mudando absolutamente o modo de ver o mundo, o barroco, de origem europeia,
entranha-se na América e perpetua-se na Europa. Para alguns críticos, inclusive, não nos
separamos dele, o barroco permanece: “O Barroco está em nós, e nós nele. Temos de
salvá-lo, salvando-nos.” (ROUANET, 1984, p. 47). Walter Benjamin, por sua vez,
assinala a atualidade do barroco ao aproximá-lo das tendências expressionistas do fimde-século, compreendendo-o mais como intuição e estética do que escola de arte:
“Como o expressionismo, o Barroco é menos a era de um fazer artístico, que de um
inflexível querer artístico” (BENJAMIN, 1984, p. 77) e, a seguir, arremata: “É nesse
querer que se funda a atualidade do Barroco, depois do colapso da cultura clássica
alemã.” (Ibidem).
Embora a Espanha se considere como berço estético do barroco, um país barroco
por predestinação (HATZFELD, 1988, p. 18), é na Península Itálica, especificamente
nas cidades de Nápoles e Roma, que o estilo encontra sua origem, porque essa poética
do século XVII funda-se a partir do substrato renascentista: “O princípio fundamental se
mantém: posto que o Barroco nasce com o Maneirismo, e o Maneirismo é uma primeira
expressionismo a tendência estética que mais se familiariza com o Trauerspiel, segundo Walter Benjamin
(1984, p. 76-79), infere-se que o uso do impressionismo, por parte de Ferreira Gullar para qualificar a
linguagem barroca, parece menos apropriado que o uso do termo expressionismo, se se opta por uma
leitura do barroco pelo viés da modernidade. Dessa forma, parece que, em contraponto ao que aborda
Hauser (1982), no estudo referido nesta mesma nota, o decadentismo brandoniano difere do que o crítico
de arte aponta como tendência decadentista – ou ainda talvez seja o fato de se considerar que, tal como o
barroco, que o conceito de decadentismo é amplo, difuso, e a arte decadentista materializa-se em formas
diversas.
143
alteração das formas do Renascimento Italiano” (Ibidem, p. 44). Por esse princípio, e
sublinhando a informação de que as regiões germânicas não conheceram o renascimento
em sua acepção italiana, sendo mesmo a chegada da referida estética bastante retardada
em comparação à chegada a outros países europeus, tornar-se-ia problemático
considerá-los todos como uma mesma estética, o barroco histórico.
A crítica especializada tem insistido em afirmar que “o barroco abraça tantas
ramificações de caráter artístico, [que] aparece em tão diversas formas, nos diferentes
países e esferas da cultura, que parece duvidoso, à primeira vista, ser possível reduzi-las
a um denominador comum” (HAUSER, 1997, p. 27). Pelo exposto, deve-se tomar o
barroco como a estética que convida para um retorno ao gótico, esse estilo
genuinamente europeu, “uma tentativa de voltar a unir o que o Renascimento havia
desfeito”, isto é, a era gótica. Os ideais de Hatzfeld (1988, p. 26-27) referendam, assim,
o pensamento de Arnold Hauser, quando este afirma que “toda a arte do barroco está
cheia deste horror, cheia de eco dos espaços infinitos e da inter-relação de todo o ser.”
(1997, p. 39).
Críticos e historiadores da literatura, à imitação dos historiadores da arte, têm
considerado distintos os períodos do maneirismo, do barroco e do rococó,109 quando se
observa todo o período do barroco histórico,110 o que vai, tomando-se por modelo a
manifestação em território espanhol, dos finais do século XVI e se prolonga por todo o
século XVII. Se, conforme ensinou Hatzfeld, o barroco genético111 é aquele que decorre
de um aprofundamento do maneirismo, compreende-se que há uma notável diferença
entre as manifestações barrocas da Europa do Sul (católica) e da Europa do Norte
109
O conceito pode ser interpretado como sinônimo de barroquismo, conforme deixa depreender Hatzfeld
(1988, p. 40).
110
Aqui inferido como sinônimo de Era Barroca.
111
Utilizo-me da expressão para referir ao barroco que se origina nos países em que o renascimento em
sua expressão italiana se fez sentir, conferindo aos demais barrocos a condição de estéticas transplantadas
que, ao alojar-se nos países de destino, adquirem novos contornos e formas de expressão. Este é o caso,
por exemplo, do barroco alemão. Quando lanço mão do adjetivo “transplantadas” não o faço de forma
depreciativa.
144
(protestante), o que redunda em formas diversas, e ainda na dificuldade que os
estudiosos experimentam ao contextualizar a estética.
A presente investigação elege a divisão esboçada por Hatzfeld (1988, p.40) em
três gerações, substituindo a que se delineou no parágrafo anterior, considerando:
maneirismo (ou renascimento barroco), barroco (ou barroco clássico) e rococó,
destacando de todo o período do barroco histórico apenas o que compreende o barroco
clássico, tido ainda como barroco perfeito.112 No entanto, a classificação sugerida pelo
crítico de arte não se estende uniformemente a toda a Europa, centrando-se, sobretudo,
na Europa do Sul; e nem mesmo todas as nações aceitam plenamente a existência do
barroco clássico em seu percurso estético, a exemplo da França, que partilha a opinião
dos que defendem a ideia de um Classicismo barroco, mas não de um Barroco clássico,
isto é, a literatura francesa não aceita pacificamente a presença de uma era barroca, mas
a presença de traços barrocos em seu período clássico. Em todo o caso, o que importa
não são as inúmeras divergências que incidem sobre o estudo do barroco, enquanto
manifestação estética europeia, mas as suas convergências que permitem tomá-lo
enquanto conceito artístico.
Ferreira Gullar afirmou sabiamente que há “uma variedade enorme de barrocos”,
mas ressaltou as qualidades perenes, ao caracterizá-lo como estilo da “irregularidade,
[d]assimetria, [d]a paixão em lugar da racionalidade” (2003, p. 219). Nessas linhas
gerais, a pintura barroca, que se pode considerar como arte-parâmetro do barroco,
porque é dotada dessa essencialidade visual, “trabalha a ilusão no espaço [...], criando
perspectivas falsas dentro da perspectiva real, escadarias que não existem, reentrâncias
112
Sobre a não concordância entre os críticos no uso do termo barroco clássico ou perfeito, Hatzfeld
ajuíza: “Do nosso esquema geracional constituído pelo Maneirismo, pelo Barroco e pelo Barroquismo,
que passam de um país a outro, e emitem, no que poderia chamar-se uma “fuga”musical, o cantus firmus
do puro Barroco clássico, sempre a uma geração de distância entre um e outro país, surge a questão, hoje
tão debatida, em especial no que se refere à França: existe contradição ou, ao contrário, analogia ou
inclusive identidade entre o Barroco e Classicismo.” (1988, p. 46).
145
de vazios e cheios que não existem, mas que a pintura finge nos muros do templo e
especialmente no teto que tem” (Ibidem, p. 221). Parte do desprestígio que o barroco
sofreu nos século XVIII, XIX, e mesmo ainda no século XX, deve-se ao fato de que a
crítica classicista parece ter levado a sério a própria imagem que o barroco fez de si,
num processo de afirmação de uma estética que tinha por objetivo afastar-se do ideal
renascentista.
Em última instância, a edificação de uma crítica baseada na depreciação do
barroco implicou uma recepção pouco generosa de textos que desafiavam o leitor
quanto à linearidade de sua delimitação e estruturação e, sobretudo, as ideias contidas
em seu interior. Poderia ser este o motivo por que a crítica pouco compreendeu a
poética de Raul Brandão? Não seria este ideal de dissolução, 113 a base de um dos mais
prestigiados gêneros do século XX, o nouveau roman?114 É necessário resgatar o
prestígio do barroco e, mais que isso, elucidá-lo enquanto proposta estética
autoconsciente nas suas manifestações da modernidade (cf. GUIMARÃES, 1994, p.
22):
Por ignorar o drama barroco como idéia, a crítica clássica acabou
aceitando a visão que o Barroco tinha de si mesmo, levando a sério
sua poética, que era pseudo-aristotélica. Em conseqüência, o drama
barroco passou a ser visto pelos críticos posteriores como tragédia e
medidas por esse padrão suas obras não podiam deixar de ser
consideradas distorções grosseiras da tragédia grega. (ROUANET,
1984, p. 27).
Em sua concepção de entrâncias e reentrâncias, na sua construção que exige uma
perspectiva vertical do observador, o barroco parece constituir a estética ideal para a
113
Sergio Paulo Rouanet assevera: “O drama barroco, como forma, se aproxima da dissolução” (1984, p. 25).
É Vergílio Ferreira dos primeiros críticos da reabilitação brandoniana a marcar a aproximação entre a
escritura de Raul Brandão e o nouveau roman francês, ao distinguir que o escritor de Guimarães “se
antecipou, em larga medida, ao que veio a realizar o chamado ‘novo romance”(1995, p. 265-276). A
seguir, credita o mérito da observação a outro renomado crítico português, ao pontuar “que se deve a
David Mourão-Ferreira, e a despeito das objeções que se lhe queiram opor, a melhor aproximação feita
até hoje entre Raul Brandão e esse ‘novo romance” (Ibidem, p. 276).
114
146
arte da ilusão, manifestada no tecido literário na forma do mise-en-abîme, técnica que
também se faz explicitada na narrativa de História dum Palhaço, em que o texto
dramático – tomando aqui drama em sentido lato – permite a encenação de outro drama,
isto é, as apresentações do circo, núcleo fundamental da narrativa e habitat desses
estranhos trapeiros brandonianos, os palhaços: “Assim, o artifício [...] do espetáculo
dentro do espetáculo introduz na cena uma instância que à primeira vista remete a outra
realidade, não-ilusória, mas essa segunda realidade é apenas uma cena atrás da cena, e
portanto uma duplicação ilusória da primeira ilusão” (ROUANET, 1984, p. 32-33).
Embora seja ainda possível reconhecer uma trama preenchida, sobretudo, pela
angústia de um palhaço absorto pelo caráter fatídico e atávico de um pessimismo
finissecular e que, por conseguinte, encontra no suicídio a única saída possível para os
males da existência humana, a constituição da narrativa brandoniana – ainda que
descosida, como sublinho – aproxima-se, portanto, do ideal estético do barroco,
justamente por ser um texto cuja legibilidade pressupõe a vertigem do olhar, o jogo de
luzes e sombras, a profundidade da cena – quase sempre extravasada porque o autor
suprime a moldura que enquadra os limites da imagem –, uma acentuada assimetria das
formas, a presença de entes que assumem a forma de fantoches, a insistência na
repetição como recurso estilístico e mnemônico que “intensifica aquilo que se quer
transmitir sem nada de [novo] acrescentar ao conteúdo” (BARATA, 2008, p. 92), os
laivos de uma melancolia finissecular, a ilusão do espaço dramático, os ecos de uma
estética que, beirando o horror, antecipa a catástrofe. Diante do rol de qualidades que
caracterizaram as tendências neobarrocas em História dum Palhaço, é pertinente
observar o que diz Vítor Manuel de Aguiar e Silva sobre o conceito de fusionismo na
estética do século XVII:
147
Helmut Hatzfeld, autor a quem se devem importantes estudos sobre o
período que nos ocupa, apontou como traço importante da literatura
barroca o fusionismo, ou seja, a tendência para unificar num todo
múltiplos pormenores e para associar e mesclar numa unidade
orgânica elementos contraditórios. O escritor barroco não procura a
expressão de significado directo e linear, mas a expressão que encerra
uma multivalência significativa que traduz valores contrastantes. Por
detrás desta tendência fusionista, está a visão da unidade como
dualidade, a visão do real como conflito – aspecto importante da
mundividência barroca. (AGUIAR e SILVA, 1993, p. 497).
O crítico português, na esteira dos estudos empreendidos por Helmut Hatzfeld, e
comungando o juízo de que a estética do século XVII desloca a linguagem do nível da
linearidade para o do pictórico, assinala que o barroco, qualquer que seja sua
modalidade ou manifestação literária, tende à fusão de imagens e conceitos. Isto
explica, em parte, certa paradoxalidade que preside ao barroco enquanto forma artística,
dando conta, inclusive, dos valores espirituais que o período evoca, numa oscilação que
leva o homem do carnal pagão ao sagrado cristão, juntando os dois polos da
espiritualidade européia num mesmo ponto de sublimação a que os obriga a
Contrarreforma, conforme sublinha Maria Theresa Abelha Alves, em seu deambular
essencialmente pictórico pelo barroco em Portugal:115 “O visitante, a cada passo,
esbarra na antítese fulcral do Barroco: espírito/matéria” (1994, p. 2). Deve-se observar
que a narrativa brandoniana pode ser lida também como materialização textual desse
ponto de aglutinação:
Pita, a essa hora da noite, tinha espirros de gênio pela caveira, numa
excitação contra a Vida e contra a Dor. Pelo começo da Noite é que
Pita principiava a ser amargo, com um grande desprezo pelo triunfo,
pelo Oiro, pela Sociedade. Pita também a essa hora estava algo na
mentira: embebedava-se com as decorações sobre a Miséria e sobre o
Coração Humano e a fantasia fazia-o perder-se, fazer grande, como
um pintor que na febre atirasse brochadas de gênio para a tela. Pita
115
O ensaio “Trunfo do Barroco”, publicado no Boletim do Centro de Estudos Portugueses da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é resultado da experiência da pesquisadora de uma visita
à exposição de mesmo nome, que teve lugar no recém-inaugurado “Centro Cultural de Belém”, em
Lisboa. O referido texto foi consultado em sua versão eletrônica (cf. Referências).
148
parecia uma evocação de Poe. Pita sentia, depois da bebida, o frio dos
desgraçados, a febre dos noctâmbulos: sabia a enxurro: e tinha na
fantasia toda a púrpura e toda a lama que as borboletas têm nas
asas, e que ele apanhara ao roçar-se pelos bueiros imundos da
Cidade. (BRANDÃO, 2005, p. 102, grifo meu).
O fusionismo apontado por Aguiar e Silva (1993) elucida o conceito de Wölfflin,
para quem o barroco decorre, dentre outros, da passagem de uma forma de expressão da
multiplicidade à unidade, ou seja, ao passo que no Renascimento a imagem é
apresentada numa perspectiva racional, com múltiplos pontos de forma, cor e tom, no
Barroco, dissolve-se essa estrutura geometricamente organizada para apostar na
condensação estética, essa espécie de anarquia visual a qual o homem do século XVII
impôs, inicialmente, alguma resistência, resultando no efeito trompe-l’oeil a que faz
referência Ferreira Gullar: “Então ele usa aí o trompe-l’oeil para acentuar o fator de
realidade que ele quer imprimir ao que pintou. O Barroco faz o contrário, ele usa o
trompe-l’oeil para imprimir o fator de irrealidade, de delírio, de vertigem, de
desequilíbrio”116 (2003, p. 221).
Com efeito, no texto de Raul Brandão, percebe-se não apenas a propensão ao
mórbido, à obscuridade e às alegorias barrocas da ruína, tais como “os espirros de gênio
pela caveira” a que refere a passagem do texto – lembrando que o procedimento
alegórico tem por ideal construir uma imagem da morte ao mesmo tempo em que parte
de um processo que mata o signo em sua acepção inicial –, mas a evidência do
fusionismo, tal como apontam os estudiosos, quando o escritor funde a cor púrpura ao
escuro da lama nas asas do inseto; ou, ainda, na construção de pares opositores (às vezes
oposição de uma forma concreta a um conceito abstrato), tais como Vida/Dor,
116
O Dicionário de termos de arte (LUCIEN-SMITH, 1990, p. 200) registra como definição de trompel’oeil: “(Fr. ‘engana olho’) Um tipo de pintura que por meio de vários efeitos ILUSIONISTAS, persuade
o espectador, de forma a olhar para os objectos representados como se fossem reais. O ‘trompe-l’oeil’
consegue, com sucesso, projectar os objectos representados para além da superfície pintada.
(QUADRATURA).”.
149
Noite/Oiro, pintor/desgraçados, fantasias/bueiros imundos, borboleta/enxurro. A
disformidade de uma imagem, que foge à moldura do quadro, manifestada na cena, e a
evocação a Edgar Allan Poe, escritor e cultor de literatura fantástica com tendências ao
gótico, contribuem para delinear uma cena essencialmente dramática em que as
qualidades do barroco presentificam-se. A referência ao pintor que imprime, com
violência, sua tinta no quadro parece-me ser mais do que a alusão sem propósito a essa
outra forma de arte, mas uma consciência de que, por meio do fusionismo, o texto
extravasa a moldura do quadro, esparge e borra a imagem, porque Raul Brandão
também é pintor de cenas barrocas filtradas pelo olhar da modernidade,117 o que
corrobora esta leitura de História dum Palhaço como uma narrativa de filigranas
neobarrocas.
Os posicionamentos dos teóricos levam, deste modo, a pensar que a expressão
literária de Raul Brandão desafia o cânone realista, estabelecido como arte hegemônica
na segunda metade do século XIX, põe em xeque a supremacia queirosiana para, ao
final do século, triunfar, ainda que momentaneamente. Mesmo tendo sido pouco
lembrado pela crítica literária, História dum Palhaço, essa ressonância neobarroca,
configura-se não apenas como texto literário, mas também como o testamento de uma
estética, que incessantemente busca a ruína, o caco, a morte. O escritor de Guimarães
cria, assim, um genuíno Trauerspiel lusófono.
3.3. No bojo da tradição
Dotada de musicalidade marcante, essa narrativa de Raul Brandão, publicada em
1896, está em consonância com os preceitos estéticos da última década do oitocentos,
117
Nunca é demais relembrar que Vergílio Ferreira (1991) já apontava a produção literária de Raul
Brandão como texto fundamentalmente moderno. É justamente essa percepção que revigorará a crítica na
década de 1960, abrindo espaço para a crítica de reabilitação fundar-se, juntamente com a crítica
contemporânea, que toma por pressuposto a modernidade da escritura brandoniana.
150
quando a vaga do simbolismo imprime certos traços líricos a escritores que, mesmo se
afirmando como artistas da ruptura, trazem consigo o esteticismo, a tensão nevrótica e
satânica, o culto à arte, a perseguição de um Ideal. Como se, ao rejeitarem o modo como
o realismo discute e apresenta a literatura, pudessem fazê-la diferente. Refiro-me outra
vez aos Nephelibatas e à definição que se pode ler no interior do opúsculo: “é pois um
nome ad hoc, mas que não reproduz de certo a ideia geral que dão a esse vocabulo (sic),
duma bizarria e d’um alcoolismo cantarolante: eram novos que alli se reuniam, amando
e resando à Arte, ao Amor, ao fugidio Ideal...”118 (BORJA, 1992, p. 9).
Importa salientar que o texto de Os Nephelibatas, da juventude do escritor, já
apresenta os traços definidos de uma técnica literária que se desloca paulatinamente da
seara do realismo-naturalismo às raias do decadentismo finissecular, notadamente de
uma tendência expressionista, na qual K. Mauricio é apresentado como personagem
nefelibata, reaparecendo em História dum Palhaço.119 Na sequência de sua carreira
literária, em Impressões e Paisagens, Raul Brandão dedica alguns de seus contos a
Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz e Fialho de Almeida, assinalando a intenção de
prestar homenagem aos seus modelos literários, para deles descolar-se rumo a uma
poética de características próprias, em que o anarquismo é a força pungente,
materializando-a na forma da dispersão do texto, que o escritor levará a cabo ao longo
de sua trajetória.
Sobre a escrita de História dum Palhaço e sua importância na história da literatura
portuguesa finissecular, destacam-se as opiniões esboçadas por Guilherme de Castilho
(2006) e Vítor Viçoso (1999). O primeiro lê no livro de 1896 o claro projeto de uma
escrita em transição, pelo que qualifica História dum Palhaço como um “falhanço”. Isto
se deve ao fato de que Castilho não vislumbra no palhaço brandoniano as marcas de
118
A ortografia original foi mantida.
Para maiores informações sobre as relações entre o nefelibatismo e a estética decadentista, consultar
outra vez José Carlos Seabra Pereira (1995).
119
151
uma alegoria finissecular, mas tão somente o desejo de “agradar ao público da época
[com a] [...] história clássica do palhaço, história velha e revelha que dera já à Europa,
provocando a piedade sentimental de várias gerações pelo pobre clown grotesco e
delicado, desgraçado e sonhador.” (CASTILHO, 2006, p. 134-135). Com efeito, a
imagem do palhaço decadente é recorrente numa Europa que se vê, ela própria, no
espelho de Veneza: melancólica e crepuscular. No entanto, não me parece que o mérito
do texto de Raul Brandão resida numa propositura de originalidade, mas em trazer à
construção de Historia dum Palhaço o procedimento alegórico que transformará a
imagem do bufão em alegoria finissecular, qual seja, no arauto do crepúsculo, um novo
anjo da história lido pelo olhar brandoniano.
Desse ponto de vista, conforme já reiterado, a narrativa aproximar-se-á do
Trauerspiel barroco, notadamente quando assimila a figura do Príncipe, encarnado
como o Rei, personagem no opúsculo “O Mistério da Árvore”, que surge em meio às
inquietações do palhaço:
Que doença estranha, vagarosa mas tenaz, matava o Rei?... Só amava
os crepúsculos, agonias de luz, o Passado e a Multidão silenciosa
vinha vê-lo, ao findar da tarde, de cabeça a escaldar encostada aos
vidros das janelas, sem desejos, o olhar perdido em quimeras,
imaginários países, onde tudo são agonias, águas quietas, espectros de
árvores esgalhadas. (BRANDÃO, 2005, p. 145).
Sob o signo de Saturno, a personagem descrita por Raul Brandão assume matizes
crepusculares. A partir de seu trono, vislumbra toda a extensão do reino maldito,
banindo a vida e a felicidade de seus domínios para aceitar apenas a dor, a morte e a
melancolia. Interessa assinalar o modo como o escritor lança mão dos contrastes claroescuro para borrar a imagem que tenta delinear, dotando, de certo pendor estético que
tanto o barroco quanto o expressionismo assimilaram, a exemplo de artistas plásticos
como Rembrandt e Columbano Bordalo Pinheiro. O olhar do Rei é o do desmonte;
152
como o Príncipe do Trauerspiel alemão, o monarca vê o mundo a partir do prisma da
morte e da catástrofe: “Noite negra e o Rei subiu sozinho ao terraço. Restos de nuvens,
restos de mantos enlameados, arrastavam-se pelo céu. A árvore estarrecida e hirta, onde
os dois mendigos haviam sido enforcados” (Ibidem, p. 147).
No que diz respeito aos juízos esboçados pela crítica brandoniana, chama a
atenção o fato de que também Vítor Viçoso detém-se na narrativa em questão para
pensá-la como livro de passagem para aqueles que se interessam pela narrativa
brandoniana, asseverando que a obra é uma “hipérbole ao nefelibatismo” (VIÇOSO,
1999, p. 163). Não teria, portanto, a crítica lido o palhaço brandoniano tão somente
como imagem do artista desgraçado que deve fazer rir ao seu público, mesmo quando
experimenta um profundo estado de melancolia e tristeza? Raras vezes abordado pela
crítica, História dum Palhaço ainda padece da ausência de olhares que lhe assegurem o
lugar privilegiado que deve ocupar na galeria das obras de Raul Brandão.
A tradição literária da segunda metade do século XIX é, ao mesmo tempo, o ponto
de ruptura e de partida para que Raul Brandão alicerce sua estética. Dois escritores
oitocentistas – Cesário Verde e Fialho de Almeida – parecem emergir como referências
intransponíveis da narrativa em análise neste capítulo: o deambular pela cidade, viciosa
e doentia, é experimentado pelos múltiplos narradores do texto, numa espécie de
flânerie às avessas, perscrutando a doença instalada no espaço urbano, inalando o
mesmo gás expelido na atmosfera, que se torna cada vez mais densa e carregada,
tingindo o céu de cor de chumbo, numa encruzilhada literária da qual partilham, além de
Cesário e Fialho, o Baudelaire de “Spleen – LXXVIII”120: “Quando o céu plúmbeo e
baixo pesa como tampa / [...] / Um dia mais escuro e triste do que as noites;”
(BAUDELAIRE, 2002, p. 162). Por sua vez, escreve Raul Brandão:
120
A aproximação entre as estéticas de Cesário Verde e Charles Baudelaire foi objeto de reflexão de
David Mourão-Ferreira, conforme se observa neste fragmento de Hospital das Letras: “[...] Cesário isola
– invejando-a – apenas uma faculdade sensorial de Baudelaire: a da visão” (1981, p. 92).
153
Andando, passam ruas, monstros de feições carcomidas que sustentam
pedras – e há tempos que eu noto a contração dolorosa duma cariátide,
só ela fixa imóvel, fixa na Noite, angustiosa e eterna, como aquele
latido de cão que lá no fundo, no risco negro das terras, uiva.
(BRANDÃO, 2005, p. 114).
Insinuando-se a partir de um esteticismo delirante, o narrador-autor vagueia pela
cidade, como se esperasse que a metrópole – neste caso particular amorfa e desértica –
retribua-lhe o sentimento trágico de que é portador: “A cidade trágica faz-lhe decoro
sábio, com a noite em que a escumalha vem à tona, a miséria, as casas de hóspedes, as
ruas esganadas e o vício”. (Ibidem, p. 83). Poder-se-ia afirmar que a cidade de Raul
Brandão é retratada mais próxima à tonalidade do cinza baudelariano – e, portanto, do
autor de “O sentimento dum Ocidental” – que do claro-escuro fialhesco, mas em todas
as imagens da velha urbe europeia é a melancolia que se textualiza enquanto metáfora.
“De que cor é o céu dessa Lisboa de Cesário? Ele é um lento escurecer melancólico que
se vai fundando em metáfora do que há de nódoa negra numa civilização em que se
ausentaram os heróis do passado” (CERDEIRA, 2009, p. 22), afirma Teresa Cristina
Cerdeira, para mais adiante completar: “de onde se ausentaram também as naus épicas
[...], a configurarem a desmonumentalização da história nacional” (Ibidem).
Como a urbe de Cesário, a cidade de Raul Brandão, metáfora de uma “geografia
de contradições” (SANTOS & SILVA, 2000, p. 541), fervilha num subterrâneo e
plástico vaivém de tipos desgraçados, como aqueles trapeiros de uma certa cidade ao
gosto baudelairiano: “O tecto fundo de oxigênio, de ar, / Estende-se ao comprido, ao
meio das trapeiras, /Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, / Enleva-se a quimera
azul de transmigrar.” (VERDE, 1988, p. 148). E se, no texto de Cesário, o poetanarrador é um astuto observador dos movimentos dessa cidade estuporada, também em
Raul Brandão, o narrador-comentador aponta para a vertigem dos becos e vielas da
154
cidade habitada por clowns, uma imensa trâperie, porque nela só aos trapeiros é
permitido o contrassenso da miragem:
Tudo o que de dia é anguloso e duro, logo que noite se dilui, e a meia
tinta, onde as figuras aparecem, dá toques de sonho à cidade lôbrega e
tortuosa. Os becos que surgem súbito, como bueiros rasgados para o
interior dos bairros viciosos, as covas das escadas, cheias de mistério e
onde se não entra sem terror, os tipos que só de noite aparecem, rentes
às muralhas, envoltos nas sombras, tímidos ou doidos, a esconder
vícios, lágrimas, crimes e canduras de alma, encantavam-no e davamlhe, nas noites febris e de insônia, a sensação dum golpe através dum
sonho. As figuras não se fixavam bem e toda a multidão se escoava do
seu crânio [...]. (BRANDÃO, 2005, p. 95).
Cesário Verde narra em seu poema a travessia do poeta em meio à cidade que
experimenta, mesmo que assimetricamente, a urbanização do século XIX. Fialho de
Almeida, por outro lado, dá-nos a dimensão histórica, social e biológica de como a vida
se processa em meio à cidade dos mortos, quando apresenta ao leitor o fatídico
cotidiano de Carolina, protagonista de A Ruiva. Habitando um cemitério e plantando em
seu interior as couves de que extrai o sustento da família, Carolina deambula no seio da
cidade repleta de becos e corredores povoada de trapeiros que recolhem não apenas os
restos deixados ao acaso por um transeunte displicente, mas também os despojos das
vidas alheias e – por que não dizer? – das vidas das personagens que se apresentam.
À cidade repleta de tipos, pintada por Cesário, uma urbe frenética, embora não
fosse ainda uma urbe cosmopolita, em que “batem os carros de aluguer, ao fundo /
Levando à via férrea os que se vão” (VERDE, 1988, p. 143), justapõe-se a cidade
fialhesca, fantasmagórica como um castelo de cartas vazio, frágil em sua construção e,
ao mesmo tempo, plena de sentidos. A presença de Fialho de Almeida na literatura de
155
Raul Brandão pode ser, portanto, apontada, a partir de uma aproximação entre A Ruiva e
História dum Palhaço.121 Na novela de 1878, escreve o autor:
Na esplanada que vai terminar à porta dos Prazeres, as pequenas
barracas de lona enchiam-se de grupos; filhas de saias engomadas,
olheira fundas, com fadistas de calças esticadas sobre alpargatas de
linho. As mulheres gordas, lenço vermelho, os grossos braços nus,
refogavam mexilhão, vermelhas do calor; em torno os soldados
passavam, de chibata, rostos vulgares e bestiais, dilatados em risos
enormes; e, meneando-se, diziam brutezas às pequenas ovarinas sujas.
(ALMEIDA, 2005, p. 29).
A multidão anônima que se move entre as sombras do cemitério, o riso deslocado
que ecoa por entre as muralhas, as trapeiras de Fialho de Almeida descritas em formas
de caricaturas, isso tudo para compor uma ambientação que, mais do que reafirmar os
preceitos estéticos do naturalismo, sugere um prenúncio, em sua vaga expressionista, do
decadentismo de Raul Brandão. Pictórica ao limite, a narrativa fialhesca avulta pela
qualidade das descrições desta “vida que tem atrás de si uma outra vida” – para usar
uma expressão de que Raul Brandão lançaria mão – e por enaltecer a hora do
crepúsculo, a esperada hora em que os desgraçados encontram a redenção.
Ler o texto brandoniano ao lado do poema de Cesário Verde e da novela de Fialho
de Almeida permite pensar em como as cidades tracejadas nas escrituras dialogam e,
por conseguinte, apresentam-se num contínuo que vai do progresso (embora a ideia de
progresso, em Cesário Verde, já implique a da marginalização social) ao crepúsculo,
enquanto os mortos aguardam o momento do juízo final e da redenção. O texto de
História dum Palhaço situa-se esteticamente entre Cesário e Fialho, embora
cronologicamente seja posterior a ambos, porque a cidade do primeiro é ainda imagem
(mesmo que fugaz) daquela Paris capital do século XIX – e nela é possível cultivar a
121
Sobre o diálogo entre os dois autores finisseculares, consultar o ensaio de Isabel Cristina Pinto Mateus
(2008).
156
flânerie; ao passo que a cidade do segundo em tudo perdeu o referencial da metrópole e
do cosmopolitismo para se tornar estática, fotograficamente uma paisagem de fim de
século.
Venho apontando a aproximação estética entre Fialho e Brandão, seja no modo da
construção descritivista do texto, seja na formulação de uma literatura a cuja
plasticidade não se pode ficar alheio. Entre essas imagens que despertam a atenção do
leitor, por ligarem inevitavelmente a escrita desses dois homens da segunda metade do
século XIX, uma carece de atenção detida: a figura do coveiro, trágica e doentia, que
ambos os escritores cinzelam. O autor de A Ruiva apresenta: “Era coveiro e o mais
asqueroso – o da vala; aspecto repelente, perfil áspero e cortante, descarnadas as faces,
as mãos aduncas e gastas, cheias de terra e de cabelos. Sobre a testa duma polegada de
largo, caíam grenhas fermentadas [...]” (ALMEIDA, 2005, p. 17), pelo que se observa
não apenas o coveiro como mais um dos perfis que se sucedem na galerias de retratos
desgraçados de uma trâperie finissecular, mas ainda como imagem, próxima àquela já
apresentada nesta pesquisa, que se deslinda em formas angulosas, macilentas e
grotescas, como o próprio palhaço brandoniano: “As figuras não se fixavam bem e toda
a multidão se escoava no seu crânio com um ruído de Mar” (BRANDÃO, 2005, p. 97).
Também o escritor se detém, em História dum Palhaço, a cinzelar o seu coveiro,
ambiguamente macabro e filosófico, e é nesta reflexão exasperada sobre a vida que
talvez se diferenciem as duas imagens, a de Fialho e a de Brandão: “No cemitério dois
coveiros abrem um fosso. É um sítio triste, sem um cipreste, desolado e que irrita como
uma alma seca. Um dos coveiros é enorme, ossudo, ressequido, de barba dura e rara e
grandes mãos” (Ibidem, p. 29). A personagem do coveiro, que abre a passagem para o
mundo dos mortos ao escavar a terra, ao passo que prepara o repouso dos que chegam
ao cemitério, vindos de muitos lugares e todos por uma mesma razão – a morte –,
157
também se encerra ele próprio no mundo dos mortos, transformando-se numa espécie de
Perséfone às avessas, porque masculina e, sobretudo, porque não se situa sazonalmente
entre a vida ou a morte. O coveiro de Raul Brandão está concomitantemente ligando a
morte à vida e a vida à morte: “Cava o coveiro e a sua sombra esguia vai entrando na
cova, à medida que ele a profunda... (sic)” (Ibidem), chamando-a para junto de si.
No contexto dessa relação entre as duas narrativas crepusculares, algo que se deve
destacar é a capacidade de as personagens brandonianas refletirem sobre suas próprias
condições e formularem pensamentos complexos a partir de suas inquietações,
revelando, portanto, uma espécie de consciência a que as personagens fialhescas ainda
não experimentam, tomadas que são de certo torpor. Se, no cemitério de A Ruiva, a terra
não é capaz de produzir senão couves, frágeis hortaliças que alimentarão os vivos, o
cemitério de História dum Palhaço é espaço em que a vida lateja em maior profusão: ao
lado das hortaliças, árvores crescem alimentadas por esse húmus, mistura de alma e de
lama, a que Raul Brandão continuará a fazer referência até ao fim de sua carreira
literária. O trabalho com a terra na narrativa fialhesca é menos fértil; e daí se pode
depreender que, se o homem é produto do meio, também o meio é produto do homem,
já que um cemitério sem húmus não poderá oferecer mais que hortaliças: “eram [...]
plantadas no cemitério, para lá da vala e longe das vistas [...], hortaliças que com o
tempo e o belo tempero da terra adquiriam grande desenvolvimento”. (ALMEIDA,
2005, p. 21). Outra passagem de História dum Palhaço remete à narrativa fialhesca
quando o coveiro cultiva hortaliças no terreno de seu metafórico cemitério:
Fico horas estendido na terra a ver crescer as couves e no meu crânio
vai-se um ruído de fermentação, como se eu próprio me diluísse na
matéria. Imagino a Morte e a Vida. Toda a Terra ferve em
decomposição de cadáver: brotam as árvores, que por seu turno se
enchem de floração e mais tarde morrem: ela própria é um cemitério,
regado a lágrimas e a amargura e donde a fecundidade, a emoção e a
vida renascem. (BRANDÃO, 2005, p. 52).
158
Ao ter a sensação de se diluir na matéria, é como se o coveiro brandoniano
assinalasse mais do que a sutil consciência de que é instrumento para que os vivos
repousem no mundo dos mortos, mas ainda que ele próprio seja o fermento e a matéria
de que a vida se utilizará para ressurgir. Dissolvendo-se na terra – ou ainda “entrando na
cova” (Ibidem, p. 29) – transforma-se em húmus, essa espécie de quarto estado da
matéria na narrativa brandoniana, matéria transida de sonho, matéria que é produto da
morte e semente da vida.
É certo que, n’A Ruiva, a ambientação do cemitério ocupa a quase totalidade da
narrativa, ao passo que, em História dum Palhaço, se concentra em momentos-chave,
até porque o coveiro, apresentado ainda na primeira página do texto literário,
transfigura-se em outras imagens trágicas da galeria brandoniana, avatares desse
palhaço-trapeiro a que fiz referência ao início destas reflexões. Encaminho esta relação
entre as duas narrativas, apontando a figura da ruiva, degenerada desde a genética dos
cabelos, descrita no texto de Fialho:
Carolina nasceu no dia da morte da mãe. Até ali, o coveiro vivera sem
misérias, mas, morta a mulher, descobriu-se donde vinham as couves
e ninguém mas lhas comprou. Não se sabe como a pequena se criara,
mas aos doze anos era bonita, franzininha, o nariz arrebitado, descalça
e cheia de remendos. (ALMEIDA, 2005, p. 21).
Colombina remendada, pintura doentia de Rembrandt (BARROS, 2007), mendiga
ruiva de Baudelaire (2002, p. 170),122 trapeira até a medula, em qualquer que seja a
imagem em que a encaixe, a ruiva eleva-se à condição de figura crepuscular no texto
fialhesco, emerge como incipiente arauto do fim-de-século a que o palhaço brandoniano
será a imagem lapidar – e menos óbvia. Residindo no interior do cemitério e fugindo
122
Assim expressa o poema de Charles Baudelaire: “Moça de ruivo cabelo, / Cuja roupa em desmazelo /
Deixa ver tanto a pobreza / Quanto a beleza, // Para mim, poeta sem viço, / Teu jovem corpo enfermiço, /
Cheio de sardas e agruras, / Tem só doçuras.”.
159
eventualmente para além dos domínios (quando se aventura em raros momentos de uma
melancólica felicidade ao lado de João, namorado com quem partilha certa bestialidade;
cf. FRANCO, 2005), Carolina convive com a morte desde o nascimento,
experimentando a sexualidade com cadáveres ou ainda dormindo entre os túmulos.
De uma ingenuidade quase infantil, a colombina de Fialho de Almeida está no
limiar entre a consciência e a inconsciência; encena reiteradamente a própria vida
cotidiana – a que parece alheia. Enquanto Carolina é descrita heterodiegeticamente, as
personagens de História dum Palhaço (justificadas pelas particularidades da narrativa)
trazem em si o gérmen da inconformidade, como se em todas habitasse o filósofo Pita,
ou ainda o Gabiru, esta espécie de alter ego de Raul Brandão, a que tantas vezes a
crítica fez juízo quando se debruçou sobre Húmus.123 Observem-se as palavras do
narrador-autor, desta feita representando as múltiplas vozes perifericas (porque instáveis
e pouco nítidas no decurso da narrativa), vozes que se harmonizam num concerto de
catástrofes:
O que me custa, afinal, é a perda da minha personalidade: habitueime, de tal maneira, ao sofrimento, que me custa a deixá-lo e a ser
feliz. E vale realmente a pena? Vejamos: o que faz a minha desgraça,
e a nossa desgraça, é a consciência e o raciocínio. (BRANDÃO, 2005,
p. 51).
Aqui se apresenta uma das mais significativas tensões da narrativa brandoniana,
seja na História dum Palhaço, seja n’A Farsa, seja ainda em Húmus ou nas Memórias: a
dualidade consciência/inconsciência, a que o escritor, antes mesmo da popularização do
conhecimento do inconsciente humano, desvela. Trata-se de uma tensão que caminha
rente ao par morte/vida, quase como se um fosse desdobramento do outro, porque o
desejo incontido da morte é, em última instância, a vontade de tornar-se inconsciente
123
Sobre esta leitura da personagem Gabiru, como uma espécie de alter ego de Raul Brandão, consulte-se
Óscar Lopes (1969), José Manuel de Vasconcelos (1991), Vitor Viçoso (1999) e Jorge Valentim (2004).
160
das catástrofes. Claro está por que o texto brandoniano é povoado de filósofos, porque
esses são as vozes críticas de uma massa de desesperados, homens despertados do
torpor da morte, homens que perderam a inocência: “O que faz a minha desgraça é a
consciência e a razão. Por lógica sou levado a concluir pela felicidade do não-ser [...]”
(Ibidem, p. 52). Se, na escritura de Raul Brandão, o estado de inconsciência está para a
morte, por seu turno o estado de consciência, isto é, perceber crítica e historicamente a
catástrofe para qual caminha a humanidade, é retratado como a vida verdadeira, plena
de saberes.
O palhaço brandoniano, tocado pela consciência e imbuído de um cérebro
filosófico, à semelhança do eu-lírico presente no poema de Fernando Pessoa (1998, p.
144)124, inveja aqueles que estão protegidos sob o manto do desconhecimento. Porém,
como não é possível retornar do estado de consciência (vida) ao de inconsciência
(morte), sofre as angústias do crepúsculo, duvida da existência de Deus. Por não poder
ser ceifeira, imagem da camponesa – outra trapeira na esquina dos séculos –, o palhaço
da narrativa de Raul Brandão, arauto do crepúsculo, decide extirpar a própria vida,
porque já não há um Deus para fazer justiça aos homens: “Que é Deus? É esta força
inconsciente, cega, fecunda, que rebenta na matéria, enche de flores as árvores, de
emoção os poetas, e cega como o destino, forte [...], tudo transforma [...]” (BRANDÃO,
2005, p. 50).
Também essa concepção de Deus como força da natureza, capaz de se revelar não
na exceção miraculosa, mas em mirabilia cotidiana, estará presente na poética de
Alberto Caeiro, esse heterônimo tão próximo à imagem do filósofo em Raul Brandão,
ao dizer, panteisticamente: “Mas se Deus é as árvores e as flores / E os montes e o luar e
124
Expressa o poema: “Ela canta, pobre ceifeira, / Julgando-se feliz talvez; / Canta, e ceifa, e a sua voz,
cheia / De alegre e anônima viuvez, // [...] // Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência, /
E a consciência disso! Ó céu! / Ó campo! Ó canção! A ciência // Pesa tanto e a vida é tão breve! / Entrai
por mim a dentro! Tornai / Minha alma a vossa sombra leve! / Depois, levando-me, passai!” (PESSOA,
1998, p. 144).
161
o sol, / Para que lhe chamo eu Deus? / Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar
[...]” (PESSOA, 1998, p. 208).
Um aspecto da estética finissecular que merece destaque diz respeito à
fragmentação e dispersão do sujeito, já sugerido nesta investigação quando se tratou das
múltiplas vozes periféricas que ecoam em História dum Palhaço – ou ainda enquanto
tema da pesquisa de Pedro Eiras (2005) ao se debruçar pela escritura brandoniana.
Importa agora lembrar como Walter Benjamin recupera o contexto do suicídio na
sociedade francesa de meados do século XIX, fazendo ler, na esteira da lírica de Charles
Baudelaire, que “A modernidade deve estar sob o signo do suicídio” (BENJAMIN,
1997, p. 74), para completar adiante: “O suicídio podia parecer aos olhos de um
Baudelaire o único ato heróico que restara às ‘populações doentias’ das cidades
naqueles tempos reacionários” (Ibidem, p. 75). Concebendo-se o decadentismo
finissecular como um dos desdobramentos da modernidade apontada pelo poeta francês,
a prática do suicídio liga-se, de modo recorrente, à literatura das últimas décadas do
século XIX e primeiros anos do século XX. Teresa Cristina Cerdeira, por exemplo,
assevera que, na heteronímia pessoana,
O eu múltiplo é, paradoxalmente, o eu dilacerado, numa inesperada
matemática em que multiplicar é dividir. Ser muitos é exacerbar a
consciência do nada, é perscrutar por muitas vias o vazio do ser, é
experimentar a sensação dolorosa de partir-se em cacos, sem a
proposta de vir, um dia, a recompor o vaso [...]. (2000, p. 68).
Se a estética de Orpheu (incluindo-se nesta, naturalmente, a fragmentação e
dispersão do sujeito a que alude o célebre poema de Mário de Sá-Carneiro: “Eu não sou
eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio: / Pilar da ponte de tédio / Que
vai de mim para o Outro.”; 2005, p. 82) é, por excelência, uma estética do suicídio ou
ainda uma “aventura suicida da modernidade” (CERDEIRA, 2000, p. 78), não é
162
diferente o que se encontra nas páginas da narrativa brandoniana em análise neste
capítulo. O suicídio do homem, implicando um resultado que é estritamente de ordem
artística, traz em si a própria morte de Deus (sendo o homem construído à imagem e
semelhança divina, anular um é, em outra instância, destruir o corpo fluido do outro) ou,
ainda, o seu apagamento.
A morte, concebida em si como fim último da existência do artista – corroborando
Alvarez, ao afirmar que “Sem Deus, a morte transforma-se simplesmente no fim: breve,
categórica, final” (1999, p. 220) –, está presente na História dum Palhaço, para quem,
ao contrário dos preceitos positivistas, a história chegará ao final, um final em que se
celebrará o coroamento da catástrofe. Talvez por isso mesmo, desde o livro de 1896,
percebe-se na escritura brandoniana a presença do suicídio como estratégia narrativa
que permite uma correlação entre os campos da vida enquanto ficção e da vida enquanto
realidade, como se ao desejar a morte o narrador-autor desse falso diário pudesse se
transformar em herói de sua própria arte, que se constrói a partir de uma recusa ao
pensamento ainda hegemônico da filosofia positivista e do próprio conceito de história
que se delineou a partir dos postulados de Ranke, qual seja, uma história sem saída, em
que o início implica necessariamente um fim progressista, à revelia das vontades de
Deus e do homem. Escreve Raul Brandão:
Ó Morte libertadora, tu que acalmas todos os desesperos e resolves
todas as dúvidas, aperta-me enfim nos teus férreos braços, Morte!
Estou cansado. Tenho de há muito uma ferida no cérebro e o coração
estoira-me de bater. Advinho em ti a paz absoluta. Tudo o que me
pode acontecer de pior é procurar o Desconhecido e encontrar o Nada.
Mas isso mesmo vale mais do que o tédio e a aborrecida, a nula vida.
Virei já do avesso todos os Sonhos, esgotei-os, fui tudo em
imaginação e não fui na prática falho de energia. Imaginei ser Deus e
imaginei ser Árvore. Estou farto de ver o Sol e assisti já a várias
primaveras. Conheci Homens e Países. Faço trinta anos e a vida vai
para mim – se não tenho a coragem de procurar-te [...]. Perder o que
em mim resta, como num lar que não tarda a apagar-se, de todo.
(2005, p.161).
163
O que pode significar a história de um velho Palhaço suicida? Em que perspectiva
o ato de prenunciar e agir em prol da própria morte corrobora para transformar a cena
final da narrativa em síntese de um novo olhar sobre a história, priorizando os vencidos
em detrimentos dos vencedores, escrevendo, assim, a história de um sem-história? É
certo que, ao trapeiro brandoniano, muitas outras personagens somam-se à galeria dos
excluídos: a Joana, do Húmus, e a Candidinha, d’A Farsa, isto para ficar somente nos
textos mais conhecidos do escritor. Povoando sua literatura de pobres, dando voz aos
operários silenciados no cânone literário do século XIX da produção lusitana, Raul
Brandão aceita tacitamente que toda história tem, ao menos, duas faces: a verdade dos
que escreveram a história e nela guardaram para si lugares de honra e destaque; a
verdade dos que foram “espezinhados”. Eis o desenlace anunciado desde o princípio de
História dum Palhaço:
Ali está sobre a mesa a pistola aperrada. É melhor morrer, estoirar o
cérebro, onde resta ainda um vestígio de sonho, do que acabar daqui a
anos, esvaziado e grotesco como uma bexiga rota... [...] Por duas
vezes senti já o anel de ferro da pistola no crânio; por duas vezes o
braço caiu cansado e inerte. Espera... (Ibidem, p. 163).
Desta forma, a interrupção da própria história que se processa na narrativa implica
três axiomas: 1) que o presente existe em função de que houve um passado (o passado
dos outros foi o presente de muitos), mas o futuro é incerto e o mito do progresso está
seriamente abalado; 2) que toda história tem um fim, desafiando a concepção de que
pensar em história (e, também, pensar a narrativa literária) é pensar em contínuo, em
linearidade, num caminho infinito em direção ao progresso; 3) que é preciso narrar a
experiência dos que soçobraram, pois apenas deste modo se torna evidente a violência
que abala o tempo.
164
Referi anteriormente que a construção de História dum Palhaço alicerça-se num
jogo entre as instâncias da narrativa, numa espécie de multiplicidade de vozes que
ecoam desde a presença do duplo no interior do enredo até a relação especular entre
personagens/narrador, tornando possível a manifestação de uma consciência niilista e
existencialista, cujas matrizes de pensamento podem ser encontradas nas leituras de
Nietzsche: “Procurei com fúria nas palavras e nas teorias encontrar o Nada desolador.”
(Ibidem, p. 154). Sem, no entanto, evocar um super-homem nietzschiano, a humanidade
que Raul Brandão retrata, toda ela encenando a própria vida nos palcos do circo a que
alude na obra em análise, encontra-se invariavelmente ao rés-do-chão.
As auréolas dos homens e das mulheres, dos poetas e dos palhaços, por fim,
caíram na lama trágica da vida e dela não foram resgatadas: fomos privados da auréola,
igualamo-nos todos por sermos apenas sujeitos ocasionais de uma micro-história
(BURKE, 1992), uma história de catástrofes. Se há algo de salutarmente perverso no
texto brandoniano, pode-se afirmar que é o efeito de colocar o leitor a espreitar a aura
de uma história composta por personagens sem aura, vultos que o autor recupera e com
eles faz explodir o historicismo, chamando ao texto toda a plêiade de sujeitos que um
dia foram considerados “o lixo da história” (BRANDÃO, 1998, p. 38), para com eles
compor a sua literatura.
165
Capítulo IV
QUANDO OS VENCIDOS SAEM ÀS RUAS
O que você disser, não diga duas vezes.
Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o.
Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato
Quem não estava presente, quem nada falou
Como poderão apanhá-lo?
Apague os rastros!
Cuide, quando pensar em morrer
Para que não haja sepultura revelando onde jaz
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
E o ano de sua morte a lhe entregar
Mais uma vez: Apague os rastros!
(Assim me foi ensinado.)
[BERTOLD BRECHT. Poemas e canções, 1966].
166
Este capítulo encerra o percurso investigativo até aqui
empreendido, elegendo os três volumes das Memórias para o
foco da análise. Dada a complexidade dos livros125, que se
inserem na confluência entre a narrativa histórica, o discurso
memorialístico e a autobiografia, alguns conceitos são
debatidos com o fito de sustentar a leitura crítica da obra.
Sublinhe-se que o valor estético e o estatuto literário são
resguardados e articulados com os preceitos da preocupação
histórica impressos na escritura de Raul Brandão.
4.1. Por que ler as Memórias de Raul Brandão?
A leitura das Memórias, de Raul Brandão, leva a pensar que há algo de ontológico
que impele o escritor português à prática da escrita. Com efeito, o texto literário pode
ser interpretado como “derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio, contra a
indiferença da morte” (GAGNEBIN, 2009, p. 112). O fato de aparentemente lutar
contra a morte, repeli-la, pode parecer contraditório quando se observa que a escrita
brandoniana tem por um de seus mais destacados pilares a tensão morte/vida, ao abrigo
de narradores que, incessantemente, chamam-na para perto de si:
Aqui cumpriu a condenação perpétua de escrever, de escrever sempre
[...]. Estou a vê-lo a entrar por aquela porta a dentro – tenho medo
desta grande figura dolorida. Mete-me medo desde depois de morto.
Vejo diante dos meus olhos o fantasma quase cego, com a boca
amarga, só ossos e pele, só osso e desespero. (BRANDÃO, 1998, p.
164).
No fluir da escritura, o autor de Guimarães luta contra a morte porque a
compreende na forma da derrota final, porque “o esquecimento é a morte definitiva”
(VIÇOSO, 1994, p. 177) dos homens. Raul Brandão encarna o narrador-sucateiro,126
aquele que recolhe os destroços do passado no intuito de não permitir que nada se perca.
125
É preciso advertir o leitor de que, como se trata de obra em três volumes publicados em anos distintos,
as datas de referência correspondem a tomos específicos: 1998 (tomo I), 1999 (tomo II) e 2000 (tomo III).
O mesmo acontece com as introduções de José Carlos Seabra Pereira apostas aos volumes.
126
A expressão é de Jeanne Marie Gagnebin (2009, p. 54), que a utiliza para reelaborar o ideal de
narrador benjaminiano, que, consciente do abalo sofrido pelas grandes narrativas, se ocupa em recolher os
detritos de uma história esfacelada.
167
Esse narrador-sucateiro, que também poderia ser o historiador, “não tem por alvo
recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado
como algo que não tem significação, [...] algo com que a história oficial não sabe o que
fazer” (GAGNEBIN, 2009, p. 54). É somente na encruzilhada da escrita, seja ela de
cariz literário, histórico, memorialístico e ainda (auto)biográfico, que o desejo
benjaminiano de apokatastasis, isto é de “recolecção de todas as almas no Paraíso”
(Ibidem) pode se tornar viável. Pensar esse resgate das almas dos que soçobraram no
decurso da história é, em última análise, mirar a redenção dos vencidos, a que o filósofo
alemão faz alusão nas suas teses “Sobre o conceito da história”.
Posto isto, torna-se possível vislumbrar a escritura memorialística de Raul
Brandão na forma de contributo original para o resgate dos portugueses que fizeram e
fizeram-se nas primeiras décadas do século XX. Original não apenas porque põe em
foco o levante dos vencidos, mas ainda porque se constitui de forma singular ou, como
pontua Álvaro Manuel Machado, uma “poética de memória que [...] revoluciona as
memórias como género instituído.” (1996, p. 135). O escritor da Foz do Douro, como
bem sublinha Clara Rocha, produz seu relato como “diálogo de instâncias várias”
(1992, p. 49), no qual revela “suas ambigüidades, sua contradições, a natureza híbrida
de sua composição” (MOLLOY, 2003, p. 15).
As inquietações sentidas pelos críticos literários quando se debruçam sobre o
texto brandoniano apontam para o mesmo sentido daquelas que são acalentadas pelos
teóricos dos escritos intimistas,127 porque residem nesse tipo de texto agudas polêmicas,
127
Como o fito desta investigação é o de discutir a questão das memórias enquanto gênero literário e, na
sequência, analisar o texto de Raul Brandão, optou-se por não problematizar o termo escritos intimistas,
adotando-se como válidas as considerações formuladas por Paula Morão, na forma de pressupostos da
discussão: “os escritos intimistas propriamente ditos, autobiografia e diário íntimo, que se estruturam
(embora com graus diferentes) em torno do eu é mais fortemente temperada pela pregnância do
interlocutor e daquilo a que chamo mundo, como é o caso das memórias ou do epistolário.” (1994, p. 25).
A partir de agora, quando o termo escrito intimista aparecer no corpo desta escrita, não se utilizará a
marcação de grafia porque se julga que o conceito foi introduzido.
168
entre as quais a problemática do estatuto literário128. Por isso, faz-se preciso abrir
caminhos teóricos que dêem conta da diversidade dos escritos intimistas, assim como
dos pontos que os definem como textos literários, que é, por conseguinte, a qualidade
que mais interessa a esta investigação.
4.2. O estatuto literário da escrita memorialística
O sentido da memória está atrelado ao desempenho de atividades cotidianas, ao
funcionamento tanto do indivíduo quanto da sociedade a que pertence. Desde a
Antiguidade, problematizar e definir o conceito de memória tem ocupado pensadores de
épocas distintas no Egito, na Grécia e em Roma, que remetem seja à função social
exercida pelo Poeta, isto é, a de ser “voz representativa da memória comum”
(BUESCU, 2001, p. 102), seja à função dos arquivos de pedra, sobre os quais expõe
Jacques Le Goff: “No Egito antigo, as estelas desempenharam múltiplas funções de
perpetuação de uma memória: estelas funerárias comemorando, como em Abidos, uma
peregrinação a um túmulo familiar; narrando a vida do morto” (2003, p. 428). Se o ato
de assinalar pode ser interpretado como um ato de memória, esse valor é reforçado
porquanto se distingue que a língua grega, em sua forma antiga, partilha com túmulo e
signo a mesma palavra: sèma (“Túmulo e palavra se revezam nesse trabalho de
memória que, justamente por se fundar na luta contra o esquecimento, é também o
reconhecimento implícito da força deste último: o reconhecimento do poder da morte”;
GAGNEBIN, 2009, p, 45). A escrita, metáfora da memória porque transporta para o
cerne da palavra a alegoria imagética que primeiro significa, é o rastro de uma memória
128
Para um estudo do estatuto literário em escritos intimistas caracterizados como diários, textos que são
marcados pelo correr do tempo e, por isso, fragmentados por natureza, é salutar a leitura do ensaio de
Abel Barros Baptista (“O espelho perguntador: sobre diários”) publicado na revista Colóquio/Letras, na
qual questiona: “O que ficou escrito, no segredo de um caderno ou nas páginas de um jornal, pode ou
merece relançar-se e, se sim, com que estatuto?” (1997, p. 67).
169
que se funda modernamente pela materialidade do traço, pela inscrição na pedra, pelo
rabisco no papel, pela capacidade de armazenamento no ambiente virtual do
microcomputador. A memória está atrelada ao ato de registro, tal como o de legar o
código genético à perpetuação das espécies ou ainda o de perpetuar a suave prática de
deixar rastros culturais, da qual o homem não pode prescindir: “Não se pode nem
afirmar que as pessoas morreram, já que elas desapareceram sem deixar rastros, sem
deixar também a possibilidade de um trabalho de homenagem e de luto por parte dos
seus próximos” (Ibidem, p. 116).
A memória, portanto, não está intimamente ligada a uma área específica do
conhecimento humano, não se reporta a um método restrito ou se articula diretamente a
determinado tipo de estudo crítico ou teórico; tampouco se pode afirmar
peremptoriamente que é exclusividade dos seres vivos: os microcomputadores também
salvam arquivos129 de texto ou apagam fotos e músicas, lembram e esquecem ao nosso
comando. Com o advento da era digital, o homem aprendeu a delegar à máquina parte
de sua faculdade memorialística, talvez porque nunca houve tanto trabalho para a
memória, nesses tempos em que a barbárie e os períodos de paz sucederam-se e
mesclaram-se. A memória, que preside ao corpo e antecede à matéria, também pode ser
gravada nas peles dos corpos, a tatuagem assinala uma informação, marca um afeto,
deixa um rastro de um tempo que não se quer esquecer.
No campo da literatura, é preciso recordar que a memória, enquanto processo
mnemônico, é base de sustentação e existência das narrativas orais e, no âmbito da
língua portuguesa e de sua imediata antecessora – a língua galego-portuguesa –, a lírica
trovadoresca é devedora da memória, pois é com sua ativação que se pode resguardar
129
A percepção de que a era digital dotou as máquinas de um tipo particular de estrutura de memória foi
observada por Jeanne Marie Gagnebin que, em Lembrar escrever esquecer, afirma: “De Mnemosyne à
tecla save do computador, Assman desenrola essa pluralidade de figuras que nos obriga a matizar nossas
oposições básicas entre memória coletiva e memória individual, entre memória e história, entre memória
e esquecimento.” (2009, p. 110).
170
uma tradição que é anterior ao registro escrito, mesmo quando a escrita era já uma
conhecida do homem desde há, pelo menos, três milhares de anos. O sinal gráfico
configurou-se, portanto, como segunda memória, ampliou o potencial humano de lidar
com a faculdade memorialística, considerada pelos gregos, como a mãe (Mnemosine)
das nove musas, filhas de Zeus:
Durante muito tempo, no domínio literário, a oralidade continua ao
lado da escrita, e a memória é um dos elementos constitutivos da
literatura medieval. Isso é particularmente verdadeiro para os séculos
XI e XII e para a canção de gesta, que não só faz apelo a processos de
memorização por parte do trovador (troubadour) e do jogral como por
parte dos ouvintes, mas que se integra na memória coletiva, como bem
o viu Paul Zumthor a propósito do ‘herói’ épico. (LE GOFF, 2003, p.
445 – 446).
Se desde a Idade Média podem ser encontrados escritos intimistas, na forma de
registros autobiográficos, como é o caso das Confissões de Santo Agostinho, apontado
como precursor do gênero, é, sobretudo, na contemporaneidade que esses escritos
experimentaram um salto qualitativo e quantitativo de produção. Reconhece-se nas
Confissões, de Jean-Jacques Rousseau, e ainda em Minha Vida. Poesia e verdade, de
Johann Wolfgang Goethe, formas exemplares desse tipo de produção que, embora
fortalecida “com a publicação de diários e memórias de vários escritores e homens
públicos” (MORÃO, 1994, p. 29), ainda padece de dúvidas quanto ao próprio estatuto,
constituem-se em “formas de escrita que o cânone mais tradicional não consideraria
literatura ou a que, pelo menos, confere um lugar marginal” (Ibidem, p. 22),130 um
arsenal de textos que ainda permanecem “menosprezados nos estudos literários em
português” (Ibidem, p. 30).
130
Ainda sobre a problemática do estatuto literário de textos memorialísticos, Filipa Mendes Barata
afirma: “Até sensivelmente ao princípio do século XX, as memórias foram muitas vezes vistas como
textos de teor historiográfico, onde se contavam os feitos de certas personalidades ilustres, daí que não
representassem grande interesse nem para os críticos da literatura, nem, ainda assim, para os historiadores
que viam nelas um género incompleto e subjectivo que em nada ajudava ao estudo do fenómeno
literário.” (2008, p. 9).
171
Galle & Olmos (2009, p. 9) apontam a íntima relação entre a ascensão da classe
burguesa, e, por conseguinte, do romance enquanto gênero literário privilegiado no
decurso do século XIX, e a profusão dos escritos intimistas, cujo aspecto distintivo, no
horizonte teórico de Philippe Lejeune, é o fato de ser um gênero contratual por
excelência (“todas essas expressões remetem à ideia de que o gênero autobiográfico é
um gênero contratual”; 2008, p. 45). No entendimento do crítico francês, os escritos
intimistas não diferem dos demais por uma questão estrutural, mas por estabelecerem
com o leitor um pacto de interpretação, que Lejeune define como pacto autobiográfico:
As formas do pacto autobiográfico são muito diversas, mas todas elas
manifestam a intenção de honrar a sua assinatura. O leitor pode
levantar questões quanto à semelhança, mas nunca quanto à
identidade. Sabe-se muito bem o quanto cada um de nós preza seu
próprio nome. (Ibidem, p. 26).
O pacto autobiográfico permite a distinção entre gêneros literários próximos, a
exemplo do romance autobiográfico e da autobiografia. Na formulação do quadro
referencial teórico, Philippe Lejeune assinala que, na autobiografia, deve haver
coincidência total entre a pessoa gramatical que emite o discurso e a identidade do
narrador, todavia não se limitando o gênero a formulações exclusivamente em primeira
pessoa do singular (cf. 2008, p. 18). Embora a autobiografia clássica seja redigida a
partir da enunciação em primeira pessoa (eu), há exemplos de autobiografias em
segundo e em terceira pessoas, fato que ratifica o pressuposto do pacto autobiográfico,
que centra a problemática na questão do nome próprio, na assinatura do texto: “a
autobiografia não comporta graus: é tudo ou nada.” (Ibidem, p. 25). Por oposição, o
pacto romanesco detalhado por Philippe Lejeune assenta-se a partir de uma “prática
patente de não identidade (o autor e o personagem não têm o mesmo nome), atestado
172
de ficcionalidade [, que é] [...] em geral, o subtítulo romance, na capa ou na folha de
rosto” (Ibidem, p. 27).
Na distinção que propõe entre autobiografia e romance autobiográfico, Lejeune
destaca o fato de que, no segundo, o “leitor pode ter razões para suspeitar, a partir de
semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o
autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la” (Ibidem, p. 25).
Isto se potencializa quando os nomes da personagem e do autor estão ausentes, gerando,
segundo o diagrama esboçado pelo ensaísta, uma zona indeterminada, que parece, em
todo o caso, improvável de se materializar textualmente como autobiografia, uma vez
que “o autor de uma autobiografia não pode ser anônimo” (Ibidem, p. 32). É preciso
destacar que essa primeira versão do pacto autobiográfico sofreu revisões posteriores,131
o que não invalidou as formulações iniciais.
A teoria do pacto autobiográfico está na base dos estudos sobre escritos intimistas
e autobiografias, embora Helmut Galle & Ana Cecilia Olmos observem que “o teórico
Paul de Man (1979) desconstrói, de forma radical, a distinção entre ficção e
autobiografia” (GALLE & OLMOS, 2009, p. 14), porque não reconhece nesta “uma
especificidade em termos de gênero literário” (Ibidem),132 o que a caracterizaria
somente na qualidade de “figura retórica que diz respeito não apenas às particularidades
da configuração textual, mas também ao ato de leitura que – virtualmente – pode
reconhecer essa figura retórica em qualquer (ou nenhum) texto literário” (Ibidem). Se as
concepções de Philippe Lejeune e Paul de Man são divergentes no que concerne às
idiossincrasias do relato autobiográfico, isto se deve, em parte, ao fato de que o primeiro
alicerça sua formulação teórica colocando-se na posição do leitor e o segundo sustenta
131
A exemplo dos ensaios “O pacto autobiográfico (bis)” ou “O pacto autobiográfico, 25 anos depois”,
que podem ser consultados no mesmo compêndio que reúne a obra ensaística de Philippe Lejeune (2008).
132
Importa destacar o pensamento de Jeanne Marie Gagnebin (2004) sobre a oposição autobiografia e
ficção, quando assinala que “qualquer narração de si também [é] [...] uma ficção de si mesmo” (2004, p.
89).
173
suas reflexões focalizando na própria estrutura textual, na qual não se vê diferença
relevante em relação aos demais tipos de textos e gêneros literários: “A história da
autobiografia seria [...] a história de seu modo de leitura: história comparativa na qual
poderíamos fazer dialogar os contratos de leitura propostos pelos diferentes tipos de
texto [...] e os diferentes tipos de leitura a que esses textos são [...] submetidos.”
(LEJEUNE, 2008, p. 46).
Como não há a intenção de problematizar os muitos gêneros que se espraiam sob
o manto da autobiografia, embora se reconheça que se materializam na forma de diários,
memórias, e, com o advento da rede mundial de computadores, de blogs e páginas
pessoais que arvoram para si valores de ordem estética (ou que permitem, ao menos, um
debate nesse sentido), considera-se apenas o gênero autobiográfico ligado à faculdade
da memória, configurando-a na forma de memória literária,133 sobre o qual Helena
Carvalhão Buescu pondera:
É precisamente devido a este conjunto de elementos que designei esta
forma de memória como ‘literária’: porque está enraizada no acto (ou
na acção) literário(a), por um lado; mas também, e de uma outra
perspectiva, porque é também aquilo a que poderíamos chamar uma
“memória intertextual”, ou seja, uma forma particular de encarar o
texto como local de manifestação e portanto memória de outros
textos[.] (2001, p. 89).
Em projeções de ordem teórica sobre a memória, enquanto gênero literário
autônomo e de larga manifestação na literatura portuguesa, pelo que se pode lembrar
que o memorialismo gozou de horizonte privilegiado na primeira metade e no meio do
século XX, com destaque para as obras de Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, Miguel
Torga e, ainda que um pouco mais tarde, os diários de Vergílio Ferreira, a ensaísta Clara
133
Walter Benjamin, no 13º fragmento de “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”,
sublinha que “A memória é a mais épica das faculdades. Somente uma memória abrangente permite à
poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o
desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte.” (1994, p. 210).
174
Rocha lança mão da imagem do labirinto para tecer considerações de cunho estéticoliterário, sublinhando que, “no plano gramatical o eu diz-se em várias pessoas” (1992, p.
50). Com efeito, pode-se pensar a autobiografia, e, por conseguinte, as memórias
literárias, como gênero “que questiona a idéia de um todo orgânico e valoriza, por sua
vez, o fragmento” (MOLLOY, 2003, p. 23), assentando-se sobre uma base de cunho
polifônico, diversa, em que o percurso da escrita pode ser comparado às veredas do
labirinto:
[...] o eu move-se tacteante nos corredores da sua intimidade, do seu
psiquismo ou da sua vida, avança e volta atrás e procura na escrita o
fio de Ariadne da salvação. Escrever sobre si é procurar reencontrar-se
dentro do seu próprio labirinto, ou situar-se no labirinto do mundo.
(ROCHA, 1992, p. 54).
Não apenas por evocar a fragmentação do eu, a que o homem ficou sujeito após o
desenvolvimento da psicanálise ao longo do século XX, a escrita memorialística
encarna a forma de exemplar tecido textual. O memorialismo literário constitui-se
vitrine de uma plêiade de citações, seja de um eu que concede a voz a um outro, seja de
um eu que dialoga com o seu outro eu, um sujeito divido pelo fluir do tempo. Quando o
memorialista diz: “Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que
profundidade” (BRANDÃO, 1998, p. 36), há de se considerar que o “eu é afectado pelo
outro de muitas maneiras” (ROCHA, 1992, p. 50). É nesses interstícios da memória,
que Raul Brandão edifica o “verdadeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio,
contra a indiferença da morte” (GAGNEBIN, 2009, p. 112): a escrita.
175
4.3. Memórias, histórias, testemunhos: uma poética em farrapos
Entre as poucas manifestações da crítica que se debruçam sobre as memórias
brandonianas, há de se destacar, por força da cronológica de publicação, o estudo de
Guilherme de Castilho. Com efeito, o ensaísta português dedicou-se, ainda que sob
outro viés, à análise das Memórias, constituídas por três volumes publicados,
respectivamente, nos anos de 1919, 1925 e 1933. No cerne da leitura crítica de Castilho,
reside a intuição de que o memorialismo brandoniano interessa apenas como expressão
literária, reservando à matéria histórica uma posição secundária na diegese narrativa:
“Sublinhe-se, entretanto que, ao incluir esta obra no capítulo dedicado à História, o
fazemos tendo apenas em vista a razão formal, de obediência a sistematização dos
gêneros” (CASTILHO, 2006, p. 362). Por se imbuir da análise de obras que, em quase
tudo, fogem aos preceitos do cânone literário, pode parecer frágil a alegação de um
estudo das Memórias que busque encaixá-las no molde das formas que o século XIX
concebeu. No entanto, o esforço de Guilherme de Castilho, se se destaca por valorizar
de que forma o texto de Raul Brandão agrega a matéria histórica à expressão literária,
por outro lado peca por conceber essa presença da história como ocasional ou fruto de
uma inadequação do autor aos gêneros pré-estabelecidos. Por outro lado, Vitor Viçoso é
mais incisivo ao registrar e valorizar a presença da história – ou o real – na constituição
da escrita literária de Raul Brandão: “Poderíamos talvez dizer que a ‘memória’ é, nele,
um discurso sobre o real carregado de ficção.” (1994, p. 179). E não é a história
justamente um discurso sobre o real em que as lacunas devem ser preenchidas pela
capacidade de efabulação do narrador?
Com efeito, em muitos escritos memorialísticos, a matéria histórica se destaca por
ser mais do que certo resíduo laboral do autor, que deixa fortuitamente passar pelo filtro
narrativo aspectos do momento histórico e mesmo a forma com que uma época se vê no
176
espelho do tempo: “os memorialistas têm muitas vezes preocupação testemunhal e
manifestam consciência de estarem paredes meias com a História, mas também com a
sua história pessoal” (MORÃO, 1994, p. 25). O próprio escritor de Guimarães deixa
transparecer que seu interesse pela história, ao formular a estruturação de sua obra, é
mais do que a dotar de uma expressão literária de aspecto exclusivamente lírico:
Os acontecimentos dos últimos reinados afiguram-se-me sempre faltos
de lógica e de nexo. Estão talvez muito perto de nós ainda: precisam
de perspectiva que os coloque nos seus devidos lugares. Só o
historiador poderá criar mais tarde, com documentos e memórias, e
certa aparência de verdade, o romance da nossa vida. (BRANDÃO,
1998, p. 233).
O escritor pontua ao menos dois temas recorrentes sobre os quais se debruçam os
críticos literários e os historiadores da contemporaneidade: (1) a necessidade do
distanciamento temporal a fim de que se possa analisar de forma coerente a matéria
histórica; (2) e a perspectiva de que a história, vista essencialmente como produto da
faculdade do narrador de se debruçar sobre o passado, aproxima-se do gênero
romanesco – porque ambos se ocupam fundamentalmente da vida dos homens e da sua
relação com a sociedade. Raul Brandão é detentor de uma singular preocupação
histórica, porquanto põe em questão se é a narrativa histórica o discurso da verdade ou
se a verdade só se pode realizar quando “O cronista que narra os acontecimentos, sem
distinguir entre os grandes e os pequenos, leva[r] em conta a verdade de que nada do
que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1994,
p. 223).
Embora se possa argumentar que o memorialista deve se ocupar prioritariamente
das experiências individuais, esses momentos do eu, a atitude esboçada pelo escritor da
Foz do Douro justifica-se pela compreensão de que é preciso “Tornar-se senhores da
[faculdade da] memória e do esquecimento” (LE GOFF, 2003, p. 422) porque, apenas
177
desse modo, é possível evitar que a história seja controlada em nome dos vencedores:
“Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva” (Ibidem, p. 422). Walter Benjamin ilumina a
metáfora do autômato, que narra mecanicamente a história em desfavor dos vencidos:
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que
podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um
contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca,
com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado
numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a
mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na
realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre do xadrez,
que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma
contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado
“materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer
desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é
reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.
(BENJAMIN, 1994, p. 222).
Em sua tese I, o anão com narguilé na boca representado como imagem do
historicismo ou de uma concepção positivista da história é o mecânico capaz de manter
a narrativa dos vencedores no seu trilho progressista, garantindo, dessa forma, a
hegemonia sobre o relato. É sobre essa prática que Raul Brandão se posiciona, duvida
da veracidade e, por isso, preocupa-se em registrar literariamente aquilo que o
historiador positivista deixa para trás: “Sei perfeitamente que a história viva tanto se faz
com a verdade como com a mentira – se não se faz mais com mentira do que com a
verdade.” (BRANDÃO, 1998, p. 38). Sobre esse registro da história, Vítor Viçoso
sublinha que o escritor faz, sobretudo, “Nas suas micro-biografias dos políticos, dos
artistas ou dos jornalistas, [em que se] revela[...] sempre essa luta oculta entre cada
homem e os seus fantasmas” (1994, p. 178).
Raul Brandão registra como poucos a essência de sua época. Não raro o seu relato
memorialístico é base para que historiadores portugueses documentem, “por exemplo,
178
como a corrupção que minou o aparelho político monárquico criou as condições para a
irrupção da República, sem grandes confrontos.” (VIÇOSO, 1994, p. 181). Por seu
turno, embora a crítica contemporânea possa argumentar que está “consolidado o valor
historiográfico da obra, justificando mesmo a subida da cota de citações nos estudos
recentes sobre o período em causa (entre o regicídio e os primeiros tempos do regime
republicano em Portugal” (PEREIRA,1999, p. 9), a eleição é por estudar as Memórias
como expressão híbrida de uma pulsão literária que “Longe de ser ‘desperdício’, [...]
quer ser útil e empenhada.” (ROCHA, 1992, p. 145).
Walter Benjamin entende que não é possível recuperar o passado tal como ele foi,
mas redimi-lo, de forma a torná-lo “citável [...] em cada um dos seus momentos” (1994,
p. 223). Na forma de uma reapresentação do passado, a memória é, em última instância,
uma espécie de restauração, cujo sentido é esclarecido pelo crítico Francisco Machado:
“Restauração significa que algo foi perdido e que pode ser resgatado pela lembrança ou
memória desse algo”. (2004, p. 105). Essa restauração é possível por meio da escrita,
que registra a memória na alegoria da palavra, tal como lembra Jeanne Marie Gagnebin,
à introdução ao primeiro volume das obras escolhidas do pensador alemão, a qual
sabiamente intitula de “Walter Benjamin ou a história aberta”: “a questão da escrita da
história remete às questões mais amplas da prática política e da atividade da narração. É
esta última que eu gostaria de analisar: o que é contar uma história, histórias, História?”
(1994, p. 7).
A história re(a)presentada no memorialismo de Raul Brandão está impregnada do
sentimento crepuscular, porquanto partilhe com Walter Benjamin a intuição de que “A
história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas
um tempo saturado de ‘agoras” (1994, p. 229), que se funda “Contra a visão
evolucionista da história como acumulação ou civilização” (LÖWY, 2005, p. 60) que a
179
“percebe ‘de baixo’, do lado dos vencidos, como uma série de vitórias de classes
reinantes” (Ibidem). Essa história, barroca134 ao mesmo tempo que messiânica, porque,
aguarda o dia do Juízo Final como momento definitivo da redenção dos mortos, clama-a
o escritor, numa elucidação de que é preciso abandonar a sintaxe linear da narrativa para
que os mortos possam emergir em meio ao silenciamento imposto pelos que escreveram
a história e apagaram “os buracos da narrativa que indicam tantas brechas possíveis no
continuum da dominação” (GAGNEBIN, 2004, p. 100):
Eu pobre, tu rico, caminhamos para o mesmo fim, como bonecos na
mão dum autor escondido que puxa pelos cordéis. Mas as classes
superiores? A justiça? Conheço dez, vinte casos cuja fortuna assenta
numa primitiva infâmia. Conheço mil pobres com uma vida digna de
quem ninguém fez caso. O rico explora o desgraçado, já não há
homem nenhum que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje
que isto desabe... [...] Sim, os pobres têm razão. É por isso que eu, e
todos, sentimos a necessidade da catástrofe. Tenho uma certa pena,
uma certa saudade do passado, mas caminho com decisão para o
futuro. Tu e eu, leitor, reclamamos a hora tremenda do juízo final.
(BRANDÃO, 2000, p. 98).
Se a reflexão de Raul Brandão impressiona pela sintonia com os preceitos de uma
filosofia benjaminiana da história, pode-se ilustrar uma aproximação entre o excerto e a
tese I do filósofo alemão, para quem o maquinista da história positivista, no uso tirânico
de uma sintaxe de causa e consequência lineares, impede qualquer tentativa de
apreender o passado pelo viés dos que pereceram – aqueles que foram esquecidos no
processo histórico. Nas mãos de um “autor escondido que puxa pelos cordéis” (Ibidem),
os vencidos, figurados na narrativa brandoniana na alegórica imagem do pobre, mas
também na do artista e, sobretudo, na dos mortos, não são capazes de provocar fraturas,
134
Embora se tenha tratado da temática do barroco e da história sob a perspectiva barroca em outro
capítulo desta investigação, julgo necessário relembrar, lançando mão do que diz Francisco Machado, em
síntese à concepção de história que norteia a escrita de Walter Benjamin: “A teoria barroca da história não
se entende mais, como na Idade Média, como história da salvação, mas como natureza nos dois sentidos
opostos apontados anteriormente: como catástrofe e destino e como ordem pelo poder absoluto e secular
do príncipe.” (2004, p. 101).
180
de interromper o discurso monolítico dos dominadores. Daí a importância de que o
escritor se preocupe em registrar aquilo que “não cabe na história com H grande, [mas
que] tem o seu lugar num livro de memórias despretensiosas. Eis uma razão” (1998, p.
39) e que acrescente: “Tenho outra ainda: torno a ver e a ouvir alguns mortos.”
(Ibidem).
As Memórias de Raul Brandão cumprem a função de recolecionar (no termo
benjaminiano de apokatastasis) as almas – ou, neste caso, as essências dos vencidos –
na metáfora alegórica que a palavra escrita representa. A estrutura do texto não poderia
ser, por conseguinte, a forma habitual do diário ou ainda outra que assumisse a posição
de uma novelística linear, livre de lacunas, silêncios. Para poder resgatar o passado,
fixá-lo momentaneamente na escrita memorialística, o escritor da Foz do Douro tem que
“contar com uma tradição esburacada, [tem que] dizer a ruptura” (GAGNEBIN, 2004,
p. 99), precisa “Acolher o descontínuo da história, proceder à interrupção desse tempo
cronológico sem asperezas” (Ibidem, p. 99). Esta é, por conseguinte, a divergência entre
a leitura de Guilherme de Castilho e esta que ora se apresenta, porque o ensaísta
compreende que “Fixando-nos no plano propriamente literário, teremos de lançar em
saldo negativo a caótica anotação de quase duzentas páginas do Pó da Estrada deste
primeiro volume” (2006, p. 365), juízo que fica comprometido quanto mais se delineia
que a estética do autor de Guimarães é suportada por uma série de figurações de cunho
visionário, de incontornável pendor filosófico, a quem o memorialista dirige a palavra:
“Uma palavra me detém. Tenho passado o tempo a comentar-me e poucas almas me
interessam como a minha. O que eu amo é sobretudo o diálogo com esse ser
esfarrapado.” (BRANDÃO, 1999, p. 40).
Quem é este ser esfarrapado, trapeiro de uma existência agônica, que povoa não
apenas as Memórias, mas também inúmeros outros livros do autor? Há na escritura
181
brandoniana extensa linhagem de almas perdidas, sujeitos que assomam como registro
espiritual e ainda como imagem alegórica do trapeiro. Aos farrapos, “sem tecto, entre
ruínas” (BRANDÃO, 1998, p. 36), esses sujeitos, cacos do homem condenado à
modernidade, multiplicam-se na narrativa de Raul Brandão, porque é somente no
espaço literário que se torna possível construir um outro paraíso, um paraíso erigido
pela memória. O ser esfarrapado é, ao mesmo tempo, o eu e o outro; o Gabiru (Húmus),
O Gebo (O Gebo e a Sombra), o Pita (Os pobres) – e também o Palhaço (História dum
Palhaço), cuja tragicidade da vida o leva ao suicídio. É com o ser esfarrapado que o
escritor mais se importa, com quem dialoga (ou monologa?). Esses diálogos assumem,
por vezes, a forma de citações do autor das Memórias, registrando-se em comentários
de pessoas de seu convívio sobre situações específicas, ou ainda do discurso indireto (e
discurso indireto livre), tornando o fio da escrita ainda mais intricado de desvelar,
palimpsesto que entretece a história pessoal do sujeito (biografia) e a história coletiva e
social (história). Clara Rocha lembra que as
Memórias de Raul Brandão são, em grande parte, preenchidas pelo
universo dos outros. Mas, em dois ou três momentos, o universo
pessoal aflora à superfície do texto, e então as memórias cedem
espaço ao balanço autobiográfico. Esses momentos são, aliás, do
melhor que há nas Memórias de Raul Brandão. (1992, p. 152).
Os balanços autobiográficos a que a ensaísta faz referência podem ser encontrados
em diversos pontos da escrita memorialística de Raul Brandão, embora a crítica tenha se
concentrado em ratificar o valor dos prefácios. Guilherme de Castilho chama-os de “três
pequenas obras-primas literárias, três trechos de antologia” (2006, p. 374), cuja
existência, mesmo apartada artificialmente do corpo de uma escrita memorialística cuja
forma em fragmentos a memória costura, confere a esses excertos um estatuto literário
que “justificariam a publicação [...] [do] livro” (Ibidem). Filipa Mendes Barata dedica
182
um capítulo ao estudo dos prefácios das Memórias, porém ressalta que “se compreende
que nem a autobiografia despreze em absoluto a sua relação com o mundo exterior, nem
as memórias, na tentativa de construção de um quadro da época, se coíbam de aduzir ao
discurso um ponto de vista subjectivo.” (2008, p. 23-24).
A leitura atenta dos prefácios permite identificar três veios principais, que
preenchem os volumes das Memórias de Raul Brandão, o que não quer dizer que o
crítico que sobre eles se debruce possa isolar um único aspecto da escrita memorialística
do escritor e associá-lo diretamente a um volume especificamente correspondente. No
compêndio vindo a lume em 1919, destaca-se o apelo a uma concepção da história que
justificasse o motivo pelo qual a autobiografia e o relato historiográfico viessem a
partilhar do mesmo tecido literário. É, então, que anuncia ao leitor sua escritura,
revertida de uma (des)estruturação imanente, porque assentada numa estética de trapos:
Isso que aí fica não são memórias alinhadas. Não têm essa pretensão.
São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um
acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos
se desenrolou, interessou-me a cor, um aspecto, uma linha, um
quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhedo que sempre me
acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicála. Não afirmo nem nego. (BRANDÃO, I, 1998, p. 37).
É provável que o excerto, em caráter de advertência ao leitor – recebe o título de
“Prefácio” –, buscasse uma escrita memorialística clássica e tivesse por intenção a de
eximir o escritor das passagens polêmicas a que lança mão, evitando um
comprometimento, justamente porque essas memórias devem ser lidas, ambiguamente,
como autobiografia e como registro histórico. Não definindo, portanto, o liame entre as
duas tensões que atuam no seu relato, o escritor fica livre para emitir, ao contrário do
que diz, explicações e mesmo juízos de valor sobre os homens portugueses e a
conturbada época em que viveram. Entretanto, não apenas de reflexões sobre a matéria
183
histórica está repleto o prefácio do primeiro volume. O fragmento acima permite
observar a preocupação do autor com as qualidades efabulatórias de seu texto, como se
vislumbra nos grifos. Do traço ao quadro, do pontual à cena, Raul Brandão sublinha a
própria vocação para a caricatura, desvelando a tênue fronteira que sua arte expressa
entre distintas linguagens artísticas. O signo literário projeta-se rumo ao colorido suave
e fractal do impressionismo e, ainda, em direção ao borrão claro-escuro do
expressionismo.
O segundo tomo das Memórias traz um prefácio intitulado “O silêncio e o lume”,
que privilegia o resgate da memória, concebida na forma de uma memória afetiva,
muitas vezes fictícia, a fim de que o narrador reconstitua um tempo idílico, possível de
ser acessada apenas por meio da exegese literária. Concentrando-se, sobretudo, no
tempo da infância e da juventude, Raul Brandão evoca com expressiva ternura os seus
mortos e o núcleo familiar (“as figuras cada vez mais diluídas da mãe ou da velha criada
continuam a agarrá-lo afectivamente com as suas mãos espirituais”; VIÇOSO, 1994, p.
183), que, via de regra, sobrepõem-se:
Querida: estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva
infinita cai lá fora com um ruído monótono de choro. Estamos sós
nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque
cada vez me sinto mais perto dos mortos. Rodeiam-nos, chegam-se
para mim e sentam-se ao nosso lume. São legião... Mais perto, que eu
faço uma labareda que nos aqueça a todos! A velha mesa da consoada
foi-se despovoando com o tempo, mas hoje estão aqui sentadas todas
as figuras que conheço desde que me conheço...Tu, toda branca, e que
mesmo através do túmulo me transmites sonhos; tu, mais longe, mais
apagada e sumida; e tu, que vens de volta e encostas os teus cabelos
brancos aos meus cabelos brancos, para me dizeres baixinho: −
Menino! (BRANDÃO, 1999, p. 39).
Ao evocar um passado já esmaecido, o memorialista abre mão de uma
preocupação ordenadora do tempo para permitir que o fluir da memória seja marcado
184
pelo compasso da água que salta e percorre caminhos aleatórios.135 Despindo-se de
qualquer estruturação formal pré-concebida, como os líquidos que assumem a forma do
recipiente nos quais está contido, o tempo da memória é a metáfora da infância e da
juventude, é clepsidra que o início do século desvela. A atração pela água é, aliás,
reiteradamente chamada a compor as páginas do livro (“Tu, primeiro, de quem herdei a
sensibilidade e esta paixão pelas árvores e pela água, e de quem sinto as mãos pousadas
sobre a cabeça, trespassando-me de ternura”; Ibidem, p. 42), dotando-o de uma
“circularidade subjectiva que faz vir à superfície eventos, figuras ou frases que, deste
modo, parecem libertar-se da ordem temporal” (VIÇOSO, 1994, p. 181). Água e
memória conjuram-se num tempo que implica a fratura e jamais se cristaliza.136
Assumindo uma forma inorgânica, Raul Brandão suspende o tempo cronológico para
fundear a sua casa-corpo no cais da memória líquida, disforme: “O tempo – não sei se o
tempo existe... Pelo menos não decorre com regularidade.” (BRANDÃO, 1999, p. 43).
Sobre a percepção brandoniana do tempo, é possível dizer que os relógios do seu
memorialismo estão abalados, como nas representações vanguardistas do surrealismo de
135
É quase forçoso evocar Clepsidra, de Camilo Pessanha, em que o amolecimento das estruturas,
representada pela versatilidade da água, que incessantemente jorra, remete à circularidade de um tempo
que não permite a definição de um princípio e um fim: “Imagens que passais pela retina / Dos meus
olhos, porque não vos fixais? / Que passais como a água cristalina / Por uma fonte para nunca mais!... //
Ou para o lado escuro onde termina / Vosso curso, silente de juncais, / E o vago mêdo angustioso domina,
/ – Porque ides sem mim, não me levais? // Sem vós o que são os meus olhos abertos? / – O espelho
inútil, meus olhos pagãos! / Aridez de sucessivos desertos... // Fica sequer, sombra das minhas mãos, /
Flexão casual de meus dedos incertos, / – Estranha sombra em movimentos vãos.” (PESSANHA, 1969, p.
207-208). Nunca é demais lembrar que o autor das Memórias e Camilo Pessanha foram contemporâneos,
tendo este último vivido entre 1867, mesmo ano de nascimento de Raul Brandão, e 1926, quatro anos
antes da morte do escritor de Guimarães. Coetâneo dos dois escritores é António Nobre (1867-1900), cuja
figura é retratada no 3º volume das Memórias.
136
Para uma melhor apreensão da idéia de interrupção e de cesura, tal como formulados pelo filósofo
alemão Walter Benjamin, observar o que diz Jeanne Marie Gagnebin: “A idéia de interrupção e, de
maneira mais específica, o conceito de cesura preenchem assim na reflexão historiográfica de Benjamin
uma dupla função: em primeiro lugar, criticam uma concepção trivial da relação histórica, em particular
uma relação de causalidade determinista, tão fácil de estabelecer a posteriori; a essa causalidade achatada
apõe a intensidade de um encontro súbito entre dois (ou mais) acontecimentos que, de repente, são
(com)preendidos pela interrupção da narração e se cristalizam numa significação inédita” (2004, p. 105106). Mais adiante acrescenta: “Em segundo lugar, a cesura opera uma ruptura no desenvolvimento
falsamente ‘épico’ da narrativa; contra a ilusão tentadora que queria ver no fluxo de nossas palavras a
abundância da natureza, ela lembra que nossa narração (em particular nossa ‘história’!) não segue por si
mesma, que ela é o resultado de decisões singulares, até arbitrárias, e não o fruto de um processo
universal e orgânico.” (Ibidem, p. 106).
185
Salvador Dalí
137
– e um estudo que se preocupasse em observar o funcionamento da
categoria do tempo no memorialismo do escritor de Guimarães traria valorosa
contribuição ao aclaramento da crítica atual: “Nunca fui homem de acção e ainda bem
para mim: tive mais horas perdidas.” (BRANDÃO, 1998, p. 31).
O terceiro volume das Memórias apresenta um prefácio em que o forte apelo
telúrico138 se faz patente, “em que emerge uma sacralidade telúrica enquanto
contraponto da dessacralização urbana” (VIÇOSO, 1994, p. 178). A aldeia portuguesa é
exaltada na forma de rincão em que o pobre pode conviver em frágil harmonia com o
senhorio: “A aldeia cheira a terra e a esterco.” (BRANDÃO, 2000, p. 40). Celebrando o
espaço rural em detrimento do urbano, a paisagem transfigurada pela escrita
memorialística do escritor de Guimarães se sobressai, e a simplicidade das imagens
fixa-se na retina do narrador e do leitor como força apaziguadora.139 Aliás, pelo caráter
essencialmente plástico que a poética brandoniana assume, antecipando uma estética da
paisagem na qual a natureza é humanizada e da qual a obra de Miguel Torga, sobretudo
os Contos da Montanha,140 é exemplar nessa primeira metade do século XX, tem-se a
perspectiva de uma iminente “fusão entre o sujeito e a natureza, que faz de ambos uma e
a mesma coisa” (BARATA, 2008, p. 33).
137
Ao traçar um paralelo entre a escrita brandoniana e obra plástica de Salvador Dalí, faço tendo em
mente a tela “A persistência da Memória”, concluída em 1931.
138
Alexandre Babo, a respeito de um estudo sobre a dramaturgia de Raul Brandão, salienta o pendor
telúrico de parte de sua obra, ao registrar que o olhar brandoniano é “O debruçar do intelectual burguês
sobre as misérias, as ansiedade, as dores, as torturas e as esperanças duma classe, que não é a sua, feita de
vitalidade telúrica” (s.d, p. 420).
139
Sobre o efeito psicológico do confronto entre o espaço citadino e o espaço rural no memorialismo de
Raul Brandão, diz Clara Rocha: “A cidade dos homens dá-lhe a imagem do caos e do vazio; a Natureza,
pelo contrário, oferece bálsamo da autenticidade e totalidade – é um cosmos e é plena de sentido.” (1992,
p. 152)
140
Para fins de cotejo entre os textos, e como refiro aqui à escritura de Miguel Torga como prática notável
de um telurismo da primeira metade do século, parece necessário destacar uma passagem do conto “A
Maria Lionça”, em que o escritor retrata não apenas o camponês como também a pequena aldeia
portuguesa: “A Maria Lionça, essa, ficou. Como todas as mulheres da montanha, que no meio do gosto do
amor enviúvam com os homens vivos do outro lado do mar, também ela teria de sofrer a mesma
separação expiatória, a pagar os juros da passagem anos a fio, numa esperança continuamente renovada e
desiludida da loja da Purificação, que distribuía o correio com a inconsciente arbitrariedade dum jogador
a repartir as cartas dum baralho.” (TORGA, 1982, p. 18-19). No conto, a personagem e a paisagem
formam uma unidade.
186
É preciso ressaltar que, até o presente, poucos são os estudos que optaram por
analisar a obra de Raul Brandão sob a perspectiva da paisagem, a exemplo de José
Manuel de Vasconcelos (1991), Jacinto do Prado Coelho (1996), Florence Levi (1997) e
Teresa Motta-Demarcy (1997), Albano Martins (2000), que se detêm, a maior parte das
vezes, na imagem da vila como espaço metafórico do simulacro da existência no
Húmus: “E, o que é mais, esta vila submersa, onde às vezes tudo se afigura flutuante e
esverdeado, como debaixo de água, constitui uma abreviatura do mundo, os seus
habitantes representam a humanidade inteira.” (COELHO, 1996, p. 296). Mais do que a
mera categoria formal do espaço, o escritor de Guimarães situa o ambiente que envolve
o sujeito enunciador das suas memórias no limite entre o etéreo e o concreto. Não se
pode, portanto, identificar geograficamente o espaço, mas é possível retê-lo como
paisagem, figurada apenas pelo trabalho da memória. A terra, como signo
essencialmente religioso na escritura brandoniana, é evocada sob a perspectiva da
comunhão com o cosmos, em que o sujeito que enuncia, os sujeitos que o rodeiam e a
sutil paisagem ilustrada acessam uma religiosidade que se funda não numa ordem
teológica, mas moral e ética, em que a dignidade humana fala mais alto:
Considero os meses mais felizes da minha vida aqueles em que eu e
minha mulher fomos viver para uma aldeia remota. Ainda hoje me
penetra a solidão perfumada dos montes. A casa não tinha vidros e à
noite o silêncio doirado de estrelas entrava pelas janelas e desabava
sobre nós... Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por
um fio a comunicar connosco. (BRANDÃO, 2000, p. 35).
O ato de se isolar para sentir a terra, para partilhar de uma espécie de união
cósmica, é reforçado pela descrição da casa, de estrutura singela e permanentemente
aberta, propiciando o contato com a natureza. O telurismo atinge em Raul Brandão uma
característica de matiz psicológico, porque o leitor não se põe diante de narração que
detalha e exalta apologeticamente a terra natal, o autor não sublinha dificuldades de
187
extrair o sustento por questões de ordem natural – a terra é sempre bendita; é à diferença
de classes sociais que se impura o sofrimento dos homens do campo (“Levam horas a
comer. Comer para o lavrador, que sabe o que lhe custa o pão, é um acto religioso.
Moem e remoem devagar o caldo e a broa, com o respeito de nossos pais diante da mesa
posta.”; Ibidem, p. 37).
Ao contrário, os laços que ligam o memorialista à terra são inteiramente
subjetivos, distintos daquele telurismo que veio a nortear a escrita de certa parcela do
neorrealismo português, por exemplo. Na escritura brandoniana, o narrador e a terra
tornam-se um só pelos artifícios da memória, que instala no coração do memorialista o
afeto despertado por um passado difuso. Envolto em brumas, o narrador torna-se a
própria terra, a espreitar todos os seus filhos; e a terra transfigura-se em narrador, numa
visão de mão dupla: “A aldeia é uma coisa séria, a terra é uma coisa séria! ...Lá vai pela
estrada um caseiro despedido, apegado a um pau, sem poder tirar os olhos do campo a
que moeu o granito.” (Ibidem, p. 44). Quem observa o caseiro, mais um proletário da
galeria brandoniana de trapeiros, porta o olhar visceral de uma paisagem que também
“nos contempla” (Ibidem, p. 35). A categoria narrativa do espaço ganha, assim, novo
estatuto141 na escritura de Raul Brandão.
O leitor mais renitente desconfia dessa narração memorialística, que parece tão
distante do real universo pessoal do escritor de Guimarães desvelado nas biografias,
sobretudo aquela levada a cabo por João Pedro de Andrade (2002). Sem uma cronologia
definida, essa memória, mais espiritual que temporal, permite, por momentos, a
instauração da dúvida no pacto de leitura, porque o leitor oscila entre apostar no
141
Esse estatuto na obra de Raul Brandão não foi investigado sistematicamente até o presente momento.
As leituras exercitadas são mais da ordem de comentários inseridos em artigos/ensaios, como salientado
anteriormente, e se preocuparam sobremaneira com a vila do Húmus, metáfora da vida. Sobre o primeiro
livro, Impressões e Paisagens (princeps em 1890), não há significativa produção bibliográfica, a exceção
de dissertação de mestrado defendida, no Brasil, por Francine Camelin (2008), cujo título é Impressões e
Paisagens: na fronteira entre o Naturalismo, o Simbolismo e o Impressionismo.
188
memorialismo como resgate verdadeiro do passado ou como efabulação de um passado
que Raul Brandão se autoconcede. Essa dúvida, no entanto, é logo afastada porque a
“ficção, por vezes, torna-se realidade, e estas correntes subterrâneas parecem ter tanta
força como a verdade factual” (VIÇOSO, 1994, p. 181). O microcosmo pincelado por
Raul Brandão é mais de caráter simbólico que concreto; o passado é reapresentado sob a
perspectiva do homem de meia idade que se esforça para (re)construir memórias de um
tempo psicológico, cujo acesso se dá pela via do afeto e da estrutura gnosiológica: “Lá
está a velha casa abandonada, e as árvores que minha me, por sua mão, dispôs: a bica
deita a mesma água indiferente, o mesmo barco arcaico sobre o rio [...]. Só os mortos
não voltam.” (BRANDÃO, 1998, p. 32).
É evidente que a identificação de cada um dos volumes das Memórias com uma
qualidade estético-temática específica é efeito mais de uma opção metodológica do que,
efetivamente, uma aposta declarada do autor. O que importa sublinhar é o modo pelo
qual a memória, compreendida inicialmente como textos que mantêm uma proximidade
com o conceito de verdade, permite ser preenchida pela ficção, daí que a divisão
proposta por Guilherme de Castilho (2006, p. 362) em quatro partes (introduções de
cada volume; notas jornalísticas do dia-a-dia da política portuguesa; trechos vários,
espalhados pelos três volumes, em que o autor se detém em retratar personagens da
época; e trechos de natureza autobiográfica) seja de difícil sistematização, ainda mais
quando opera a partir de indicadores temáticos frágeis e que se sobrepõem e/ou anulam.
A paisagem rural e a paisagem urbana, via de regra a baixa pombalina e os bairros
Alto e do Chiado da capital portuguesa, desdobram-se na figuração de dois espaços
sociais, um em que os pobres avultam como protagonistas (“Os homens só ossatura e
pele [...] têm erguido as cabanas de todos estes arredores.”; BRANDÃO, 1998, p. 45) e
outro em que a pequena burguesia, composta de comerciantes, profissionais liberais,
189
funcionários públicos, com destaque para soldados e outros militares de baixa patente, e
artistas (sobretudo escritores), ganha relevo. Entretanto, nem o campo nem a cidade
estão em posição de isolamento. Os pobres que povoam o campo também deslizam
pelas ruas e vielas da cidade, o que leva a pensar que, diferentemente de livros como A
Farsa e Húmus, as Memórias retratam uma trapêrie em que esses esfarrapados
assumem a posição de legítimos protagonistas da escritura memorialística de Raul
Brandão. Entretanto, projeta-os, torna-os sujeitos da própria existência: “Os cabaneiros
vivem pior que lavradores, vivem do jornal; e com a chuva e os dias pequenos ninguém
os chama. Aparecem na manhã nublada e fria, para rachar a lenha ou para cavar a
vinha!” (Ibidem, 2000, p. 44).
O que o escritor conjura como “pobres” não se restringe aos menos abastados
social e economicamente. É frequente o uso do termo para qualificar uma plêiade de
sujeitos cujo sofrimento – nas diversas ordens possíveis – atinge níveis elevados. Ainda
assim, esses sujeitos retratados pelo memorialista destacam-se pela forma como os
descreve, partindo, quase sempre, de um detalhe físico para, na sequência, concentrar-se
numa descrição psicológica e do comportamento, que reforça uma vocação
expressionista plasmada pelo pictórico, conforme explica Filipa Mendes Barata: “Os
tons da paleta expressionista de Raul Brandão ajudam a moldar um universo de fantasia
onde se configura a reinvenção de um outro mundo, o mundo do sonho” (2008, p. 46):
Essas figuras, só osso e só pele, descarnadas, que partem de manhã
com sequitel e boroa, que só pronunciam palavras graves, e ao dar do
meio-dia se descobrem e mastigam o pedaço seco de pão com um ar
solene – acabaram, enfim, por encontrar um descendente austero e
grave, capaz de exprimir o universo – o que sentiram, o que sofreram
e o que sonharam – e de edificar com alicerces para séculos.
(BRANDÃO, 1998, p. 204).
190
O escritor confere às figuras expressionistas que cria o tom dramático, ao destacar
o “ar solene” com que se apresentam. Interessa sobremaneira como o texto preocupa-se
em destacar as características físicas desses pobres, não sem arrematar o texto com uma
reflexão metafísica, sublinhando o espaço arruinado que cerca esses esfarrapados. O
memorialismo de Raul Brandão registra a dependência que as classes abastadas têm
desses homens e mulheres silenciados (“Espero pelo dia – mesmo na cova o espero –
em que acabará a exploração do homem pelo homem.”; Ibidem, 2000, p. 46),
estabelecendo uma relação de empatia e ternura entre o narrador das Memórias e os
vencidos: “E é da gente ignorada que levo as maiores impressões da existência. Foram
os pobres que me obrigaram a pensar [...]. Ainda hoje desfilam diante de mim os mortos
e os vivos... Não posso esquecê-los: parece que todos eles esperam alguma coisa de
mim.” (Ibidem, p. 36).
O esquecimento a qual alude o escritor de Guimarães não é o “esquecer natural,
feliz, necessário à vida” (GAGNEBIN, 2009, p. 101), mas antes uma forma tirânica de
assolapar a memória, na qual brota a história, e, dessa forma, almeja permitir que o
“historicista apresent[e] a imagem ‘eterna do passado”, do qual fez “uma experiência
única” (BENJAMIN, 1994, p. 230-231). Essa experiência, a qual se refere Walter
Benjamin em suas teses, não é aquele saber (Erfahrung) do qual partilha “um velho que
no momento da sua morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em
seus vinhedos” (Ibidem, p. 114). Trata-se, portanto, de engessar a história, de tornar o
ancião moribundo em velho cujo discurso é desnecessário, e de permitir que a história,
cuja escrita “cai sempre para o lado dos vencedores" (BRANDÃO, 2000, p. 57), sujeitese ainda mais “às classes dominantes, como seu instrumento. “(BENJAMIN, 1994, p.
224). Aí reside o perigo, porque aparelhando uma história monolítica o “inimigo não
tem cessado de vencer.” (Ibidem, p. 225).
191
No memorialismo de Raul Brandão, o tom confessional, o uso de cores
crepusculares, as repetições próprias de quem sussurra ao pé do ouvido e a
particularidade de uma adjetivação que se estabelece como marca estilística do escritor
colaboram para a figuração de “vultos individualizados” (ROCHA, 1992, p. 149), seja
de imagens que povoam a memória da infância e da adolescência, seja de personagens
com as quais conviveu nos anos da maturidade. Segundo Filipa M. Barata, “A maioria
dos retratos de Brandão é assim que se constrói: linhas simples, por vezes rudes, mas
que depois o narrador enche com pormenores, à primeira vista, desnecessários, cujo
objectivo é explicar a grandeza da figura.” (2008, p. 80). É como se, partilhando da
intimidade de leitura que apenas a autobiografia concede, estivesse o leitor ao pé do
memorialista, acompanhando-lhe os movimentos, acompanhando os flashes dispostos
pelo narrador.
O efeito quase cinematográfico, de imagens em preto e branco que passam pela
retina, expressando-se dramaticamente a fim de pactuar com o expectador o roteiro e,
sobretudo, a psicologia das personagens que se apresentam, vê-se não apenas na escrita
memorialística do escritor de Guimarães, mas no conjunto de sua obra. É salutar
sublinhar que o surgimento do cinema em Portugal é contemporâneo de Raul Brandão,
como ressalta Roberto Nobre: “O primeiro português que empunhou a manivela da,
então, bem recente maquineta de filmar, surpreende. Fê-lo logo, como sabemos, em
1896, apenas escassos meses após a apresentação do espetáculo dos Lumière no Grand
Cafè.” (s.d, p. 25). A primeira película, que guarda intrínseca relação com a técnica do
documentário, é exibida em 1896, pelos esforços do pioneiro Aurélio Paz dos Reis,
empresário do Porto. Trata-se de cópia do filme rodado pelos irmãos Lumière, Saída do
Pessoal Operário da Fábrica Confiança.
192
O cinema em Portugal ganhou impulso com a produção de Manuel de Oliveira,
outro portuense ilustre. Observa-se, portanto, que a história do cinema em Portugal
guarda íntima relação com a Cidade Invicta, o que ajuda a reforçar a hipótese de que
Raul Brandão, cuja preocupação com a atividade jornalística e documentarística é
evidente, outra vez num entrecruzar de linguagens artísticas, lançou mão de efeitos da
linguagem do cinema para reformular a própria expressão literária. A presença do
cinema como equipamento urbano registra-se nas Memórias: “Andam soldados, em
bandos, armados pelas ruas quase desertas. Mas logo depois dos tiros, Lisboa, já
habituada, sai para a rua. À noite enchem-se os animatógrafos142 e os teatros.”
(BRANDÃO, 2000, p. 85).
Dessa forma, a arte brandoniana ganha contornos de uma abordagem
intersemiótica, técnica que Filipa Mendes Barata ratifica em comentário de leitura:
“Dir-se-ia que há uma espécie de técnica cinematográfica que permite a aproximação à
personagem que se quer tratar” (2008, p. 84), técnica que pode ser comprovada no texto
literário, quando o escritor de Guimarães, carrega de dramaticidade a descrição de seus
retratados, fazendo-os assomar como se diante de um cinema mudo estivéssemos:
“Embrulhando-se num velho gabão, mandou fechar as portas e não quis receber
ninguém, não quis falar a ninguém. Desesperado e mudo esperou a morte numa
imobilidade de estátua. [...] extinguiu-se num silêncio trágico” (BRANDÃO, 1999, p.
177).
Ao descrever a empregada da família, por exemplo, o escritor a constrói como
personagem de um drama semiestático, personagem pintada aos moldes da caricatura,
plasmando em cada cena uma epifania da dor e da catástrofe. José Carlos Seabra Pereira
vê, na Mari'Emília, “a matriz da Joana d'A Farsa ou da mulher da esfrega em O Pobre
142
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, animatógrafo significa cinematógrafo. A
primeira forma surge como “alternativa para o t. cinematograph, em ing. ambos datam do início de 1896”
(2001, p. 222).
193
de Pedir” (PEREIRA, 1999, p. 12), isto se se não argumentar que, em última instância,
a Joana, a mulher da esfrega e tantas outras mulheres que aparecem na obra
brandoniana, incluindo aí Húmus e os textos de teatro, são a cristalização e a
transfiguração da mulher pobre, vencida por um sistema de exploração capitalista de seu
trabalho e por uma distribuição desigual da riqueza:
A Mari'Emília foi, até morrer, nossa criada. Era um tipo popular, de
energia admirável. Estou a vê-la [...], olhos despertos dum azul já
pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à
morte. Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o
calor da suas mãos. [...]. Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir.
Porque essa é que era a expressão mais íntima e mais bela da sua
alma: a alegria na desgraça. Infatigável e risonha – o riso sempre
pronto no trabalho e na dor. Só a conheci alegre e morreu com um
sorriso e um dente depois de nos servir a vida inteira. (BRANDÃO,
2000, p. 117).
Essa dramaticidade que também acompanha o memorialismo brandoniano,
assinala-a Vitor Viçoso ao afirmar que, “neste teatro de bonifrates, com as suas
misérias, grotescos e, também, grandezas, detectamos, em parte, o sub-texto socioideológico da ficção e do teatro de R. Brandão” (1994, p. 178). A imagem que extravasa
da memória do escritor é a que se fixa na forma da mulher transida pela dor e pelo
sonho – e que serviu à família do escritor a vida inteira.143
Embora chame para si a responsabilidade de narrar a história dos vencidos, Raul
Brandão não rompe de todo com certo conservadorismo social, que lhe permite a
perpetuação de práticas que continuam a demarcar a diferença entre classes sociais. Não
é, portanto, sem lastro que Filipa Mendes Barata afirma que “a perspectiva moralreligiosa do autor não é tanto burguesa, mas sobretudo conservadora – no sentido mais
143
Embora o escritor pareça ter a consciência de uma exploração do pobre pelas classes menos abastadas,
nem por isso, em sua experiência pessoal, o autor deixa de manter uma relação de exploração com a
empregada da família. É possível que a crítica veja aí um fato que possa comprometer o senso de justiça
de Raul Brandão.
194
aristocratizante do termo.” (2008, p. 38). Há de se sublinhar, em todo o caso, que o
escritor não é uma personagem,144 no sentido em que é, na recriação que o
memorialismo permite, uma personagem inventada, que constantemente intervém ou
participa dos acontecimentos que narra nas páginas de suas Memórias; o seu olhar é
mais distanciado, desvelado por um “nauseado desencanto de repórter” (ROCHA, 1992,
p. 147). A posição do autor é, por conseguinte, mais de contemplação e reflexão do que
a de levar-se às raias da ação. O posicionamento talvez encontre uma justificativa no
fato de ser o memorialista afetado pelo tempo em que vive, época devedora do século
XIX, ao mesmo tempo em que intenta suplantar as práticas e concepção um tanto
quanto ultrapassadas.
O memorialismo brandoniano insinua-se na construção de um drama semiestático,
em que os elementos do drama não chegam, efetivamente, a concretizar-se, mas
permanecem insinuando-se enquanto estrutura de texto, no qual, lentamente, emergem
caricaturas plenas de ternura e de dor, destacadas por spotlights em tons de cinza e em
cores pastéis. A imagem do clown é das mais aperfeiçoadas máscaras a que o retratista
se dedica, porque na forma do trapeiro do fim-de-século, fundem-se os sentimentos que
presidem ao teatro clássico: a tragédia e a comédia. O clown é preenchido por uma
dualidade sensória e sentimental, uma tensão que o situa a meio caminho entre a
felicidade da vida e a quietude da morte:
No esforço para não ir ao fundo, no gesto de náufrago que se apega
com desespero, quando a dor estala por todas as costuras, há um ricto
de clown. Olha lá: o pior é tu ousares tocar no que há em mim de mais
sagrado, o pior é tu transformares-me o sonho numa notícia do Século,
o pior de tudo é tu atreveres-te a tocar neste jardim da vida – e, pior
ainda, é que eu continuo a sorrir como se possuísse o antigo tesouro de
Ali-Babá. Mais um momento, outro passo e reduz-me à condição de
trapo. [...] Desde então perco o fio da peça, não sigo mais os bonecos
144
É preciso aqui relembrar os preceitos de Philippe Lejeune (2008), para quem o pacto autobiográfico
implica uma identificação entre personagem, narrador e autor.
195
que se agitam no tablado, só ouço o meu próprio monólogo, e quedome de olhos atónitos noutro espetáculo atroz. Tenho a certeza absoluta
de que não há forças humanas que lhe detenham a marcha. Começa
então a tragédia. (BRANDÃO, 1998, p. 83-84).
Numa encenação em que o trapeiro é responsável por (quase) anular os demais
elementos constitutivos da narrativa, salta a figuração dessa máscara, capaz de
transformar o narrador em “alegorista [que] detém um saber múltiplo, pois só com a
ajuda deste pode-se metamorfosear à vontade o significado das coisas através do olhar
melancólico” (MACHADO, 2004, p. 40). Ao encarnar o clown, o memorialista torna-se
íntimo da morte, extrai, por meio da violência inerente ao procedimento alegórico, as
imagens de seus lugares iniciais. Daí que o narrador das Memórias trave uma disputa
ontológica com o eu e seus duplos/múltiplos145 – esses sujeitos esfarrapados –, isto é,
com o eu e os outros, e que encontre no modo de ser fragmentado a dicotomia mais
expressiva da obra de Raul Brandão: “a noção de que o objecto [assim] como o
indivíduo têm sempre duas faces e a que está por detrás (escondida) é que comanda a
outra, que é visível” (BARATA, 2008, p. 105). No memorialismo brandoniano, cada
personagem, histórico ou fictício, afivela uma máscara à face: “Nem todos os homens
dão por isso, mas todos os homens representam, todos afivelam a máscara da mentira.”
(BRANDÃO, 2000, p. 99). É, por conseguinte, a representação literária de sujeitos
historicamente expostos à hegemonia narrativa dos vencedores que importa à crítica que
ora se estabelece.
O clown a que se refere o escritor de Guimarães, disforme, de cabelos
desgrenhados, magro e de roupas em farrapos, assume muitas faces no decorrer dos três
volumes em que Raul Brandão apresenta, por meio desse recurso, personalidades
literárias e políticas de um momento histórico em que insiste na linguagem do palco,
145
Embora não seja o cerne desta análise, julgo relevante observar, na esteira de Filipa Mendes Barata,
que, “na obra de Raul Brandão, o outro, enquanto duplo do eu, é normalmente identificado como
‘fantasma’, o ser ‘esfarrapado’, o ‘pobre”. (2008, p. 26).
196
como se toda a história de Portugal não fosse além de uma encenação teatral, e se
tornassem, eles próprios (povo, dirigentes corruptos, monárquicos, republicanos,
escritores, soldados, prostitutas, donas de casa), personagens afônicos de uma tragédia
muda, bonecos de pano dos quais emana uma desilusão desconcertante típica do fim-deséculo, tempos de crise de um Portugal que já não sabe encontrar o caminho, tempos de
personagens sem aura. O clown e o palhaço são variantes de uma mesma imagem
precursora, e ambas são faces possíveis para esse trapeiro – herói coletivo da narrativa de
Raul Brandão. A teatralização percorre a obra brandoniana, encontrando nessas
passagens de tom caricatural-dramático os pontos-de-apoio necessários à construção de
uma narratividade mínima:
Fialho era outro estranho tipo, intratável e pobre, com o pêlo ralo e a
boca enorme cheia de sarcasmo. Um príncipe de gabinardo, que fazia
cair as peças do alto do galinheiro, a um gesto seu irrespeituoso.
Seguia-o a malta atónita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião,
que deslumbrou de sonho e tascou de sonho. – Fialho! Fialho! [...] Vio exasperado, vi-o atordoado de frases, como quem quer fugir ao
próprio fantasma. (Ibidem, 1998, p. 66-67).
Se a crítica contemporânea continua a apontar a escrita de Fialho de Almeida
como decisiva para que autor das Memórias pudesse delinear a sua própria estética
finissecular146 (“A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme.
Fialho via os pormenores através duma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando
génio à própria obscenidade”; Ibidem, p. 67-68), não é de se estranhar que o escritor de
Guimarães dedique numerosas páginas à descrição do autor de A Ruiva: “é
146
Para uma melhor apreensão da estética de Fialho de Almeida, consultar o artigo de Luci Ruas (2002),
que integra coletânea de textos que tem por escopo as expressões crepusculares do fim-de-século, e ainda
o ensaio de Isabel Cristina Pinto Mateus (2008). Embora não aponte os críticos que sublinham a relação
entre as escritas de Fialho de Almeida e Raul Brandão, Filipa Mendes Barata não deixa de registrar:
“Fialho de Almeida é, de acordo com alguns críticos, um dos autores que mais influenciou a escrita de
Brandão, sobretudo no que toca à utilização do traço expressionista transfigurador da realidade, dando
dela a sua perspectiva mais negra e miserável, onde (sic) abundam tipos humanos marginais como as
prostitutas, os bêbados e até alguns artistas falhados.” (2008, p. 90).
197
pronunciando-se sobre Fialho que Raul Brandão parece dar senhas ao leitor para que
este o saiba apreciar” (PEREIRA, 1998, p. 24). Fialho de Almeida também cultivou o
gênero autobiográfico, aproveitando-se da escritura para distorcer a própria imagem,
cinzelando-a como de um sujeito “misantropo e revoltado que explica a disposição do
seu espírito em função das agruras por que passou na infância e na juventude”
(ROCHA, 1992, p. 134). Sobre a expressão do retrato do autor de Os Gatos, ainda
Filipa Mendes Barata sublinha que “a noção de que [...] é uma personagem contraditória
é constante ao longo de todo o retrato” (2008, p. 94), pelo que se pode apreender em
outro fragmento das Memórias: “Fialho, se o virassem do avesso, escorria ternura... É
também um tímido capaz de todas as audácias [...] [.] Ainda hoje ninguém o entende.”
(BRANDÃO, 1998, p. 68).
Na sua evocação ao amigo contemporâneo, o autor do Húmus não abre mão de
inscrevê-lo definitivamente na história – da vida e da literatura –, registrando-lhe a
morte, fazendo da escrita memorialística o epitáfio da existência. Se, por um lado, a
“distância, por vezes, reduz os seres e os factos, condensa-os e o que fica deles não é a
sua essência, mas uma mera fórmula, etiqueta ou epitáfio (VIÇOSO, 1994, p. 177), por
outro é, justamente essa inscrição epitáfica147 que registra o fato na memória antes que
dele se apodere “a erudição vazia do historicismo” (GAGNEBIN, 2009, p. 98), cuja
missão é apagar o rastro que se assinala como cicatriz da memória: “Morreu anteontem
em Cuba o Fialho de Almeida. Diz-se por aí que se suicidou. [...] Apressaram-lhe a
morte?” (BRANDÃO, II, 1999, p. 102-103)148. Outros escritores e artistas
147
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra epitáfio pode significar: “1 inscrição
sobre lápides tumulares ou monumentos funerários [...] 3 enaltecimento, elogio breve a um morto 4 LIT
tipo de poesia, nem sempre de inscrição tumular, que encerra o lamento pela morte de outrem” (2001, p.
1181).
148
Filipa Mendes Barata, no estudo que faz dos retratos de escritores, tais como Columbano, Fialho de
Almeida e Guerra Junqueiro, presentes no memorialismo brandoniano, acrescenta: “No volume III das
Memórias surge ainda uma secção de texto dedicada a Fialho, e cujo título é ‘Fialho de Almeida’. Nela se
registram pequenos apontamentos sobre a figura que resultam da apreciação de terceiros” (2008, p. 96).
198
contemporâneos de Raul Brandão são objeto de epitáfios por parte do memorialista,
cuja sensação provocada no leitor é que “Cada vez que morre um homem, parece
morrer com ele o mundo.” (VIÇOSO, 1994, p. 182). Numerosas também são as
passagens em que o memorialista apenas exalta ou macula a imagem de outros
escritores e artistas.
Vale a pena salientar, neste sentido, o modo como descreve Columbano Bordalo
Pinheiro, com quem, conforme visto anteriormente, o escritor da Foz do Douro manteve
amizade próxima e relações estéticas que o possibilitaram incursionar pelas raias das
artes plásticas, experiência que, somando-se à influência de Fialho de Almeida, parece
ter contribuído decisivamente para que Raul Brandão se definisse como escritor. Filipa
Mendes Barata salienta que, na esteira da representação que faz do autor de A Ruiva, o
memorialista estabelece uma relação de empatia com o pintor, sobretudo quando o
descreve na condição de proletário a serviço do ideal estético (“O desapego ao dinheiro
traduz, ao mesmo tempo, o despojamento pelo poder que este dá e que só busca de um
ideal superior transmite”; BARATA, 2008, p. 89):
Não sei o que descrever, porque está fora do mundo e do seu tempo –
fora da realidade. Sentimento da natureza não tem nenhum: pinta o
céu como a terra: da mesma cor. – Dizem que o céu é azul. O que me
importa que o céu seja azul; a gente não foi que o fez! Fomos uma
tarde a um largo passeio no Tejo: aquele deslumbramento de luz
aborreceu-o. No Norte levei-o um dia a ver o mar. Voltou-se as costas,
desesperado. – É muito grande. As figuras dolorosas dos seus retratos,
ao mesmo tempo dolorosas e escuras, onde há um silêncio de morte,
arranca-as ao sonho interior, que tem sido o de toda a sua vida.
(BRANDÃO, 2000, p. 197).
Inquieta a forma como a narrativa memorialística é engendrada. Por vezes, tem-se
a impressão de que o sujeito a quem o texto se refere não é o consagrado pintor
Sublinhe-se que a presença do autor de A Ruiva trespassa todos os volumes das memórias literárias de
Raul Brandão.
199
português, mas ao próprio autor das Memórias, numa autorreflexão sobre a própria
estética. O efeito é conseguido porquanto o leitor possa aglutinar na pessoa de Raul
Brandão as imagens do escritor e do artista plástico, porque, nesta última condição,
também o escritor de Guimarães foi inserido pela crítica de formação,149
experimentador de outras linguagens artísticas, bem como se exercitou na pintura sob a
tutela artística de Columbano. Costumeiramente chamado de Mestre, sabe-se que Raul
Brandão lhe dedicou o Húmus. Se exaltou os mortos no primeiro volume das Memórias,
dedicando, portanto, a produção memorialística aos que emudeceram, fez dupla
homenagem ao amigo quando, na forma de poema-epitáfio, registrou: “Columbano,
toda a vida viveu pobre – e pobre morreu. Mataram-no, no que em que lhe tiraram o
Museu [...]. Passava as noites agitado, sem apagar a luz, nem pregar olho – e anteontem,
6 de Novembro, o coração parou-lhe, não podendo dominar a bronquite. A bronquite e a
tristeza.” (Ibidem, 2000, p. 201).
A representação que faz do amigo é expressamente dramática – porque
deliberadamente pictórica –, o que contribui para conferir ao registro memorialístico a
impressão de que o sujeito que enuncia é o mesmo que é foco da enunciação. Mais uma
vez, é o afeto o ponto de partida para a escritura e também parece ter sido o afeto que
impeliu Columbano a representar Antero de Quental em consagrada tela. Por seu turno,
agora é Raul Brandão que lança mão da palavra para dotar o velho mestre de função
retratista; e é o pintor o sujeito objeto da representação. Entretanto, o próprio escritor de
Guimarães foi pintado por Columbano. Essa relação especular (Antero-ColumbanoBrandão) permite que se levante a ideia de um elaborado percurso criativo, em que
criador e criatura têm a necessidade de representar e fazer representar-se. Nessa
embaralhada troca de papéis quem ganha é o público – leitor e espectador – porque
149
Para retomar as três fases da crítica brandoniana, voltar ao primeiro capítulo.
200
sente que a arte do fim-de-século e do novo século é um entrecruzamento de estéticas
que não podem ser negligenciadas. Poder-se-ia questionar se não é a representação de
Columbano por Raul Brandão uma forma de, literariamente, permitir que o próprio
pintor retrate a si e fale por si. Está o memorialista abrindo espaço (literário) para que os
seus outros eus se manifestem? Até que ponto a imagem de Columbano por Raul
Brandão é fruto apenas da efabulação do escritor? Essas perguntas ficam sem respostas,
porque abrem para um intrincado labirinto estético em que a fragmentação do sujeito e o
espelhamento atravessam a criação artística. Nas Memórias brandonianas, o eu assume,
também, a função de ser outro.
Entre tantos fragmentos que não se referem a escritores portugueses um chama
atenção porque é emblemático de um tempo de transformações aceleradas, como o
foram as primeiras décadas do século passado. Ao sabor de uma descrição minuciosa,
Raul Brandão retrata encontro que teve (o eu ou o seu outro?) com o aviador Santos
Dumont, em Paris:
Eu olhava de longe para ele, e nessa mesma tarde fui visitar, nos
arredores, Santos Dumont e sua máquina de voar. Trigueiro e magro,
de figura insignificante, ele fez sair do hangar uma coisa que me
pareceu infantil: canas e farrapos recortados sobre uma bicicleta, uma
espécie de papagaio gigantesco, ridículo. Bem ou mal, a coisa fez pff!
pff! e levantou um voo atarantado para logo cair por terra. Falei-lhe
em português - respondeu-me em francês: - Teimo até à morte! Mas
nem ele nesse momento teria visão exacta do que essa máquina, com o
automóvel e o cinema, viria a produzir no mundo. Tanto como a
guerra, mais talvez que a guerra, foram as máquinas que
transformaram a nossa vida... (Ibidem, p. 100).
Está posta a questão fundamental do memorialismo brandoniano: quem escreve?
Se, necessariamente, o pacto autobiográfico identifica as categorias de autor, narrador e
protagonista, com os seus volumes Raul Brandão põe-se no limite entre a memória e a
ficção. A crítica literária tem sido levada a perguntar se o escritor de Guimarães edifica
201
as suas memórias a partir de uma efabulação ficcional ou se é a aparente efabulação
ficcional que se faz como representação dos despojos da memória. Em todo o caso, os
preceitos de verossimilhança e verdade não se ajustam à produção, que se constitui,
sobretudo, a partir de um exercício intertextual, na forma a que se refere Helena
Carvalhão Buescu (2001, p. 89 – loc. cit) em seu estudo.
O Santos Dumont apresentado por Brandão não é mera releitura de um Jacinto150
– e me parece possível trazer a literatura de Eça às Memórias, porque assim o fez o
escritor de Guimarães em diversas passagens, seja para relatar a devoção quase pueril
que o grupo de autores a que pertencia, devotava ao já renomado romancista, seja para
colocar em evidência as excentricidades do autor de A Cidade e as Serras: “Na
correspondência aparece-nos outro Eça. [...] Raro saía de casa. Levantava-se ao meiodia, vestindo-se meticulosamente, como se tivesse de fazer visitas.” (BRANDÃO, 2000,
p. 189). O inventor brasileiro é mostrado como sujeito predestinado a colaborar na
revolução tecnológica em que consistiu o final do século XIX e primeiros anos do
século XX, sem, por outro lado, deixar de dar destaque como sonhador. Dessa
preocupação em retratar a modernidade151 (da maquinaria industrial, das invenções, da
arte e do homem) partilham Eça de Queiroz e Raul Brandão.
A representação de personagens históricos, na forma em que podem ser situados
historicamente no tempo, porque existiram para além da escrita literária, levanta a
150
Como se identifica da leitura do romance de Eça de Queiroz, fruto de sua última fase literária, a
personagem Jacinto é descrita na forma do dândi misantropo radicado na cosmopolita Paris do final do
século XIX. De gosto refinado, a obsessão pelas máquinas e a relação que permeou com a modernidade
são pontos de partida para que se trace um paralelo com o Santos Dumont, agora mais um personagem da
galeria de Raul Brandão.
151
Para fins de ilustrar melhor o exemplo, observem-se as palavras de Eça de Queiroz, ao retratar Jacinto
como personagem finissecular obcecada pela modernidade, cujo epicentro é a Paris metropolitana: “Mas
eu preferi inventariar o gabinete, que dava à minha profanidade serrana todos os gostos de uma iniciação.
Aos lados da cadeira de Jacinto pendiam gordos tubos acústicos, por onde ele decerto soprava as suas
ordens através do 202. Dos pés da mesa cordões túmidos e moles, coleando sobre o tapete, corriam para
os recantos de sombra à maneira de cobras assustadas. Sobre uma banquinha, e reflectida no seu verniz
como na água de um poço, pousava a Máquina de Escrever: e adiante era uma imensa Máquina de
Calcular, com fileiras de buracos onde espreitavam, esperando, números rígidos e de ferro.” (QUEIROZ,
1999, p. 28-29).
202
hipótese de que seja o memorialismo de Raul Brandão apenas “tangencialmente
autobiográfico” (MOLLOY, 2003, p. 16). Entretanto, a alternância entre os planos de
representação do real e de representação literária sucedem-se no corpo das memórias do
escritor de Guimarães, o que dota a elaboração memorialística em questão de um
“diferente estatuto comunicacional” (PEREIRA, 1998, p. 17). Não se pode inquirir o
texto na espera de se obter as respostas habituais. O memorialismo brandoniano toma
por alicerce fundamental a ultrapassagem do conceito de memória, este reservatório da
história e espaço sobre o qual age permanentemente a imaginação literária: “Todavia,
algo ultrapassa (e ao mesmo tempo envolve) estes condicionalismos históricos e,
consequentemente, o próprio condicionalismo do género memorialístico: o vaivém da
memória como obsessão criadora” (MACHADO, 1996, p. 135). O texto de Raul
Brandão, para além de se poder dizer que representa a verdade ou a mentira (posto que
esses conceitos parecem, de todo, bastante limitados para se ajustarem à escritura
brandoniana – e não apenas a esta), desvela ao leitor “instantes que para sempre
tatuaram a sua alma” (VIÇOSO, 1994, p. 183), momentos em o escritor de Guimarães
“ressuscita poeticamente os seres humanos que viveram [...] [a] experiência”
(WEINHARDT, 2011, p. 27) de ser português “num processo histórico ainda em curso”
(PEREIRA, 2000, p. 9), do qual foi dupla e ambiguamente testemunha152 singular.
152
É preciso observar o conceito de testemunha esboçado por Jeanne Marie Gagnebin: “Nesse sentido,
uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que
viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele
que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras
levem adiante, como num revezamento, a história do outro” (2009, p. 57). Nesse sentido, Raul Brandão é
testemunha, porque foi contemporâneo dessa atmosfera brumosa que registra, com especial atenção à
decadência da Monarquia e instauração da República, e porque levou adiante, deu voz aos que
soçobraram pelo caminho. A próxima seção deste capítulo, retornando à primeira acepção do conceito,
debruça-se sobre a escrita memorialística que se faz escrita da história.
203
4.4. Erosão e ruína: o levante dos vencidos
Para uma leitura da matéria histórica stricto sensu na escritura memorialística de
Raul Brandão, é preciso inicialmente sublinhar o percurso histórico do próprio livro em
questão. É de se esperar que a publicação de um texto que, com freqüência, cede a voz
narrativa ao outro, suscite discussões em torno da veracidade dos acontecimentos
narrados e, ainda, da pertinência das falas atribuídas. Com efeito, o artifício da autoria
anônima é explorado pelo autor das Memórias,153 que justifica o uso porque, de toda a
forma, contribui para reconstituir o passado:
Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo – eu próprio
duvido e hesito. Sinto que não me pertenço...[...] Por isso repito,
muitas folhas destes canhedos serão mal interpretadas, talvez alguns
tipos falsos. Só vemos máscaras, só lidamos com fantasmas, e
ninguém, por mais que queira, se livra das paixões. No que o leitor
deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi.
Poderão objectar-me: – Então com que destino publico tantas páginas
desalinhadas, de que eu próprio sou o primeiro a duvidar? É que elas
ajudam a reconstituir a atmosfera duma época; são, como dizia um
grande espírito, o lixo da história. (BRANDÃO, 1998, p. 37-38).
É possível interpretar o reconstituir brandoniano como um reapresentar, na forma
que um texto de pretensões literárias ou históricas, por mais que se tente esquivar, é
sempre fruto do posicionamento subjetivo do autor perante o próprio eu, o ser humano e
a sociedade em que vive, posto que Raul Brandão “ao procurar o eu no passado [...] [ou
no presente] quer reorientar o porvir” (MORÃO, 1994, p. 28). Se o memorialismo do
escritor de Guimarães afasta-se, por vezes, do distanciamento temporal que se deseja
153
Sobre essa questão de ordem documental e/ou testemunhal, necessária numa primeira análise àquele
que se propõe a estabelecer um elo narrativo entre o passado e o presente, Vitor Viçoso sublinha: “A voz
enunciadora [nas Memórias] tanto pode ser a do autor como a de um comparsa que, em discurso directo,
introduz uma figura, conta uma ‘boutade’ ou narra factos obscuros dos bastidores da vida política,
mundana ou artística. Outras vezes, o emissor é anónimo (‘Diz-se’, ‘conta-se’, ‘propala-se de ouvido para
ouvido’; ‘corre com insistência que’; ‘espalha-se que’; ‘consta que’, etc.)” (1994, p. 181).
204
àqueles que se empenham em narrar a história ou reelaborar a matéria histórica
enquanto discurso integrante do corpo literário, parece fazê-lo na consciência de que é
preciso deixar rastros, mesmo ciente de que “agora a escrita não é mais um rastro
privilegiado, mais duradouro do que as outras marcas da existência humana.”
(GAGNEBIN, 2009, p. 113). Daí que a preocupação do autor das Memórias seja com o
leitor, e que justifique o uso de fontes heterodoxas, não canônicas elas próprias. A
“atmosfera duma época” a que se refere o memorialista é compreendida por Filipa
Mendes Barata como produto de um “colecionador de fragmentos” (2008, p. 115), pelo
que julga que os volumes são “parte dela [a época], mas [que] sua obra não é de perto
nem de longe uma obra de teor histórico na acepção mais científica do termo.” (Ibidem,
p. 115).
É preciso corroborar o pensamento da investigadora quando afirma que as
memórias brandonianas não se enquadram como obra de conteúdo histórico numa
acepção restrita do termo, científica como a concebeu o positivismo oitocentista.
Também não é o foco desta análise sublinhar que Raul Brandão faz historiografia nas
Memórias. O ideal que nessas se move é distinto daquele que impeliu o autor a escrever
El-Rei Junot. Neste sentido, defendo que o aspecto a ser sublinhado é que, embora não
seja narrativa histórica, a matéria histórica está no memorialismo, assim como a
expressão lírica está na prosa historiográfica do livro de 1912. Em todo o caso, narrador
que é – e esta, como se sublinhou, é condição sine qua non para existência do texto
memorialístico –, Raul Brandão oferta ao público leitor um retrato – com tudo que este
tem de subjetivo – repleto do preceito de exemplaridade: os acontecimentos, as
caricaturas, as digressões. Tudo tem por intuito servir a que o passado oriente
positivamente o presente e o futuro.
205
No que diz respeito à história da obra em estudo, o impacto da publicação é
significativo, contradizendo a tese de que Raul Brandão não gozava de repercussão e
popularidade editorial, conforme informa Guilherme de Castilho: “O aparecimento das
Memórias (excluindo o terceiro volume, póstumo) causou alguma celeuma no meio
lisboeta” (2006, p. 363). O sucesso editorial das Memórias não ficou restrito às terras
portuguesas. Enviaram-se exemplares para divulgação e comercialização no Brasil
(“Remeto-lhe hoje mais 30 exemplares das Memórias 2º volume porque não deve ter
em seu poder exemplares suficientes para o Brasil.”),154 sem falar que os escritos
memorialísticos repercutiram na Espanha, a exemplo do interesse do editor e lusofonista
catalão Ignazi de Ribera y Rovira.155 A consulta ao arquivo de Raul Brandão permite,
assim, o mapeamento de cartas recebidas pelo escritor em que os interlocutores
reclamam do envolvimento de seus nomes em passagens polêmicas ou, muitas vezes,
que pessoas referidas no corpo dos livros pedem que, em caso de nova edição, o escritor
faça retificações:
Meu caro Raul Brandão
Acabo de ler o primeiro volume das suas Memórias, onde
aparecem frases a mim atribuídas. Algumas, se foram rigorosamente
reproduzidas, não abarcam a minha técnica financeira, o que pouco
importa; mas, como lá diz no seu prefácio que “muitas folhas d’estes
canhedos serão mal interpretados”, e não hesito, para restabelecer a
boa interpretação peço-lhe que na próxima edição do seu livro me faça
o favor de retificar (pág. 120) uma frase que me parece não ter dito,
porque afirma o contrário do que sempre pensei, tenho adquirido e
tive ensejo de verificar no contexto de longos quarenta anos. [...]
Se lhe contei a historieta por aquela forma ou outra parecida, foi
sem dúvida para lhe provar pelo contraste a exceção. Lembro-me de
lhe ter falado na viciosa prática do presente após o favor recebido, o
que é em aparte vulgar, cá na terra, da nossa visão moral ou da nossa
154
Este registro e outros, sobretudo relacionados à boa vendagem das Memórias nas livrarias lisboetas,
podem ser consultados neste autógrafo inédito, inscrito no arquivo de Raul Brandão sob a cota D2/222,
escrito por João de Eça (n. 1901 – m . 19--) ao escritor de Guimarães e enviado em 24 de setembro de
1925, a partir de Lisboa.
155
Em A Experiência estética de Raul Brandão (RIOS, 2007), faz-se o mapeamento do interesse de
Ribera y Rovira (n. 1880 e m. 1942) pelas obras do escritor português. O autógrafo em questão está
inscrito no arquivo depositado na Biblioteca Nacional Portuguesa, sob a cota D2/535, e escrita pelo editor
catalão a Raul Brandão, com data de 15 [setembro?] de [de] 1925 (Barcelona).
206
gratidão. Por isso muito o devolvem para não poder ter má
interpretação. O costume é bem conhecido e praticado.
Creia-me, meu caro Raul,
com estima156
Também Guerra Junqueiro, a quem o escritor dedica extensa reflexão e exaltação
em sua escrita memorialística, escreve a Raul Brandão solicitando que o memorialista
não inclua algumas notas sobre o rei D. Carlos, assassinado no episódio de 1908:
“Ontem fui ao Porto, chamado por Junqueiro. Conheci o grande poeta em diferentes
épocas da vida, mas nunca me fez tanta impressão como agora [...]. Pediu-me para
rasgar algumas notas sobre D. Carlos que me tinha ditado há anos” (BRANDÃO, 1999,
p. 204). A questão que envolve o pedido de silêncio sobre o depoimento anteriormente
prestado justifica-se porque a tensão entre monarquistas e republicanos ainda estava
recente na memória coletiva lusitana. Com efeito, sobre o mérito histórico das
Memórias, importa sublinhar que “é na História, enquanto vivência pessoal do tempo e
percepção desse mesmo tempo, que se recolhe a matéria-prima para a escrita.”
(BARATA, 2008, p. 111), fazendo “desfilar diante dos nossos olhos, com seu
visionarismo peculiar, um período político social extremamente agitado da História,
aquele que decorre dos últimos anos da monarquia constitucional e o golpe de Estado de
28 de maio de 1912.” (VIÇOSO, 1994, p. 177).
Há de se destacar que somente a crítica contemporânea abordou com interesse o
estudo dos escritos memorialísticos de Raul Brandão, provavelmente porque aquela não
estava ainda preparada para ler um texto elaborado ambiguamente nas malhas da
efabulação literária e da matéria histórica, sem ser, todavia, uma ficção historiográfica.
O ensaio de Guilherme de Castilho (2006) é o primeiro de fôlego a lançar-se nessa
demanda, que experimentou uma longa interrupção até a publicação do ensaio de Vitor
156
Carta inédita correspondente à cota D2/552 do arquivo depositado na Biblioteca Nacional, em Lisboa.
A correspondência é de autoria de Adrião de Seixas (n. 18--, m. 19??) e remetida a 4 de março de 1919,
em papel timbrado do Banco de Portugal – Gabinete do Secretário Geral.
207
Viçoso (1994), e agora encontra repercussão na investigação de Filipa Mendes Barata
(2008). Por seu turno, o breve artigo de Álvaro Manuel Machado (1996) parece ir na
contramão da presente crítica, conflitando ainda com a leitura acurada que Vitor Viçoso
exercita, sobretudo porque se fundamenta numa interpretação do escritor presa a uma
ideal romântico, na qual Machado observa que, em sua forma escrita, as Memórias
“tendem para uma monotonia temática essencial” (MACHADO, 1996, p. 135),
monotonia não vislumbrada quanto mais lembro a existência de um bulício inquietante
de seres esfarrapados à espreita de um levante que tenha por protagonistas os vencidos,
ação que, por mais que o próprio memorialista negue ao dizer “Nunca fui um homem de
acção e ainda bem para mim” (BRANDÃO, 1998, p. 31), está presente nos volumes na
forma de uma “insurreição universal dos oprimidos” (COELHO, 1996, p. 299), ensaiada
desde História dum Palhaço e aprofundada em El-Rei Junot e no Húmus.
No corpo das Memórias, ganham forma os acontecimentos que definiram todo o
século XX português, não sendo demasiado dizer que o assassínio do rei D. Carlos157 e
do Príncipe herdeiro D. Luis Filipe, em pleno Terreiro do Paço, figura como tema
histórico nuclear do primeiro volume, ao passo que a revolução de 5 de outubro de
1910, feita mais por desgaste do sistema monárquico do que por um ideal republicano
que atingisse a população lisboeta (“É que o país não é monárquico. Há uma minoria
monárquica, capaz de sofrer e de morrer, como há gente de Lisboa e Porto republicana,
disposta a todos os sacrifícios. A grande massa inerte adapta-se a todos os regimes”;
BRANDÃO, 2000, p. 57), ocupa o primeiro plano nas páginas do segundo e terceiro
volumes. No entanto, Raul Brandão não se limita à descrição factual, mas intervém
157
Uma das cenas mais instigantes das Memórias é a descrição do momento do assassinato do rei D.
Carlos, no despertar de uma estética em que a paralisia do tempo se faz fundamental para lhe conceder
toda a carga dramática necessária: “Eu estava a quatro passos - confirma o pintor Melo. - Um homem
subiu às traseiras do carro, olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro de revólver. Vi um fumozinho branco
sair-lhe do pescoço. O rei voltou-se, e, cem anos que eu viva, nunca mais me esquece a expressão de
espanto daquela máscara. [...] O Buíça, que tirara a carabina debaixo do gabão, apontava e descarregava.
O príncipe real ergueu-se - caiu varado. A rainha, louca de dor, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de
flores. - Então não acodem?! Não há quem me acuda?!” (BRANDÃO, 1998, p. 148).
208
como analista da história ao emitir opiniões – diz-se desiludido, tal qual um Guerra
Junqueiro – e costurar conjunturas, buscando, muitas vezes, os motivos que teriam
levado Buíça e seus colaboradores, possivelmente instruídos e acobertados pela
Carbonária, a darem o último golpe na Casa de Bragança, dinastia que as Memórias
registram, um a um, apontando para um sentimento de fraqueza e corrupção quase que
genética a que os últimos representantes da monarquia não podiam fugir.
Sobre a Carbonária, trata-se de associação secreta que tinha íntimas relações com
a maçonaria, embora com esta não se confundisse. Esteve presente em Portugal desde
os finais do século XIX, provavelmente no ano de 1896, até ao início dos anos 1920,
quando as tentativas republicanas deram lugar ao terror do fascismo corporificado na
ditadura salazarista. Brandão dispõe em seus volumes de indícios da presença da
associação em Lisboa e Porto, chegando a fazer imprimir o selo da Carbonária
portuguesa (cf. BRANDÃO, 2000, p. 90). Qual terá sido a relação do escritor com a
obscura instituição? Pouco se pode dizer, e desse pouco há suspeitas suscitadas por
documento inédito integrante do arquivo de Raul Brandão, depositado na Biblioteca
Nacional, qual seja: uma carta-relatório datada de 12 de outubro de 1911158 dando conta
dos acontecimentos da noite do dia 4 [de outubro de 1910?] e enviada por J. Magalhães
sem, no entanto, discriminar o destinatário. Em todo o caso, o fato de o documento em
questão pertencer ao espólio do escritor de Guimarães demonstra o interesse do
memorialista pelo tema. A Carbonária estava infiltrada entre os militares portugueses e
teve influência decisiva na queda do edifício monárquico:
Foi um bambúrrio, diz-se. Mas não se esqueçam de que tudo estava
preparado por dentro para esse bambúrrio. Convicções monárquicas
não existiam, e a obra de demolição era extraordinária. Até no
presente Dia, num gabinete e quase nas barbas do Moreira de
158
O documento está registrado no arquivo brandoniano depositado na BNP sob a cota D2/907, de autoria
de J. Magalhães. O intervalo de tempo em que viveu o missivista não foi identificado.
209
Almeida, se iniciava gente na Carbonária. [...] O trabalho da
Carbonária entre os soldados tinha sido persistente e oculto. Havia
muito que a marinha era inteiramente republicana. [...] Juntem a isto
as causas fortuitas: a fuga do rei – e a intervenção do ministro da
Alemanha com o seu automóvel de bandeira branca no mais aceso da
luta, acudindo logo o povo ao Rossio aos gritos de viva a República –
e a bomba, a dinamite, o fantasma da revolução. (BRANDÃO, 1999,
p. 65).
No seu testemunho, Raul Brandão parece ter, com efeito, transmitido, na forma
benjaminiana do termo, ao leitor a sua experiência de homem que viveu esses
momentos decisivos para a nação portuguesa. Como um jornalista, interessado
sobremaneira pela matéria história que sabia estar registrando, o escritor de Guimarães
descreve, supõe e analisa a conjuntura histórica que envolve o levante republicano e seu
êxito: “Sucedem-se as greves e os atentados, e o povo que lutara heroicamente, na
Rotunda, por um ideal republicano, quando da Revolução, será o mesmo que, mais
tarde, se entregará aos saques das lojas.” (VIÇOSO, 1994, p. 182). Segundo o
memorialista, a causa da extinção da Dinastia de Bragança não se dá essencialmente
pela crença na República como regime de governo, mas, justamente pelo oposto. Os
portugueses, os vencidos que povoam sua escritura, perderam a crença na monarquia,
que se esfacela perante os homens que se aglomeram pela cidade:
Toda a noite ouço o estampido brutal do canhão, que por vezes chega
ao auge, para depois cair sobre a cidade um silêncio mortal, um
silêncio pior. Que se passa? Distingo o assobio das granadas, e de
quando em quando um despedaçar beiral que cai à rua. E isto dura até
à madrugada. De manhã as tropas do Rossio rendem-se e os
marinheiros desembarcam na Alfândega. Às oito e meia está
proclamada a república. Passa aqui na Rua de S. Mamede um resto de
Caçadores 5, soldados exaustos, entre populares que os aclamam. O
rei fugiu. (BRANDÃO, 1999, p. 51).
É difícil ler o registro historiográfico de Raul Brandão sem traçar paralelo com as
invasões napoleônicas, retratadas em El-Rei Junot. No livro de 1912, assim como nas
210
suas Memórias, o escritor lança um olhar preocupado em perscrutar o papel das massas
em processos que traumatizaram a nação portuguesa e que se tornaram peças fulcrais na
definição de uma identidade lusitana. Há o estabelecimento de uma relação de empatia
com as classes trabalhadoras, resultando numa narrativa em que a história é
desmonumentalizada para dar lugar a uma narração do processo, em que a história seja
vista pelo viés do drama e em que os vencidos sejam elevados à condição de heróis
nacionais. A matéria histórica que avulta do memorialismo brandoniano resulta em
narrativa sobre os esfarrapados – farrapo e trapo podem significar o mesmo – e feita de
farrapos. Entretanto, há de se sublinhar que a matéria história não está desligada de
uma intenção poética, o que se pode vislumbrar quando o escritor de Guimarães se
detém em retratar os soldados portugueses, levantando-os do anonimato a que foram
obrigados por uma história escrita pelos dominadores:
Desconfio que essas figuras de opereta desapareceram para sempre do
universo. [...] Meu pobre soldado português, às vezes abatido, às
vezes tratado de alto por bonifrates que nem sempre mereciam
comandar-te – e tu pronto a obedecer. Nunca faltaste nas horas em que
te exigiram a vida. Bem sei que, onde a onde, foi preciso pôr-te à
frente oficiais estrangeiros para dares a medida do teu valor. Mas a
culpa não foi tua. Quem te procurou encontrou-te, e é de ti, meu
amigo, que por fim de contas me restam ainda saudades.
(BRANDÃO, 2000, p. 112-113).
Singularmente expressiva, a presença desses trapeiros e vencidos, sujeitos
“esfarrapados”, nas Memórias de Raul Brandão, evidenciam que se pode conjugar a
matéria histórica e a expressão literária. A representação da história não tem um fim em
si mesma, está a serviço da escritura, esta prática capaz de registrar “instantes que
tatuaram para sempre a sua alma” (VIÇOSO, 1994, p. 183). Se se pode inquirir os
motivos que levam o escritor de Guimarães a essa crescente preocupação histórica,
talvez se possa lançar como resposta à essa inquietação brandoniana as palavras de
211
Vitor Viçoso, que sublinha o contraste entre “a simplicidade do homem do campo
(cavadores, caseiros, pedreiros) com os actores da pícara tragédia urbana” (Ibidem, p.
183). Tanto homens da cidade quanto homens do campo participam, portanto,
ativamente do levante contra os vencedores. O fantoche do materialismo histórico, o
anão “vestido à turca” (BENJAMIN, 1994, p. 222) que deixou “aos outros a tarefa de se
esgotar no bordel do historicismo” (Ibidem, p. 231) foi combatido. Os operários
sentiram “a oportunidade de lutar por um passado oprimido” (Ibidem, p. 231). Raul
Brandão encarregou-se de “escovar a história a contrapelo.” (Ibidem, p. 225) e fez-nos
ouvir a voz dos que foram obrigados a emudecer, escrevendo, desse modo, a derradeira
celebração à antiepopeia dos vivos e dos mortos: “Passou depois por mim o tropel da
vida e da morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se
desvanecidas. [...] Todos os dias morre.” (BRANDÃO, 1998, p. 32). O autor das
Memórias pretende salvar-nos, salvando-os. Devemos ser todos agentes dessa
rememoração.
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas o tempo já avançou sobre o do romance de Raul Brandão. O
terremoto veio, abalando a terra da nossa condição. Os edifícios
fundados por um princípio ordenador são apenas ruínas. A escola, a
igreja, o padre, o professor, representantes das instituições, bem como
os discursos que anunciam a loucura, os vícios, a moda, as perversões,
tudo se transforma num amontoado de escombros. (RUAS, 2001, p.
5).
Hoje, muito se deve o resgate da obra de Raul Brandão a Vergílio Ferreira159. A
partir do ensaio “No limiar de um mundo, Raul Brandão”, proferido por ocasião das
comemorações em torno do centenário do escritor de Guimarães, marcou-se uma nova
fase nos estudos brandonianos, notadamente a que designei por crítica de reabilitação.
Como escritor-crítico, atento não apenas ao cenário literário português, mas também ao
panorama internacional, o autor de Espaço do Invisível procurou equilibrar uma
aproximação à estética brandoniana, com quem estabeleceu afinidades estéticas, como
apontam J. Cândido Martins (2000) e Maria das Graças Moreira de Sá (2004), e uma
produção reflexiva que tivesse por escopo a obra do escritor de Guimarães.
Antes mesmo de os dois críticos portugueses explicitarem a íntima relação que se
pode estabelecer entre as escritas de Raul Brandão e Vergílio Ferreira, Luci Ruas
(2001), nos passos de um Eduardo Lourenço no ensaio “Vergílio Ferreira, do alarme à
jubilação”, havia se debruçado sobre o tema, efetivamente relacionando os dois
romancistas por meio da análise da metáfora da ruína, que atravessa Húmus e Signo
sinal. Embora o ensaio “Húmus e Signo sinal ou O diálogo possível entre romances de
um tempo de crise” tenha sido escrito para ser apresentado no Congresso Internacional
159
É claro que esse resgate tem sido empreendido, também, por outros pesquisadores. Ao assinalar a
presença de Vergílio Ferreira no conjunto da crítica e seu papel primordial, faço por considerar o ensaísta
o marco referencial, conforme apontado no primeiro capítulo desta investigação.
213
da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL, 1999), registram-se, desde meados da
década de 1990, cursos de pós-graduação ministrados pela investigadora na Faculdade
de Letras que, aproximando Vergílio Ferreira, da qual é especialista, e Raul Brandão,
apresentaram aos jovens investigadores as páginas do fim-de-século.
Em Portugal, é pacífico que a sinalização para uma retomada nos estudos sobre o
escritor de Guimarães, objetivando-o reavaliá-lo criticamente à luz de uma moderna
concepção de romance, encontra no autor de “Raul Brandão e a novelística
contemporânea” o principal motivador. Entre os méritos da ensaística de Vergílio
Ferreira (1990), desta feita em “Situação actual do romance”, é o de expor e
problematizar o conceito de romance-ensaio, resultado do afastamento – ou do
questionamento – dos preceitos estéticos que presidiram ao romance realista. Com
efeito, a escritura de Raul Brandão parece ser o mais bem talhado caso desse desmonte
do edifício tradicional, em que pese o fato de que, no período finissecular, a “função
primacial do romance deixou de ser a de narrar a diegese bem ordenada, mas antes a de
equacionar determinada mundividência ou problematização do mundo e da condição
humana, muitas vezes através da própria suspensão da história.” (MARTINS, 2000, p.
461).
Se, portanto, o romance-problema, precursor e antecessor de toda uma série de
romances ditos modernos, é uma escrita própria da modernidade que o decadentismo
inaugura, parece justo, por conseguinte, reconhecer no texto brandoniano as bases desse
novo romance que Vergílio Ferreira expôs – um romance cujos alicerces e paredes
foram abalados. E o foram porque, na esteira de um arsenal estético-filosófico que
sofreu sucessivas alterações ao longo do século XIX, o final do século pôs em xeque os
valores positivistas que nortearam não apenas a escrita literária, mas o contexto geral da
arte. No início do oitocentos, esse limiar da era da reprodutibilidade técnica da obra de
214
arte em larga escala, a estrutura tradicional da narrativa estava em alta na bolsa de
apostas da prática literária e, por conseguinte, da própria crítica. No entanto, com o
aprofundamento de uma era industrial – que se não se fazia sentir em plenitude em
terras portuguesas ao menos chegava ao país como forma derivada de um capitalismo,
cujo centro era a França, e, sobretudo, Paris –, a segunda metade do século XIX
vivenciou uma revolução na forma de se conceber a arte, porque esta passou a ser
oferecida ao público não mais como resultado singular da criação humana, objeto de
apreciação estética e de contemplação, mas como produto de uma sociedade fundada no
capital. A obra de arte torna-se comprável, consumível em série. É nesse processo que
assistimos à destruição da aura que emanava da obra de arte.
De todas as formas artísticas, é o cinema, por ser objeto que “não é produzido de
um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de sequências de
imagens entre as quais o montador exerce o seu direito de escolha” (BENJAMIN, 1994,
p. 175), o mais exemplar caso de arte desauratizada. Não à toa, o pensador alemão
qualifica o manipulador dos filmes cinematográficos de “montador” em detrimento de
considerá-lo um artista. Posto isto, é possível compreender que o decadentismo
finissecular situa-se no interior de uma “era da obra de arte montável” (Ibidem, 176),
porque esse tipo de obra de arte também se permite ao abalo. Ao desmontar a obra de
arte para torná-la suscetível a uma nova ordem de estruturas, para subtrair-lhe a
singularidade – ou ainda unicidade –, lançando-a nos espaços de uma sociedade de
consumo, o artista do fim-de-século opera a desauratização da obra de arte. Não apenas
à indústria se deve a destruição da aura, mas também ao próprio artista que, muitas
vezes conscientemente, joga com a violência desse procedimento.
O extravio definitivo do que Walter Benjamin designou por autenticidade da obra
de arte pressupunha a perda definitiva do “aqui e agora do original” (Ibidem, p. 167),
215
porque nele “se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias,
como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo.” (Ibidem). Logo, a arte
cinematográfica é, por definição, o melhor exemplo concreto de uma arte que, por ser
essencialmente reproduzível – no sentido que um filme é feito para ser exibido
simultaneamente em muitos espaços distintos – em larga escala, tem em sua origem o
princípio de servir às massas modernas: “O filme é uma criação da coletividade.”
(Ibidem, p. 172). Desse modo, a obra de arte no final do século XIX e primeiras décadas
do século XX já vinha experimentando o expediente da reprodutibilidade técnica e, por
conseguinte, encontrava-se em franco processo de dessacralização, posto que,
encontrava na litografia, na imprensa, na fotografia e no cinema os modelos artísticos de
uma cultura de massas, para quem o objeto de arte perdeu a sua aura:
O conceito de aura permite resumir essas características: o que atrofia
na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse
processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera
da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução
destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em
que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra da
arte por uma existência serial. E, na medida em que essa técnica
permite à reprodução vir ao encontro do espectador, em todas as
situações, ela atualiza o objeto reproduzido. Esses dois processos
resultam num violento abalo da tradição.” (Ibidem, p. 168-169).
A percepção de que a modernidade – e, em especial, a segunda metade do século
XIX – é um período da história da humanidade em que se pode sentir a perda da aura
em seus mais diversos aspectos, foi observada não apenas pelo filósofo alemão.
Também Charles Baudelaire, como registrado no decorrer desta pesquisa, sublinhou a
perda da aura do próprio artista. Daí que “A perda da auréola” adquira um sentido muito
próximo ao que propôs Walter Benjamin no ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, ainda mais quando se destaca que essa dessacralização da
216
obra de arte e do agente da arte – o autor – está intimamente ligada à cidade, espaço, por
excelência, da modernidade.
− Mas o quê? você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! Você,
o bebedor de quintessências! você, o comedor de ambrosia!
Francamente, é de surpreender.
− Meu caro, você bem conhece o meu pavor dos cavalos e das
carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o
bulevar, saltitando na lama a um só tempo, a minha auréola, num
movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo
do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos
desagradável perder as minhas insígnias que ter os ossos arrebentados.
De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para o bem.
Agora posso passear incógnito, praticar ações vis e entregar-me à
crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você,
como está vendo!
− Você deveria ao menos pôr um anúncio, ou comunicar a perda ao
comissário.
− Ah! não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a
dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau
poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer
alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense
no X., ou no Z.! hein! como será engraçado!
(BAUDELAIRE, 2002, p. 333)
De “bebedor de quintessências” e “comedor de ambrosia”, portanto, sujeito
aurático, o autor que perambula pela Paris da segunda metade do oitocentos é, ele
próprio, fruto que a modernidade impõe. A emblemática imagem do escritor que perde
as suas insígnias – e que não se importa que elas tenham caído no “lodo do macadame”,
tornando-o mais um entre uma seara de escritores agora dessacralizados – serve bem
como exemplo do que se pode vislumbrar como função autoral no contexto da obra de
Raul Brandão. Se, por um lado, o escritor de Guimarães é sujeito textual que abdica dos
privilégios da auréola ao romper com a estrutura do texto canônico e tornar-se um autor
à margem desse mesmo cânone – realista –, por outro, se beneficia justamente de ser
também um sem auréola e, por isso mesmo, é que pôde construir uma literatura a partir
dos preceitos de uma arte desauratizada. É, ainda, aos sem auréola, que ele destinou o
217
seu olhar, buscando na sua literatura privilegiar os trapeiros e vencidos, personagem
sem aura que, conforme explicitado, povoam a obra brandoniana.
Esta investigação salientou, no bojo do segundo capítulo, que a problemática das
fronteiras entre a escrita literária e a escrita da história tem ocupado não apenas os
críticos e teóricos da literatura, mas também os estudiosos da história. Esse
amolecimento das estruturas – ou ainda essa relativização de res factae e res fictae –
pode ter contribuído para o fato de os historiadores contemporâneos, a exemplo de
Georges Duby, exercitarem uma aproximação da escrita da história face aos textos
literários, sobretudo no que diz respeito ao caráter artístico que circunscreve esses
últimos. Em certa medida, outras formas de representação, tais como a pintura e a
fotografia, também foram questionadas, no decorrer do oitocentos, acerca dos valores
intrinsecamente artísticos; daí que esse questionamento, hoje, possa vir a ser superado
no futuro, porque talvez se venha a considerar – ou definitivamente desconsiderar – a
escrita da história como um tipo particular de arte narrativa : “A controvérsia travada no
século XIX entre a pintura e a fotografia quanto ao valor artístico de suas respectivas
produções parece-nos hoje irrelevante e confusa.” (BENJAMIN, 1994, p. 176).
Também parece pouco produtivo problematizar se a história é ou não um tipo
especial de arte da narração, porque, tal como a literatura, a pintura, a escultura e o
cinema, escrever a história é uma forma de representar o mundo, com as peculiaridades
que a linguagem verbal permite. O que importa destacar é que, à semelhança da obra de
arte, as formas de representar a história por meio da escrita de narrativas
experimentaram um declínio da aura. A escrita da história caminha paralelamente à obra
de arte no processo de desauratização ao longo do século XIX. É, portanto, na forma de
uma história também sem aura que se alicerça o olhar de Raul Brandão sobre o mundo,
quando importa ao autor representá-lo.
218
Se esta investigação procurou entrelaçar os temas da expressão literária e da
matéria histórica, é preciso ressaltar que o conceito de história que se desprende da
escritura de Raul Brandão, ou seja, uma história que perdeu a aura, é apreensível
somente a partir de um olhar crítico sobre o texto literário, sobretudo porque apenas um
texto que propositadamente abjurou a aura pode compreender que a história seja uma
sucessão de ruínas e catástrofes, que, como na tese IX de Benjamin, “ cresce até o céu”
(1994, p. 226). Todavia, a forma como foi abordada a existência de uma percepção da
história na obra do escritor variou consoante o livro em análise.
Se no capítulo “A tentação histórica” busquei mostrar que o tema da história não
era casual e desvinculado de um projeto artístico maior, no capítulo seguinte – ou seja: “
De trapos e trapeiros” –, foi sublinhada a interpretação de que o palhaço descrito no
livro de 1896 assume a forma de arauto do crepúsculo, mensageiro de um tempo de
crise, apóstolo do apocalipse, porque tudo destrói a partir de seu olhar alegórico, um
olhar que privilegia a erosão da forma para abraçar outro paradigma de arte. É nesse
passo que o expressionismo brandoniano e o barroco do Trauerspiel alemão convergem
para um mesmo ponto: uma escrita pautada na tradição barroca da anamorfose160 (aqui
compreendida como erosão da forma) e baseada numa estética do trapo, do fragmento,
do sincopado. O desfecho desta pesquisa advém com a leitura crítica das Memórias,
quando ponho em destaque os vencidos que povoam o memorialismo de Raul Brandão.
O escritor ao representar esses sujeitos esfarrapados como protagonistas de uma história
sem aura, que se desenrola nas ruas da capital portuguesa, salva-os dessa “morte
definitiva dos mortos” (VIÇOSO, 1994, p. 177).
Talvez uma última consideração seja ainda necessária: a de voltar ao ponto de
partida, a de pedir que o leitor retorne ao título desta pesquisa. Nele encontramos quatro
160
Cf. Benjamin, 1984.
219
substantivos, cujos significados acompanham do início ao fim a presente investigação:
trapeiros, vencidos, efabulação e história. Só à primeira vista se pode sucumbir à
tentação de organizá-los em pares, posto que esses sujeitos esfarrapados saltam da
literatura à história – e vice-versa –, numa trapêrie frenética que só se concretiza no
espaço literário. O título sintetiza o desejo de ler o escritor de Guimarães por outro viés
e a partir de outros teóricos; ele também sinaliza a vontade de que autor tenha o seu
lugar reavaliado na história da literatura. Espero que se possa compreender Raul
Brandão definitivamente como escritor do século XX. Esta crítica intenta ser mais um
tijolo nessa incessante construção.
220
6. BIBLIOGRAFIA161
6.1. De Raul Brandão
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161
A relação de manuscritos e documentos disponibilizados pela Biblioteca Nacional Portuguesa e
efetivamente citados/referidos encontra-se nos anexos, com indicação de autoria, destinatário e cota.
221
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162
A seção “Sobre Raul Brandão” inclui as obras diretamente citadas ou referidas no corpo desta
investigação, bem como aquelas manuseadas no decurso da realização da pesquisa. Privilegiou-se a
crítica contemporânea.
222
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ANEXOS
236
Lista de documentos (manuscritos e impressos)163
Arquivo Raul Brandão
Biblioteca Nacional Portuguesa
D2/27
D2/460
D2/469
D2/939
D2/18
D2/325
D2/391
D2/725
D2/668
D2/229
D2/222
D2/535
D2/552
D2/907
163
carta de Filinto de Almeida (n. 1857 – m. 1945) a Raul Brandão
carta de Columbano Bordalo Pinheiro (n. 1857 – 1929) a Raul Brandão
carta de Columbano Bordalo Pinheiro (n. 1857 – 1929) a Raul Brandão
manuscrito de matéria jornalística que ressalta qualidades artísticas de Brandão
carta de António José de Almeida (n. 1866 – m. 1929) a Raul Brandão
carta de Justino de Montalvão (n. 1872 – m. 1949) a Raul Brandão
resenha em forma de recorte de jornal (Livros Novos: EL-Rei Junot)
manuscrito autógrafo de Raul Brandão
carta de Armando Cortesão (n. 1891 – m. 1977) a Raul Brandão
carta de Antero de Figueiredo (n. 1866 – m. 1953) a Raul Brandão
carta de João de Eça (n. 1901 – m. 19--)
carta de Ribera y Rovira (n. 1880 – m. 1942) a Raul Brandão
carta de Adrião de Seixas (n. 18--, m. 19--) a Raul Brandão
carta de J. Magalhães, cujo intervalo de vida não foi identificado, a Raul Brandão
Figuram apenas os documentos efetivamente citados e/ou referidos no corpo desta investigação, na
ordem em que são foram apresentados. Autorização formal para reprodução e publicação, quando o caso,
consta ao final dos anexos.
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279
280
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DE TRAPEIROS E VENCIDOS efabulação e história em Raul