Foi dureza aceitar o vazio deixado por sua ausência por Maria Lucia Americo Ler no jornal que o amigo havia falecido foi um baque Engoliu a notícia como se tivesse levado uma pedrada. Demorou a assimilar a perda. Houve uma época em que estiveram muito próximos, no final da década de sessenta. Falavam um com o outro quase todo dia. Ele morava num apartamento térreo na Lagoa e costumava visitá-lo à tarde, levando as guloseimas que tanto apreciava. Nessa época ele apaixonou-se perdidamente (sem exagero) por uma bela âncora da televisão italiana, que conheceu num festival. Quis ir atrás dela na Itália e angustiou-se por não ter grana para bancar a viagem. O desespero dele comoveu os mais chegados que fizeram uma vaquinha, da qual ela participou, para financiar as despesas. Ele lhe escreveu da Itália, dizendo: -“Venha até Roma. Estou felicíssimo, mas sentindo falta de sua presença. Preciso de um favor seu, pague o salário da minha empregada”. Era um recado típico do singular amigo, homem completamente desprendido das coisas materiais. Quando tinha dinheiro distribuía para qualquer um, quando não tinha pedia com a maior naturalidade. É claro que atendeu ao pedido e viajou à Itália para encontrá-lo. Passou uma temporada divertidíssima em sua companhia, seguindo-o em incursões noturnas pelos bares de Roma onde ele fingia ser o compositor Chico Buarque e todos acreditavam. A italiana era casada e não podia se expor, saindo a sós com o amor brasileiro, principalmente à noite. Os dois se encontravam durante o dia num apartamento cedido por alguém. Houve vezes em que a italiana se arriscou a acompanhá-lo nos programas noturnos, tamanha sua vontade de prolongar momentos que sabia estarem fadados ao fim. Não por vontade dele. Por ele casariam e viveriam felizes como nos contos de fada, porém a italiana, mais realista ou talvez mais medrosa, sempre contemplou a separação como possibilidade certa. Ele procurou de todas as maneiras adiar o inevitável, porém o dia da separação acabou chegando. O resultado é que o amigo voltou da Itália com uma tremenda dor de cotovelo e a idéia de morrer na guerra do Vietnã. A época também influiu sobre sua moral, pois estavam no auge da repressão. A soma desses acontecimentos fez com que, de uma hora para a outra sumisse do Brasil. Passou anos sem ter notícias. Num belo dia, fuçando obras numa livraria encontrou um livro inédito escrito por ele. Comprou o exemplar e, ao começar a ler, descobriu que era um dos personagens. Foi estranha a sensação de se ver como figura de ficção e surpreendeu-se ao constatar o quanto a valorizou como pessoa. Ao contrário do que tendia a imaginar, não foi uma coadjuvante quase anônima no enredo de sua existência. Reviram-se na década de oitenta, quando apareceu na casa de sua mãe. Explico. Travaram conhecimento através dela. Houve uma fase em que sua mãe dava muitas festas, freqüentadas em sua maioria por intelectuais e artistas. Numa dessas ocasiões ele compareceu e fizeram amizade. Alegrou-se ao se deparar com ele no sofá da sala, rindo e contando piadas como antigamente. A melancolia das últimas vezes em que o vira havia sumido de seu semblante. Dava gosto olhar aquele homem bonito, amável e risonho. Quando indagou se havia esquecido a italiana, soltou uma sonora gargalhada e confirmou que a moça era página virada.. A vida dá muitas voltas, tanto dá que decorreram vários anos até o encontro seguinte. Apesar desse hiato, manteve-se próxima ao amigo em pensamento, lendo os livros que escrevia e sua coluna diária num prestigiado jornal. Iniciar o dia com a leitura de sua coluna tinha o efeito de uma injeção de ânimo, no meio de notícias e artigos banais. Ele demorou a aparecer e quase acreditou que havia lhe dado o bolo, se bem que não fosse de seu feitio faltar aos compromissos marcados com os amigos. Quando entrou no restaurante e se aproximou do local onde ela se encontrava reparou que envelhecera, detalhe que logo passou para segundo plano, porque o olhar de menino travesso e a desenvoltura com que abordava qualquer tema, por mais espinhoso que fosse, continuavam os mesmos. No último encontro que tiveram, almoçou na casa do amigo. O apartamento também era térreo e de frente para o mar. Apesar de ser maior e em outra vizinhança, lembrava de forma remota o apartamento na Lagoa. A lembrança daquela época de brilho fez com que desejasse que o futuro deixasse de ser uma preocupação para o amigo e que ele pudesse viajar e escrever seus livros à larga. Nada disso se concretizou. Dois anos depois ele morreu sem conseguir a tranqüilidade e a paz de espírito que merecia. Foram dois anos em que o destino o maltratou. Esteve hospitalizado mais de uma vez e os problemas com a saúde o impediram de curtir aquilo que a vida traz de melhor A morte o livrou de uma existência incompatível com a grandeza de seus horizontes, mas para quem continua no andar de baixo - como falam os sambistas - foi dureza aceitar o vazio deixado por sua ausência.