Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 37-48, 2008
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POR UMA NORMATIZAÇÃO ORTOGRÁFICA DE
PALAVRAS LATINAS INCORPORADAS AO
PORTUGUÊS1
João Batista Toledo Prado2
RESUMO
a despeito de o padrão culto da língua portuguesa escrita no Brasil contar, há já bastante tempo, com normas
que definem como devem ser grafados vocábulos tomados eruditamente ao latim, muitos com indicação da sílaba tônica por meio de acento gráfico (p. ex.: lápis, ônus,
vírus), alguns termos latinos, há tempo já incorporados,
ainda não recebem o mesmo tratamento, embora devessem fazê-lo.
PALAVRAS-CHAVE: palavras latinas; ortografia do português; normatização.
1. Por uma nova convenção, desde já autorizada.
O
ponto de partida para as considerações que se lerão a seguir foi
um pequeno texto, de autoria do conceituado jornalista Carlos
Brickmann, publicado em uma seção da Revista Digital Observatório
da Imprensa, chamada “Circo da Notícia”, em que ele escreve costumeiramente.
Aquela seção é, de hábito, ocupada com pequenos textos que versam sobre
depoimentos e frases de personalidades brasileiras veiculadas pela imprensa
1
2
Os argumentos da maior parte deste artigo foram publicados com o título “Para não
perder o latim – Análise Total”, na seção “Jornal de Debates” da Revista Digital
Observatório da Imprensa (ISSN 1519-7670 - ANO 12 - Nº 276 - 11/5/2004): http://
www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=276J DB005 (acesso em
26/02/2008).
Pesquisador da Área de Língua e Literatura Latinas da FCL, UNESP, Câmpus de Araraquara,
e membro do Grupo LINCEU - Visões da Antiguidade Clássica.
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Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
e também sobre processos jornalísticos, que Brickmann usualmente critica
com propriedade, motivo pelo qual sua leitura é de praxe instrutiva e interessante. Naquela edição, havia, entretanto, o microtexto que vai a seguir
reproduzido:
Falando latim. E errado.
Deu no jornal: “Faltam professores em vários campus da
Unesp”. Faltam mesmo – e faltam professores também nos
jornais. “Campus” é latim; em latim, o plural é “campi”.
Há quem aportuguese a palavra e utilize o plural
“campuses”. Mas usar o singular com “vários” é a mesma
coisa que dizer que a notícia saiu em “vários jornal”. Tudo
muito bom, tudo muito bem, afinal de contas temos gente
importante falando “menos”, mas a imprensa não deveria
usar uma linguagem, no mínimo, mais ou menos correta?3
Independentemente do fato de uma notícia que tenha mencionado
a Unesp – universidade em que trabalho – provocar meu interesse, como
é possível imaginar, o texto captou de imediato minha atenção, por fazer
a crítica de um erro na convenção da escrita de termos latinos em vernáculo, cometido pelo jornalista do não-nomeado diário e, assim, colocar
em causa a questão normativa que rege o emprego de termos latinos em
português que já se tornaram muito correntes, pelo menos nos meios
universitários e nos círculos da intelligentzia nacional.
A despeito do tempo decorrido entre o momento da primeira redação deste texto e o presente, os argumentos, mantenho-os todos, porque
são, naturalmente, aquilo que penso ainda agora, bem como o que julgo
ser necessário dizer a respeito do tema. Além disso, proponho este texto e
não outro, em primeiro lugar, por julgá-lo adequado à temática deste volume 35 dos Cadernos de Letras da UFF, que se ocupa de Patrimônio Cultural
e Latinidade, pensando em que termos latinos empregados em português decerto fazem parte do patrimônio cultural de nosso idioma; em segundo porque, como uma desejada conseqüência do ato de dar um texto a
3
Seção “Circo da Notícia”. Observatório da Imprensa (ISSN 1519-7670 - ANO 12 - Nº 274 - 27/
4/2004): http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=276JDB005 (acesso em 26/02/2008).
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 37-48, 2008
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público é influenciar práticas lingüísticas dos usuários da língua – neste
caso, a ortográfica – oxalá aí inclusas também as dos dicionaristas, acredito que não importa quantas vezes sejam asseveradas, tais opiniões precisam ser continuamente reenunciadas e reafirmadas; finalmente, em terceiro lugar, porque este texto jamais foi publicado em papel, muito menos
em uma conhecida revista da área de Letras, como é a Cadernos de Letras da
UFF e, por isso, este artigo, revisado e parcialmente reescrito, pode ser
considerado ainda inédito.
De resto, julgo ser muitíssimo interessante dar a publicidade devida
a tais idéias, que propugnam por uma racionalização na ortografia de termos latinos já incorporados ao vernáculo português, como câmpus e córpus,
porque – nunca é demais insistir – embora questões de normatização ortográfica possam ser consideradas, em geral, “menores”, vez por outra
latinistas são “tomados de assalto” e atormentados por pedidos recorrentes para justificar o emprego de termos latinos em nossa língua, como se
ainda fossem ocorrências legítimas da língua latina dos antigos romanos,
mesmo quando é nítido tratar-se de termos já totalmente incorporados ao
vocabulário nacional. Por discordar desses que querem sempre que algum
latinista justifique seja o que pensam seja o que seguem (sc. a norma até agora vigente), creio que seja mister fazer uma contribuição a esse aspecto das questões terminológicas.
Dessa forma, o ponto de vista aqui adotado pretende representar não
apenas uma mera opinião de leitor, mas a posição de um profissional das
Letras, mais especificamente das Letras Clássicas, que se tem esforçado em
refletir a respeito do estatuto lingüístico presente do latim, no contexto de
seus empregos modernos, motivado pela prática docente nessa área. Para tornar ainda mais claro, o que será aqui discutido é a censura, feita no texto de
Brickmann, ao emprego da palavra campus na frase “Faltam professores em
vários campus [sic] da Unesp”.
Embora seja eu próprio, como já disse, um professor da Área de Língua e Literatura Latinas na Unesp, e ainda que, lamentavelmente, a política
neoliberal dos dois governos FHC (seguida, parece-me, em algum grau, ainda agora pelo governo petista) tenha, no campo das reformas previdenciárias,
precipitado verdadeira “enxurrada” de aposentadorias nas universidades
públicas de SP e do país, o que, aliado à escassez de verbas para a educação,
limitou a capacidade de as universidades públicas reporem essas perdas e
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Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
deixou tais universidades, em particular as do Estado de São Paulo, com
uma carência de docentes pesquisadores como nunca antes na história,
embora, dizia-se, tudo isso seja mesmo verdade, é no mínimo discutível o
aparente “erro” citado pelo jornalista C. Brickmann, com relação à palavra
campus, pelas razões que exponho a seguir:
1) Em primeiro lugar, parte-se, naquele texto, da alegação de que campus seja
latim; seria, de fato, um disparate discordar de que sejam latinos os étimos
da maioria das palavras empregadas em português; porém, diante da mera
afirmação de que, no contexto contemporâneo de seu uso português,
“campus é latim”, caberia perguntar: em que sentido, “latim”? No de que a
imensa maioria das palavras da língua portuguesa também o seja? Se for
isso, então, teríamos de reivindicar a latinização de todas aquelas palavras
latinas que sigam o mesmo paradigma e, aí, haveria pelo menos dois
grupos:
1.a) o das palavras que derivaram do grupo temático –o–, ou
seja, aquelas que, no latim clássico, assumiam, por mecanismo
de flexão, a forma -us no nominativo singular, cujo plural
equivale, de fato, à forma terminativa –i (p. ex.: campus/campi;
dominus/domini; uilicus/uilici, etc.); nesse grupo, entraria a maior
parte das palavras do léxico português em –o (p. ex.: lobo, criado,
carneiro, etc.) que, mesmo tendo derivado de étimos
pertencentes ao latim vulgar (cf.: lupu-; creatu-; carnariu-4, etc.),
variante do latim aristocrático – chamado clássico – e que partilha
com ele as mesmas sincronias, deveria, por acaso, fazer também
um excêntrico plural em –i (cf. lobi, criadi, carneiri, etc.)?!? Por
óbvio, sabemos que não se trata disso, o que sugere se passe
diretamente a considerar o próximo grupo;
1.b) o das palavras que são tomadas, em qualquer momento da
história do português, diretamente de palavras latinas, o que,
no caso em tela, equivaleria ao rol das palavras cujas terminações
de nominativo singular sejam –us (p. ex.: ângelus, ânus, deus, etc.,
mas também Vênus – computado, aí, também o adjetivo venéreo
– ônus, vírus, etc.) ou seja, àquelas que, como se constata pelos
4
Cf. informações etimológicas nos verbetes correspondentes (i. e.: lobo, criado, carneiro) do
Dicionário Eletrônico HOUAISS da Língua Portuguesa (versão 1.0 – Dezembro de 2001).
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 37-48, 2008
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exemplos listados – e vale, já aqui, a ressalva de que, para o
primeiro grupo, não se foi, aqui, além dos primeiríssimos
exemplos listados no verbete A do dicionário Houaiss, e, para o
segundo, daqueles que me assaltaram de pronto a memória,
sem qualquer esforço – são comuns e numerosas; além disso,
quando não oxítonas, recebem todas sem exceção, na grafia, o
acento que melhor cabe à expressão da tonicidade e do timbre,
motivo pelo qual – cumpre ressaltar já de saída – se não fazem
tais exemplos, iguais ao campus criticado em na matéria
jornalística, o plural em –i ali reivindicado (o plural de ângelus
não é, afinal, ângeli, nem o de ânus, âni, e assim por diante), por
que deveria fazê-lo a palavra campus, já tão empregada e difundida
em português?
Melhor seria, não se pode hesitar em dizê-lo, aportuguesá-lo de imediato
com a colocação de um graficamente saudável acento circunflexo: câmpus,
fazendo com que, assim, ele siga o mesmo paradigma das formas ângelus
e ânus, cujos plurais são expressos pelas idênticas formas de seus singulares: um ângelus, muitos ângelus / um câmpus, dois câmpus;
2) Em segundo, se se tivesse mesmo, por força de coerência etimológica,
que praticar, em português, as flexões latinas sugeridas pelo jornalista naquela matéria, ter-se-ia, no caso de certos itens do segundo grupo de palavras listadas nos exemplos de 1.b., ou seja, no daquelas
palavras que apresentam a terminação latina -us de nominativo singular, mas que ou não pertencem ao tema –o– (p. ex.: Vênus) ou apresentam gênero neutro (ônus), ter-se-ia, como se estava dizendo, de
praticar também nelas seus plurais latinos (Veneres e onera; importante
lembrar que o plural de Vênus é possível também em português, quando, por metonímia, tomamo-lo como sinônimo de amor)?
3) Em terceiro lugar – mas, a despeito de só aparecer na terceira posição,
talvez seja este o argumento mais importante de todos – se se evoca uma
parte do paradigma flexional do latim, no caso, o das flexões de nominativo
singular/plural, não seríamos obrigados também a recorrer a todo o resto? Quer se trate de uma ocorrência de câmpus que desempenhe a função
sintática de sujeito, teríamos de empregar campus/campi? Quer se trate do
objeto direto, campum/campos? Quer se trate de objeto indireto, campo/
campis? Quer de adjunto adnominal, campi/camporum? Quer de adjunto
adverbial, de novo campo/campis? E isso só para mencionar as mais fre-
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Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
qüentes possibilidades ocorrenciais. Nesse caso, sim, ao menos no que
respeita à ocorrência de uma morfologia que é a mesma seguida por palavras do sistema lingüístico da língua da Roma antiga, seria forçoso admitir que ISSO seria, de fato, LATIM;
4) Quanto ao emprego de campuses, também citado na matéria como forma
de aportuguesar o latim campus, trata-se, muito ao invés, do plural canônico
(previsto em dicionário) do inglês campus5; tal flexão é prova cabal de que,
na língua inglesa, o termo latino já foi incorporado ao acervo de palavras
(sc. léxico) daquele idioma que, por isso, com razão e justiça, lhe aplica o
mesmo paradigma de formação de plural usado em palavras comuns e
consubstanciais ao inglês (exatamente o que se está reivindicando aconteça também entre nós, no vernáculo português, com a adoção das grafias
câmpus, córpus e assemelhados), ou seja, no idioma de Shakespeare se emprega o morfema -s que, quando ocorre em palavras já terminadas igualmente por -s no singular, desenvolve, no caso da formação do plural, uma
epêntese vocálica -e- (campus/campuses; virus/viruses, etc.).
Ademais, são correntes em inglês as formas do nominativo singular latino, porque, naquela língua, deu-se, por convenção histórica, a adoção das
formas do nominativo sg./pl. latino (fato constatável em qualquer dicionário de uso da língua inglesa; cf., p. ex., o par datum/data6, que o inglês
importou diretamente das formas de nominativo sg./pl. neutro da mesma palavra, que, por sua vez, é uma substantivação do particípio latino do
verbo dare) e, para isso, basta que se pense, por exemplo, nos nomes latinos das personagens e títulos de peças de motivos romanos de
5
6
Para o propósito deste artigo, julguei oportuno consultar, sempre que disponíveis, as versões
on-line dos dicionários de uso dos idiomas mencionados no texto, a fim de permitir o rápido
cotejo das informações. Foi o que se fez com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa,
embora o acesso on-line, nesse caso, dependa da assinatura do servidor de conteúdo UOL.
Alguns dicionários de inglês que indicam a forma plural da palavra campus são o Dictionary.com
Unabridged - v. 1.1 (baseado no Random House Unabridged Dictionary, Random House, 2006) e o
The American Heritage - Dictionary of the English Language (4th Edition. Published by Houghton
Mifflin Company, 2006). Ambos disponíveis em: http://dictionary.reference.com/browse/
campus (acesso em 10/03/2008).
Cf. Dictionary.com Unabridged - v. 1.1, disponível em http://dictionary.reference.com/browse/
datum (acesso em 10/03/2008).
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Shakespeare: Titus Andronicus, Julius Caesar, Coriolanus, etc. (em português,
ao contrário, a convenção histórica é a do aportuguesamento: Tito
Andrônico, Júlio César, Coriolano, etc.). Assim, os anglófonos têm por
hábito e convenção tradicional adotar apenas o par nominativo sg./pl.
para palavras que provêm do latim; já em português, o caso lexicogênico
é o acusativo (com a perda do –m final das formas do latim vulgar ao
português7), mais um motivo pelo qual a distinção campus/campi não serve: é contrária aos hábitos e convenções do português e mero servilismo
provinciano em relação aos EUA;
5) Resta dizer ainda uma palavra ou duas sobre a ocorrência de campus nos
dicionários portugueses. Como se sabe, o tipo de obra de referência lexical
mais comum e freqüentemente consultada, em todas as nações, são os
dicionários de uso, que se preocupam em registrar os termos do léxico e
as acepções que eles recebem numa dada sincronia; em geral, a do momento em que o dicionário foi confeccionado. Entre nós, o utilíssimo
Houaiss – hoje, talvez, o melhor dicionário de usos do português – ao
trazer informações que permitem avaliar o momento em que um item
começou a entrar em circulação no léxico, não traz, infelizmente, tais
dados a respeito de campus, mas é de crer-se que seu emprego seja de fato
recente em português, visto que até o início da década de 1970 os dicionários, mesmo os mais completos como o de Caldas Aulete, não registravam seu emprego. É interessante notar que o dicionário italiano Zingarelli,
a despeito da evidente origem latina do italiano, que se deu inclusive nas
mesmas terras ocupadas pela moderna Itália, registra campus como palavra inglesa (e, por isso, instrui a pronúncia anglófona do termo) e como
7
Cf. o que afirma Mattoso Câmara Jr., no Capítulo IX, “O Léxico Português”, de sua História
e Estrutura da Língua Portuguesa: “[...] a estrutura morfológica [do léxico português] foi determinada pelos termos populares, provenientes do latim vulgar. Ela é que estabeleceu os padrões de temas nominais e verbais, das desinências de plural e de feminino no nome, das
desinências número-pessoais e modo-temporais no verbo. É expressivo neste particular que
os empréstimos feitos ao latim literário, em qualquer época, nos nomes, tenham partido, em
princípio, da forma de acusativo e façam plural em -s, de acordo com o acusativo latino; isto
porque a forma do acusativo latino é que se fixou como forma única nominal no latim vulgar
ibérico [...]. São muito raros nomes eruditos portugueses tirados do nominativo, que dentro
da gramática latina é a forma central e por assim dizer primária. Ainda assim, a sua flexão se
adapta à tipologia flexional portuguesa, criada nos termos populares.” (MATTOSO CÂMARA JR, 1975: 192).
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Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
substantivo masculino invariável, o que significa que sua forma permanece a mesma no plural.
Esse último fato sugere que a entrada do termo no léxico de culturas de
línguas novilatinas, além de ser recente e a despeito de ser tomada diretamente do latim, deu-se pela via de seu emprego em inglês (como ocorreu há já
algum tempo com o verbo americano to delete, que, assumindo flexão verbal da
língua nacional, se tornou “deletar”, na língua portuguesa do Brasil), porém,
apesar de, em inglês, o termo ter-se anglicizado, e de ter-se cristalizado como
forma invariável em italiano, em português pode-se supor que algum acadêmico que teve latim em sua formação, de todo bem intencionado, mas equivocado nesse ponto, lembrou-se de que o latim é uma língua declinatória e,
por isso, resolveu que o “correto” seria evocar o paradigma do nominativo
singular/plural também em português, esquecendo-se ou mesmo ignorando
que a evocação de apenas um par do paradigma declinatório do latim implica
todo o resto da declinação possível.
Os dicionários de uso da língua portuguesa, como registram os empregos
e acepções de palavras que compõem o léxico português, não podiam deixar de
registrar tal ocorrência que foi implantada, como se diz popularmente, de cima
para baixo, ou seja, de uma prática acadêmica e/ou escolar irrefletida para a
norma geral dos dicionários que, também irrefletidamente, passaram a adotar
tal prática sem ressalvas, sem senso de relativo e sem fazer-lhe a merecida crítica. Afinal, para a consciência do falante comum da língua, o plural de câmpus
será também câmpus e, para o falante bem alfabetizado, deveria grafar-se com
acento circunflexo, assim como já acontece com bônus, cáctus, célsius, cítrus, fícus,
húmus, lócus, lúpus, ônibus, pínus, rébus e tantos outros termos latinos já
aportuguesados, a despeito de serem, ao que tudo indica, muito menos freqüentes do que câmpus, córpus, etc.
Já está mais do que na hora de os dicionários de uso da língua portuguesa
terem um mínimo de coerência em relação à forma com que registram palavras
de origem latina já incorporadas ao léxico nacional, e consignarem, por isso e de
uma vez por todas, as formas acentuadas câmpus, córpus e congêneres, por favor!
Porém, se os dicionários regulam o uso a partir do usado, usemos nós, doravante,
tais grafias, perfeitamente autorizadas pela coerência com a história da ortografia adotada para palavras com características semelhantes, e cujo caminho se
encontra já apontado nos próprios dicionários, como acabou de ficar demonstrado. Proceder assim terminará por disseminá-las, até que passem a fazer parte
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da prática ortográfica da imprensa escrita, o que levará futuras edições de bons
dicionários, como o Houaiss, a registrá-las.
2. Falando... “latim”?!?
Como uma das últimas observações, é preciso dizer ainda algo acerca de
“falar latim”, que envolve também o título dado pelo jornalista C. Brickmann à
matéria veiculada no Observatório da Imprensa (“Falando latim. E muito mal”;
grifo nosso). Cumpre acrescentar que, do latim, se conhecem apenas a gramática e os textos escritos. Muito pouco, levando-se em conta ter sido o latim uma
língua natural de comunicação, ou seja, um idioma que era, de fato, falado tanto
pelos romanos como pelos habitantes das terras conquistadas, a que eles chamavam colônias8. Isso implica que, por mais que se sonhe, romanceie ou que se
projetem nossas impressões, desde a articulação necessária de textos lidos em
sala de aula até os mais bem acabados produtos da indústria cinematográfica de
nossos dias, a verdade científica é uma só: não se sabe como o latim era falado,
portanto, ninguém se encontra, nos dias que correm, em posição suficientemente privilegiada para poder dizer com justiça e razão que fala ou sabe falar
latim. Todo o latim passível de prolação hoje será indissociável do sotaque que
o carrega necessariamente e, por isso, certamente muito diverso da prosódia
justa do idioma articulado oralmente pelos antigos romanos.
E isso para não mencionar que, mesmo em se tratando da produtividade
de enunciados em contexto de comunicação oral, o que envolve a competência
lingüística dos falantes, todas as frases latinas que poderiam ser enunciadas
hoje seriam: ou a) decalques de estruturas empregadas em línguas modernas
e, por essa mesma razão, equivocadas, uma vez que não pertencem ao uso
do latim dos antigos romanos; ou b) cópias de estruturas presentes em textos literários latinos, que, por existirem nesse registro especializado – o literário – não são adequadas à expressão do coloquial.
Aliás, sobre isso, convém dizer também que, quando se trata de latim,
muitos daqueles que tiveram a hoje rara oportunidade de terem tido educação
esmerada, seja porque ela se deu antes da deliberada desconstrução por que
passou a educação deste país, desde o golpe militar de 1964 até hoje, seja
porque puderam estudar em escolas de elite, tanto no país como fora dele,
8
Cf. o verbete colonia,-ae, por exemplo, no Oxford Latin-English Dictionary: “1. a settlement or colony
of citzens sent from Rome or the people composing it” (GLARE, 1968, s.v. colonia, ~ae).
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Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
costumam ser presas da impressão de que se lida com o morto – visão que
advém de um preconceito, afinal, línguas não morrem, visto que não são seres
vivos; quem morre são seus falantes9, e, a despeito disso, as línguas seguem
vivas, em estado de suspensão, nos textos produzidos pelas culturas que elas
veiculam e animam – e, já que mortos não reclamam, são tentados a fazer
pouco da ignorância alheia, porque o alheio, nesse caso, representa a imensa
parcela da população (mesmo que se isole e se compute apenas a população
de leitores do país) sem qualquer condição de aferir dados lingüísticos de uma
língua antiga e desaparecida, como é o caso do latim.
Está-se pensando, aqui, em particular e para ficar num único dentre
numerosos exemplos, no caso de artigos veiculados em prestigiados meios de
comunicação escrita, como aquele publicado no dia 15 de março de 2000, no
jornal Folha de São Paulo, logo após o conhecido escândalo nacional, em que a
esposa de Celso Pitta, então prefeito de São Paulo, concedeu uma entrevista à
TV Globo, em que delatava um alastrado esquema de corrupção e enriquecimento ilícito, praticado por membros do partido de Pitta, a mando, segunda
ela, do presidente de seu partido, ex-governador e também ex-prefeito, Paulo
Maluf. Não pretendo, aqui, entrar em detalhes, já que o fato é, presume-se,
bem conhecido de todos. Para defender-se da parte que lhe cabia nas implicações do caso, Maluf escreveu, poucos dias após o ocorrido, um artigo cujo
título era Quis prodest, e que ele próprio ali traduziu por “A quem favorece?”.
Tal tradução é equivocada, porque o pronome interrogativo latino quis
não significa a quem, mas, simplesmente, quem, com função subjetiva. A tradução está errada, porque errada está, antes, a citação feita pelo político: trata-se,
de fato, de uma parte de um verso da tragédia Medéia, do filósofo e dramaturgo latino Sêneca, mais especificamente da parte em que a própria feiticeira da
Tessália, irada com o esposo Jasão, que a trocou pela filha do rei de Tebas,
afirma: [...] cui prodest scelus,/ is fecit [...], algo como “[...] aquele a quem interessa o crime, / foi esse que o cometeu [...]” (vv. 500-501)10.
A esse propósito, cf.: “O primeiro grande equívoco em que se incidiu no estudo da língua
latina foi aceitar o preconceito de que se lidava com o morto; sob esse princípio, todo o
legado da literatura latina, por exemplo, transformou-se em um imenso ‘terreno sacrossanto’
de onde, vez por outra, se procuravam (e ainda se procuram) ressuscitar algumas idéias ou
pensamentos adormecidos; talvez por isso mesmo, haja os que confundam humanismo com
verdades eternas” (BRUNO, 1992: 75).
10
SENECA IUNIOR. Medea. In: PHI-5.3, 1991.
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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Patrimônio cultural e latinidade, no 35, p. 37-48, 2008
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3. Bom senso e compromisso com a verdade.
A questão, aqui, é que, a despeito de muitíssimo bem educado e formado, o político em questão não julgou necessário cotejar, com as fontes
latinas, o excerto do verso senequiano, retida na memória de alguma lição
de latim, recebida provavelmente em sua juventude, a despeito de ter ele,
sem dúvida, todas as condições intelectuais e, sobretudo, materiais de fazêlo, simplesmente porque – como sói acontecer muito amiúde com citações
latinas feitas nos grandes jornais de nossos dias, salvo honrosas exceções –
sabia que quase não haveria leitor capaz de glosar sua citação, dado o fato de
o latim não ser mais oferecido na escola da cidadania, e de os professores de
latim que restaram não somarem mais que uns poucos punhados, e de serem, por isso, numericamente inexpressivos (provavelmente até como eleitores!).
A gravidade desse caso está em que todos que assim procederem estarão subestimando a inteligência e a formação dos leitores dos veículos de
comunicação em que tais citações aparecem: embora seja mesmo verdade que
se conte apenas um punhado de leitores capazes de glosar tais citações, a
atitude mais séria, ilibada e comprometida com a verdade, em todos os níveis,
será sempre a de oferecer ao leitor nada menos que o melhor das informações
e dos dados de que um escritor ou articulista é capaz – sempre – ainda que os
leitores não tenham como cotejar as informações, pois tal é o trabalho formativo
dos órgãos de imprensa que, quando se pretende séria, deve caminhar lado a
lado com a atividade informativa. Não se pode esperar menos de ninguém que
detenha, por que meio for, o privilégio de expor suas idéias num órgão de
imprensa, ainda mais num de grande circulação.
Por tudo isso, por acreditar também na seriedade que deve nortear o
trabalho jornalístico e, sobretudo, porque a língua é o que dela fizermos todos
nós, principalmente escritores e jornalistas, e porque convenções de escrita
mudam e/ou sedimentam-se, como se sabe, a partir da pressão exercida por
seus usuários, acredito que fazemos nossa parte ao defender o uso
aportuguesado de câmpus, de córpus e de tudo o mais que siga o mesmo
paradigma e que esteja implicado no universo semântico e vocabular dos meios acadêmicos e universitários, mas que, em muitos casos e felizmente, também transitam e freqüentam o acervo vocabular do mais comum dos falantes
de português deste país.
48
Prado, João Batista Toledo.
Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas ao português
ABSTRACT:
in spite of having very well-known rules that define how
should be written those words which have been taken
directly from the old Latin, words whose tonic syllable
is usually indicated by graphic accents (e.g.: lápis, ônus,
vírus, etc.), the cult Portuguese language written in Brazil
still does not treat likewise some Latin terms (although
it should), even though they have been incorporated to
the Portuguese a long time ago (as campus, e.g.).
KEYWORDS: Latin words; Portuguese orthography;
standardization.
Recebido em 10/12/2007
Aprovado em 05/06/2008
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Por uma normatização ortográfica de palavras latinas incorporadas