Que Psiquiatra para o campo da Saúde Mental?
Ricardo Azevedo Pacheco
O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, Campinas SP é
considerado instituição modelar no processo de Reforma Psiquiátrica
Brasileira. Vem conduzindo vasta experiência assistencial e no campo
da reabilitação psicossocial. Seu leque de dispositivos institucionais
inclui: NOT (Núcleo de Oficinas e Trabalho); NAC (Núcleo de Atenção
à
Crise);
Núcleo
Clínico
(população
geriátrica
e
moradores
residuais);Nadeq (Núcleo de atenção à dependência química); três
CAPS situados no espaço da cidade; Núcleo de Moradias Protegidas (31
residências protegidas na cidade), além de servir como campo de
parceria e estágio para diversas instituições universitárias e de ensino.
Em 2005 o “Cândido” obteve credenciamento provisório para projeto
de Residência Médica em Psiquiatria, contando atualmente com quatro
médicos residentes. Isto atualizou a discussão acerca dos princípios que
norteiam as práticas clínicas neste contexto, mais precisamente tornando
necessária a discussão objeto deste trabalho: Que psiquiatra para a Saúde
Mental? Mais precisamente, ao pensar o projeto do curso de psicopatologia
para os residentes, impôs-se a problematização dos princípios e a filosofia
segundo os quais esta disciplina seria ministrada.
Este texto introduziu o programa da disciplina de psicopatologia para a
residência em psiquiatria do Serviço de Saúde Cândido Ferreira (R1). Para
tanto uma redução, mesmo que grosseira e imprecisa das tendências em jogo
no saber psiquiátrico fez-se necessária. Será tomada inicialmente uma destas
tendências considerada mais relevante – a psiquiatria biológica – Esta escolha
justifica-se tendo em vista algumas conseqüências comuns que a perspectiva
neurobiológica implica na prática clínica do psiquiatra. Será tomado também
um texto curto de Foucault “A Casa dos Loucos”(Foucault, M. 1977). Trata-se
de um texto impressionante pela atualidade com que permite situar pontos
nevrálgicos da formação atual hoje de psiquiatras, psicanalistas e porque não,
útil a todos profissionais que atuam em Saúde Mental.
Evidentemente corre-se aqui o risco inevitável do reducionismo bem
como o da parcialidade das opiniões. Quanto ao reducionismo, ele é inevitável
num texto introdutório. Como remédio, propõe-se o tempo doR1 e a abertura à
discussão. Quanto à parcialidade, cabe dizer que a diretriz principal deste
curso de psicopatologia é a de buscar uma psicopatologia alinhada à clínica,
em seu sentido mais fecundo e radical. Uma clínica que implique a
consideração pelo sujeito bem como a necessidade de questionamento
profundo por parte do médico (ou do técnico em saúde mental ou do técnico
de enfermagem, aí não importa) de sua posição e suas dificuldades diante do
contato e da construção de um caso.
A abordagem e a construção de um caso clínico são aspectos bastante
amplos e complexos em se tratando de Saúde Mental. Deve-se ressaltar desde
o início que a atividade do psiquiatra, mesmo aquela considerada nuclear e
específica de sua função – a prescrição de psicofármacos – difere bastante do
uso de outras classes de medicação. Seu elemento diferencial principal reside
no fato de que é a relação e o discurso do paciente dirigido ao médico que
constituem a via de abordagem por excelência para o diagnóstico e para a
condução do tratamento. Mesmo que se utilizem escalas de avaliação
sintomatológica, o campo da psicopatologia não se exime em nenhum
momento dos avatares de uma ligação que se dá pela via do discurso.
Esta ligação implica na presença dividida de um enunciado e uma
enunciação, tanto por parte do psiquiatra, quanto por parte do paciente. Sabese muito bem que é da ordem da interpretação do psiquiatra que um paciente
esteja delirando. Para o delirante, seu enunciado vale mais pela certeza do que
pela qualidade de fato psicopatológico. Tentem convencê-lo de que sua
afirmação é falsa para avaliar o peso de uma convicção delirante no manejo de
um projeto terapêutico! É isto que está sublinhado ao dizer que a relação com
o psiquiatra se dá no nível de uma ligação discursiva. Neste simples exemplo,
a fragilidade do enquadre estritamente diagnóstico se revela. O sintoma
psicopatológico “delírio” não coincide com a vivência subjetiva de uma
certeza.
“É possível que a produção de verdade da loucura possa se efetuar em
formas que não sejam as da relação de conhecimento?” (Foucault, M. 1977)
A pergunta de Foucault serve bem a este texto e permite formular
outras: Que lugar conferir ao saber médico no caso a caso? É possível um
ensino de psicopatologia que não se resuma à aquisição de conceitos e de uma
técnica? O que indica a citação é que há um enquadre da relação discursiva
em termos de uma produção de conhecimento (do lado do médico, o
diagnóstico por exemplo) que não é a mesma coisa que a produção de verdade
que o discurso (mais ou menos louco) pode promover.
Neste mesmo texto Foucault aborda a questão da “despsiquiatrização”,
que ele situa após Charcot. Segundo ele o ápice e a crise da psiquiatria
clássica ocorrem na época das apresentações de doentes do médico francês
que
ficou
célebre
em
função
da
sua
intensa
atividade
na Salpetriére. Charcot foi quem alçou a crise histérica ao estatuto de
diagnóstico médico diferenciado (da epilepsia principalmente). Para tanto
induzia a “Grande Crise” pela via da sugestão nas pacientes. A
própria sugestionabilidade era
elemento
para
o
diagnóstico
e
então Charcot descrevia minuciosamente para sua platéia as marcas dos
movimentos e atitudes do corpo histérico. (Quinet, 2005)
Segundo Foucault a origem dos movimentos anti-psiquiátricos situa-se
no momento em que desconfiou-se, para depois se ter a certeza
que Charcot produzia efetivamente a crise de histeria que descrevia. Dócil às
injunções do médico, as histéricas cediam seu corpo para que o “taumaturgo
da Salpetriére” exercesse ali seu poder.
“(...) de Bernheim a Laing ou Basaglia, o que foi questionado é a
maneira pela qual o poder do médico estava implicado na verdade daquilo
que dizia, e, inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser fabricada
e comprometida pelo seu poder.” (Foucault, M. 1977)
Difereciando então as “antipsiquiatrias”(movimentos que colocaram em
questão realmente a instituição psiquiátrica), da “despsiquiatrização”,
Foucault dirá com bastante antecedência que na psiquiatria biológica, não se
trata de um questionamento deste lugar de produção de conhecimento e de
poder reservado ao médico. Trata-se de um deslocamento deste poder em
nome de um saber supostamente mais exato, o que lhe dá outras aplicações e
outras medidas. O médico procurará então reduzir a doença aos seus
elementos mínimos constituintes (A molécula? O gene?). Com estes
elementos diagnosticados, nada do movimento de dominação do médico se
altera. Eles são suficientes para manter (ou mesmo ampliar) o conceito de
doença mental e sustentar o uso de técnicas para reduzir suas manifestações.
“Chamemos esta despsiquiatrização de Psiquiatria de produção zero.
A psicocirurgia e a psiquiatria farmacológica são duas das suas formas mais
notáveis.” (Foucault, M. 1977)
É notável o caráter premonitório do texto de Foucault. É como forma
hegemônica de produção de conhecimento que pode-se tomar a tendência da
psiquiatria neurobiológica. Esta tendência sustenta-se fundamentalmente nas
pesquisas sobre a ação e efetividade das diversas moléculas com
ação psicofarmacológica na célula neuronal e nos avanços da pesquisa dos
mecanismos genéticos implicados na expressão dos diversos transtornos
mentais. Uma linha de pesquisa fornece material e embasamento para a outra.
Prova disso é que hoje a teoria mais avançada a respeito da ação
dos psicofármacos no cérebro é a de que estas substâncias regulam através de
diferentes mecanismos uma certa modalidade de expressão genética que
estaria alterada nos portadores de transtornos mentais.
Daí uma extensa discussão a propósito do que constituiria a
vulnerabilidade de certos indivíduos para a eclosão do problema. Daí também
certas linhas de pesquisa genética mais radicais, que anunciam, num horizonte
próximo,
a
prevenção
farmacológica
(com neurolépticos atípicos por
exemplo) de grupos de indivíduos mais predispostos e com “ratings” de
vulnerabilidade (psico-social por exemplo) mais elevados. Ora, quais as
conseqüências destas perspectivas? Elas são algo evidentes. Uma em
particular merece destaque. Ela diz respeito à uma questão que sempre
retornou para o saber psiquiátrico desde seus primórdios. Trata-se da
interrogação acerca da causalidade do adoecimento psíquico. Desde a
psiquiatria clássica (séculos XVIII e XIX) até a psiquiatria do início do século
XX, influenciada pela psicanálise e pela psicopatologia fenomenológica a
causa do adoecimento psíquico sempre foi uma questão. Toda a tendência
dualista da psiquiatria é exemplo disto.
No dualismo, procura-se equacionar de alguma maneira a questão da
etiologia em termos de orgânico X psíquico em diferentes “proporções”. Um
exemplo: após as formulações freudianas na virada do século XIX para o
século XX tomava-se como fortemente indicada a etiologia psíquica para os
quadros neuróticos. Outro exemplo: as psicoses sempre foram tomadas pela
psicopatologia fenomenológica como incompreensíveis (a compreensão ou
explicação são um eixo de pensamento de um famoso filósofo/psiopatólogo,
Karl Jaspers). Incompreensível quer dizer aquilo que rompe qualitativamente
com a experiência média comum (as vivências de influência por exemplo)
inaugurando um outro tipo de estado psíquico. Quer dizer também que, diante
de tamanha ruptura (chamada “processual”), sem alterações anátomofisiológicas concomitantes deveria haver alguma causa orgânica não
identificável, mas suponível. (Jaspers, K. 1987)
O dualismo portanto pode ser considerado um outro nome para a “faltade-saber” da psiquiatria sobre a causa das doenças mentais. Não se pode
dizer entretanto que a psiquiatria clássica ou fenomenológica carecia de rigor
científico. Ao contrário, não se encontram descrições clínicas tão
ricas, precisas e detalhadas quanto nos textos clássicos nem se pode dizer que
nas especulações filosóficas existencialistas sobre o “ser-no-mundo” não
exista rigor. Elas captaram muitíssimo bem a dor e a invasão psicótica bem
como a paralisação e valor fundamental da angústia ou do afeto como base
para diversos outros sintomas. Ou seja, a “falta-de-saber”, dentre outras várias
coisas,
(muitas
delas
questionáveis
como o
binômio
alienação mental/manicômio) produziu também interrogações extremamente
valiosas e constatações clínicas inquestionáveis.
Qual a conseqüência então e qual o risco da tendência neurobiológica?
Percebe-se que pela via da suposição genética a psiquiatria nunca esteve tão
perto da provável e tão desejada elucidação sobre a causa. (Binrman, J. 1999)
Predisposição + vulnerabilidade é a fórmula contemporânea. Ponto. Vamos
então aos avanços na terapêutica e ao farto menu de drogas à disposição.
Evidentemente
que
os
efeitos
dos psicofármacosnão
podem
ser
menosprezados ou utilizados sem critério. Entretanto nunca se esteve tão
próximo de uma explicação tão fascinantemente totalizadora acerca da
etiologia. O paradoxo que isto implica é que também nunca se esteve tão perto
de extinguir uma dúvida que durante tantos séculos permitiu tantas
especulações da psiquiatria.
Há quem diga que morrendo esta dúvida morreria a própria psiquiatria
enquanto disciplina médica específica. (Barreto, F. 1999). A dúvida e a
inexatidão sempre mantiveram um lugar próprio e algo “excêntrico” para a
psiquiatria no campo mais geral da medicina. Através da incorporação
definitiva da psiquiatria às ciências do cérebro (uma sub-especialização da
neurologia?) apaga-se este ponto diferencial, que pode ser considerado
bastante fecundo uma vez que reconhecer-se e assumir-se como disciplina
essencialmente inexata fez com que a psiquiatria necessitasse recorrer
e incursionar por outras disciplinas e outros saberes, (a antropologia ou
sociologia, a filosofia, a psicanálise, a psicologia) para pensar sua prática.
Em outras palavras a constante interrogação sobre a causa fez com que
a psiquiatria necessitasse recorrer a um Outro, algo que, numa alteridade lhe
fornecesse elementos para pensar aquilo que, internamente ao seu campo lhe
faltava como elemento explicativo. Isto morre quando é dentro do seu próprio
campo, reafirmado então como médico-científico (numa certa acepção de
ciência) que se encontram as chaves sobre a causa.
Talvez seja esta a mais rica incidência da psicanálise para o ensino da
psicopatologia. Ainda no texto de Foucault, a psicanálise é tomada como outra
forma de exercício de poder, outra forma de “despsiquiatrização”. “Fale tudo
o que vier à cabeça”. Neste imperativo, próprio ao encontro privado com o
psicanalista, o falante seria induzido à um tipo de produção de verdade em que
toda a produção seria legítima, desde que não extrapolasse os limites da
relação no nível discursivo.Outra forma, mais sutil de exercício de poder.
Pode-se dizer que Foucault, neste ponto, acerta e erra ao mesmo tempo.
Acerta pois a psicanálise não está isenta de transformar-se numa forma
mais sutil e mais cruel do exercício de imperativos. Nenhum psicanalista, de
nenhuma corrente teórica passa impune por uma análise sem levar a sério este
tipo de impasse nas conjunções de sua clínica. Várias críticas de Lacan foram
feitas à algumas leituras que proporiam a psicanálise em termos de uma
ortopedia (de um ego fraco para um ego forte) e o final de análise a algo
próximo à identificação a um modelo de funcionamento libidinal (genital, por
exemplo). Como verifica-se nos textos em que Lacan trata da dissolução de
sua escola em Paris, tais críticas aplicam-se também à sua própria escola.
(Lacan, J. 1967)
Mas Foucault também erra, particularmente em sua expectativa de que
se poderia prescindir, numa relação, de um lugar para o Outro. Há, de fato,
dentro da perspectiva analítica da constituição subjetiva (da constituição do
inconsciente pode-se dizer), um imperativo de “submissão” a um Outro. O
sujeito é falado, introduzido por um terceiro a um campo que é o da
linguagem e está fadado a encontrar ali um lugar. É segundo os ditames
encontrados neste campo que todo sujeito pode situar-se e ser situado. Não há
anterioridade ou exterioridade ao discurso. No exercício da fala porém, o
poder da palavra é paradoxal pois ela institui não apenas este lugar fixo (um
lugar de alienação) mas também ela é, por essência, móvel, apta aos
deslocamentos e quebras de sentido.
Se por um lado o discurso recobre com sua malha, com sua rede, uma
existência, alçando-a de um estado de corpo a um “corpo de linguagem”, há,
neste recobrimento, algo que escapa. A linguagem também serve para
circunscrever um furo, os buracos desta mesma rede que permitem seus
deslizamentos. Assim, não se trata de lugares fixos, como critica Foucault,
mas de explorar a mobilidade na relação a um Outro cuja consistência é e
pode ser questionada. (Lacan, 1962-63) Por isso Foucault engana-se ao pensar
a natureza desta forma de relação e este “enclausuramento” no discurso. Na
fala está implicado sempre um dirigir-se a outrem, a fazer-se reconhecer.
Movimento por excelência do que em psicanálise se chama transferência.
Neste sentido, o silêncio ou mesmo a intervenção do analista entra não no
sentido afirmativo: “Esta é a sua verdade”, mas no sentido interrogativo:
“Nestas certezas, onde está a verdade?”. Isto só pode ser pensado tendo em
vista que a verdade só pode ser semi-dita.
Entender tais pressupostos permite deslocar-se da abordagem
“Charcotiana” ou “psicofarmacológica” da psicopatologia. É em torno do eixo
de um psiquiatra que encontre seu lugar na dúvida que a proposta de formação
deste curso pretende girar.
Referências Bibliográficas
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2002. Publicação para Circulação Interna do Centro de estudos freudianos do
Recife
LACAN, Jacques. (1967) “Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o
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BARRETO, Francisco Paes Reforma Psiquiátrica & Movimento
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JASPERS, Karl. Psicopatologia Geral Rio de Janeiro Atheneu 1987
ROUDINESCO,
Elisabeth Por
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de
Janeiro, Zahar, 1999
VIOLANTE, M. Lúcia (org) O (im)possível diálogo psicanálise
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BIRMAN, J. “A psicopatologia na pós-modernidade. As alquimias no
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FOUCAULT, Michel. “A Casa dos loucos” in Psicanálise &
Sociedade Katz, Chain (org) Belo Horizonte, Interlivros 1977
QUINET, Antonio. A lição de Charcot Rio de Janeiro, Zahar, 2005
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