Há crianças que morrem na infância sem ninguém perceber - o falso-self como
defesa ao excesso de falta de amor materno.
Prof.Dr. Maria Vitoria Campos Mamede Maia (UFRJ)
Inicio com versos de uma música: “Era uma casa muito engraçada, não tinha
teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão”.
Quando somos criados em uma casa onde não sentimos ter sustentação para agüentar
nossos humores, ela não tem chão; quando somos expostos a pequenos traumas com
freqüência, quando temos de adivinhar o que virá daquele que deveria cuidar de nós,
temos uma casa que não tem teto, onde o vendaval pode entrar e tudo destruir. Assim,
como nos diz Winnicott (1986), é melhor ficarmos quietos para quando tivermos um
ambiente com chão e teto podermos (re)viver esses momentos impensáveis e, talvez,
acreditar que tudo isso não passou de um pesadelo. Teria sido tudo engraçadamente
doído e doido que, pudéssemos contar, ninguém acreditaria. Logo é melhor ficarmos
quietos. É melhor esquecer, adormecer.
As crianças expostas a esse tipo de vivência, a esse tipo de lar (entendendo-se lar
como um lugar de suporte e sustentação no tempo e no espaço) possuíram algo em
excesso: a falta do amor materno. Igualmente, muitas delas não conseguiram se
constituir como seres em marcha, essa marcha ficou capenga ou paralisada.
Neste artigo trago para o cerne da discussão o fato de que há crianças que
morrem na infância sem ninguém perceber. Morrem porque aqueles que deveriam olhar,
cuidar dessas crianças, no sentido de holding, além de handling; aqueles que deveriam
ser a moldura para a impulsividade natural do viver de uma pessoa que começa a tentar
entender o mundo, não estavam lá de forma viva, mas sim invasiva, mais preocupados
em serem os provedores materiais; ou tinham mais coisas a fazer do que cuidar e
assegurar uma continuidade de vida que constituiria , no mínimo, a certeza de que o
mundo não é inseguro, ameaçador ou cataclístico para aquela criança: não criam em si o
senso de confiança básica.
A infância hoje parece estar em vias de extinção frente aos padrões já
conhecidos, sendo hoje exercida sob a égide de um adolescimento daqueles que
deveriam ser modelos identificatórios para seus filhos. O que esse tema nos aponta,
como marca da contemporaneidade, é a presença, de certa forma, de um o falso-self
como defesa ao excesso da falta do amor materno, vivido pelos clientes como a única
forma de se poder apresentar ao mundo e nele poder existir.
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Na clinica da contemporaneidade percebo que há mães que não conseguem
exercer sua função de apresentação do mundo ao bebê, nem de dizer não ao mundo em
primeiro lugar ou de dizer não ao bebê em um outro momento. (Winnicott, 1996).
Atualmente me deparo com clientes adultos-crianças, que me trazem marcas em
seu curso de vida onde muitas vezes me pergunto como conseguiram chegar onde
chegaram até quebrarem psiquicamente, até entrarem em colapso, tal qual Winnicott
(1996,1983) o define.
Quando quebram, entram em colapso, essas pessoas se perguntam: “Eu só quero
me encontrar de novo, mas será que algum dia eu já fiz isso?”. Esta frase de um cliente
traz à tona questões quanto à validade de poder continuar vivo ou de se querer continuar
vivo. Caso sem diagnóstico fechado, com reações paradoxais aos medicamentos dados
para o tratamento, esse paciente joga na cena analítica a questão de não saber quem ele
fora e nem entender quem ele agora era. Nada no centro, ou fragmentado no centro de si
mesmo. Sensação de vazio, de falta de sentido, mas a certeza de que não tinha com
quem contar e nunca teve. No caso desse cliente, havia uma criança de 3 anos
arrumando carrinhos em linha e não os tirando do lugar porque a brincadeira era essa,
arrumar sempre e sempre (“e eu ainda me divertia com isso, havia algum sentido em
fazer aquilo, melhor do que fazer nada ou nem ser notado, já meus pais saiam e eu
ficava lá, no quarto”. “Para não incomodar eu me tranco até hoje em meu quarto, eles
não agüentam minhas crises”).
Diante desses clientes adultos, ouço histórias de vida marcada pelo excesso de
falta do amor materno. São adultos que, desde cedo, mais cedo do que podemos muitas
vezes supor, tiveram de cuidar de outros humores e problemas que não eram os seus. No
olhar da mãe não encontraram refletido eles próprios e sim a própria mãe. Outro me
fala, em um momento de despedida, onde me abraça: “daria para continuar a me abraçar
mais um pouquinho? Minha mãe nunca me abraçou assim, ela prefere gatos.”
Chegam com sensação de inexistência, com vontade de contar para alguém que
não irão muito além do que já foram. Alguns já tentaram suicídio (“converso todos os
dias com a gaveta onde guardo meus remédios, já tentei mas errei na dose e não morri.
Quando acordei e vi minha mãe pensei , droga, não deu certo”); outros se não o fizeram,
pensaram em algum momento que isso seria uma solução (“Para que continuar assim?
Melhor dormir para sempre”). Outros chegam apáticos, não falam, ficam encolhidos
na poltrona em posição fetal. Depressão, olhar para fora e não se encontrar, ou se
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perguntar “por que agora eu não dou conta do que eu antes dava, mesmo que a duras
penas?”
Essas são as questões que me são trazidas, essas dores do excesso da falta de um
cuidado na mais tenra infância, idade na qual mentiram para essa criança dizendo-as que
o mundo lá fora era difícil, melhor seria ficar em sozinha, crescendo sozinha, num
quarto fechado, sem incomodar ninguém porque “crianças educadas não incomodam”.
Tiveram de brincar sozinhos e não sozinhos na presença de alguém que os assistia –
“minha mãe não brincava comigo, preferia ficar fazendo outra coisa”, “até os 12 anos
eu era arrumado como uma menina, ela queria uma menina, mas eu sou homem”.
Realmente, para essas pessoas, uma solução lhes resta para além do suicídio ou
da psicose plenamente estabelecida: a construção de um falso-self para além de um
falso-self protetor, mas sim um falso-self patológico, que anula qualquer possibilidade
de poder haver algum contato com o verdadeiro self, uma casca que aparentemente é
viva e é feliz (será?), se acomoda e responde à demanda do mundo externo. (Eu era feliz
da outra forma, eu respondia a tudo que me pediam, hoje em dia, tudo dói).
Apesar da especificidade dos casos exposto, as questões que eles suscitam
marcam a existência de ambiente caótico, do desamparo e da constituição do falso-self
como defesa a um colapso já vivido anteriormente, qual seja, o excesso de falta de
Amor. Igualmente nos remete à questão da submissão como tentativa de conter este
colapso.
Qual a nossa função analítica diante de patologias fronteiriças cada vez mais
freqüentes em nossa clínica? Na psicanálise, busco o olhar de Winnicott, busco ver
saúde dentro de um quadro patológico: distúrbio de personalidade psicotimica. Acredito
que haja algo para além de um código de DSM, que no fundo daquele poço sem fundo,
aparentemente sem saída, haveria alguma.
Winnicott postula uma gradação da saúde à patologia do falso-self. Na saúde, o
falso-self é a atitude social amável; ainda perto e bem próximo da saúde, o falso-self é
construído sobre as identificações, ainda perto da saúde, o falso-self tem como sua
preocupação principal a busca de condições em que será possível o verdadeiro self
assumir o seu lugar – se houver dúvidas a conseqüência clínica será o suicídio; perto do
nível extremo, o falso-self defende o verdadeiro self: este último é porém reconhecido
como potencial e tem possibilidade de viver em segredo; na patologia, é o falso-self que
se instala como real e aqui o verdadeiro self está oculto e poderá não ser achado. Neste
caso, há uma cisão da mente, há doença.
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Laplanche e Pontalis (1973) definem fronteiriço “para designar perturbações
psicopatológicas que jazem na fronteira entre a neurose e a psicose, particularmente as
esquizofrenias latentes que apresentam uma série aparentemente neurótica de sintomas”.
Tal definição inclui personalidades psicóticas, pervertidas e delinqüentes. No caso
relatado temos um funcionamento que aparentemente dava conta do ritmo da vida, mas
a duras penas, quando, de repente esse ritmo não mais responde às demandas e abre-se
uma tentativa de suicídio e uma agressividade em relação ao ambiente de trabalho e aos
colegas. “Seria melhor dormir e não mais acordar a continuar nesse inferno de eu não
saber mais quem eu sou, sou um viciado oficial”. “Todos não têm competência, se você
soubesse o que acontece não entraria onde eu trabalho”.
Os casos apresentados para ilustrarem e discutirem a questão do falso-self como
defesa patológica ao excesso da falta de amor materno deixa em nós questões:
estaríamos no campo dos inclassificáveis, que parecem demandar uma lógica da
complexidade (Morin, 1990) para serem pensados? Como lidar com o manejo clinico
dos mesmos? Como sermos momentaneamente teto, chão, e parede para essas pessoas
para que possam, mais tarde, irem adiante?
Referencias Bibliográficas
LAPLANCHE E PONTALIS (1973) Vocabulário de Psicanálise. São Paulo:Martins Fontes.
MAIA, M.V.C.M. (2007) Rios sem discurso: reflexões sobre a agressividade da infância na
contemporaneidade. São Paulo: Vetor.
_____ (2008) Entre neurose e psicose: algumas considerações sobre os casos fronteiriços na
clínica psicanalítica. In: OUTEIRAL, J. (org) Seminários Cariocas. Rio de Janeiro:
Revinter.
MORIN, E. ( 1990) Ciência com consciência. Portugal: Publicações Europa-América.
WINNICOTT, D.W. (1975) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago.
_____ (1983) O Ambiente e os Processos de Maturação: estudos sobre a teoria do
desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes médicas.
_____ (1983) Privação e delinqüência. Porto Alegre: Artes médicas.
_____ (1996) Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.
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