Meu pai
e o homem
das nuvens
Meu pai vivia enfezado com o
homem das nuvens. Ele não deixava chover e a horta morria de sede. Meu pai falou, não sei por que deixei a roça e vim
para a cidade! Achei que a sorte mudaria. Tenho de reconhecer que na roça chovia mais.
Era isso, tínhamos deixado o campo e vindo para a cidade. Um pouco porque na cidade tinha televisão. Outro pouco porque às vezes a gente não tinha o
que comer.
Não adiantou. Todo dia papai saía,
levando debaixo do braço uma pastinha
de estudante, onde se lia Odontologia e,
em letras menores, UFMG. Um rapaz que
deu pra ele. Estudava em Belo Horizonte
e ficou com dó. Papai então batia de por-
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ta em porta, pedindo, pelo amor de Deus, uma coisa pra fazer.
Ninguém dava. Ninguém tinha. Voltava abatido no fim da tarde.
A gente começou a passar fome novamente. Você sabe o
que é passar fome? Não, não estou me referindo a fome pequena, de antes do almoço e da janta. Eu digo fome. Fome que
come a pessoa por dentro. Que dá dentada nas tripas. Que deixa a gente tonta, mesmo deitada. Fome de beber muitos copos
de água para dar a sensação de estômago cheio.
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Pois bem, mamãe perguntou, por que não voltamos pra
roça? Papai ficou bravo, voltar, mas com que cara? Foi aí que
mamãe pediu uma semente aqui, uma muda de alface ali e começamos a horta.
Papai não deu atenção. Ele nunca dá atenção quando a
idéia não é dele.
Quando a situação piorou, ele também veio colher umas
cenouras, o danado. E também uns tomates e umas batatas
para a sopa. Coisa fina! A travessa vinha fumegando para a
mesa. No fim, ele reconheceu que estava errado e que a horta
era uma boa idéia. Passamos a trabalhar nós quatro: mamãe,
papai, eu e minha irmã, a Lucinha.
Nada é perfeito, disse mamãe, olhando os canteiros murchos. Papai olhou a pastinha, olhou de novo e exclamou, eu
disse que não ia dar certo. Estão vendo? Aí ele olhou pela janela e se decidiu, vou lá falar com o homem das nuvens. Minha
irmã abriu os olhos deste tamanho. Umas rodelas. E perguntou, como? Papai respondeu que tinha de pensar, depois diria.
Era tempo de papagaio nos campos gerais.
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Papai deu de perguntar sobre papagaios, como
eram feitos, qual o tipo de vareta usada e como evitar
que os papagaios engastalhassem nos fios elétricos.
O resto do tempo ele observava o jeito de correr dos
meninos que empinavam papagaio.
Um dia ele se trancou no quarto com cola e
papel de seda. E saiu, horas depois, fantasiado de
papagaio. Eu ri muito.
Lucinha também. Mamãe ficou preocupada.
Papai disse, hoje mesmo vou lá falar com o homem das
nuvens. E me chamou, Pitico, amarra esta linha de sapateiro
no cabresto, aqui nas minhas costas, e vem me soltar. Ao ver o
meu espanto, disse, vamos lá no campinho de futebol que eu te
explico o meu plano.
Era assim, papai ficaria de costas para mim, com os braços abertos e com a linha de sapateiro no cabresto que ia da
gola da camisa até o cós da calça. Então eu devia correr para
ver se ele levantava do chão.
Não vai dar, eu disse. Por quê? O senhor é muito pesado.
Papai falou, vê, eu fico de braços abertos. Colei papel de seda.
Esse papel, franjado, vai até os meus pés. Eu falei, sei não, pai,
sei não se vai dar certo.
Depois de muito tentar, eu disse, ah, vamos pra casa, pai.
Os vizinhos já estão rindo da gente! Papai falou, espera, filho,
vamos fazer uma última tentativa. Fizemos. Quando eu corri,
deu uma rajada de vento mais forte, e papai subiu. Então eu
dei linha e, logo em seguida, uns soquinhos pra ele recuperar a
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altura. Corri de novo, parei, dei outros soquinhos. Papai tava
que tava no céu.
Nossa vizinha, Dona Íris, vinha do armazém e não acreditou. Correu até a cerca. Dona Ceci, venha ver, Seu Emanuel
está louco, achando que é papagaio. Mamãe veio preocupada,
secando as mãos no avental.
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De repente, meu coração deu um pinote. Papai começou
a dar piruetas. Eu disse, Lucinha, corre, avisa pra linguaruda
da Dona Íris não falar que papai está louco, porque nem ela
terminou de falar, ele começou a dar piruetas, não sei se de
vergonha ou se para se exibir.
Pelejamos quase toda a tarde. Às vezes o vento diminuía
e papai começava a cair, lá pelos lados do Jiló, onde construíam
a nova estação da Mogiana. Felizmente, os meninos que soltavam papagaio ajudaram. Eles estavam embasbacados. Não sabiam que era possível soltar pai. Vadico falou que queria soltar
sua professora de aritmética, arrebentar a linha e correr.
E eu fiquei espantado com o espanto deles. Era também a
primeira vez que eu soltava pai, mas pensava que fosse a coisa
mais natural do mundo. Até perguntei, vocês não soltam o pai
de vocês? Os tios? Um irmãozinho chato? Eles disseram, nem
pensar. Na roça, eles perguntaram, vocês soltam? Pai, mãe, irmão, irmã e até avô, eu respondi, me fazendo de sabido.
Uma hora, quando tudo estava sob controle, me dei conta de que a linha estava no fim,
faltando ainda um bom pedaço para papai chegar onde morava o homem das nuvens. Fiquei
preocupado. O Almir, um dos meninos que me
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rodeavam, quis me emprestar mais um carretel de linha. Alex
falou que era perigoso. A outra linha é de sapateiro, disse, e o
pai dele é meio pesado. Acho que arrebenta. Almir falou, é mesmo. E como vamos fazer? Alex deu a idéia de mandar um telegrama, perguntando se papai estava bem e se ainda faltava
muito caminho.
Enquanto eu procurava um pedaço de papel e caneta, o
Almir perguntou, quem é o homem das nuvens? Que ignorância! E respondi, pelo nome dá pra saber, o homem das nuvens
é um homem que vive nas nuvens. E o que ele faz lá? E vou
saber? Não gosto de me meter na vida dos outros. Almir não
pareceu satisfeito com a resposta, mas eu não tinha outra. Meu
pai é que sabia quem era o homem das nuvens, mas ele agora
não estava ali para responder.
Escrevi, ocê tá bão aí, pai? Envolvi a linha com o bilhete,
torci as duas pontas do papel e remeti o telegrama, dando puxões leves, para ele deslizar na linha para cima. Minutos depois, a mensagem sumiu de vista. E como papai vai mandar a
resposta? Então eles se deram conta da burrada. Almir exclamou, ué, eu não tinha pensado nisso!
De repente, a linha começou a puxar, a puxar e afrouxou
de vez. Tinha arrebentado. Meu pai foi se afastando, se afastando, e minha mãe começou a chorar. Ela disse, não ia dar
certo, eu sabia. Tinha pego as manias de papai, decretando previsões de desastres depois de eles terem acontecido.
Almir falou, vamos recuperar a linha, pode ter uma resposta do telegrama. Assim fizemos. A linha tinha engastalhado
nos galhos de uma mangueira e foi difícil recuperá-la. Na pon-
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ta da linha, o telegrama de meu pai. Tô muito bem aqui, fio. Tá
difícil é chegar. Devia ter comprado mais um carretel. Vou arrebentar a linha e, na passagem, tento agarrar a beiradinha da nuvem. Se não conseguir, adeus. Cuide bem de sua mãe e da Lucinha.
Levei mamãe e Lucinha para casa. Conversamos bastante. Eu tinha esperança de que papai voltaria. Mais esperança
ainda quando, perto das onze, começou o maior toró. Choveu
até de madrugada.
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A horta ficou viçosa de novo. Eu falei, é uma prova de que
papai conseguiu falar com o homem das nuvens. Mamãe disse, pode ser. Mas não resolve a situação. Como não resolve a
situação? Mamãe respondeu, tem horta viçosa, mas não tem
seu pai. Ele é melhor do que alface.
Uma semana depois, como papai não voltasse, dei a idéia
de soltar a Lucinha. Mamãe se engasgou com a sopa. E por que
não vai você? Eu respondi, tudo ok, mãe, mas preciso de alguém pra me soltar. A senhora sabe soltar papagaio? Sabe enviar telegrama? E a Lucinha sabe?
Começamos a preparar a Lucinha. Ela ficou radiante.
Achou o máximo! Comunicou à vizinhança. Vestiu seu melhor
vestido. Meus amigos – agora já eram meus amigos – estavam
morrendo de inveja, porque nenhuma irmãzinha deles topava
ser solta no céu.
Era um sábado de vento, ela estava preparada. Fomos para
o campinho. Almir disse, os Móveis Testa invadiram ainda mais
nosso campo com toras de madeira. Não sei se tem espaço pra
correr. Ele tinha razão. Assim mesmo decidi tentar, porque
Lucinha era pequena, leve e havia vento.
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Dessa vez foi mais fácil, pois eu tinha pego prática de
empinar papagaio feito de gente. O vento soprou na hora certa.
Não choveu. A única dificuldade foi fazer Lucinha obedecer.
Ela era muito pequena e não tinha responsabilidade. Achava
que estávamos brincando e não parava de dar piruetas.
Mais tarde, ela se cansou. Ficou tonta. Ou as duas coisas ao
mesmo tempo. Foi subindo, subindo, até desaparecer de vista.
Escureceu. E perto das sete papai e Lucinha estavam de volta.
Papai contou que tinha tirado a linha de sapateiro reforçada das costas de Lucinha, colocado na dele, feito os reparos
necessários no papel de seda e se soltado das nuvens, com ela
no colo. Eu disse, senti quando o senhor pulou, pai. A linha
ficou mais pesada.
Eu quis saber se ele tinha falado com o homem das nuvens. Respondeu com uma pergunta, e não ia falar? Se não falasse, pra que essa trabalheira toda?
Ele tinha um entusiasmo nunca visto. Papai, perguntei,
por que deixou de chover na nossa horta? Papai contou que o
filho do homem das nuvens, encarregado da chuva, tinha saído com os amigos e se esqueceu de suas obrigações.
No dia seguinte, papai convidou toda a vizinhança e deu
uma festa. Tinha de tudo, principalmente algodão-doce. Previdente, ele e Lucinha tinham trazido uma nuvem inteira. Assim, nossa situação melhorou bastante. Tínhamos a horta e,
no depósito, a nuvem. Ficamos muito conhecidos em
Uberlândia, Monte Alegre de Minas e Araguari, vendendo hortaliças e algodão-doce.
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