Créditos
Ligeiramente Maliciosos
Título original
SLIGHTLY WICKED
Copyright © 2003 por Mary Balogh
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Digitalização
CAPÍTULO 1
Momentos antes do acidente da diligência1, Judith Law estava imersa em uma fantasia que fez desaparecer de
um modo muito eficaz a desagradável natureza da realidade que a rodeava.
Viajava em uma diligência pela primeira vez em seus vinte e dois anos de vida. Depois dos primeiros dois ou
três quilômetros já se desvanecia qualquer ilusão que jamais tivesse albergado a respeito do romântico e
aventureiro que podia chegar a ser esse meio de transporte. Estava apertada entre uma mulher tão volumosa que
precisava ao menos um assento e meio a mais e um homem magro e inquieto, todo ossos e cotovelos, que não
parava de remexer-se para encontrar uma postura mais cômoda nem de golpeá-la no processo, em ocasiões nos
lugares mais embaraçosos. Em frente tinha um homem corpulento que roncava sem cessar, o que supunha um
acréscimo considerável a já ruidosa viagem. A mulher que se sentava a seu lado não deixava de contar a triste
história de sua vida com voz queixosa a qualquer um que fosse bastante estúpido ou tivesse a desgraça de cruzar
o olhar com ela. Do silencioso homem que se sentava do outro lado da mulher chegavam o cheiro da falta de
asseio mesclado com um cheiro estragado e cebola. A carruagem agitava, oscilava e se sacudia em cada pedra e
cada buraco que encontrava no caminho, ou isso parecia a Judith.
Não obstante, apesar de todos os desconfortos da viagem, não estava impaciente por chegar a seu destino.
Acabava de deixar para trás toda uma vida em Beaconsfield, para não mencionar sua família, e não esperava
retornar em muito tempo... se é que retornaria. Dirigia-se a casa de sua tia Effingham. A vida que sempre havia
conhecido chegou ao fim. Embora não ficasse explícito na carta que sua tia escreveu a seu pai, Judith era
perfeitamente consciente de que não ia ser uma hóspede distinta e aprovada em Harewood Grange, e sim uma
parenta pobre da qual se esperava que ganhasse sua manutenção da forma em que seus tios, seus primos e sua
avó considerassem apropriada. Em poucas palavras: só a esperava monotonia e trabalho árduo... Nada de
pretendente, matrimônio, casa ou família própria. Estava a ponto de transformar-se em uma dessas mulheres
retraídas e abatidas tão abundantes na sociedade, que dependiam de seus parentes como criadas sem salário.
O convite de tia Effingham fora extraordinariamente amável, segundo palavras de seu pai... embora sua tia,
irmã de seu pai, que fez um matrimônio extremamente vantajoso com o endinheirado e viúvo sir George
Effingham quando já deixou bem longe a flor de sua juventude, nunca tinha se destacado por sua amabilidade.
E tudo por culpa de Branwell, esse esbanjador que merecia que o fuzilassem e depois o enforcassem,
afogassem-no e lhe esquartejassem por suas desconsideradas extravagâncias. Judith não tinha acalentado um só
pensamento amável ao seu irmão fazia semanas. Tudo aquilo tinha acontecido porque era a segunda filha, a que
não tinha nenhum encargo que fizesse indispensável sua presença em casa. Não era a mais velha; Cassandra era
um ano mais velha que ela. Nem muito menos era a beleza da família; sua irmã Pamela ocupava esse lugar. E não
1
Diligência - Grande carruagem de transporte coletivo (antes da era das estradas de ferro).
era a caçula; Hilary, de dezessete anos, tinha essa duvidosa honra. Judith era a que envergonhava a família por sua
falta de delicadeza, a feia, a alegre e a sonhadora.
Foi Judith a quem todos tinham olhado depois que seu pai se sentou no salão e leu alto, a carta de tia
Effingham. Seu pai passava por graves apertos econômicos, devia ter escrito a sua irmã para pedir o tipo de ajuda
que ela acabava de lhe brindar. Todas sabiam o que isso significava para a escolhida que tivesse que ir a
Harewood. Judith tinha se oferecido como voluntária. Todos tinham chorado ao escutá-la e suas irmãs também
se ofereceram como voluntárias... mas ela fora a primeira a falar.
Judith tinha passado sua última noite na reitoria inventando deliciosos métodos de tortura para Branwell.
O céu que se espiava pelas janelas da carruagem era de cor cinza e estava sulcado por umas nuvens baixas e
carregadas de chuva; a paisagem tinha um aspecto lúgubre. O hospedeiro dono da pousada na qual pararam fazia
uma hora para trocar os cavalos os tinha advertido que mais ao norte tinham caído chuvas torrenciais e que o
mais provável era que topassem com elas, assim como com os caminhos cheios de barro; mas o cocheiro se pôs a
rir diante da sugestão de permanecer na estalagem até que fosse seguro prosseguir viagem. Entretanto não havia
dúvida de que o caminho estava mais lamacento a cada minuto que passava, mesmo que a chuva causadora do
lodaçal tivesse cessado no momento.
Judith tinha conseguido afastar tudo de sua mente: o cansativo ressentimento que sentia, a terrível nostalgia
de seu lar, o espantoso clima, as incômodas condições da viagem e a desagradável perspectiva que tinha por
diante... Em troca sonhava acordada, inventando uma imaginária aventura com um herói imaginário em que ela
era a insólita heroína. Uma distração em sua mente e seu ânimo deu boas-vindas até um momento antes do
acidente.
Estava sonhando com salteadores de estradas. Ou, para ser mais exata, com um salteador de estrada em
particular. Por suposição, ele não se parecia com nenhum assaltante real que apreciasse, um desses ladrões
depravados, sujos, desonestos e toscos que cortavam o pescoço dos desafortunados viajantes. De jeito nenhum.
O salteador era moreno, charmoso, elegante e risonho; com dentes brancos e perfeitos e uns olhos de um brilho
alegre atrás dos buracos da estreita máscara negra. Galopou através das verdes pradarias iluminadas pelo sol até o
caminho, refreando sem esforço o seu poderoso e magnífico garanhão branco com uma mão enquanto com a
outra apontava uma pistola descarregada, faltaria mais- para o coração do cocheiro. Ria e brincava alegremente
com os passageiros enquanto os despojava de seus objetos de valor, embora depois os devolvesse a aquelas
pessoas que não podiam se permitir a perda. Não, não devolvia todos os objetos a todos os passageiros, já que
não se tratava de um salteador de verdade, mas sim de um cavalheiro que pretendia vingar-se de um vilão ao qual
esperava encontrar viajando por esse mesmo caminho.
Era um nobre herói disfarçado de bandido, com uns nervos de aço, um espírito livre, um coração de ouro e
uma aparência que provocava palpitações no coração das passageiras; palpitações que nada tinham a ver com o
medo.
E em um dado momento desviava o olhar para Judith... todo o universo se detinha e as estrelas começavam
a cantar em suas órbitas. Até que, é claro, ele se punha a rir de boa vontade e anunciava que a despojaria do
pingente que pendia sobre seu busto, apesar de ser evidente a falta de valor. Não era mais que... algo que sua mãe
a deu em seu leito de morte, algo que Judith jurara que jamais tiraria enquanto vivesse. De modo que ela se
colocava com valentia diante do salteador, jogava para trás a cabeça e cravava o olhar nesses olhos risonhos sem
intimidar-se. Não lhe daria nada, dizia-lhe com uma voz alta e clara que não tremia nem um ápice, ainda que isso
lhe causasse a morte.
Ele se punha a rir de novo enquanto seu cavalo se erguia sobre as patas traseiras e se encrespava um pouco
antes que o controlasse com facilidade. Nesse caso, se não podia levar o colar sem ela, declarou, o levaria com
ela. Aproximou-se com lentidão para Judith, tão grande, ameaçador e esplêndido, e quando estava bastante perto,
inclinou-se na sela, agarrou-a pela cintura com suas poderosas mãos -Judith passou por cima do problema da
pistola, que momentos antes empunhava em uma mão- e a içou sem esforço algum até a sela de montar.
O estômago deu voltas quando perdeu contato com o chão e de repente, algo a devolveu à realidade. A
carruagem perdeu tração no caminho enlameado e deu um brusco giro antes de ziguezaguear e sacudir-se sem
controle. Houve tempo suficiente muito mais que suficiente- para sentir um terror espantoso antes que
derrapasse para um lado, colidisse com um montículo de erva, girasse bruscamente para o caminho, cambaleasse
com maior intensidade e de uma forma mais alarmante ainda e, afinal, caísse sobre uma vala de pouca
profundidade onde pôr fim ficou imóvel, apoiado pela metade sobre o teto e uma lateral.
Quando Judith recuperou o sentido todos seus companheiros de viagem pareciam estar gritando ou
gemendo. Mas ela não formava parte desse grupo; estava mordendo os lábios para evitá-lo. Os seis passageiros
do interior, conforme pôde descobrir, estavam amontoados sobre uma lateral da carruagem. Seus xingamentos,
gritos e gemidos testemunhavam que a maioria deles, se não todos, estavam vivos. De fora chegavam gritos e os
relinchos dos cavalos assustados. Duas vozes, que se escutavam por cima do resto, expressavam-se mediante a
mais vulgar e surpreendente das linguagens.
Estava viva, pensou Judith com certa surpresa. Também estava-comprovou a conjetura com cautela- ilesa,
embora se sentisse bastante maltratada. De alguma forma, acabou em cima de um monte de corpos. Tentou
mover-se, mas nesse preciso instante a porta que havia sobre ela se abriu e alguém, o próprio cocheiro a olhou de
cima.
- Me dê sua mão, senhorita - ordenou - A tiraremos rapidamente. Pelo amor de Deus, deixe de dar esses
gritos, mulher! -disse à senhora faladora com uma lamento- falta de tato, tendo em conta que ele fora o culpado
de tombar a carruagem.
Demorou algo mais de um Pai Nosso, mas ao final todos estavam de pé sobre a erva que cobria a beira da
vala ou sentados sobre as bolsas caídas, observando com desespero a carruagem, que obviamente não ia reatar a
viagem em um futuro próximo. De fato, era evidente inclusive para os olhos inexperientes de Judith que o
veículo sofreu danos consideráveis. Não havia sinal de nenhum assentamento humano a leste no horizonte. As
nuvens estavam baixas e ameaçavam descarregar chuva a qualquer momento. O ar era úmido. Era difícil acreditar
que fosse verão.
Por algum estranho milagre, inclusive os passageiros que viajavam no exterior da carruagem se livraram de
feridas graves, embora dois deles estivessem sujos de barro e essa circunstância não parecia fazê-los muito felizes.
Para falar a verdade, os ânimos estavam muito exaltados. As vozes se elevavam e punhos se brandiam. Algumas
dessas vozes eram furiosas e exigiam saber por que um cocheiro perito os levara direto para o perigo quando na
última parada o aconselharam que esperasse um momento. Outros gritavam com a intenção de que suas
sugestões a respeito do que teria que fazer se escutassem por cima da gritaria. E uns terceiros se queixavam dos
cortes, machucados e outras feridas pelo aspecto. À mulher queixosa sangrava o pulso.
Judith não emitiu queixa alguma. Tinha escolhido continuar a viagem mesmo quando escutara a advertência
e poderia ter esperado uma carruagem posterior. Tampouco tinha sugestão alguma que fazer. E não sofria
nenhuma ferida. Somente se sentia desventurada, por isso olhou a seu redor em busca de algo que separasse de
sua mente o fato de que estavam parados no meio do nada com uma ameaça de chuva iminente. Começou a
ocupar-se daqueles que precisavam, embora a maioria das feridas fosse mais imaginária que reais. Era algo que
podia realizar com segurança e certa destreza, posto que frequentemente tivesse acompanhado sua mãe quando
visitava os doentes. Enfaixou cortes e contusões utilizando qualquer material que tivesse à mão. Escutou uma e
outra vez todas e cada uma das narrações individuais sobre o acidente e murmurou palavras reconfortantes
enquanto buscava um assento aos que se sentiam enjoados e abanava os desfalecidos. Em poucos minutos tirou
o chapéu, que não deixava de incomodá-la, e o jogara no interior da carruagem caída. Estava-lhe soltando o
cabelo, mas não se deteve para tentar recompor seu penteado. A maior parte das pessoas, descobriu, tinha um
horrível comportamento durante as crises, embora aquela não fosse nem de perto tão desastrosa como poderia
ter sido.
Não obstante, estava tão desanimada como os outros. Isto, pensou, era a gota que enchia o copo. Era
impossível que sua vida pudesse ser mais deprimente. Havia tocado fundo. Em certo sentido inclusive era um
pensamento reconfortante. Era pouco, provável que as coisas pudessem ficar pior. Somente melhor... ou fazia
um eterno prosseguimento do mesmo.
-
Como é que está tão alegre, querida? - perguntou a mulher que ocupou espaço e meio.
Judith sorriu.
-
Estou viva - respondeu, - e você também. Há algo pelo qual não devesse estar alegre?
-
Me ocorrem um par de coisas, na verdade - comentou a mulher.
Mas nesse momento as distraiu o grito de alguns passageiros viajavam nos assentos exteriores e que
assinalava longe, em direção ao caminho pelo qual chegaram minutos antes. Aproximava-se um cavaleiro, só um
homem a cavalo. Alguns dos passageiros começaram a chamá-lo, apesar de que o tipo estava ainda muito longe
para escutá-los. Estavam tão entusiasmados como se um salvador sobre-humano se preparasse para resgatá-los.
Judith não conseguia imaginar o que teriam pensado que podia fazer um só homem para melhorar a penosa
situação em que se encontravam. Sem dúvida, eles tampouco saberiam dizer no caso de que perguntasse.
Dirigiu sua atenção de volta a um dos desafortunados cavalheiros encharcados, que entre caretas de dor
estava limpando com um lenço cheio de barro o sangue de um arranhão no rosto. Possivelmente, pensou ela
bem a tempo de reprimir uma sonora gargalhada, o desconhecido que se aproximava fosse o salteador moreno,
alto, cavalheiresco e risonho de suas fantasias. Ou possivelmente fosse um bandido de verdade que vinha
roubá-los, indefesos como estavam, todos seus pertences de valor. Possivelmente as coisas sim pudessem piorar
depois de tudo. Embora se tratasse de uma viagem longa, lorde Rannulf Bedwyn ia no lombo de seu cavalo;
evitava viajar de carruagem sempre que era possível. O veículo que transportava tanto sua bagagem como seu
valete, rodava por algum lugar do caminho atrás dele. Seu criado, uma alma tímida e precavida, com bom senso
teria decidido deter-se na estalagem que deixou atrás fazia coisa de uma hora, depois de ser advertido da ameaça
de chuva por um hospedeiro decidido a fazer negócio.
Devia ter caído um bom toró nessa parte do condado não fazia muito tempo. Inclusive nesse momento
parecia que as nuvens estivessem contendo o fôlego antes de liberar outra descarga de água. O caminho estava
cada vez mais molhado e enlameado, e nesse instante parecia um resplandecente lodaçal de lama revolta. Poderia
ter retornado, supôs. Mas ia contra sua natureza abaixar as orelhas e fugir de um desafio, fosse humano ou de
qualquer outra classe. Entretanto, teria que deter-se na seguinte estalagem que encontrasse. Talvez não lhe
importassem os perigos que pudesse correr sua pessoa, mas devia mostrar consideração com seu cavalo.
Não tinha nenhuma pressa por chegar a Grandmaison Park. Sua avó o convocou, como fazia em algumas
ocasiões, e ele a estava agradando, tal como estava acostumado a fazer. Amava-a muito, independente do fato de
que alguns anos atrás o tivesse nomeado herdeiro de todas as propriedades e a fortuna que não estavam ligadas
ao título que ela possuía, a despeito de ter dois irmãos mais velhos e um mais novo... sem contar suas duas irmãs,
é óbvio. O motivo de sua falta de pressa era que, uma vez mais, sua avó anunciou que descobriu uma noiva
adequada para ele. Tirar da anciã a impressão de que podia organizar sua vida sempre requeria uma combinação
de tato, humor e firmeza. Não tinha intenção alguma de casar logo. Só tinha vinte e oito anos. E quando se
casasse - se é que o faria-, Por Deus que seria ele quem escolheria sua noiva, ainda que não fosse o primeiro da
família a cair nas redes do matrimônio. Aidan, um de seus irmãos mais velho, sucumbira e se casou em segredo
poucas semanas atrás a fim de cumprir uma dívida de honra com o irmão da dama, um oficial com o qual serviu
na Península. Por algum estranho milagre, o apressado matrimônio de conveniência parecia haver-se convertido
em uma união por amor. Rannulf conhecera Eve, agora lady Aidan, fazia apenas dois dias. De fato, empreendeu
a viagem de sua casa nessa mesma manhã. Aidan vendera seu cargo no exército e estava se adaptando à vida de
um cavalheiro rural com sua esposa e seus dois filhos adotivos, o estúpido apaixonado. Mas a Rannulf caíra bem
sua cunhada.
Para falar a verdade, era um alívio saber que se tratava de um matrimônio por amor. Os Bedwyn tinham a
reputação de ser desmedidos, arrogantes e inclusive frios. Entretanto, também havia uma tradição familiar que os
obrigava a permanecerem escrupulosamente fiéis as suas esposas uma vez casados.
Rannulf não podia imaginar-se amando uma só mulher durante o resto de sua vida. A ideia de permanecer
fiel durante toda a vida era deprimente ao extremo. Só esperava que sua avó não tivesse comentado nada sobre o
matrimônio em amadurecimento à dama em questão. O fez em uma ocasião e havia lhe custado muito convencer
à mulher -sem que parecesse que o fazia, é óbvio- de que na realidade ela não queria casar-se com ele.
Perdeu o fio de seus pensamentos de repente quando apareceu diante dele uma mancha negra mais escura
que as cercas e o barro imperantes. A princípio acreditou que se tratava de um edifício, mas à medida que se
aproximava se deu conta de que era um grupo de pessoas e uma enorme diligência. Um veículo tombado,
compreendeu imediatamente, com um eixo quebrado. Os cavalos se encontravam no caminho, igual a algumas
pessoas. A maioria, não obstante, amontoava-se sobre a grama em frente à carruagem caída, a fim de manter os
pés afastados do barro. Muitos gritavam e faziam gestos com as mãos, como se esperassem que desmontasse,
apoiasse o ombro contra o veículo desconjuntado, voltasse a colocá-lo no caminho e reparasse o eixo por arte de
magia antes de colocá-los todos no interior uma vez mais e pô-los a caminho para o proverbial entardecer.
Teria sido uma grosseria, certamente, passar ao largo pelo mero feito de não poder lhes oferecer nenhum
tipo de ajuda prática. Puxou as rédeas ao chegar junto ao grupo e esboçou um sorriso quando todos tentaram
falar ao mesmo tempo. Levantou uma mão para detê-los e perguntou se havia algum ferido com gravidade. Ao
que parecia não havia.
-
Nesse caso, o melhor que posso fazer por vocês - disse quando a gritaria sossegou de novo - é cavalgar
tão rápido quanto possa e lhes enviar ajuda da aldeia ou povoado que se encontre mais perto.
-
Há um povoado com mercado uns cinco quilômetros mais adiante, senhor - disse o cocheiro enquanto
assinalava o caminho com um dedo.
Um cocheiro particularmente inepto, julgou Rannulf, já que perdeu por completo o controle de sua
carruagem em um caminho lamacento e nem sequer teve a ocorrência de mandar a um lacaio com um dos
cavalos em busca de assistência. Claro que o homem mostrava sinais inequívocos de haver-se fortalecido contra a
umidade e o frio com o conteúdo da garrafa que se via através de um buraco no bolso de seu casaco.
Um dos passageiros, uma mulher, não se unira as boas-vindas que lhe devotaram os outros. Inclinava-se
sobre um cavalheiro coberto de barro que estava sentado em uma caixa de madeira, e pressionava algum tipo de
atadura improvisada sobre seu rosto. O homem tirou a atadura enquanto Rannulf os contemplava e a mulher se
endireitou e se virou para olhá-lo.
Era jovem e alta. Ia vestida com uma capa verde um pouco molhada e ligeiramente enlameada na prega. A
capa se abriu à frente para deixar descoberto um ligeiro vestido de musselina e um busto que imediatamente
elevou em dois graus a temperatura corporal de Rannulf. Levava a cabeça descoberta. O cabelo desordenado lhe
caía parcialmente sobre os ombros. Era de um glorioso e brilhante tom dourado avermelhado que ele jamais
contemplou antes em um ser humano. O rosto que havia mais abaixo era oval, de faces rosadas e olhos
brilhantes -os olhos eram verdes, acreditava- e para sua surpresa, adoráveis. Devolveu-lhe o olhar com aparente
desdém. O que esperava essa moça que fizesse? Saltar ao barro e fazer-se de herói?
Dirigiu-lhe um sorriso lânguido e começou a falar sem afastar muito o olhar dela.
-
Suponho – disse - que poderia levar uma pessoa comigo. Uma dama? Senhora, lhe parece bem?
As demais passageiras não demoraram a dizer o que pensavam, tanto de sua oferta como de sua escolha, mas
Rannulf não fez conta. A beleza ruiva voltou a olhá-lo e ele chegou a pensar que declinaria a proposta a julgar
pelo desprezo que refletia seu rosto. Não tinha dúvida de qual seria sua resposta quando um de seus
companheiros de viagem, um indivíduo magro como um junco e com um nariz bicudo que bem poderia tratar-se
de um clérigo, deu sua opinião sem que ninguém a pedisse.
-
Rameira! - exclamou o homem.
Ouça - disse outra das passageiras, uma mulher alta e gorda com as faces vermelhas como tomates e um
nariz mais tinto ainda, - cuidado a quem chama rameira, meu senhor. Não acha que não me dei conta de como a
olhou durante toda a viagem... porque sim me dei conta, velho lascivo... remexendo-se a todo o momento em seu
assento para poder manuseá-la sem que o notasse. E isso porque levava um livro de orações na mão e to…
Deveria ter vergonha! Vá com ele, querida. Eu o faria se me pedisse isso, embora não o fará porque sabe que
partiria o lombo do cavalo dele.
A ruiva sorriu a Rannulf nesse instante, um sorriso que cresceu com lentidão juntamente com o rubor de seu
rosto. - Será um prazer, senhor - disse ela com um tom de voz quente e rouco que percorreu as costas de Rannulf
como uma luva de veludo.
Cavalgou até a beira do caminho, para ela.
Não se parecia em nada ao salteador de estradas de suas fantasias. Não era sutil, nem moreno, nem elegante
nem usava máscara; e embora sorrisse, sua expressão era mais irônica que despreocupada.
Esse homem era maciço. Não gordo, e sim... maciço. O cabelo que se apreciava sob seu chapéu era loiro.
Parecia ondulado e sem dúvida o usava mais comprido do que ditava a moda. Seu rosto era de tez morena, com
sobrancelhas escuras e um nariz grande. Os olhos eram azuis. Não era charmoso absolutamente. Mas tinha algo.
Algo irresistível. Algo inegavelmente atraente... embora essa palavra não fosse bastante forte.
Algo ligeiramente malicioso.
Esses foram os primeiros pensamentos que atravessaram a mente de Judith quando o olhou. E estava claro
que não era um salteador, e sim um simples viajante que se ofereceu a ir em busca de ajuda e a levar alguém
consigo.
Ela.
Seu segundo pensamento foi de espanto, indignação e afronta. Como se atrevia? Por quem a tomou para
esperar que ela se mostrasse de acordo em subir em um cavalo com um desconhecido e partir sozinha com ele?
Era a filha do reverendo Jeremiah Law, cujas expectativas sobre o rígido decoro e a moralidade de seus fiéis só se
viam superadas pelo que esperava de suas próprias filhas... sobretudo dela.
Seu terceiro pensamento foi que a pouca distância -o cocheiro havia dito cinco quilômetros- havia um
povoado e a comodidade de uma estalagem, que talvez pudessem alcançar antes que caísse um toró. Se aceitasse
a oferta do desconhecido, claro.
E então recordou uma vez mais sua fantasia; a absurda e encantadora fantasia a respeito de um audaz
salteador que estivera a ponto de levá-la para uma estranha e fabulosa aventura, liberando-a assim de todas as
obrigações para com sua família e seu passado, liberando-a de tia Effingham e da deprimente existência de
trabalho duro que a esperava em Harewood. Um sonho que se fez em pedacinhos quando a carruagem tombou.
Esse momento lhe oferecia a oportunidade de experimentar uma aventura de verdade, por pequena que
fosse. Durante cinco quilômetros e possivelmente um pouco mais de uma hora poderia cavalgar diante desse
atraente desconhecido. Poderia fazer algo tão escandaloso e impróprio como abandonar a segurança e o decoro
que oferecia a multidão para estar a sós com um cavalheiro. Se seu pai chegasse a saber, daria uma Bíblia e a
encerraria a pão e água em seu quarto durante uma semana; e tia Effingham bem poderia decidir que nem sequer
um mês seria suficiente. Mas quem ia saber? Como poderia sair prejudicada?
Foi nesse instante quando o homem esquelético a tinha chamado de rameira.
Por estranho que pudesse parecer, não se sentiu indignada. A acusação lhe pareceu tão absurda que esteve a
ponto de tornar-se a rir. Embora fosse como um desafio para ela. E a mulher gorda a estava animando. Poderia
chegar a ser tão patética para afastar uma oportunidade das que só se apresentam uma vez na vida? Esboçou um
sorriso.
-
Será um prazer, senhor - disse e descobriu com certa surpresa que não utilizou sua própria voz, e sim a da
mulher de suas fantasias, a que se atrevia a fazer coisas como aquela.
Ele aproximou o cavalo até ela sem deixar de olhá-la nos olhos e se inclinou na sela.
-
Nesse caso me dê à mão e apoie o pé em minha bota - foram suas instruções.
Judith o fez e a partir desse momento foi muito tarde para mudar de ideia. Com uma facilidade e uma força
que em lugar de assustá-la a deixou sem fôlego, o homem a levantou, a fez girar e, sem que se desse conta,
abandonou o chão e acabou sentada de lado diante dele, envolvida entre seus braços que ofereciam uma
enganosa sensação de segurança. Havia muito ruído a seu redor. Algumas pessoas se puseram a rir e a animavam,
enquanto que outras protestavam por ficar para trás e suplicavam ao desconhecido que se apressasse em enviar a
ajuda necessária antes que começasse a chover.
-
Alguma dessas bolsas de viagem é sua, senhora? - perguntou o desconhecido.
-
Essa aí - respondeu ela enquanto assinalava com o dedo -
Ah, e a bolsa de mão que está ao lado. - Ainda que só contivesse a pequena quantidade de dinheiro da qual
seu pai pudera desprender-se para que tomasse uma xícara de chá e possivelmente um pouco de pão e manteiga
durante a longa viajem, horrorizava lhe ter estado a ponto de esqueça-la.
-
Você, jogue-me isso - disse o cavaleiro ao cocheiro - A bolsa de viagem da dama pode esperar, a
recolherão com as demais mais tarde.
Assim que Judith agarrou a bolsa de mão, o homem aproximou o chicote à aba de seu chapéu e incitou seu
cavalo para que se pusesse em marcha. Ela se pôs a rir. A patética e pequena grande aventura de sua vida
começara e desejou que esses cinco quilômetros durassem eternamente.
Durante uns momentos a preocupou o fato de encontrar-se tão longe do chão no lombo de um cavalo nunca fora muito boa amazona-, para não mencionar que o chão se transformou em um oceano de barro.
Entretanto, não levou muito tempo a dar-se conta de quão íntima era essa postura. Sentia a calidez do corpo do
desconhecido em todo o lado esquerdo. Suas pernas - que pareciam muito musculosas cobertas com as calças de
montar ajustados e as flexíveis botas de cano longo - rodeavam-na por um e outro lado. Judith tinha os joelhos
apertados contra uma dessas pernas e notava que a outra lhe roçava as nádegas. Percebia o aroma do cavalo, do
couro e da colônia masculina. Os perigos da viagem empalideceram ao lado dessas outras sensações, totalmente
desconhecidas.
Estremeceu.
-
Está bastante fresco para um dia de verão - afirmou o cavaleiro, que a rodeou com um braço e a inclinou
para o lado, de modo que seu ombro e seu braço estivessem apertados com firmeza contra o peito masculino; a
Judith não restou nada mais que apoiar a cabeça sobre seu ombro.
Era mais que escandaloso... e sem dúvida emocionante.
Também a fez recordar de repente que não pusera o chapéu e não era só isso: com uma rápida olhada de
esguelha descobriu que ao menos uma parte de seu cabelo estava solta e caía em desordem sobre seus ombros.
Que aparência teria? O que pensaria dela?
-
Ralf Bed... Bedard ao seu serviço, senhora - disse.
Como poderia ela apresentar-se como Judith Law? Não estava se comportando absolutamente tal e como a
ensinaram.
Talvez devesse fingir ser alguém muito diferente... uma pessoa inventada.
-
Claire Campbell - disse ela, juntando os dois primeiros nomes que lhe vieram à cabeça - Como está você,
senhor Bedard?
-
No momento, extremamente bem - afirmou ele com voz rouca e ambos puseram-se a rir.
Estava flertando com ela, pensou. Que escandaloso! Seu pai teria desalentado semelhante impertinência com
algumas palavras mordazes... e depois a teria castigado por fanfarronar diante dele. E desta vez teria tido razão.
Mas não estava disposta a arruinar sua preciosa aventura pensando em seu pai.
-
Aonde se dirige? - perguntou o senhor Bedard. - E por favor, não me diga que há um marido esperando
em alguma parte onde você desça da carruagem. Ou um noivo.
-
Nenhuma das duas coisas - respondeu ela, que se pôs a rir sem outro motivo que não fosse o alegre que
se sentia. Ia desfrutar de sua pequena aventura até o último momento. Não pensava desperdiçar tempo, energia
nem oportunidades em sentir-se escandalizada. - Estou solteira e sem compromisso... como desejo estar mentirosa. Senhor, que mentirosa.
-
Você acaba de me devolver à alma - assegurou ele - nesse caso, quem a espera ao final da viagem? Sua
família?
Judith deu de ombros para si mesma. Não queria pensar no final da viagem. Entretanto, o bom das aventuras
consistia em que não eram reais nem duravam muito. Durante o que restava desse estranho e breve interlúdio
poderia dizer e fazer - e ser - o que desse vontade. Era como viver um sonho e estar acordada ao mesmo tempo.
-
Não tenho família - disse - Ao menos nenhuma diante da qual deva responder. Sou atriz. Dirijo-me a
York para representar uma nova obra. Um papel principal.
Pobre papai, pensou. Lhe daria uma apoplexia. Não obstante, esse sempre fora seu sonho mais persistente e
desatinado.
-
Uma atriz? - inquiriu ele junto a seu ouvido com voz grave e rouca - Devia imaginar assim que pus os
olhos sobre você. Uma beleza tão vibrante brilhará sobre qualquer cenário. Por que não a vi alguma vez em
Londres? Será porque raras vezes vou ao teatro? Está claro que terei que me emendar.
-
Londres... - disse ela com despreocupado desdém - eu gosto de atuar, senhor Bedard, não que me
devorem com os olhos. Eu gosto de escolher as obras nas que vou participar. Prefiro os teatros de província.
Neles sou muito conhecida, acho.
Deu-se conta de que ainda falava com essa voz que usou junto à estrada. E por incrível que parecesse, ele
acreditou em sua história. Era evidente por suas palavras e pela expressão que seus olhos refletiam: alegre,
apreciativa e eloquente. Branwell, quando começou as aulas na universidade e começou a conhecer o mundo,
havia dito uma vez a suas irmãs - na ausência de seu pai - que as atrizes de Londres quase sempre incrementavam
seus honorários convertendo-se nas amantes de algum tipo rico e com título. Judith sabia que se movia em águas
perigosas. Mas seria só durante cinco quilômetros; só durante uma hora.
-
Eu adoraria vê-la sobre o palco - disse o senhor Bedard, que a estreitou com mais força e lhe ergueu o
queixo com o dorso enluvado de seus dedos. Beijou-a. Na boca.
Não durou muito. Antes de tudo se encontrava a cavalo em um caminho perigoso com uma acompanhante
que entorpecia seus movimentos e os do animal. Não podia permitir a distração que suporia um abraço mais
longo.
Entretanto, durou o suficiente. O bastante para uma mulher a quem nunca beijaram. Ele tinha os lábios
separados e Judith pôde perceber a umidade de sua boca. Uns segundos, ou possivelmente não mais de uma
fração de segundo, antes que seu cérebro registrasse a atrocidade que estava cometendo, todo seu corpo reagiu.
Sentiu um formigamento nos lábios que se estendeu até a boca, a garganta e o nariz. Sentiu que lhe endureciam
os mamilos e que um doloroso desejo se pulverizava por seu abdômen, seu ventre e a parte interna das coxas.
-
Oh - disse quando terminou.
Entretanto, antes de chegar a expressar a indignação que sentia por semelhante insolência, recordou que era
Claire Campbell, a famosa atriz de províncias, e que se esperava que as atrizes, mesmo quando não eram as
amantes de algum tipo rico e com título, soubessem um par de coisas a respeito da vida. Olhou seus olhos e lhe
dedicou um sorriso sonhador.
Por que não? Pensou de forma temerária. Por que não viver sua fantasia enquanto durasse aquele breve
feitiço e descobrir aonde a conduzia? Depois de tudo, esse primeiro beijo também seria possivelmente o último.
O senhor Bedard lhe devolveu o sorriso com um olhar lânguido e zombador.
- Eu não teria expressado melhor - disse.
CAPÍTULO 2
Que demônios estava fazendo ao encetar-se - e muito - em um beijo quando a cada passo que dava Bucéfalo
corria o risco de patinar, quebrar uma pata e fazer que seus cavaleiros sofressem uma aterrissagem acidentada e
lamacenta? Rannulf se repreendeu mentalmente.
Ela era uma atriz que deixou muito clara sua preferência por interpretar obras dignas de consideração antes
de permitir que a comessem com os olhos em um teatro da moda. Entretanto, deixava o cabelo solto com essa
estudada desordem, um cabelo cuja cor era natural se sua vista não o enganava, e não tinha a menor dificuldade
em apertar todas essas cálidas e voluptuosas curvas contra a parte frontal de seu corpo. O rubor que lhe cobria o
rosto também era natural. Tinha uma maneira de semicerrar esses magníficos olhos - sim, definitivamente eram
verdes - no gesto de convite mais evidente que ele jamais tinha visto. E sua voz não deixava de acariciá-lo como
uma luva de veludo.
Seguia-lhe o jogo, não é? Bom, pois claro que estava seguindo. Por que outro motivo lhe deu um nome
falso? Por que não ia fazê-lo, tendo em conta que tudo havia surgido do modo mais inesperado justo quando
previa passar algumas semanas de castidade em companhia de sua avó? Era um homem de fortes apetites carnais
e não estava disposto a desprezar um convite tão claro como o que ela oferecia.
Mas com tudo e com isso... beijá-la no lombo de um cavalo? Em um perigoso caminho cheio de barro?
Rannulf riu para si mesmo. Desse material eram feitos os sonhos. Uns sonhos deliciosos.
-
Aonde se dirige? - perguntou ela - Retorna para casa, junto de sua esposa? Ou em busca de uma noiva?
-
Nenhuma das duas coisas – respondeu - estou solteiro e sem compromisso.
-
Alegra-me ouvi-lo - replicou ela - Detestaria que tivesse que confessar esse beijo a alguém.
Sorriu-lhe.
-
Estou a caminho da casa de uns amigos para passar umas semanas - explicou - Isso que vejo mais adiante
são edifícios?
Engana-me a vista?
A moça virou a cabeça para olhar.
- Não – respondeu - Acho que está certo.
A qualquer momento começaria a chover de novo. Seria maravilhoso afastar-se do caminho enlameado e
refugiar-se sob um teto. Certamente era necessário informar o acidente da carruagem logo que fosse possível
para que enviassem ajuda.
De qualquer forma, Rannulf sentiu certo pesar ao ver que estavam chegando tão depressa ao povoado.
Embora talvez não estivesse tudo perdido. Nenhum dos dois poderia reatar essa viagem por muito perto que ele
se encontrasse de seu destino.
-
Assim, dentro de uns poucos minutos - disse, baixando a cabeça até que sua boca roçou a orelha da moça
- estaremos a salvo em uma estalagem e faremos que enviem ajuda a esses pobres passageiros abandonados. Você
relaxará em um quarto quente e seco e eu em outro. Parece-lhe bem?
-
Sim, é claro - disse ela com um tom alto e claro, muito diferente ao que utilizou desde que se
conheceram.
Caramba. Então tinha interpretado mal os sinais... Um ligeiro passeio no lombo de um cavalo era uma coisa,
mas seus planos não foram mais à frente? Levantou a cabeça e se concentrou em guiar seu cavalo pelos últimos
metros que o separavam do que parecia uma casa de postas nos subúrbios de um pequeno povoado.
-
Não - retificou ela passados uns momentos, de novo com uma voz baixa e gutural - Não, não me parece
bem absolutamente.
Caramba.
O interior da estalagem era quente, estava seco e pela primeira vez em várias horas Judith se sentia
fisicamente a salvo. Entretanto, o lugar estava lotado. Tinham encontrado uma enorme confusão no pátio e as
pessoas se abarrotavam no interior, alguns olhando o céu através das janelas enquanto que outros já decidiram
passar a noite ali.
Ela tinha um problema. Não dispunha de bastante dinheiro para pagar um quarto. Mas quando tinha
mencionado ao senhor Bedard, ele se tinha limitado a esboçar esse sorriso zombador e não havia dito uma
palavra. Nesse momento, o homem estava no balcão da recepção falando com o hospedeiro, enquanto ela
esperava a certa distância. Seria possível que tivesse intenção de lhe pagar o alojamento? Deveria permitir? Como
poderia lhe devolver o dinheiro?
Desejou com todas as suas forças que sua breve e gloriosa aventura não tivesse terminado tão depressa.
Queria mais. Durante os dias e as semanas que estavam por vir reviveria a passada hora uma e outra vez, não
havia nenhuma dúvida a respeito. Talvez revivesse esse beijo durante toda sua vida. Solteirona tola e desesperada,
repreendeu-se. Entretanto, parecia ter o ânimo colado às solas de suas enlameadas botas de cano longo. Sentia-se
muito mais deprimida nesse momento que uma hora antes, quando ele tinha entrado em sua vida.
Era um homem alto e de constituição forte. Seu cabelo, que por fim podia ver depois que tirou o chapéu, era
encaracolado. E também abundante e loiro e quase chegava aos ombros. Se lhe acrescentasse mentalmente uma
barba e um casco com chifres, poderia imaginá-lo à proa de um navio viking enquanto dirigia um ataque contra
uma desventurada aldeia saxã. E ela seria uma valente e desafiante aldeã...
O senhor Bedard se afastou do balcão e cruzou a distância que os separava. Aproximou-se muito dela e falou
em voz baixa.
-
Já se refugiaram muitos viajantes aqui - disse - E os passageiros da diligência também vão precisar de
quartos. A estalagem estará a transbordar esta noite. Embora haja uma estalagem muito menor e tranquila no
povoado, perto de onde está o mercado. Utiliza-se sobre tudo durante estes dias, mas me asseguraram que está
limpa e que é muito cômoda. Poderíamos deixar dois quartos livres aqui se fôssemos à outra pensão.
Havia um brilho em seus olhos que não acabava de ser nem risonho nem zombador. A Judith era impossível
decifrá-lo, embora lhe provocasse uns calafrios que a percorreram de cima abaixo até a ponta dos pés. Umedeceu
os lábios.
-
Como já disse, senhor Bedard, só tenho algumas moedas comigo, já que esperava chegar a York sem
fazer paradas. Ficarei aqui. Ficarei no salão ou junto de uma janela até que chegue outra diligência e possa reatar
meu caminho.
Na realidade, tinha a suspeita de que não se encontrava muito longe de Harewood Grange. Já estavam em
Leicestershire,
Seus olhos lhe sorriram com essa expressão que não chegava a ser de todo zombadora.
-
O hospedeiro se encarregará de mandar entregar sua bolsa de viagem quando chegar - disse-lhe. - A
carruagem tinha um eixo quebrado. Pode ser que demorem bastante a conseguir outra, uma noite será pouco.
Deste modo, bem poderia esperar com comodidade.
-
Mas é que não posso me permitir... - começou Judith de novo.
Colocou-lhe um dedo sobre os lábios, conseguindo que guardasse silêncio por causa da surpresa.
-
Mas eu sim - replicou ele - Posso me permitir pagar um quarto, ao menos.
Durante um instante de suprema estupidez não entendeu o que queria dizer. Depois o fez. Perguntou-se se o
rubor de seu rosto não seria tão intenso para acabar queimando o dedo do homem. Perguntou-se se lhe
dobrariam os joelhos e cairia desmaiada ao chão. Perguntou-se se poria a gritar e lhe esbofetearia o rosto com
toda a força da indignação que sentia.
Não fez nada disso. Muito ao contrário, escondeu-se atrás da mundana máscara de Claire Campbell
enquanto sentia todo o peso da tentação. Sentiu um desejo quase irresistível de continuar sua aventura, seu sonho
roubado. Esse homem estava sugerindo que compartilhassem um quarto em outra estalagem. E pretendia sem
dúvida que compartilhassem também a cama. Queria manter relações conjugais ali... embora conjugal não era a
palavra apropriada, pensou.
Esse dia. Essa noite. Nas próximas horas.
Esboçou o sorriso de Claire Campbell e foi consciente ao feito de que não faria falta mais resposta. Dessa
maneira evitou ter que tomar uma decisão em toda regra ou expressar um compromisso verbal. Entretanto,
estava claro que tomou uma decisão, já que de outra forma Claire não teria sorrido. Por uma vez em sua vida
precisava, precisava com desespero, fazer algo gloriosamente escandaloso, desatinado, atrevido e... de todo
incomum.
Outra oportunidade talvez jamais voltasse a se apresentar na vida.
-
Resgatarei meu cavalo antes que se acomode muito no estábulo - disse-lhe enquanto retrocedia um passo,
lhe dando uma conscienciosa olhada antes de dar meia volta para a porta do pátio.
-
Sim - conveio ela.
Depois de tudo, nada era definitivo. Não pensava chegar até o final. Quando chegasse o momento, se
limitaria a pedir desculpas e a lhe explicar que a tinha interpretado mal, que ela não era essa classe de mulher.
Dormiria no chão ou em uma cadeira... ou em qualquer lugar onde ele não o fizesse. Era um cavalheiro. Não a
forçaria. Aceitar a proposição de partir com ele não era mais que um modo de prolongar sua aventura. Não faria
nada irreparavelmente depravado.
É claro que sim que o fará, disse-lhe uma inesperada vozinha em sua cabeça. Ah, querida, é claro que sim
que fará. E era a enérgica voz de Judith Law com seu tom mais sensato.
O Rum e o Tonel era uma pequena estalagem de mercado. Carecia de hóspedes apesar de que a taberna
estava bastante cheia. O senhor e a senhora Bedard foram recebidos com entusiasta hospitalidade e lhes ofereceu
o melhor quarto da estalagem, um aposento retangular bastante arrumado que não demorou em ter um palpitante
fogo na lareira - uma boa maneira de rebater a chuva que golpeava contra as janelas - e uma jarra de fumegante
água quente na bacia que havia atrás do biombo. Asseguraram-lhes que lhes serviriam o jantar na saleta adjacente
ao aposento. Ali se sentiriam mais cômodos e desfrutariam de privacidade, explicou-lhes a esposa do hospedeiro,
com um sorriso de orelha a orelha como se acreditasse de coração que eram casados.
Claire Campbell afastou o capuz da capa quando ficaram a sós no quarto e permaneceu de pé, olhando pela
janela. Rannulf tirou o casaco e o chapéu e os deixou sobre uma cadeira antes de olhá-la. Seu cabelo perdeu os
grampos e estava muito desordenado. A capa verde estava caída à altura dos ombros e tinha a prega manchada de
barro. Sua intenção fora a de deitá-la na cama logo que chegassem, de modo que ambos pudessem apagar um
tanto a sede do desejo que os consumia. Entretanto, não lhe parecia o momento oportuno. Era um homem de
apetite voraz, mas não de paixões transbordadas. O sexo, depois de tudo, era uma arte como uma função física
necessária. A arte do sexo. Criaria o ambiente adequado.
Tinham toda a tarde e a noite por diante. Não havia pressa.
-
Certo que gostará de refrescar-se - disse - Tomarei uma jarra de cerveja e voltarei quando o jantar estiver
pronto. Mandarei que subam um pouco de chá. Ela se virou para ele.
-
Isso seria muito amável de sua parte - replicou. Rannulf esteve a ponto de mudar de ideia. O rubor voltou
a lhe colorir o rosto e suas pálpebras estavam ligeiramente entreabertas, em claro convite. Tinha o cabelo
alvoroçado, como se acabasse de levantar-se da cama. E era na cama onde queria tê-la, com ele em cima, entre as
coxas e fundo em seu corpo.
Em troca, fez uma zombadora reverência e arqueou uma sobrancelha
-
Amável? – repetiu - Asseguro-lhe que não costumam me acusar de ser amável, senhora.
Passou quase toda uma hora no bar, bebendo cerveja, enquanto um grupo de aldeãos o incluía com
hospitalidade em seu círculo para perguntar sua opinião sobre o tempo e suas impressões sobre o estado das
estradas enquanto davam baforadas em seus cachimbos, bebiam de suas jarras e concordavam sabiamente que
iriam pagar pelo caloroso verão que desfrutaram das últimas semanas.
Subiu ao salão particular quando a mulher do hospedeiro lhe disse que estavam a ponto de servir a comida.
Claire estava de pé na porta que separava os dois cômodos enquanto observava uma criada pôr a mesa e servir a
comida.
-
É um bolo de rins e carne. O melhor em vários quilômetros ao redor, o digo de verdade. Que
aproveitem. Chamem quando quiserem que retire os pratos - disse a moça com um sorriso e uma reverência
antes de partir da sala e fechar a porta.
-
Assim o faremos. Obrigada - disse Claire.
A Rannulf quase deu medo olhá-la antes que os deixassem a sós. Só chegou espiar o vestido de musselina
por baixo da capa. Nesse momento comprovou que se tratava de um vestido de corte singelo, de uma modéstia
inesperada para uma mulher de sua profissão. Porém viajava em uma diligência. Era de esperar que precisasse
vestir roupas que não chamassem muito a atenção. De qualquer forma, o vestido não conseguia esconder o
esplendor do corpo que havia por baixo. Não era magra, apesar de que suas longas extremidades dessem essa
primeira impressão. Era uma mulher voluptuosa, com uma cintura pequena, uns quadris que se curvavam de
forma provocante. Seus seios, generosos e firmes, eram o sonho de qualquer homem na realidade.
Não tinha prendido o cabelo. O tinha afastado do rosto e lhe caía em ondas sobre os ombros até a metade
das costas. Era de um glorioso e quase incrível tom avermelhado com reflexos dourados que brilhavam a luz do
entardecer. Seu rosto alongado e ovalado perdeu o rubor e parecia tão pálido e delicado como a porcelana. Seus
olhos possuíam uma surpreendente tonalidade de verde. E - Por Deus, - seu rosto tinha uma característica
inesperada que a fazia descender ao reino dos mortais. Cruzou a distância que os separava e lhe passou um dedo
por cima do nariz, de uma face à outra.
-
Sardas - disse. Apenas perceptíveis.
Parte do rubor retornou a seu rosto.
-
Foram minha maldição durante a infância - replicou. - Uma verdadeira lástima que nunca desaparecessem
de todo.
-
São encantadoras - disse ele. Sempre tinha admirado às deusas. Nunca tinha se deitado com uma.
Gostava que suas mulheres fossem de carne e osso. Ao entrar na saleta quase temeu que Claire Campbell fosse
uma deusa.
-
Tenho que as ocultar com uma grossa capa de maquiagem quando apareço em cena - informou.
-
Quase - disse enquanto baixava os olhos até seus lábios - tirou-me o apetite de comida.
-
Quase - repetiu ela com essa voz alta e clara que escutara antes - Mas não de todo. Que tolice, senhor
Bedard, quando seu jantar o espera na mesa e tem fome.
-
Ralf - corrigiu-a - Será melhor que me chame de Ralf.
-
Ralph - disse ela, - é hora de jantar.
E mais tarde dariam um festim com a sobremesa, pensou enquanto a ajudava a sentar-se à mesa antes de
ocupar seu assento frente a ela. Um doce prazer que saboreariam durante toda a noite. Começou a lhe ferver o
sangue ante a perspectiva de uma boa sessão de sexo. Não tinha a menor dúvida de que seria bom. Enquanto
isso, ela tinha razão: seu corpo precisava alimentar-se.
A pedido da moça falou de Londres, já que parecia que ela não conhecia a cidade. Falou-lhe a respeito da
vida social durante a temporada: dos bailes, as aglomerações, os concertos; do Hyde Park, Carlton House e os
jardins Vauxhall. Ela falou do teatro a pedido seu, a respeito dos papéis que tinha interpretado e daqueles que
gostaria de interpretar, a respeito de seus companheiros e dos diretores com os quais tinha trabalhado. Descreveu
tudo muito devagar, com uma expressão sonhadora e um sorriso nos lábios como se fosse uma profissão da qual
desfrutasse plenamente.
Desfrutaram do jantar. E mesmo assim, Rannulf se surpreendeu uma hora depois que começaram a comer,
quando baixou os olhos até a mesa e viu que a maior parte das generosas porções tinha desaparecido e que a
garrafa de vinho estava vazia. Não podia recordar nenhum sabor, embora se sentisse satisfeito: no geral e
acalorado por uma persistente faísca de emoção.
Ficou em pé, aproximou-se da lareira e puxou a campainha. Queria que levassem os pratos e que subissem
outra garrafa de vinho.
-
Mais? -perguntou a Claire enquanto inclinava a garrafa sobre sua taça.
Ela a cobriu com uma mão. - Acho que não deveria - disse.
-
Mas o fará. - Olhou-a nos olhos.
A moça esboçou um sorriso. - Mas o farei. - Afastou a mão.
Ele se reclinou na cadeira depois de encher as taças e beber um gole. Talvez tivesse chegado o momento. A
exígua luz do dia por fim se estava extinguindo do outro lado das janelas. A chuva que repicava contra as janelas
e o fogo que crepitava na lareira contribuía para criar um ambiente de acolhedora intimidade que era muito
incomum no verão. Embora houvesse algo mais.
-
Quero vê-la atuar - disse.
-
O que? - Claire ergueu as sobrancelhas e a mão que sustentava a taça ficou a meio caminho de seus
lábios.
-
Quero vê-la atuar - repetiu ele.
-
Aqui? Agora? - Deixou a taça na mesa - Que absurdo, não há cenário, nem decoração, nem outros atores,
nem guia.
-
Sem dúvida, uma experimentada atriz de talento não requer guia para certos papéis –disse - E tampouco
fazem falta, cenário nem outros atores. Há muitos monólogos famosos que não requerem a presença de outros
atores. Interpreta um para mim, Claire. Por favor.
Levantou a taça e a sustentou no alto para ela, num silencioso brinde, a moça o olhou fixamente; o rubor
tinha voltado para seu rosto. Estava envergonhada, pensou com certa surpresa. Envergonhada pela ideia de
declamar em uma representação particular com um homem que estava a ponto de transformar-se em seu amante.
Talvez fosse difícil concentrar-se em um papel dramático em semelhantes circunstâncias.
-
Bom, suponho que poderia representar o famoso discurso de Porcia - disse ela.
-
Porcia?
-
O mercador de Veneza - explicou ela - Seguro que conhece o discurso sobre a clemência.
-
Me refresque a memória.
-
Sylock e Antonio estavam no tribunal - explicou ela, inclinando-se ligeiramente para ele sobre a mesa para decidir se Sylock tinha direito a reclamar a Antonio uma libra de carne. Não havia dúvida de que tinha esse
direito; estava mais que claro no contrato que ambos assinaram. Mas nesse momento chegou Porcia com a
intenção de salvar o melhor amigo e benfeitor de Basanio, seu amor. Chegou disfarçada de advogado para falar a
favor de Antonio. A princípio apela à natureza generosa de Sylock em seu famoso discurso a respeito da
clemência.
-
Agora recordo - disse ele - Interprete Porcia para mim, Ela ficou em pé e olhou a seu redor.
-
Esta é a sala de audiências – disse - Já não é o salão reservado de uma estalagem, e sim um tribunal onde
mesmo a vida de um nobre pende por um fio. É uma situação desesperada. Não parece haver esperança alguma.
Todos os personagens principais da obra estão presentes. Sylock está sentado em uma cadeira. - Assinalou a
cadeira em que ele se sentava - Eu sou Porcia – disse - Mas estou disfarçada de homem.
Rannulf franziu os lábios em um arranque de humor quando ela voltou a percorrer a sala com o olhar.
Levantou os braços, recolheu o cabelo, retorceu-o e o atou à altura da nuca. Depois desapareceu um instante no
quarto para retornar com seu casaco sobre os ombros. Até com a roupa de homem, sua aparência era qualquer
coisa menos masculina. Quando acabou de abotoá-lo por completo levantou a vista para olhá-lo diretamente nos
olhos.
Rannulf esteve a ponto de retroceder ante a severa e controlada expressão de seu rosto. -A clemência não
quer força - disse com uma voz que casava com sua expressão.
Durante um instante e por estúpido que parecesse, acreditou que era ela, Claire Campbell, quem se dirigia a
ele, Rannulf Bedwyn.
-É como a plácida chuva do céu que cai sobre um campo e o fecunda... - continuou enquanto se aproximava
dele e a expressão de seu rosto se suavizava, tornando-se implorante.
Por todos os demônios, pensou, ela era Porcia e ele era o maldito vilão, Sylock.
-Duas vezes bendita...
Não era um discurso muito longo, mas quando chegou a seu fim, Rannulf estava consumido pela vergonha e
disposto a perdoar a Antonio, e inclusive a prostrar-se de joelhos para rogar perdão por ter pensado sequer em
lhe cortar uma libra de carne do corpo. Ela estava inclinada sobre ele, com os olhos semicerrados e um olhar
penetrante, à espera de uma resposta.
-
Santo Deus - disse, - Sylock devia ter o coração de pedra.
Deu-se conta de que estava meio excitado. Era muito boa.
Era capaz de interpretar o papel sem as excêntricas parafernálias que ele associava com os atores mais
famosos que tinha visto em cena.
Claire se endireitou e lhe sorriu enquanto desabotoava o casaco.
-
E que outro papel pode interpretar? - perguntou - Julieta?
Ela fez um gesto desdenhoso com a mão.
-
Tenho vinte e dois anos – replicou - Julieta era uns oito mais nova que eu e uma bobona, por certo.
Nunca vi a graça dessa obra. Rannulf riu entre dentes. Assim não era uma romântica. - Ofélia? - sugeriu ele.
Ela compôs uma expressão afligida.
-
Suponho que os homens gostam de ver mulheres débeis comentou ela com certo desdém na voz - E não
pode haver nada mais fraco que essa estúpida da Ofélia. Poderia haver-se limitado a estalar os dedos no nariz de
Hamlet e mandá-lo fritar aspargos.
Rannulf jogou a cabeça para trás e soltou uma estrondosa gargalhada. A moça estava toda rosada e tinha uma
expressão contrita quando voltou o olhar.
-
Farei lady MacBeth – disse - Era uma tola incapaz de sustentar sua maldade, embora não era
absolutamente fraca.
-
A cena em que caminha adormecida? - perguntou - Quando lava o sangue das mãos?
-
Aí o tem. Vê? - Seu semblante voltava a ser desdenhoso quando assinalou com um braço - Suponho que
é a cena preferida pela maioria dos homens. Uma mulher perversa que ao final cai na loucura, porque as
mulheres normais não podem ter sua fortaleza para sempre.
-
Tampouco é que MacBeth chegasse muito cordato ao final - recordou ele - Me atreveria a dizer que
Shakespeare se mostrou imparcial em seu julgamento a respeito da fortaleza de espírito, tão masculina como
feminina.
-
Representarei a cena em que lady MacBeth tenta convencer MacBeth de que mate Duncan - disse ela.
E ele estava a ponto de converter-se em um silencioso MacBeth supôs Rannulf.
-
Mas primeiro - comentou ela - terminarei o vinho. Sua taça tinha mais de dois terços de vinho. Bebeu-a
de um gole e a deixou sobre a mesa. Desfez o nó que segurava o cabelo na nuca e agitou a cabeça para liberá-lo.
-
MacBeth acaba de dizer a sua esposa: Temos que renunciar a esse horrível propósito -disse - MacBeth
começa a arrepender-se da decisão de cometer o assassinato e ela o está incitando.
Rannulf assentiu e ela lhe deu as costas um instante e ficou muito quieta. Um momento depois viu como
apertava os punhos e virava para ele. Esteve a ponto de saltar da cadeira e esconder-se atrás. Seus olhos verdes o
atravessaram com uma expressão de gélido desprezo.
-O que foi feito da esperança que alentava? Por ventura tem caído em embriaguez ou em sono? Ou está
acordado e olha com estúpidos olhos pasmados o que antes contemplava com tanta arrogância?
Rannulf resistiu ao impulso de falar em sua defesa.
-É esse o amor que me mostrava? - disse ela. Claire também declamou as frases de MacBeth, inclinada sobre
seu corpo e sussurrando em voz tão baixa que Rannulf teve a impressão de que ele mesmo estava falando sem
separar os lábios. Como lady MacBeth, apressou-o com sua energia, seu desdém e seus falsos incentivos. E
quando terminou, Rannulf compreendia perfeitamente por que MacBeth tinha cometido a tamanha estupidez de
assassinar seu rei.
A moça estava ofegando quando proferiu a última de suas frases e tinha um aspecto distante, triunfal e
ligeiramente perturbado.
Rannulf se descobriu a ponto de ofegar pelo desejo. Enquanto o personagem que esteve interpretando
abandonava os olhos e o corpo da moça, seus olhares se entrelaçaram e o ar que os separava começou a crepitar.
-
Bom - disse ele em voz baixa.
Ela esboçou um sorriso torcido.
-
Deve compreender – disse - que sou um pouco provinciana. Não atuei por três meses e não estou em
plena forma.
-
Que o céu nos ajude - replicou Rannulf enquanto ficava em pé - o dia que estiver em plena forma. Seria
capaz de sair sob a chuva à busca do rei mais próximo para assassiná-lo.
-
Então, o que lhe parece? - perguntou.
-
Acho - respondeu ele - que é hora de ir para cama.
Durante um instante, acreditou que ela ia negar-se. Claire o olhou fixamente, umedeceu os lábios, inspirou
com força como se fosse dizer algo e logo assentiu.
-
Sim - disse.
Rannulf inclinou a cabeça e a beijou. Estava a um passo de deitá-la no chão e tomá-la naquele mesmo
momento, mas para que passar por esse desconforto quando havia uma estupenda cama no quarto contiguo?
Além disso, tinha que considerar certas necessidades fisiológicas.
-
Vá preparar-se - disse - Esperarei lá embaixo uns dez minutos.
Ela voltou a vacilar e umedeceu os lábios.
-
Sim - assentiu e virou. Um segundo depois, a porta do quarto se fechou atrás dela.
Os seguintes dez minutos, pensou Rannulf, iriam parecer uma incômoda eternidade.
Por todos os demônios, essa mulher sim sabia atuar.
CAPÍTULO 3
Judith ficou de pé com as costas apoiada contra a porta do quarto e fechou os olhos. A cabeça deu voltas, o
coração pulsava acelerado e estava sem fôlego. Havia tantas razões que explicavam as três circunstâncias
anteriores, que era impossível as pôr em ordem para recuperar sua costumeira compostura.
Em primeiro lugar, tinha bebido muito vinho. Quatro taças no total. Jamais tinha bebido mais de meia taça
num dia e esse fato excepcional somente se produziu em três ou quatro ocasiões ao longo de toda sua vida. Não
estava ébria; podia pensar de modo bastante coerente e caminhar em linha reta. Mas mesmo assim, tinha ingerido
todo esse vinho.
Em segundo lugar, tinha resultado de todo embriagador atuar frente a uma audiência; por mais que sua
audiência constasse somente de uma pessoa. A interpretação sempre tinha formado parte de sua vida secreta,
algo que fazia quando tinha a certeza de que se encontrava sozinha e ninguém a observava. Não obstante, nunca
tinha pensado nisso como interpretar; sempre o tinha visto como um modo de dar vida a outro ser humano
através das palavras que o dramaturgo tinha proporcionado. Sempre fora capaz de meter-se na pele e na mente
de outra pessoa e de saber com exatidão o que sentiria sendo essa pessoa nessas determinadas circunstâncias.
Uma ou outra vez tinha tentado utilizar essa habilidade para escrever histórias, mas seu talento não residia na
palavra escrita. Precisava criar ou recriar personagens utilizando seu corpo e sua voz. Cada vez que recitava os
papéis de Porcia ou de lady MacBeth se convertia nelas.
De qualquer forma, a interpretação dessa noite fora ainda mais embriagadora que o vinho que tinha bebido.
Tinha atuado para uma audiência de uma só pessoa muito melhor do que se nunca o fizesse. Ele tinha
representado tanto Sylock como MacBeth, embora não tenha deixado de ser Ralph Bedard em nenhum
momento; e ela, por estranho que parecesse, havia se sentido alegre e entusiasmada por sua presença. Tinha tido
a sensação de que o ar que os rodeava estalava com uma energia invisível.
Abriu os olhos de repente e se apressou a ocultar-se atrás do biombo que se elevava do outro lado do quarto.
Só tinha dez minutos para preparar-se... e já passaram alguns. Alguém tinha se encarregado de subir sua bolsa de
viagem ao quarto, comprovou com alívio. Poderia vestir uma camisola.
Entretanto, deteve-se de modo abrupto enquanto se inclinava para abrir a bolsa. Que se preparasse? Para
que? Ele acabava de beijá-la de novo. Se reuniria com ela em dez minutos - em menos de dez minutos - para
levá-la para cama. Para lhe fazer... isso. Nem sequer sabia a ciência certa do que era isso exatamente, salvo de um
modo mais vago e impreciso. Sentia uma espécie de debilidade nos joelhos. Mal podia respirar e a cabeça não
deixava de dar voltas. Não ia permitir que acontecesse... ou sim?
Já era hora de pôr fim à aventura. Embora tivesse sido - e seguia sendo - uma aventura tão maravilhosa... E
não haveria nenhuma mais. Nunca. Sabia que as mulheres que caíam na pobreza e que viviam como
acompanhantes sem salário nos lares de seus familiares enriquecidos tinham poucas possibilidades, ou melhor,
nenhuma, de mudar suas vidas. A única coisa que importava era o presente. E essa noite.
Judith abriu a bolsa de viagem sem mais demora. Estava esbanjando um tempo precioso. Que embaraçoso
resultaria que ele se apresentasse para encontrá-la com a anágua, ou antes que tivesse aliviado suas necessidades
ou que tivesse se lavado e penteado! Pensaria mais tarde nisso e em como evitar que acontecesse. Na saleta
contígua havia um banco de madeira. Com um travesseiro, uma das mantas da cama e sua capa poderiam
converter-se em um lugar razoável para dormir.
Bom seguro que ele estava demorando mais de dez minutos. Judith, vestida decentemente com sua camisola
de algodão, estava de pé frente ao fogo escovando o cabelo quando escutou que batiam na porta e que esta se
abria antes que ela pudesse cruzar o quarto para abrir ou lhe dar permissão para entrar. Sentiu-se nua de repente e
também descobriu que devia estar bastante mais ébria do que tinha suposto a princípio. Em lugar de sentir o
horror que sabia que deveria estar sentindo, percorreu-a uma onda de desejo. Não queria pôr fim à aventura.
Queria experimentar isso antes que tanto sua juventude como sua vida chegassem a um proverbial fim. Queria
tudo... e o queria com Ralph Bedard. Um homem tão atraente que a deixava sem fôlego, pensou desejando
encontrar palavras mais eloquentes para descrever sua atitude.
Ralph se deteve com os lábios franzidos e as pálpebras entreabertas, e seu olhar a percorreu com lentidão da
cabeça até os pés nus.
-
Trata-se de sua profissão ou de seu instinto - disse ele por fim em voz fraca - que a ensinou a não
ressaltar sua aparência? Algodão branco e nem rastros de franzidos nem de babados! É muito inteligente. Sua
beleza fala alto e claro por si só.
Era feia. Sabia. As pessoas, inclusive sua própria mãe, sempre compararam seu cabelo com as cenouras
quando era pequena e nunca com a intenção de que fosse um cumprimento. Sua pele sempre fora muito pálida,
sua cútis sempre esteve desfigurada pelas sardas e seus dentes sempre foram muito grandes. E justo depois, por
uma horrível crueldade do destino, quando por fim seu cabelo começara a escurecer um tanto, quando o pior de
suas sardas se atenuou até desaparecer e quando seu rosto e sua boca se ajustaram ao tamanho de seus dentes,
começara a crescer até transformar-se em uma desengonçada. Tinha crescido até igualar a altura de seu pai.
Desfrutou de um curto alívio quando a desengonçada começou a tomar forma de mulher. Entretanto, para
acrescentar ainda mais humilhação a sua ofensa, essa forma chegou acompanhada de um par de proeminentes
seios e uns quadris generosos. Sempre fora uma vergonha para a família e em maior medida para si mesma. Seu
pai passou a vida lhe ordenando que se vestisse de forma mais recatada e que cobrisse o cabelo, e
constantemente a tinha culpado pelos olhares lascivos que os homens estavam acostumados a lhe dirigir. Ser a
feia da família sempre fora uma carga muito pesada.
Entretanto, essa noite estava disposta a aceitar que por uma estranha razão - provavelmente pelo vinho, já
que ele tinha bebido mais que ela, - Ralph Bedard a achava atraente.
Esboçou um lento sorriso sem afastar os olhos dele. O vinho tinha um efeito estranho. Dava-lhe a sensação
de estar desligada da realidade, como se fosse uma simples espectadora que não participava dos acontecimentos.
Era capaz de permanecer em um quarto em companhia de um homem, vestida somente com a camisola, sabendo
que ele tinha toda a intenção de levá-la para cama em alguns instantes e mesmo assim lhe sorria de modo sedutor
sem sentir-se minimamente responsável pelo que estava fazendo. A observadora não fazia nada para que
prevalecesse a virtude e a decência. E Judith tampouco desejava que o fizesse.
-
Suponho que já lhe terão dito mil vezes quão linda é - disse Ralph com um tom de voz maravilhosamente
rouco. Isso dizia tudo! Estava bêbado.
-
Agora já são mil e uma - replicou ela sem deixar de sorrir - E suponho que lhe terão dito mil e uma vezes
quão bonito é.
Era uma mentira. Não era bonito. Tinha o nariz muito proeminente, as sobrancelhas muito escuras, o cabelo
muito alvoroçado e a pele muito bronzeada. Mas possuía uma atração alarmante; e nesse preciso momento,
atraente era dez vezes mais sedutor que bonito.
-
Agora já são mil e duas. - Aproximou-se dela e Judith soube que o momento da verdade tinha chegado.
Entretanto, Ralph se deteve a escassa distância e estendeu uma mão em lugar de abraçá-la. - Dê-me a escova.
Ela o atendeu, esperando que a jogasse por cima do ombro para colocar mãos à obra. Permitiria seguir
adiante? Acelerou lhe a respiração. - Sente-se - disse - Na beira da cama. Sentar-se? Nada de deitar-se? Acaso
ficariam alguns momentos dos que desfrutarem antes de ver-se obrigada a pôr fim a tudo aquilo? Enquanto
estavam no salão, alguém tinha se encarregado de afastar os lençóis primorosamente, de acender o fogo, de subir
sua bolsa de viagem e de encher com água quente a bacia que havia atrás do biombo.
Judith se sentou com os pés juntos sobre o chão e as mãos unidas no colo enquanto observava como ele se
despojava de seu ajustado casaco, de seu colete e de seu lenço. Depois se sentou em uma cadeira e tirou as botas
antes de voltar a ficar em pé, descalço salvo pelas meias.
Ah, Senhor! Pensou Judith. Não deveria estar contemplando semelhante cena. Embora fosse tudo um
espetáculo. Ralph era um homem grande, embora pudesse jurar que não havia nenhum pingo de gordura
supérflua nele. Um homem de ombros largos cujo corpo se estreitava ao chegar à cintura e os quadris. Tinha
umas pernas longas e bastante musculosas. Toda essa musculatura ficava ressaltada ao usar somente as calças de
montar e a camisa.
Ele agarrou de novo sua escova de cabelo e rodeou a cama. Judith sentiu que o colchão se afundava atrás
dela. Não se virou para olhar. Esse era o momento no qual deveria ter ficado de pé. Senhor, mas é que não queria
fazê-lo. E justo então sentiu o calor que desprendia o corpo de Ralph a suas costas, apesar de que ainda não a
havia tocado.
E nesse momento o fez. Com a escova. Colocou-a justo por cima de sua testa - Judith espionou pela
extremidade do olho direito a manga de sua camisa branca - e a deslizou pelo cabelo até chegar às pontas.
Ajoelhou-se atrás dela com o simples propósito de lhe escovar o cabelo! Logo que compreendeu que suas
intenções eram das mais inocentes, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Esteve a ponto de desmaiar pelo prazer que lhe proporcionava. Com cada passada da escova sentia um
formigamento no couro cabeludo. Escutava como corria por seu cabelo. De vez em quando podia sentir uma das
mãos de Ralph que a tocava para colocar o cabelo atrás da orelha ou o afastar dos ombros. Não tinha a menor
dúvida de que essa era a sensação mais maravilhosa do mundo: que alguém lhe escovasse o cabelo... ainda mais
sendo, um homem. Podia sentir o calor que emanava do corpo masculino,
Assim como o aroma de sua colônia. Podia escutar sua respiração. Não demorou muito em relaxar-se e
permitir que a frouxidão se apoderasse dela, embora se encontrasse estranhamente estimulada e alerta ao mesmo
tempo. Notava os mamilos tensos. E começara a perceber um agradável e intenso palpitar entre as pernas.
-
Você gosta? - perguntou ele pouco depois com um rouco murmúrio.
-
Mmm. - Judith foi incapaz de reunir a força necessária para oferecer uma resposta mais eloquente.
Continuou lhe escovando o cabelo com movimentos lentos e rítmicos até que lançou a escova de um lado.
Judith escutou o ruído que fez ao golpear contra o chão aos pés da cama. E nesse momento percebeu que se
aproximou dela. O homem separara as coxas e tinha movido as pernas até as deixar de ambos os lados de seu
corpo; se desejasse, podia afastar as mãos do braço e as apoiar sobre seus joelhos. Sentiu o roçar do tórax
masculino nas costas ao mesmo tempo em que deslizava as mãos sobre os braços para lhe cobrir a parte inferior
dos seios. Judith escutou como tomava uma lenta e sonora baforada de ar.
O pânico esteve a ponto de fazê-la dar um suspiro. Os seios não. Era tão embaraçoso. Entretanto, a ligeira
embriaguez que a embargava retardou tanto a angústia como sua capacidade de reação. Essas mãos eram tão
tenras e suaves... E seus polegares lhe roçavam os mamilos, que de forma estranha estavam duros e muito
sensíveis. A despeito de tudo, não estava lhe machucando. Ao contrário, suas carícias despertavam nela ondas de
puro desejo que desciam por sua garganta até terminar entre suas pernas e, além disso, se sentia palpitar por
dentro. Ao que parece Ralph não achava nada grotesco em seus seios.
Judith voltou a fechar os olhos e jogou a cabeça para trás para apoiá-la sobre um de seus ombros. Só um
pouco mais. Uns instantes mais. Logo o deteria. Os polegares abrangeram seus mamilos e imediatamente sentiu
que essas mãos lhe desabotoavam a parte dianteira da camisola e afastavam o tecido a fim de deixá-la exposta dos
ombros até o umbigo. Quando as mãos retornaram até seus seios nus para rodeá-los, elevá-los, acariciá-los, para
estimular, beliscar e esfregar os mamilos soube por fim que sua aventura - esse sonho roubado - era perfeita.
Isso era o que sempre tinha desejado. Justo isso. Desde que tinha se transformado em uma mulher. Sentir as
carícias de um homem, permitir que a visse e que não a julgasse inadequada, que a acariciasse. Desfrutar sem
deixar frestas à vergonha, ao medo. Desejava que esse momento nunca - por favor, por favor, nunca! - acabasse.
- Levante –se - murmurou Ralph a seu ouvido, e apesar de não estar de tudo disposta a afastar-se de suas
carícias, obedeceu-o e abriu os olhos para ver como sua camisola caía ao chão.
Não sentiu o mínimo indício de pudor, por curioso que pudesse parecer, apesar do fogo que crepitava na
lareira, da tremeluzente luz das duas velas colocadas sobre o suporte e do ódio que sempre a tinha embargado
cada vez que se contemplava em um espelho. Voltou a sentar-se.
Foi consciente do momento em que o homem tirou a camisa pela cabeça e a jogou no chão, ali onde jazia
sua escova. Imediatamente notou seu torso nu, quente e sólido, contra as costas e essas mãos voltaram a deslizar
sob seus braços. Passaram sobre seus seios e os acariciaram com força antes de estender-se sobre suas costelas e
seguir descendo para a cintura e o abdômen. Judith jogou a cabeça para trás e fechou os olhos de novo antes de
mover os ombros e as costas para esfregar-se contra ele. O tórax masculino estava ligeiramente coberto de pêlo.
As mãos de Ralph deslizaram por suas coxas a caminho dos joelhos e voltaram a ascender. Judith afastou as
mãos do regaço e as apoiou sobre as coxas do homem, lhe rodeando os joelhos com as mãos.
Não demorou para compreender que tinha superado o ponto de retorno, esse momento no qual poderia ter
detido o que ia ser. Entretanto, não se importava. Não se importava o mínimo. O bom senso, o decoro e a moral
se encarregariam de assinalar a magnitude de seu errado comportamento quando chegasse a brilhante luz da
manhã; mas embora soubesse, não se importava. Essa era a noite que proporcionaria luz e sentido ao resto de
sua vida. Sabia com absoluta certeza. Uma mulher desonrada... Quem ia averiguar? A quem ia importar?
Ralph deslizou a mão direita até seu sexo, até esse lugar quente e oculto. Deveria estar horrorizada. Contudo,
escutou que brotava um rouco som de aprovação do mais profundo de sua garganta e separou as pernas um
pouco mais para lhe dar acesso.
Estava muito quente nesse lugar. Sabia pelo contraste com o frescor dos dedos de Ralph. Temia estar
também úmida. Entretanto, ele não se afastou. Seus dedos exploraram o lugar, afastando as dobras e esfregando
com suavidade entre elas até encontrar a parte mais recôndita e introduzir-se um pouco nela. Judith escutou sons
que provocava a umidade, mas estava além da vergonha. Não demorou muito em compreender que Ralph sabia
muito bem o que estava fazendo. O desejo se apoderou dela por completo. E justo então, ele fez algo com o
polegar, algo tão suave que não teria sabido dizer com exatidão o que foi. Salvo que de repente o anseio se
transformou em uma espécie de urgente desejo que transpassou os limites do desejo muito antes que fosse capaz
de entregar-se à sensação. Arqueou as costas enquanto todos os músculos de seu corpo se esticavam e gritou
enquanto se deixava cair contra ele, exausta e ofegante.
O que... que diabos tinha acontecido?
-
Sim - sussurrou Ralph ao ouvido com um acento de euforia na voz. - Deus, sim! Magnífica!
Judith se deu conta de que respirava de forma entrecortada: - Deite-se - disse ele.
-
Sim. - nem sequer se expôs a possibilidade de negar-se a deitar-se com ele.
Sentia-se um pouco enjoada, mas não teria sabido dizer se por causa dos efeitos do vinho ou pelo que
acabava de experimentar.
Estendeu-se entre os lençóis enquanto Ralph ficava de pé e observou como se despojava do resto de sua
roupa. Sem elas seu aspecto era muito mais imponente, uma combinação de duros músculos, ventre plano E...
Por uns breves instantes se perguntou se deveria sentir-se assustada depois de tudo; mas o desejava,
compreendeu.
Desejava-o com desespero. Desejava esse homem.
Ralph deitou em cima dela enquanto introduzia o joelho entre suas pernas e a obrigava às separá-las mais.
Judith dobrou os joelhos e apoiou as plantas dos pés sobre o colchão para afiançar sua posição. Ele ergueu a
parte superior do corpo, sustentou-se sobre os antebraços e inclinou a cabeça para beijá-la. O homem tinha a
boca aberta e ela não demorou muito em imitá-lo quando lhe deu uma lambida e lhe acariciou a suave carne da
parte interna dos lábios. Imediatamente, sentiu sua língua na boca, deslizando-se sobre a sua, lhe acariciando a
parte mais sensível do paladar e avivando de novo a voracidade do desejo.
Quando ele ergueu a cabeça, exibia seu costumeiro sorriso zombador.
-
Temo - disse - que é possível que exploda assim que entre em ti, com a mesma rapidez que você. De
qualquer forma, temos o resto da noite para desfrutar o prazer. Aceita minhas desculpas adiantado?
-
Está desculpado. - Judith sorriu em resposta, embora para falar a verdade não entendia muito bem o que
pretendia lhe dizer.
Ralph voltou a deitar-se por completo sobre ela antes de lhe colocar as mãos sob as nádegas para segurá-la
com força. Sentiu que seu duro membro a penetrava de forma hesitante, mas antes de ter a oportunidade de
respirar fundo para acalmar-se, ele se afundou em seu corpo. Talvez houvesse dor. Não teve tempo de
comprovar. Talvez houvesse desconforto. Não teve tempo de assimilá-lo. Só teve tempo de experimentar o mais
absoluto dos assombros ao comprovar que um homem pudesse ser tão grande e estar tão duro, e que mesmo
assim seu corpo fosse capaz de acolhê-lo.
Nesse instante ele começou a mover-se, retirou-se até sair quase por completo dela e voltou a penetrá-la até
o fundo; fez outra vez, cada vez mais rápido e com mais força, até que seu corpo se esticou, deixou escapar um
grito e caiu sobre ela com todo seu peso. Judith o envolveu com seus braços. Estava acalorado e tinha a pele
escorregadia pelo suor.
E foi então quando chegou o desconforto. Sua virgindade tinha desaparecido. Assim, sem mais. E com o
desconforto chegou à compreensão. A compreensão não só do que acontecia entre um homem e uma mulher,
mas sim do que se sentia. Tinha sido decepcionante. Até certo ponto. Em parte se sentia maravilhada. Tinha
deitado com um homem. Não passaria a vida sem conhecer a mais básica das experiências humanas. Tinha
deitado com ele. Ainda estava deitada sob seu corpo, com os seios esmagados sob seu tórax, as coxas em torno
de suas musculosas pernas e seu... essa parte dele ainda em seu interior.
Não se arrependia. E se era o vinho que estava falando, se encarregaria no dia seguinte de lhe dizer algumas
coisas. Não se arrependia. Jamais se arrependeria. Ralph a tinha acariciado, a havia feito desfrutar, tinha
conseguido que se sentisse tão feminina e bela como nunca antes ninguém fez; todos fizeram o contrário, e bem.
E, além disso, deitou-se com ele e o tinha agradado. Deu-se conta de que estava dormido. Pesava muito.
Custava-lhe muito respirar. Não demoraria em ter cãibras nas pernas. Não tinha dúvida de que estaria muito
sensível nesse lugar. E, entretanto não desejava que ele despertasse. Assim, abraçou com força seu magnífico
sonho roubado.
Uma vez que Rannulf despertou e se separou dela desculpando-se por lhe haver esmagado todos os ossos do
corpo, Claire Campbell saiu um instante. Podia escutar como se lavava atrás do biombo e esboçou um sorriso
enquanto entrelaçava as mãos atrás da cabeça. Uma amante suscetível. Não demoraria para pô-la de novo úmida
e exsudando aroma de sexo.
Era fantástica. Seu corpo e seu cabelo eram por si só suficientes para manter em estado de perpétua
excitação qualquer homem de sangue quente, mas havia muito mais nessa mulher além de seus atributos.
Estavam seus olhos, que refletiam esse olhar lânguido de pálpebras semicerradas quando estava excitada, dentes
perfeitos, e essa voz rouca e sedutora. E suas habilidades interpretativas e seus sorrisos e sua risada... e seu
conhecimento de regras relativas a uma aventura.
Uma atriz com semelhante atrativo e experiência bem podia ter tomado o controle de seu encontro, de
modo que tivesse acabado liberando uma batalha de desejos e vontades para estabelecer o domínio e o controle
durante sua primeira experiência como amantes. Tinha a certeza de que teria desfrutado - como poderia alguém
não desfrutar de uma relação sexual com uma mulher como Claire Campbell?-, embora não tanto como o jogo
que ele mesmo pusera em prática e ao qual ela se amoldou. O jogo da sedução lenta e pausada.
Enquanto lhe escovava essa gloriosa juba ruiva, a moça se sentou na cama como uma virgem recatada e o
desejo o tinha inundado como a enchente de um rio que arrastava tudo a sua passagem depois de ter quebrado o
dique. Claire lhe tinha permitido liderar cada passado do caminho, embora ele tivesse sido consciente do
crescente desejo que a embargava, assim como de seus mamilos eretos e da umidade que evidenciava seu estado
de excitação. Seu orgasmo tinha estalado com força e fora adulador. Muitas mulheres o fingiam e imaginavam
que seus amantes não percebiam o engano. A autenticidade de seu clímax lhe tinha outorgado a permissão para
alcançar o seu próprio com rapidez, sem sentir-se tão desajeitado como um escolar em plena efervescência
sexual.
A moça saiu de trás do biombo e rodeou a cama para o lugar que estava vazio. Rannulf sentiu que lhe secava
a boca ao vê-la. Seu maior pesar radicava no fato de que fosse uma aventura de uma só noite. Necessitaria todo
um mês ou mais para explorar por completo as delícias desse corpo, para saciar o apetite que despertava nele.
-
Não se deite - disse - Se ajoelhe sobre o colchão. Ela o obedeceu e se ajoelhou frente a ele, olhando-o
com uma expressão interrogante. O fogo tinha ficado reduzido a uns rescaldos incandescentes, mas a luz das
duas velas ainda tremulava no quarto.
-
Vamos brincar – disse - enquanto estendia um braço para pegar sua mão.
-
Muito bem - acessou Claire com seriedade. Rannulf riu baixo.
-
Já acabamos com a senhorita afetada - disse - foi delicioso, devo admitir. Prometo que não estou
acostumado a me mostrar tão... frenético em minhas relações. Só foi o efeito que sua serena obediência teve em
mim. Já a possui segundo meus desejos. Agora toca a você. O que você gostaria de fazer?
Claire o contemplou durante um bom momento. Até mesmo a imobilidade e essa expressão serena eram
capazes de excitá-lo.
-
Não sei – respondeu ao fim.
-
Tão vasto é seu arsenal? - Rannulf sorriu - Quem dera a noite durasse um mês para que pudesse
desdobrar tudo comigo. Acha que um mês seria suficiente? Se decida. Sou todo seu. Seu escravo, se assim
desejar. Faz o que quiser comigo. Faça-me amor, Claire. Desfruta do sexo comigo. - Estendeu os braços e as
pernas sobre o colchão.
A moça permaneceu imóvel durante um tempo. Entretanto, seus olhos o percorreram de cima abaixo com as
pálpebras entreabertas, comprovou Rannulf enquanto a observava. Houve um instante em que lambeu os lábios;
a ponta de sua língua se moveu muito devagar de uma comissura até a outra.
Era muito mais preparada e bastante mais experimentada do que tinha suposto. Tinha imaginado que se
lançaria sobre ele e o submeteria a um bom número de deliciosas e descaradas torturas sexuais que os levassem a
um estado de frenesi pré- sexo. Tinha percebido de que sua forma de vestir era discreta. O mesmo acontecia com
seu comportamento. Rannulf se sentiu arder pouco a pouco sob esse lânguido escrutínio, estremecendo
adiantado.
E nesse momento Claire se inclinou sobre ele e o tocou com as pontas dos dedos, que estavam frios por
causa da água com a qual acabava de lavar-se. Tocou-lhe a testa e deslizou os dedos entre seu cabelo. Deslizou os
dedos por seu rosto, deixando que o indicador riscasse o perfil aquilino de seu nariz - um legado familiar que
compartilhava com praticamente a totalidade de seus irmãos - e depois percorreu com suavidade o contorno de
seus lábios antes de apoiar ambas as mãos sobre seus ombros e inclinar a cabeça para beijá-lo na boca. Oculto
por sua juba ruiva, Rannulf sentiu o movimento de sua língua sobre os lábios e assim que os separou, a moça não
duvidou em afundar-se em sua boca. Resistiu ao desejo de sugá-la. Devia interpretar um papel passivo durante
esse tempo; um tempo bastante longo, esperava. Não tinha muito claras as intenções de Claire, mas até esse
momento o estava encantando o joguinho. Talvez estivesse fazendo o mesmo que ele fez com ela: seduzindo-o
com lentidão. E estava conseguindo. Sentia-se embriagado pelo prazer.
As mãos e a boca de Claire - junto com a língua e os dentes - descenderam devagar por seu corpo,
detendo-se ali onde ele dava a mais ligeira amostra de satisfação. Pequena bruxa! Como se não conhecesse muito
bem todas e cada uma das zonas erógenas de um homem. Sugou seus mamilos e deslizou a língua sobre eles com
muita suavidade, até que Rannulf esteve a ponto de dar um salto e acabar com o jogo sem nem sequer ter
chegado à culminação que ela estava procurando. Permaneceu imóvel e se concentrou em respirar.
A moça cobriu cada centímetro de seu corpo com suas levianas, frescas e eróticas carícias, salvo aquele lugar
que tinha voltado para a vida e que tinha alcançado toda sua dureza e longitude muito antes que ela tivesse
acabado. Quando passou junto a ele o esquivou. Que malvada! Cada vez lhe custava mais controlar-se para não
ofegar.
E então o tocou ali, tomando-o por completo entre suas frias mãos. A princípio o sustentou com tanta
delicadeza que Rannulf esteve a ponto de explodir, mas imediatamente tomou confiança e o rodeou com os
dedos para acariciá-lo e deslizar o polegar sobre a sensível ponta.
-
Você gosta? - perguntou em um murmúrio gutural que esteve a ponto de lhe fazer transbordar o limite.
-
Não sabe quanto, maldita seja - respondeu.
Claire virou a cabeça para olhá-lo com um sorriso, levantou-se sobre os joelhos colocou o cabelo atrás dos
ombros com ambas as mãos. Permaneceu na mesma postura durante um bom momento, sem deixar de olhá-lo
nos olhos.
-
Não quero fazer o resto sozinha - disse-lhe.
Liberado das restrições que o jogo lhe tinha imposto, Rannulf estendeu ambos os braços e lhe rodeou a
cintura com as mãos para elevá-la e deixá-la escarranchada sobre seus quadris. Manteve-a assim um momento,
deslizando as mãos por essas maravilhosas curvas enquanto ela continuava erguida, com as pernas separadas.
-
Vamos, - disse - Me leve a seu interior e cavalguemos juntos. Prometo-te que será uma cavalgada
maravilhosamente longa. Você gosta de cavalgar?
A expressão da moça se tornou de repente séria e dessa vez principiante.
-
Eu gosto de cavalgar contigo - depois de um breve silêncio. Pequena bruxa! Como se ele significasse algo
para ela. Não obstante, suas palavras obtiveram o efeito desejado.
Era uma sedutora consumada. Ou talvez soubesse que as pausas podiam resultar tão eróticas como os
movimentos. Passaram apenas uns momentos até que ela o tomou com cuidado com uma mão, colocou-se na
posição adequada, afastou a mão e se estendeu até ficar firmemente empalada sobre ele. Rannulf observou e
escutou como respirava fundo. Com uma mulher insignificante poderia ter suspeitado que não fosse mais que
uma argúcia deliberada para fazer um cumprimento a seu tamanho. Com ela, suspeitava que o prazer fosse
genuíno.
Claire se inclinou sobre ele, apoiou-se sobre as mãos e seu cabelo voltou a ocultá-lo como uma cortina.
Cravou os olhos nos seus. Rannulf lhe segurou os quadris com mais firmeza.
-
Me monte, - disse - Serei uma montaria mansa sob seu corpo. Você imporá o ritmo e a velocidade. Você
decidirá o destino e a distância que percorreremos antes de chegar. Que seja uma longa distância.
-
Cem quilômetros - replicou ela.
-
Mil.
-
Mais.
A princípio começou a mover-se muito devagar, sentindo-o em seu interior, ajustando sua posição para a
cavalgada, esticando seus músculos internos em torno dele até descobrir o ângulo perfeito. E depois o montou
com mais firmeza, deixando que seu membro se afundasse nela cada vez mais, cada vez mais confiada. Rannulf
jamais se encontrou com uma habilidade tão enganosamente cândida em nenhuma outra mulher. Bem poderia
ser que Claire o impedisse de desfrutar com alguma outra no futuro, pensou enquanto se acomodava a seu ritmo
e elevava os quadris em contraponto, investindo quando ela descia e saindo de seu corpo em cada ascensão;
rodando e ajustando sua posição, para afiançá-la sobre ele e aumentar seu prazer sem afastar as mãos de seus
quadris. Estava muito excitada e a umidade de seu corpo o atraía sem remédio. Não demorou a escutar os
eróticos sons que essa umidade provocava com cada movimento... e os ofegos com os que ambos respiravam.
Essa moça sabia muito bem como utilizar seus músculos internos para excitá-lo; para levá-lo a beira do clímax
sem catapultá-lo antes do tempo.
Rannulf a esperou. Esperou muito tempo; teria podido esperá-la toda uma eternidade se fosse necessário.
Claire pusera em marcha um jogo delicioso e lento, e ele era capaz de manter-se a sua altura durante toda a noite,
devolvendo carícia por carícia. No entanto, a moça se esticou afinal, apoiou todo seu peso sobre os joelhos e a
parte inferior das pernas, fechou os olhos e deixou que as pontas de seus dedos lhe roçassem o abdômen.
Enquanto a observava, percebeu que ela estava à beira do orgasmo: na realidade levava já um momento à beira,
mas não era capaz de alcançá-lo. A diferença de outras mulheres, não ia fingir um clímax para adular suas
habilidades nem para dar por terminado o encontro.
Rannulf afastou uma mão de seus quadris e a introduziu entre seus corpos, depois estendeu um dedo até
encontrar o lugar que procurava e acariciá-lo ligeiramente.
Claire jogou a cabeça para trás enquanto seu cabelo deslizava por suas costas como uma nuvem de cor
acobreada, esticou todos seus músculos e deixou escapar um grito. Rannulf a segurou pelos quadris com mais
força e se introduziu nela com um par de poderosas arremetidas que o fizeram alcançar seu próprio clímax com
um grunhido.
-
Ao menos dois mil quilômetros - disse quando ela ergueu a cabeça e o olhou como se não soubesse
muito bem onde se encontrava nesse instante.
-
Sim - replicou a moça enquanto se retirava dela para girá-la na cama e deixá-la deitada a seu lado. Ato
seguido inclinou a cabeça e lhe deu um profundo e terno beijo.
-
Obrigado - disse - É maravilhosa.
-
E você também - disse por sua vez - Obrigado, Ralph.
Olhou-a com um sorriso. Adorava escutar o som do seu nome em seus lábios.
-
Acredito – comentou - que ganhaste um sono.
-
Sim - assentiu Claire. - Mas não muito longo.
-
Não?
-
Quero continuar brincando - replicou.
Se não estivesse tão exausto, teria tido outra ereção nesse mesmo instante. Em troca, riu baixo.
-
Nesse sentido - disse, - estou disposto a agradá-la sempre, senhora. Bom, quase sempre. Antes devemos
dormir ou não haverá nada com o que brincar.
A moça soltou uma pequena gargalhada e Rannulf a rodeou com os braços antes de agasalhar a ambos com
as mantas e dormir com um sorriso nos lábios. Sua última lembrança consciente foi o repico da chuva nos vidros.
CAPÍTULO 4
A chuva caía com força contra as janelas. Não parou por toda a noite. Sem dúvida seria impossível viajar essa
manhã. Talvez ficasse um pouco mais de tempo, apesar de tudo.
Judith não abriu os olhos. Jazia apoiada pela metade sobre as costas e o lado, com um quente braço sob o
pescoço e o outro apoiado pesadamente sobre sua cintura. Tinha as pernas embaraçadas com outro par de
pernas. A respiração de Ralph era profunda, ainda estava dormindo. Cheirava a colônia, a suor e a homem. Por
curioso que parecesse, era uma mescla agradável.
Devia ter estado bastante ébria a noite anterior, porque de outra maneira jamais lhe teria passado sequer pela
cabeça fazer o que fez. Essa manhã estava sóbria e tinha uma ligeira dor de cabeça como aviso de que tinha
bebido mais da conta. Essa manhã compreendia a gravidade do que fez. Não era somente a questão de que se
transformar em uma mulher desonrada; isso importava o mínimo, dado que breve se transformaria em uma
parenta acolhida e em uma solteirona murcha. O que mais a preocupava era que a partir desse instante saberia o
que ia perder durante o resto de sua vida. A noite passada acreditou que as lembranças bastariam. Essa manhã
não estava tão segura.
E essa manhã também tinha pensado em algo mais... Senhor!.
Não havia dúvida de que estava muito ébria. Bem poderia haver ficado grávida durante qualquer um dos
quatro encontros da noite anterior. Com esse pensamento chegou o pânico, mas tentou mantê-lo a raia
concentrando-se em respirar com calma. Bom, não demoraria a inteirar-se. Seu período tinha que chegar nos
próximos dias. Se não acontecesse nada...
Pensaria nisso mais tarde.
Certamente fora uma noite gloriosa. O fato de que se acreditasse uma atriz e uma cortesã com experiência
tinha conseguido que se metesse no papel como nunca antes. As quatro taças de vinho também ajudaram, disso
não tinha dúvida. Mal podia dar crédito às coisas que fez, às coisas que ele fez, às coisas que fizeram juntos e a
incrível diversão de todo o processo. E aos deliciosos prazeres sensuais.
Jamais tinha suspeitado que Judith Law fosse capaz de desentender-se de toda uma vida de estritas normas
morais para converter-se em uma desavergonhada. Escutou a chuva e desejou que não parasse. Ainda não.
Ralph suspirou contra sua orelha e depois despertou sem afastar-se dela.
-
Mmm - murmurou, - alegra-me descobrir que não foi somente um sonho delicioso.
-
Bom dia. - virou o rosto para olhá-lo e logo se ruborizou ante a absurda formalidade dessas palavras.
-
Sem dúvida são bons. - Seus olhos azuis a contemplaram com expressão relaxada. - É a chuva o que
escuto cair contra o vidro?
-
Me atreveria a dizer - respondeu ela - que nenhuma carruagem se aventurará a viajar pelos caminhos
enquanto continuar a chover. Arriscaria a segurança de seu cavalo ou a sua própria?
-
Nenhuma das duas. - Seus olhos se tornaram risonhos. - Suponho que isso significa que estamos presos
aqui durante este dia e é provável que também outra noite, Claire. Pode imaginar um destino mais terrível?
-
Talvez se pusesse muito empenho... - respondeu ela, observando o sorriso que aparecia no rosto de
Ralph.
-
Vamos morrer de aborrecimento - predisse ele. - Como vamos passar o tempo?
-
Teremos que pôr nossa mente para funcionar para solucionar o problema - respondeu com um tom de
voz deliberadamente sério - Talvez juntos encontremos uma solução.
-
Se não nos ocorre nada - comentou ele com um suspiro, - não restará outro remédio que ficarmos na
cama e matar as aborrecidas horas aqui mesmo até os caminhos comecem a secar.
-
Que aborrecido - disse ela. Ralph a olhou nos olhos.
-
Aborrecido - repetiu ele com voz grave. - Sim, sem dúvida alguma. Ela compreendeu de repente o que
queria dizer, ruborizou-se e depois soltou uma gargalhada.
-
O duplo sentido foi acidental - disse.
-
Que duplo sentido? - Ela voltou a rir - De qualquer forma - comentou ele enquanto tirava o braço de
debaixo da cabeça e se separava dela para sentar-se na beira da cama, - a parte aborrecida do dia terá que esperar.
Advogo pelo café da manhã. Poderia comer uma vaca. Tem fome?
Tinha. Muita. Quem dera tivesse mais dinheiro. Ele pagará o quarto e o jantar, e era de supor que estava
disposto a fazer o mesmo essa noite. Não podia esperar que seguisse fazendo frente a seus gastos durante todo o
dia.
-
Me bastará uma taça de chá - respondeu ela.
Ralph levantou da cama e espreguiçou enquanto se virava para olhar, alheio a sua nudez. Mas claro, por que
deveria preocupar-se? Tinha um corpo incrível. Judith não pôde evitar devorá-lo com o olhar.
-
Isso não é muito adulador -disse ele enquanto a contemplava com um sorriso bastante zombador Supõe-se que o bom sexo o deixa faminto. E a única coisa que quer é uma taça de chá?
Essa palavra, sexo, nunca fora pronunciada em voz alta na reitoria nem em nenhum grupo de pessoas do
qual ela tivesse tomado parte. Era uma palavra que sempre tinha evitado, inclusive em seus pensamentos,
substituindo-a com eufemismos. Ele a tinha pronunciado como se formasse parte de seu dia a dia, algo que era
mais provável.
-
Sim foi bom. - sentou-se pondo muito cuidado em segurar o lençol sobre o busto e sob os braços, e
abraçou os joelhos - Sabe de sobra.
Ele a contemplou com atenção uns instantes. - Quão vazia está sua bolsa? - perguntou. Judith sentiu que se
ruborizava de novo.
-
Bom, não tinha previsto parar no caminho – explicou - só trouxe comigo o que estimei necessário para
uma viagem sem interrupções. Sempre se corre o risco de que assaltem a carruagem.
-
Como é possível que uma atriz de seu talento esteja três meses sem trabalhar? -inquiriu.
-
Bom, não estava sem trabalho - assegurou - Tomei um tempo de descanso porque estava... estava farta de
me encontrar sempre longe de casa. Faço-o de vez em quando. E sim tenho dinheiro. O problema é que não o
trago comigo.
-
Onde é sua casa? - perguntou. Seus olhares se encontraram. - Por aí –respondeu - É particular. Meu lugar
de descanso. Jamais digo onde é.
-
Me deixe adivinhar - disse ele: - é uma mulher independente e orgulhosa que não permite que nenhum
homem a proteja nem a mantenha.
-
Exato - assegurou. Quem dera fosse verdade...
-
Então esta ocasião vai ser uma espécie de exceção - afirmou Ralph. - Não oferecerei dinheiro por seus
serviços. Acredito que o desejo e o prazer que obtivemos ao satisfazê-lo foram mútuos. Mas sim pagarei sua
hospedagem durante o tempo que estejamos aqui. Não tem que se matar de fome a base de chá e água.
-Pode se permitir isso? - perguntou-lhe.
-
Sempre acreditei - respondeu ele - que qualquer salteador que decidisse me atacar teria que estar mal da
cabeça; e em caso de que não fosse assim, certamente que o estaria quando acabasse com ele. Não viajo com a
bolsa vazia. Posso me permitir pagar seu café da manhã e qualquer outra comida durante o tempo que estejamos
aqui.
-
Obrigado. Não podia insinuar que o devolveria em um futuro. Jamais teria dinheiro suficiente.
-
E agora - insistiu ele - me diga se fui bastante bom ontem à noite para que esteja faminta esta manhã.
-
Esfomeada. – Sorriu - Foi muito bom, como muito bem sabe.
-
Ah! - murmurou Ralph enquanto se inclinava um pouco para ela, - outro traço humano. Tem uma
covinha junto à comissura direita dos lábios.
Semelhante comentário obteve que recuperasse a seriedade. Essa era a terceira coisa que a tinha assolado
durante a infância: uma sardenta cabeça de cor cenoura com uma covinha.
-
É absolutamente encantador - assegurou ele - vou assear-me e a me vestir antes de descer, Claire. Pode se
reunir comigo quando estiver preparada. Bem podemos comer no salão público esta manhã e ver um pouco do
mundo. Vai ser um dia muito longo.
Judith esperava que se alongasse uma eternidade. Abraçou os joelhos com força quando ele desapareceu
atrás do biombo.
A Rannulf ocorreu que o destino lhe tinha repartido uma mão muito boa. Por regra geral, ficar preso na
estalagem de um povoado devido às inclemências do tempo teria sido o pior dos pesadelos. Em qualquer outra
circunstância, a inatividade o tornaria louco e o teria levado a tentar encontrar um modo de que tanto ele como
seu cavalo chegassem sãs e salvos a casa de sua avó apesar do perigo. Dava-se perfeita conta de que não estava a
mais de trinta quilômetros de Grandmaison Park.
Não obstante, as circunstâncias eram as que eram, e lhe aliviava saber que sua avó nem sequer sabia que
estava a caminho, embora a anciã sempre esperasse sua chegada poucos dias depois de sua convocação. Se
desejasse, poderia atrasar sua chegada ao menos uma semana sem que mobilizasse a todos os oficiais da área para
que saíssem em sua procura.
Quando apareceu no salão do térreo, Claire usava um vestido de algodão verde pálido, ainda mais singelo
que o de musselina do dia anterior. Penteou o cabelo de modo rígido sobre o alto da cabeça para trançá-lo e
recolhê-lo à altura da nuca. Rannulf tinha se acostumado à forma em que ela evitava ressaltar seus encantos. Sem
dúvida era uma atriz com classe, decidiu enquanto ficava em pé e a saudava com uma reverência.
Deram conta do copioso café da manhã sem pressa, conversando sobre assuntos sem importância até que o
hospedeiro lhes levou mais torradas e ficou para discutir a situação da agricultura e a bênção que supunha a
chuva depois de tantas semanas de caloroso e seco verão. Mais tarde, sua esposa lhes levou chá recém feito e
ficou a falar sobre o horrível clima e todo o trabalho extra que suportava as mulheres, que deviam limpar o chão
sem cessar porque seus maridos e seus filhos, sem importar o muito que os admoestasse ou os perseguisse com
uma vassoura, insistiam em sair sob a chuva, embora não tivessem nada que fazer, para depois deixar o chão
limpo cheio de água e lodo. Embora, conforme disse a mulher, persegui-los com a vassoura só piorava a situação,
porque em lugar de sair da casa corriam por ela em busca de refúgio; e no caso de que saíssem, acabavam por
voltar e tudo começava de novo.
Claire riu e se compadeceu dela.
Não passou muito tempo antes que o hospedeiro e sua mulher se alojassem em suas cadeiras e a esposa se
servisse uma taça de chá enquanto o homem bebia de um copo de cerveja, ambos dispostos a manter uma longa
conversação.
Rannulf achava mais gracioso o fato de estar sentado em uma mesa numa estalagem, que jamais poderia
qualificar-se de elegante por muito que a imaginação o tentasse, enquanto confraternizava com os criados.
Bewcastle, seu irmão, o duque, os teria transformado em duas pedras de gelo com somente um olhar. Teria
cortado de um rasgo suas pretensões com o mero gesto de um dedo ou com uma sobrancelha arqueada. Claro
que bastaria um olhar de Bewcastle para que ninguém abaixo da categoria de barão se atrevesse a sonhar sequer
levantar a vista do chão em sua presença a menos que ele o indicasse.
-
Por que - perguntou de repente o hospedeiro - viajava a senhora Bedard na carruagem enquanto que você
ia a cavalo senhor?
-
Nos comichava a curiosidade - explicou sua esposa.
Rannulf procurou o olhar de Claire, que estava sentada frente a ele. Tinha as faces acesas.
-
Santo Deus! - exclamou, - será melhor que você diga.
Ralph.
Mas ela era a atriz. Por que não podia inventar uma história verossímil? Contemplou-a uns minutos, mas
Claire se limitou a devolver o olhar com a mesma espera que o outro casal. Rannulf limpou a garganta.
-
Não tive em conta a delicada sensibilidade de minha esposa durante nosso almoço de bodas - explicou
sem afastar o olhar dela - Alguns de nossos convidados beberam muito vinho e alguns (meus primos, de fato)
fizeram alguns comentários indecentes. Por muito envergonhado que me sentisse ri. Minha brilhante esposa não
o fez. Nos informou que saía um instante e só mais tarde descobri que tinha fugido em nossa noite de bodas.
O rubor das faces de Claire se intensificou.
-
Vê? - disse a mulher do hospedeiro enquanto lhe dava uma cotovelada nas costelas - Disse que acabavam
de receber as bênçãos.
-
Alcancei-a ontem por fim - continuou Rannulf enquanto a via morder o lábio. - Alegra-me lhes informar
que me concedeu o perdão por haver rido quando não devia e que agora tudo está bem.
A moça abriu os olhos de par em par.
A mulher do hospedeiro virou a cabeça para olhar a Claire com um sorriso terno.
-
Neste caso, pombinha - disse - A primeira vez é a pior.
-
Embora para ser sincera não escutei soluços e não vejo rastros de lágrimas esta manhã, assim que me
atrevo a dizer que não foi tão mau como acreditou. Espero que o senhor Bedard saiba como fazê-lo bem. pôs-se a rir com ar conspiratório e Claire se uniu à mulher.
Rannulf olhou sobressaltado o hospedeiro, que o olhou por sua vez com idêntica expressão.
Claire e Rannulf saíram ao pátio depois do café da manhã, embora se surpreendesse que a moça pedisse para
acompanhá-lo. Rannulf queria ver seu cavalo para assegurar-se de que não se machucara no dia anterior e de que
fora atendido como correspondia. Queria escová-lo e lhe dar de comer ele mesmo essa manhã. Claire colocou as
botas de cano longo e a capa, ergueu o capuz e ambos cruzaram o pátio descoberto correndo, tentando pisar
sobre os montes de erva e assim evitar o barro e o esterco na medida do possível.
A moça se sentou sobre um monte de feno limpo enquanto ele trabalhava. Tirou o capuz e abraçava os
joelhos.
-
Pequena história - comentou.
-
Refere-se a da noiva puritana? Também me pareceu isso. -
Sorriu.
-
A hospedeira em pessoa vai limpar nossos aposentos e assegurar-se de que se acenda o fogo nas lareiras
dos dois aposentos - informou - Deve ser uma grande honra que ela nos atenda em lugar da criada. Não me
parece justo enganá-los, Ralph.
-
Acaso preferiria lhes dizer a verdade? - inquiriu ele. Seu cavalo não parecia estar em mal estado, embora
não cessava de soprar inquieto. Queria sair e fazer exercício.
-Não – respondeu - Isso tampouco seria justo. Rebaixaria a categoria de seu estabelecimento.
Ele arqueou as sobrancelhas, mas não disse nada.
-
Como se chama seu cavalo? - perguntou-lhe.
-
Bucéfalo - respondeu Rannulf.
-
É valioso.
-
Sim.
Guardaram silêncio enquanto ele terminava de escovar o cavalo, tirava o feno sujo do estábulo para
substituí-lo por feno limpo e dava de comer e de beber ao animal. Era algo muito surpreendente. À maioria das
mulheres que conhecia adoravam tagarelar, com a notável exceção de sua irmã Freyja. Claro que Freyja era uma
exceção à maioria das regras. O silêncio entre eles era cômodo. Não se sentia coibido ante o sereno escrutínio da
moça. -Você gosta dos cavalos - afirmou Claire uma vez que ele havia terminado e se apoiou contra uma escora
de madeira com os braços cruzados - Tem mãos delicadas.
-
Sério? - Esboçou um meio sorriso. - Você não gosta dos cavalos?
-
Não tive muito contato com eles - admitiu a moça - Acredito que tenho um pouco de medo.
Entretanto, antes que pudessem aprofundar a conversação, apareceu um moço de estábulo para informar
que a mulher do hospedeiro tinha preparado uma jarra de chocolate quente que os esperava no salão, de modo
que atravessaram correndo de novo o pátio e pulando uma vez mais os atoleiros. A chuva parecia cair com
menos força.
Sentaram-se e falaram durante umas duas horas até que o almoço estava preparado. Falaram a respeito dos
livros que leram e a respeito da guerra, recém acabada com a derrota e captura de Napoleão Bonaparte. Rannulf
falou de seus irmãos e irmãs sem lhe dizer exatamente quem eram. Falou de Wulfric, o mais velho; de Aidan, o
oficial de cavalaria que tinha voltado para casa de licença, casou-se e decidiu abandonar o exército; de Freyja, que
esteve a ponto de comprometer-se duas vezes com o mesmo homem, mas que o perdeu nas mãos de outra
mulher no ano passado e que parecia uma fúria depois; de Alleyne, seu charmoso irmão mais novo; de Morgan, a
pequena, a irmã que ao que parece ia ser mais linda do que qualquer uma teria direito de ser.
-
A menos – acrescentou - que tivesse o cabelo da cor do fogo, olhos verdes e pele de porcelana. - e o
corpo de uma deusa, acrescentou para si mesmo. - Fale-me de sua família.
Falou-lhe de suas três irmãs: Cassandra, a mais velha; Pamela e Hilary, que era a pequena. E também falou de
seu irmão, Branwell. Seus pais ainda viviam. Seu pai era um clérigo, o que explicava por que se afastou de sua
família. O que teria motivado à filha de um clérigo a transformar-se em atriz? Não formulou a pergunta e não
ofereceu informação a respeito.
Mas quando terminaram de almoçar, a chuva se transformou em uma ligeira garoa. Se cessasse na próxima
hora, os caminhos estariam transitáveis no dia seguinte. A ideia era de certa forma deprimente. O dia parecia
estar passando muito depressa.
-
O que podemos fazer para nos divertir neste povoado? - perguntou à hospedeira quando esta se
aproximou para retirar os pratos; ao que parece os consideravam muito importantes para que fossem atendidos
pela criada. A criada em questão estava ocupada servindo cerveja aos paroquianos no bar contíguo.
-
Não há muito que fazer em um dia como este - respondeu a mulher enquanto se endireitava, colocava os
braços na cintura e franzia o cenho em um gesto de concentração. - Não é dia de mercado. Só há uma igreja, e
não é nada do outro mundo.
-
Há lojas? - perguntou Rannulf.
-
Bom, há a loja de provisões do outro lado do prado - respondeu com jovialidade, - a chapelaria está ao
lado e a ferraria depois. Embora não acredite que você necessite dos serviços do ferreiro.
-
Nos conformaremos com a loja de provisões e a chapelaria respondeu ele. - Tenho intenção de comprar
para minha esposa um chapéu novo, já que fugiu sem nenhum.
O do Claire, ao menos o único que levara consigo, ficou esquecido dentro da carruagem, ou isso havia dito
antes.
-
Nem pensar! – protestou - Na verdade não tem por que fazê-lo. Não poderia permitir que...
-
Aceite algo que lhe ofereça, pombinha - aconselhou a hospedeira com uma piscada. - Me atreveria a dizer
que ganhou ontem à noite.
-
Além disso - adicionou Rannulf, - supõe-se que as esposas não devem questionar a forma em que seus
maridos gastam o dinheiro, não é certo?
-
Não enquanto o gastem nelas. - A mulher pôs-se a rir de boa vontade e desapareceu com os pratos.
-
Não posso permitir que... - começou Claire.
Ele se inclinou sobre a mesa e colocou uma mão sobre as suas. - É mais que possível -disse - que todos os
chapéus da loja sejam horrendos. Mas de qualquer maneira iremos vê-los. Quero comprar um presente. Não
tenha a menor dúvida de que ganhaste isso. Um presente não é mais que um presente.
-
Mas eu não tenho dinheiro para comprar um - protestou ela. Ele arqueou uma sobrancelha e ficou de pé.
Era evidente que era uma mulher orgulhosa. Seria capaz de deixar loucos alguns protetores em potencial se
alguma vez atracasse nos salões dos teatros de Londres.
Todos os chapéus que estavam à vista na chapelaria eram de fato horrendos. Mas qualquer esperança que
tivesse albergado Judith de evitar a mortificação que suporia receber um presente se esfumou quando a senhorita
Norton desapareceu nos fundos da loja para depois sair com um chapéu nas mãos.
-
Este - disse, avaliando Ralf com uma olhada - guardei para um cliente especial.
Judith se apaixonou a primeira vista. Era um chapéu de palha com uma aba pequena e fitas vermelhas. Na
parte superior da aba, onde se unia com a copa, havia uma fileira de flores de seda com as intensas cores do
outono. Mesmo que por isso não fosse um chapéu empetecado. A simplicidade era seu maior atrativo.
-
E ressalta a compleição da senhora - comentou a senhorita Norton.
-
Prove - disse Ralf. - Mas...
-
Prove
Ela assim o fez, ajudada pelas ágeis mãos da senhorita Norton, que lhe atou as largas fitas no lado esquerdo
do queixo e depois pegou um espelho de mão para que Judith pudesse contemplar-se.
É precioso. Podia ver seu cabelo sob o chapéu, tanto pela frente como pela parte posterior. Todos os
chapéus que havia possuído sua mãe os tinha escolhido com toda deliberação - embora contasse com sua total
aprovação - para esconder a maior quantidade de seu cabelo cor cenoura que fosse possível.
-
Levaremos esse - anunciou Ralf.
-
Mas... – virou-se para olhá-lo de frente.
-
Não se arrependerá, senhor - afirmou a senhorita Norton. - A beleza da senhora toca a perfeição.
-
Sem dúvida - concordou ele enquanto tirava um moedeiro do bolso interno do casaco. - Nós ficamos.
Ela o usará agora.
Judith engoliu em seco com desconforto. Não era permitido que uma dama aceitasse um presente de um
cavalheiro que não fosse seu noivo. E inclusive nesse caso...
-
Que tolice! Menina estúpida pensar no que faria uma mulher depois da noite passada. E o chapéu era a
coisa mais bonita que havia possuído em toda sua vida.
-
Obrigado - disse e foi então quando percebeu a quantidade de cédulas que estava estendendo à senhorita
Norton. Judith fechou os olhos, horrorizada, e sentiu o prazer contraditório que supunha possuir algo novo, caro
e encantador.
-
Obrigada - repetiu quando saíram da loja e ele abriu sobre suas cabeças o enorme e velho guarda-chuva
que o hospedeiro tinha insistido em lhes emprestar para cruzar o pantanoso prado que se estendia entre a
estalagem e as lojas. - É incrivelmente lindo.
-
Embora fique de todo eclipsado por sua proprietária – disse - vamos ver o que nos oferece a loja de
provisões?
O estabelecimento tinha praticamente de tudo, e a maioria dos produtos eram baratos, escandalosos e de um
gosto execrável. Entretanto, olharam tudo, colados um ao outro, enquanto sufocavam a risada ante os artigos
mais espantosos. Depois, o lojista encetou com Rannulf uma discussão sobre o tempo, que começava a melhorar
por fim. O sol brilharia pela manhã, predisse o homem.
Judith tirou seu moedeiro da bolsa de mão e contou rapidamente as moedas. Sim, tinha o justo. Embora
esperasse que a diligência a levasse a casa de sua tia no dia seguinte sem maiores demoras, já que não ficaria nada
para comer. Mas não se importava. Agarrou uma caixinha de rapé de uma estante e a levou ao balcão. Riram ao
vê-la porque tinha uma cabeça de porco especialmente horrorosa na tampa. Pagou a importância enquanto Ralph
trabalhava muito para fechar o guarda-chuva, já que não o precisariam no trajeto de volta através do prado.
Deu-lhe o presente à saída da loja. Ele se pôs a rir quando o desembrulhou.
-
E isto é a medida da estima que sente por mim? - perguntou-lhe.
-
Talvez assim me recorde cada vez que desfrutes de um bom espirro - respondeu-lhe.
-
É claro que sim - disse-lhe enquanto abria o casaco para guardar a caixinha com extremo cuidado no
bolso - que a recordarei, Claire. Mas entesourarei seu presente. Gastou até a última moeda que tinha?
-
Não, é claro que não - assegurou-lhe.
-
Mentirosa. - Enlaçou seu braço com o dela. - Quase passou a tarde e o aborrecimento ainda não nos
conduziu de volta à cama. Embora me parecesse que está a ponto de fazê-la. Acredita que acharemos tedioso o
tempo que passemos ali?
-
Não - respondeu ela, que se sentiu de repente sem fôlego.
-
Sou da mesma opinião - afirmou ele. - O hospedeiro e sua encantadora senhora nos alimentaram bem.
Teremos que encontrar um modo de abrir o apetite para fazer justiça ao jantar que sem dúvida estão nos
preparando. Ocorre-lhe alguma maneira de consegui-lo?
-
Sim - respondeu ela.
-
Só uma? - Estalou a língua.
Judith sorriu. Sentia-se bonita com seu novo chapéu, o presente que lhe deu descansava em seu bolso e
retornavam à estalagem... na cama. Tinham o resto da tarde e a noite por diante. Faria que durasse uma
eternidade.
Levantou os olhos para o céu, mas já se viam claros entre as nuvens e começava a aparecer o céu azul. Não
olharia. Ainda faltavam horas para que chegasse o amanhã.
CAPÍTULO 5
-
Olhe - disse Claire com uma ligeira nota de assombro na voz. - Viu alguma vez uma imagem mais
maravilhosa?
A moça estava junto à janela aberta da saleta privada, com os cotovelos apoiados no batente e o queixo sobre
as mãos, observando como o sol se ocultava sob um céu coalhado de matizes de cor alaranjada, rosa e dourado.
Usava um vestido de seda de listras bege e dourado, muito de acordo com o que Rannulf começava a identificar
como seu característico estilo singelo e elegante. O cabelo, que lhe caía solto pelas costas, parecia escuro em
comparação.
Claire era uma constante fonte de surpresas. Quem teria imaginado que uma atriz se maravilharia diante de
um pôr-do-sol? Ou que seus olhos mostrariam tal fascinação por um chapéu delicioso em sua beleza, mas nem
muito ostentoso ou caro? Ou que riria como uma tola por uma caixinha de rapé horrorosa em troca de que
gastou o último xelim de sua atribuição para a viagem? Ou que faria amor sem ocultar o deleite que lhe produzia?
-
Ralph? - Claire voltou à cabeça e estendeu uma mão para ele. - Vem olhar.
-
Já estava olhando – disse - Você forma parte do quadro.
-
Não precisa ficar me adulando – replicou. - Vem olhar.
Rannulf lhe deu a mão e se colocou junto dela. O problema do pôr-do-sol era que a escuridão chegava lhe
pisando os calcanhares. Igual ao problema com o outono era que o inverno não demorava em segui-lo. Mas o
que era que o estava pondo tão sensível?
-
O sol brilhará amanhã - disse Claire.
-
Sim.
Apertou-lhe a mão.
-
Me alegro muito que tenha chovido - prosseguiu a moça. - Alegro-me que a diligência tenha tombado.
Alegro-me de que não procurasse hospedagem no último povoado.
-
E eu. - Rannulf afastou a mão da dela para lhe rodear os ombros com o braço.
Claire se recostou contra ele e ambos contemplaram como o sol desaparecia depois do longínquo horizonte.
Queria deitar-se com ela de novo. Tinha toda a intenção de fazê-lo, tantas vezes durante a noite quanto sua
energia permitisse. Entretanto, essa noite não sentia a urgência que o tinha acompanhado a noite anterior nem a
lasciva euforia dessa tarde. Essa noite se sentia quase... melancólico. E não era um estado de ânimo ao qual
estivesse acostumado.
Depois de retornar das lojas, entregaram-se ao prazer de duas vigorosas relações sexuais; entre lençóis
limpos, conforme pode comprovar. Tinham dormido um pouco e depois jantaram em particular. Claire tinha
representado Viola e Desdémona para ele. E então se fixou no pôr-do-sol.
Estava ficando tarde. O tempo se esgotava e lamentava muito não poder prosseguir com essa aventura até
que concluíra por si mesmo de modo natural, talvez em alguns dias ou um pouco mais de uma semana.
Claire suspirou e virou a cabeça para olhá-lo. Rannulf a beijou.
Gostava do modo de beijar da moça, com os lábios relaxados e abertos para ele, lhe respondendo sem
urgência para tomar o controle. Sua boca tinha sabor de vinho apesar de só ter bebido uma taça durante o jantar.
E foi enquanto a beijava quando lhe ocorreu a ideia. A brilhante ideia. A ideia mais óbvia.
-
Partirei contigo amanhã - disse após levantar a cabeça. - O que? - Claire o olhou com as pálpebras
entreabertas.
-
Partirei contigo amanhã - repetiu Rannulf.
-
Na diligência? - Franziu o cenho.
-
Alugarei uma carruagem particular – disse - Deve haver alguma disponível aqui por perto. Viajaremos
muito mais cômodos.
E...
-
Mas o que acontecerá com seus amigos? - perguntou ela.
-
Não acredito que enviem uma patrulha de busca - respondeu. - Nem sequer confirmei uma data exata de
chegada. Irei contigo a York. Ardo de desejo de vê-la atuar em um cenário de verdade junto a outros atores. E o
nosso caso ainda não terminou, certo?
Ela o olhou sem piscar.
-
Não, não - replicou Claire. - Não poderia lhe causar semelhante incômodo. Uma carruagem particular
custaria uma fortuna.
-
Minha bolsa está bastante cheia - afirmou ele.
A moça negou muito devagar com a cabeça e Rannulf teve um repentino pressentimento.
-
Há alguém a esperando? – perguntou - Acaso outro homem?
-
Não.
-
Outra pessoa, possivelmente? - prosseguiu ele com as perguntas. - Outra pessoa que possa sentir-se
ofendida pelo fato de que eu a acompanhe?
-
Não.
Entretanto, Claire continuava expressando sua negativa com um lento movimento de cabeça. A Rannulf
ocorreu outra possibilidade bastante sombria.
-
O nosso caso terminou? – inquiriu. - Ou continuaremos juntos depois de compartilhar outra noite? Se
alegrará voltar a ser livre manhã e prosseguir seu caminho solitário?
De novo uma negativa, para alívio de Rannulf.
-
Quero mais de você, Claire – insistiu. - Quero mais de seu corpo, mais de você. Quero vê-la atuar. Não
ficarei para sempre, só durante uma semana sim, até que ambos estejamos satisfeitos. É uma mulher
independente que não gosta de sentir nada por um só homem, já me dei conta disso. Eu sou um homem que não
tem problemas para seguir adiante depois de desfrutar uma breve aventura. Mas amanhã é muito de repente.
Além disso, não acredito que esteja desesperada por subir na diligência e se sentar de novo junto a outro clérigo
esquelético.
Claire não moveu a cabeça dessa vez. Durante um instante apareceu em seus lábios um pequeno sorriso.
-
Me diga que quer mais de mim - disse Rannulf aproximando-se de sua boca.
-
Quero mais de você.
-
Nesse caso estamos de acordo. - Deu-lhe um fugaz beijo. - partiremos juntos amanhã. A acompanharei a
York e a verei atuar. Passaremos mais uns dias juntos, talvez uma semana. Possivelmente mais. Tanto tempo
quanto dure.
A moça voltou a esboçar um leve sorriso e lhe acariciou a face com as pontas dos dedos.
-
Isso seria estupendo - disse.
Rannulf cobriu a mão com a sua e depositou um beijo sobre sua palma. Quem ia imaginar, no dia anterior,
quando deixou a casa de Aidan de caminho a Grandmaison, que cavalgaria direto aos braços de uma nova
amante e de uma tórrida aventura? Tinha amaldiçoado o barro e a ameaça de chuva, mas ambos acabaram por ser
uma bênção.
-
Pronta para ir para cama? - perguntou. Ela assentiu com a cabeça.
Rannulf estava exausto. Quatro vezes na noite anterior e duas mais nessa mesma tarde fizeram trinca em sua
resistência e sem dúvida alguma também na de Claire. Não obstante, essa noite não tinha por que ser tão
desesperada como tinha previsto. Não era preciso que permanecessem acordados toda a noite para aproveitar ao
máximo cada momento. Tinham muitos dias e muitas noites por diante, tantos quanto necessitassem.
-
Vamos, - Tomou de novo a mão e a precedeu até o dormitório. - Desfrutaremos fazendo amor muito
devagar e depois dormiremos, está bem?
– Sim - respondeu ela com um murmúrio rouco cuja tentadora e sensual promessa prendeu por completo
Rannulf.
Já havia luz no exterior, embora provavelmente fosse muito cedo. A diligência deixaria a estalagem às oito e
meia, conforme lhe tinha informado o hospedeiro na noite anterior, embora o homem tivesse suposto que o
senhor e a senhora Bedard não prosseguiriam sua viagem nela.
E não o fariam. Mas Judith Law o faria se tivesse a possibilidade. Não podia partir com Ralph. Aonde iriam?
A aventura acabou. Seu sonho roubado se transformou em algo vazio e sem brilho. Uma dor surda lhe
apertava o peito como se fosse uma mão enorme. Teria que despertar Ralph dentro de pouco e sugerir que fosse
procurar uma carruagem de aluguel sem parecer muito ansiosa a respeito. Não tinha coragem para lhe contar a
verdade, nem tampouco para urdir outra mentira. Era muito covarde para lhe dizer que não, que não partiria com
ele, que continuaria sua viagem sozinha na diligência.
Dizer a verdade seria o mais honorável e talvez o mais considerado.
Entretanto, não suportaria ter que dizer adeus.
Ralph tinha dormido como uma pedra durante toda a noite depois de fazer amor muito devagar, quase com
frouxidão. Ela tinha passado as horas deitada a seu lado, olhando o teto; fechando os olhos de vez em quando
sem chegar a dormir; observando a janela a espera dos primeiros indícios de luz; desejando que a noite durasse
uma eternidade e assim prolongar sua agonia.
Era-lhe difícil acreditar até há duas manhãs antes tivesse sido Judith Law que conhecera durante toda sua
vida. Nesse momento já não sabia quem era Judith Law.
-
Já está acordada? - perguntou Ralph do outro lado da cama e ela virou a cabeça para lhe sorrir. Para
embeber-se de sua imagem, para entesourar lembranças - dormiu bem?
-
Mmm - murmurou ela.
-
Eu também. - Se espreguiçou - dormi como uma pedra, tal e como reza o ditado. Sem dúvida sabe como
esgotar um homem, Claire Campbell. Da melhor maneira possível, está claro. - Partiremos cedo? - perguntou.
Ralph pôs os pés no chão para levantar-se da cama e atravessou o quarto em direção à janela.
-
Nenhuma nuvem no céu - informou depois de abrir as cortinas - e nem sequer se vê um atoleiro no pátio.
Não há motivo algum para atrasar-se. Talvez devesse sair em busca de uma carruagem assim que me tenha
vestido e barbeado. Podemos tomar o café da manhã mais tarde, antes de partir.
-
Parece-me um bom plano - disse ela.
Desapareceu atrás do biombo e Judith pôde escutar o ruído da água ao verter-se sobre a bacia. Como
desejava que se apressasse. Como desejava que o tempo parasse.
-
Alguma vez teve relação sexual em uma carruagem, Claire? - perguntou-lhe.
Judith captou a nota risonha de sua voz.
-
Asseguro-lhe que não. - Dois dias atrás, semelhante pergunta a teria escandalizado até o inexprimível.
-
Há! – exclamou - Nesse caso prometo que hoje terá uma nova experiência.
Apareceu de novo uns minutos depois, completamente vestido com camisa, colete e jaqueta, além das calças
de montar de antes e as botas de cano longo; afastou o cabelo úmido do rosto recém barbeado. Caminhou para a
cama onde ela continuava deitada, inclinou-se e lhe deu um beijo rápido.
-
Assim, com o cabelo esparramado sobre o travesseiro e os ombros nus – disse, - tentaria ao mais ascético
dos santos, entre cujas filas não me encontro. Entretanto, os negócios estão antes do prazer. Uma carruagem
pode converter-se em... uma cama da mais interessante, Claire.
Endireitou-se, esboçou um sorriso, deu meia volta e partiu.
Sem mais.
Foi-se.
O silêncio que deixou atrás dele era ensurdecedor.
Durante um instante Judith ficou tão mergulhada na tristeza que foi incapaz de mover-se. Não obstante,
entrou em ação sem perda de tempo e saltou da cama para correr para o biombo depois de apanhar sua roupa.
Quinze minutos mais tarde descia a escada com a pequena bolsa em uma mão e a pesada bolsa de viagem na
outra.
O hospedeiro, que estava limpando uma mesa no bar, endireitou-se para olhá-la e cravou os olhos em sua
bolsa de viagem. -Tenho que apanhar a diligência - disse ao homem.
-
Sim? - perguntou ele.
Sua esposa saiu nesse preciso momento por uma porta situada à esquerda de Judith.
-
O que aconteceu, pombinha? – perguntou. - foi brusco com você, não é? Falou-lhe com rudeza, não foi?
Não se preocupe. Os homens sempre falam sem pensar. Tem que aprender a enrolá-lo para engraçar-se com ele.
Não lhe custará trabalho algum. Já me dei conta do modo em que a olha. Adora-a, sim senhor.
Judith se obrigou a sorrir.
-
Tenho que partir - disse. Entretanto, lhe ocorreu algo de repente. - Poderiam me arrumar papel, pluma e
tinta?
O casal a contemplou em silêncio durante uns instantes antes que o hospedeiro corresse para o balcão em
busca das três coisas.
Estava esbanjando um tempo precioso, pensou Judith com o estômago encolhido pelo medo. Ralph
retornaria a qualquer momento e teria que dizer-lhe pessoalmente. Não seria capaz de suportar. Não poderia
suportar. Escreveu apressada, deteve-se um momento e depois voltou a inclinar a cabeça para acrescentar uma
frase mais. Assinou apressadamente com seu nome - Claire-, secou a tinta e dobrou a folha duas vezes.
-
Dará isto ao senhor Bedard quando retornar? - perguntou.
-
Farei, senhora - prometeu-lhe o hospedeiro enquanto ela se agachava para apanhar sua bolsa de viagem. Espere, direi ao moço do estábulo que leve sua bolsa.
-
Não tenho dinheiro para lhe pagar - disse Judith com as faces ruborizadas.
A hospedeira estalou a língua.
- Valha-me Deus! – replicou. - Acrescentaremos à conta de seu marido. Dá-me vontade de lhe dar com um
pau de amassar macarrão na cabeça, falo sério. Assustá-la deste modo...
Voltou a perder um tempo precioso enquanto chamavam o moço do estábulo, mas por fim Judith
abandonou a estalagem apressada em direção à casa de postas, com a cabeça encurvada sob seu novo chapéu.
Desejava, desejava de todo coração - por favor, Senhor! - não topar-se com Ralph no caminho.
E assim, meia hora depois, enquanto a diligência - um distinto, com um condutor distinto e com passageiros
distintos em sua maioria - saía do pátio da estalagem e tomava o caminho do norte, Judith colou o nariz à janela e
observou desesperada os arredores, desejando vislumbrar Ralph. Tinha o estômago revolto. A dor de cabeça do
dia anterior tinha retornado com força. Estava tão deprimida que perguntava se isso era o que as pessoas
chamavam desespero.
Rannulf retornou à estalagem quarenta minutos depois de havê-la abandonado, depois de acordar o aluguel
de uma carruagem mais ou menos decente e de dois cavalos a um preço exorbitante. Demorariam uma hora em
prepará-los. Teriam tempo para tomar o café da manhã. Voltava a sentir um apetite voraz. Esperava que Claire
não estivesse ainda na cama... sentia-se também um tanto excitado e o aspecto da moça fora muito tentador
quando ele saiu do quarto.
Subiu os degraus de dois em dois e abriu a porta com um empurrão. A cama estava vazia. Claire não estava
atrás do biombo. Abriu a porta da saleta particular. Tampouco estava ali. Maldição, em lugar de esperar tinha
descido para tomar o café da manhã. Não obstante, acabava de retornar à escada quando se deteve em seco,
franziu o cenho e deu meia volta. Entrou no dormitório e deu uma olhada ao redor.
Nada. Nem rastro de roupa, grampos ou bolsa. Nem da bolsa de viagem. Apertou os punhos de ambos os
lados do corpo e começou a sentir um princípio de fúria. Não podia fingir que se tratava de um mal-entendido. A
moça fugiu e o tinha abandonado. Sem uma palavra. Nem sequer teve a coragem de lhe dizer que partia.
Retornou ao térreo e topou cara a cara com o hospedeiro e sua esposa; o primeiro o olhava com aparente
compaixão enquanto que a mulher o fazia com os lábios apertados e soltando faíscas pelos olhos.
-
Suponho - começou Rannulf. - que foi na diligência.
-
Assustadiça - disse o hospedeiro. - As recém casadas, refiro-me. Algumas são assim até que se as
domestique como é devido.
-
As esposas não são cavalos - replicou sua esposa com severidade. - Suponho que terão discutido e que
você lhe terá dito algumas coisas feias. Espero que não a tenha maltratado. - A mulher semicerrou os olhos.
-
Não a maltratei - afirmou Rannulf, incapaz de acreditar que se rebaixou a defender-se diante de um casal
de criados.
-
Nesse caso será melhor que cavalgue atrás dela e engula o orgulho - advertiu-lhe a mulher. - Não lhe
ocorra dar-lhe uma reprimenda. Diga que está arrependido e que durante o resto de sua vida falará como Deus
manda.
-
Farei - acessou Rannulf, que se sentia mais estúpido e furioso até não poder mais. Nem sequer teve a
decência de...
-
Deixou-lhe uma nota - disse o hospedeiro, assinalando com a cabeça em direção ao balcão.
Rannulf virou a cabeça para ver um pedaço de papel dobrado sobre a tosca madeira. Atravessou a grandes
passadas o bar, agarrou-a e desdobrou o papel.
Não posso partir contigo - rezava a nota. - Sinto muito não ter a coragem de lhe dizer isso pessoalmente.
Sabe? É certo que há outra pessoa. Atenciosamente, Claire.
Tinha sublinhado a palavra há três vezes.
Assim esteve deitando-se e passando bem com a amante de outro homem, não? Assentiu com a cabeça um
par de vezes enquanto a seus lábios aparecia um sorriso zombador. Supunha que ao final sim fora um ingênuo ao
acreditar que uma mulher com sua aparência e sua profissão não contava com o amparo de algum homem
endinheirado. Enrugou o papel com uma mão e o guardou em um dos bolsos da jaqueta.
-
Imagino que quererá seu cavalo, senhor - disse o hospedeiro. - Para ir atrás dela.
Maldita fosse, o que queria era seu café da manhã. - Sim – respondeu. - Assim é.
-
Já está preparado - informou o homem. - Tomei a liberdade de fazê-lo depois de que a senhora sua
esposa partisse de...
-
Sim, sim - interrompeu Rannulf. - Dê-me a conta e me porei a caminho.
-
E sendo um recém casado há tão só duas noites... - disse a mulher. - Troquei a roupa da cama, senhor,
como terá notado. Supus que ontem à noite não iam querer deitar-se em lençóis manchados de sangue, não é
verdade?
Rannulf, que estava de cara para o balcão abrindo o moedeiro, tinha à mulher a suas costas. Ficou paralisado
durante um instante.
-
Lençóis manchados de sangue? - pensou.
-
Sim, dava-me conta - respondeu enquanto tirava a soma requerida mais uma generosa gorjeta. Obrigado.
Enquanto se afastava da estalagem a cavalo pouco depois, supostamente atrás de sua assustadiça e zangada
esposa, recitou todas e cada uma das obscenidades e maldições que lhe passaram pela cabeça.
-
Estúpido! - exclamou por fim em voz alta. - Era uma maldita virgem!
Nessa tarde, quando Judith desembarcou da carruagem no povoado de Kennon, em Leicestershire,
descobriu sem muita surpresa que não havia caleche, carreta ou criado algum de Harewood Granger esperando-a.
A casa estava a quase cinco quilômetros, conforme lhe informaram; e não, não havia nenhum lugar seguro onde
pudesse deixar sua bolsa de viagem. Teria que levá-la consigo.
Cansada, faminta e com o coração quebrado, Judith percorreu como pôde os cinco quilômetros, detendo-se
com frequência para soltar a bolsa e trocar de mão. Levava muito poucas coisas nela - não tinha muito que levar-,
mas era surpreendente o que podiam chegar a pesar alguns vestidos, sapatos, camisolas e escovas para o cabelo.
O sol caía com força sobre seu rosto do céu espaçoso. A sede não demorou muito em converter-se em uma
necessidade mais urgente que a fome.
O caminho de entrada à propriedade, que serpenteava sob os ramos de umas enormes e escuras árvores,
resultou-lhe interminável; embora ao menos a sombra fosse de agradecer. A casa, conforme pôde descobrir
quando por fim apareceu diante de seus olhos, era toda uma mansão; mas claro, não tinha esperado menos. O tio
Effingham era enormemente rico. Esse era o motivo pelo qual a tia Effingham se casou com ele; ou isso foi o
que mamãe disse em uma ocasião, zangada depois de ler uma carta de sua tia cujo tom lhe tinha parecido
condescendente.
Quando Judith bateu na porta principal, apareceu um criado que a olhou com expressão altiva, como se ela
não fosse mais que uma lesma arrastada pela chuva, e lhe indicou um salão adjacente ao enorme vestíbulo de
mármore antes de voltar a fechar a porta. Ficou esperando naquele lugar quase uma hora, mas não apareceu
ninguém, nem sequer para lhe levar um refrigério. Desejava com todas as suas forças abrir a porta e pedir um
copo de água, mas por absurdo que parecesse se sentia atemorizada tanto pelo tamanho da casa como pelas
evidentes mostra de riqueza que a rodeavam.
Por fim chegou tia Effingham, uma mulher alta e magra com uma inverossímil mata de cachos negros que
lhe emoldurava o rosto sob a aba do chapéu. Tinha mudado muito pouco em oito anos, o tempo transcorrido da
última vez que Judith a viu.
Há! Assim você é Judith, não? - perguntou enquanto se aproximava o bastante para beijar o ar junto à face de
sua sobrinha. - Não há dúvida de que tomaste seu tempo. Esperava que viesse Hilary, posto que seja a mais nova
de vocês e bem certo a mais obediente. Mas terá que ser você, que remédio. Como está meu irmão?
-
Está bem, obrigado, tia Louisa - respondeu Judith. - Mamãe envia seus...
-
Santo céu, menina, seu cabelo! - exclamou sua tia de repente. - Segue sendo tão chamativo como
recordava. Que desgraça mais horrível e que dura experiência para meu irmão, que sempre foi à personificação
do decoro e a decência. No que estava pensando sua mãe quando comprou esse chapéu? A única coisa que
consegue é pôr em evidência seu cabelo. Terei que procurar outro. Trouxe toucas para usar em casa? Te darei
algumas.
-
Sim tenho... - começou a dizer Judith, embora o olhar de sua tia se transladasse de seu ofensivo cabelo
coroado pelo chapéu até sua capa, um tanto entreaberta para aliviar um pouco o calor. As sobrancelhas de tia
Louisa se elevaram com horror.
-
No que estava pensando minha cunhada ao enviá-la a minha casa vestida assim? -exclamou.
Sob a capa, Judith usava um singelo vestido de musselina de recatado decote e cintura alta, segundo os
últimos ditames da moda. Um pouco incômoda, baixou o olhar para observar-se. - Esse vestido é indecente! exclamou sua tia com voz ensurdecedora. - Parece uma rameira.
Judith notou que se ruborizava. Durante um dia e duas noites conseguiram que se sentisse linda e desejável,
mas as palavras de sua tia a devolveram à realidade bruscamente. Era feia; embaraçosamente feia, tal e qual seu
pai se empenhou em lhe fazer entender, embora nunca tivesse usado palavras tão cruéis como as de tia
Effingham. Embora talvez parecesse de verdade uma rameira. Talvez esse fosse o motivo pelo qual Ralph
Bedard a tinha achado tão desejável. A ideia era excessivamente dolorosa.
-
Terei que inspecionar toda sua roupa - prosseguiu tia Louisa. - Se todos seus vestidos forem como este,
terei que ordenar que alarguem as costuras para conseguir que pareçam um pouco mais modestos. Espero que
Effingham não se veja obrigado a lhe pagar vestidos novos. Ao menos não este ano, quando teve que custear a
apresentação de Julianne à rainha e sua estreia na sociedade, além de todos os gastos adicionais que suporão as
bodas e o vestido de noiva.
Julianne era a prima de dezoito anos de Judith, a quem estava oito anos sem ver.
-
Como está vovó? - perguntou Judith.
Sua avó vivia com a tia Effingham. Judith não a tinha visto desde que era uma menina. Recordava de forma
muito vaga uma senhora coberta de joias e enfeitada com vestidos muito extravagantes que falava muitíssimo, ria
a gargalhadas, abraçava suas netas a menor oportunidade, contava-lhes histórias e escutava seus falatórios. Judith
a tinha adorado até que se fez evidente que para seus pais era um incômodo e mais que um motivo de vergonha.
-
Com a grande quantidade de convidados que chegarão nos próximos dias, será de utilidade se lhe fizer
companhia - apressou-se a responder tia Louisa. - Não terá muito mais que fazer, posto que não foi apresentada a
sociedade nem assistiu a nenhuma temporada e sem dúvida se sentiria incômoda se participasse das atividades
previstas para a festa. E não tenho a menor dúvida de que estará desejando fazer tudo o que esteja em sua mão
para demonstrar a Effingham sua enorme gratidão pelo fato de que tenha oferecido para viver aqui.
Judith não precisava que a recordassem que chegou Harewood na qualidade de parente pobre com o fim de
servir à família em algo que solicitassem. Ao que parece ia ser a dama de companhia de sua avó. Sorriu ao pensar
que não demoraria para desmaiar a menos que comesse ou bebesse algo logo. Mas como ia pedir sequer um copo
de água?
-
Pode subir agora e lhe apresentar seus respeitos - disse tia Effingham. - Já tomou o chá em seus
aposentos, dado que Julianne e eu estávamos de visita. Esperávamos sua chegada faz dias, embora creiamos que
seria Hilary quem viria, é claro. Não entendo por que se atrasou tanto meu irmão em enviá-la e em livrar-se desse
modo de uma carga econômica.
A diligência no qual viajava tombou no barro faz dois dias - explicou Judith. - E depois a chuva nos atrasou.
-
Bom, foi mais que inconveniente não a ter aqui justo quando teria sido de mais utilidade - replicou sua tia.
A porta se abriu de novo antes que tia Effingham chegasse até ela e uma moça muito bonita entrou no salão.
Em oito anos, Julianne deixou de ser uma menina pálida e bastante insípida e transformara-se em uma jovem
magra, mas voluptuosa, com um rosto em forma de coração, grandes olhos azuis e delicados cachos loiros.
-
Qual delas é? - perguntou, olhando sua prima dos pés à cabeça. - Ah! É Judith, a do cabelo cor cenoura.
Pensei que titio enviaria Hilary. Faz dias que a estamos esperando. Mamãe se zangou muitíssimo, porque
enviamos Tom ao povoado para buscá-la e demorou quatro horas em retornar. Mamãe o acusou de ter ficado
bebendo na estalagem, mas ele negou de forma cortante. Mamãe, quero meu chá. Será que não vai vir nunca?
Qualquer criada pode acompanhar Judith aos aposentos da vovó.
Eu também me alegro de vê-la, Julianne, pensou Judith. Era evidente que não pensavam convidá-la ao
mencionado chá.
Ao que parece sua nova vida ia ser tal e qual a tinha imaginado.
Rannulf fez uma parada no caminho para tomar o café da manhã e outra para almoçar. Foi durante esta
última parada quando por fim seu valete e a carruagem que transportava sua bagagem o alcançaram. Já estava
bem avançada à tarde quando atravessou as portas de entrada de Grandmaison Park no lombo de seu cavalo,
deixou atrás a solitária casa de campo e tomou o amplo e reto caminho de acesso à mansão. Um criado o
acompanhou até o salão particular de sua avó. Esta ficou em pé e estudou seu aspecto enquanto ele atravessava a
sala, ainda com as roupas de montar.
-
Bom – disse -, já era hora, Rannulf. Esse cabelo necessita um bom corte. Dê-me um abraço. - Estendeu
os braços para ele.
-
Essa chuva infernal me deteve durante dois dias - explicou. - O cabelo cresceu quase dez centímetros por
causa da umidade enquanto esperava. Está segura de que não vou quebrar todos os seus ossos?
Rodeou a diminuta cintura da anciã com os braços, elevou-a no ar e depositou um sonoro beijo em sua face
antes de voltar a deixá-la no chão.
-
Moço desavergonhado - resmungou sua avó enquanto endireitava o vestido. - A fome e a sede estão
acabando contigo? Já tinha ordenado que lhe trouxessem algo de comer e beber a cinco minutos de sua chegada.
-
Tenho tanta fome que comeria uma vaca - comentou Rannulf. - E poderia deixar o mar seco, embora
espere não ter que provar nenhuma só xícara de chá. - esfregou as mãos e olhou à anciã de cima abaixo. Como de
costume, tinha um aspecto impecável. Embora parecesse um pouco mais diminuta e estava mais magra que
nunca. Seu cabelo, preso em um elegante penteado, era tão branco como a touca de renda que o cobria.
-
E como estão seus irmãos e irmãs? – perguntou - ouvi que Aidan se casou com a filha de um mineiro.
Rannulf sorriu.
-
Entretanto, vovó, embora olhasse muito de perto e com a ajuda de um monóculo - disse - não seria capaz
de encontrar nenhum pingo de carvão sob suas unhas. Cresceu e foi educada como uma dama.
-
E Bewcastle? - perguntou - deu algum sinal de levar ao altar à filha de alguém?
-
Wulf? - perguntou Rannulf por sua vez. - Absolutamente. E pobre da mulher cuja mão peça em
matrimônio. A deixaria congelada entre os lençóis.
-
Ah! - exclamou sua avó. - Não tem a menor ideia de quão atraentes são os homens como Wulfric,
Rannulf. Freyja ainda segue adoecendo por esse visconde?
-
Ravensberg? Refere a Kit? - perguntou - Freyja me deu um murro na mandíbula quando sugeri isso
mesmo; mas isso já faz um ano, justo quando Kit anunciou seu compromisso com a senhorita Edgeworth. Kit e
sua viscondessa esperam um feliz acontecimento para os próximos meses, coisa que talvez seja algo doloroso
para Freyja, ou talvez não. De qualquer modo, não demonstra seus sentimentos.
E como está Alleyne? – perguntou - Tão bonito como sempre?
-
Isso parece opinar as damas - respondeu com um sorriso.
-
E Morgan? Wulfric vai apresentá-la logo a sociedade?
-
O ano que vem, quando completar os dezoito - respondeu. - Embora ela afirme que antes preferiria a
morte.
-
Menina tola - replicou sua avó, que não disse nada mais enquanto uma criada entrava com uma bandeja
no salão e fazia uma reverência antes de retirar-se.
A bebida não era chá, comprovou Rannulf com certa satisfação. Serviu-se ele mesmo e voltou a ocupar seu
assento depois que sua avó lhe indicou com um movimento da mão que não queria comer nem beber. Bom,
chegou momento da verdade, pensou Rannulf com um suspiro de resignação para si mesmo, pressentindo que as
cortesias preliminares chegaram a seu fim e que a anciã estava a ponto de ir ao assunto.
-
Aidan é o mais preparado da família - comentou, - embora tenha preferido à filha de um mineiro. Deve
ter completado os trinta e já ia sendo hora de que começasse a ter filhos. E você tem vinte e oito, Rannulf.
-
Um simples pintinho, vovó - disse com um sorriso.
-
Encontrei uma jovem perfeita para você – informou – Seu pai é um simples baronete, bem é certo, mas
pertence a uma família antiga e respeitada que não carece de dinheiro. A moça é tão linda como um dia do verão
e foi apresentada a primavera passada. Está decidida a conseguir um matrimônio proveitoso.
-
Acaba de ser apresentada? - Rannulf franziu o cenho. - Quantos anos têm?
-
Dezoito - respondeu sua avó - ou a idade perfeita para você, Rannulf. É bastante jovem para modelá-la a
sua vontade e tem por diante muitos anos para ter filhos.
-
Dezoito? - exclamou Rannulf. - Não é mais que uma menina! Preferiria alguém com uma idade mais
próxima à minha.
-
Mas a essa idade tão avançada - replicou a anciã de forma desanimada. - toda mulher deixou atrás a
metade de seus anos férteis. Quero me assegurar de que minha propriedade estará segura em suas mãos e na de
seus descendentes, Rannulf. Tem irmãos, e a todos eles professo um grande afeto, mas faz muito tempo que
decidi que você seria o eleito.
-
Ainda restam muitos anos para agradá-la - disse ele - Ainda é uma jovenzinha, vovó.
-
Moço impertinente... - Estalou a língua. - Mas não tenho todo o tempo do mundo, Rannulf. - Muito
pouco, para falar a verdade.
Rannulf a estudou com atenção, deixando o copo a meio caminho de seus lábios.
-
Que tenta me dizer? - perguntou.
-
Nada que deva preocupar-se em excesso - apressou-se a responder à anciã. - Um simples probleminha
que sem dúvida me levará a tumba alguns anos antes do que o tivesse feito a velhice.
Rannulf deixou o copo na mesa e ficou em pé antes que sua avó pudesse erguer uma mão com firmeza.
-
Não - disse-lhe. - Não quero compaixão alguma, nem palavras melífluas nem consolo. Trata-se de minha
vida e de minha morte, de modo que serei eu quem luta com ambas, muitíssimo obrigado. A única coisa que
quero é vê-lo casado antes de partir, Rannulf. E talvez, se se esforçar muito no cumprimento de suas obrigações
e eu for muito afortunada, possa ver seu primeiro filho em seu berço antes de partir.
-
Vovó... - passou os dedos de uma mão pelo cabelo. Odiava pensar em seus familiares como seres mortais.
A última vez tratou de seu pai, quando ele ainda contava com doze anos de idade. Fechou os olhos como se
quisesse afastar a clara implicação das palavras de sua avó. Estava morrendo.
-
Você gostará de Julianne Effingham – disse - É uma moça encantadora. Justo seu tipo de mulher, me
arriscaria a afirmar. Sei que vieste com o firme propósito de desprezar qualquer intento casamenteiro por minha
parte, Rannulf, tal e como sempre fez no passado. Sei que considera que não está preparado para o matrimônio.
Mas tenta-o, sim? Tentará ao menos considerar esta vantajosa união? Por meu bem? Só peço que tente, não que
prometa se casar com a jovem. Fará?
Rannulf abriu os olhos e a olhou. Não havia dúvida de que estava muito mais magra que a última vez que a
viu. Soltou um suspiro.
Prometo-lhe isso – respondeu – Te prometeria o sol, a lua... as estrelas se assim o desejasse.
-
Conquanto que me prometa conhecer e cortejar a senhorita Effingham me conformo - replicou a anciã. Obrigado, moço.
-
Mas me prometa uma coisa em troca - disse ele.
-
O que? - perguntou sua avó.
-
Não morra em um futuro próximo.
A anciã lhe sorriu com carinho.
CAPÍTULO 6
A apresentação a sociedade de Julianne Effingham foi declarada um categórico êxito por parte de sua mãe.
Era certo que não tinha conseguido o sonho dourado de toda jovem dama: pegar um marido rico e charmoso
durante sua primeira temporada em Londres. Embora a situação estivesse longe de ser desesperada. Tinha
atraído um grande número de admiradores, alguns deles jovens cavalheiros dos mais adequados, e havia feito
amizade com várias jovens que estavam acima dela na escala social.
Julianne e sua mãe estudaram a lista de amigos e admiradores muito detalhadamente; também tinham
elaborado uma ambiciosa lista de convidados e tinham enviado os convites para uma festa campestre de duas
semanas em Harewood Grange. Quase a metade tinha aceitado e o número desejado se alcançou com facilidade
ao enviar convites a uma segunda lista de candidatos e, posteriormente, a uma terceira. Esperava-se a chegada
dos hóspedes quatro dias depois da chegada de Judith.
Não se tratava de uma coincidência, como descobriu muito em breve. Apesar de que a razão principal e o
motivo a longo prazo para que a houvessem convidado era quão útil resultaria na hora de atender as necessidades
de sua avó, teve um milhão de tarefas com as quais manter-se ocupada durante os frenéticos dias que precederam
à chegada dos convidados.
Tia Effingham e Julianne não tinham outro tema de conversa que não fosse a festa, os pretendentes e as
perspectivas de matrimônio. O tio George Effingham não falava de nada absolutamente e em raras ocasiões abria
a boca salvo para comer e beber ou responder a uma pergunta direta. A avó de Judith falava a respeito de uma
grande variedade de temas e estava disposta a rir de algo que lhe fizesse um pingo de graça. A Judith logo foi
evidente que, além dela mesma, ninguém parecia dar muita atenção ao que dizia a anciã.
Estava muito mais gorda do que recordava; e também mais preguiçosa. Queixava-se de um sem número de
enfermidades, tão reais como imaginárias. Passava as manhãs em seus aposentos e consumia a maior parte do
tempo enfeitando-se com elaborados penteados, perfume e cosméticos muito pouco sutis, roupas de grande
colorido e enormes quantidades de joias. Ia para o salão pelas tardes e as noites; não saía salvo para visitar seus
vizinhos e amigos em uma carruagem fechada; e comia em demasia, sendo sua gratificação predileta os bolos de
nata e os bombons. Judith a adorou no primeiro momento. Era de natureza bondosa e parecia verdadeiramente
encantada de ver sua neta.
- Por fim chegou - tinha gritado no primeiro dia antes de envolver Judith na calidez de seu abraço, o perfume
das violetas e o tinido dos braceletes de prata que usava em ambos os pulsos. - E é Judith. Desejava de coração
que fosse você. Mas me preocupava muitíssimo que toda essa chuva a arrastasse pelo caminho. Deixa que lhe dê
uma olhada. Sim, sim, Louisa, pode descer a tomar o chá. Mas se encarregue de que Tillie traga uma bandeja para
Judith, se for amável. Me atreveria a dizer que não comeu muito durante sua viagem. Ah, carinho, se transformou
em uma beleza excepcional, tal e como sempre soube que aconteceria.
A avó era exigente, apesar de seus sorrisos, desculpas, agradecimentos e abraços conseguiam que todas essas
tarefas desnecessárias fossem menos incomodas do que teriam sido de outra maneira. Sempre que estava no
segundo andar precisava de algo que estava em baixo. Quando estava em baixo, precisava de algo de seus
aposentos. Quando se encontrava a poucos passos da bandeja dos bolos ou do prato dos bombons, precisava
que alguém os aproximasse porque suas pernas lhe doíam muito nesse dia. Não custava entender o motivo pelo
qual tia Effingham se mostrou tão bem disposta a acolher a uma das filhas de seu irmão quando este lhe tinha
comunicado suas penúrias econômicas.
Fiel a sua palavra, tia Effingham examinou toda a roupa que Judith levara consigo e se apropriou de quase
todos os vestidos de uma vez. Uma criada hábil com a agulha tirou as costuras laterais, de maneira que os
mesmos se penduravam em seu corpo, ocultando sua voluptuosa figura e fazendo-a parecer gordinha e sem
curvas. Judith levara duas toucas com ela, já que sua mãe sempre tinha insistido em que as usasse, embora
Cassandra, que era um ano mais velha, passava a maior parte do tempo com a cabeça descoberta. Tia Louisa
procurou outra para que a usasse durante o dia, uma touca de matrona que se atava sob o queixo e que escondia
a totalidade de seu cabelo; um objeto que em combinação com os vestidos modificados lhe conferia o aspecto de
uma mulher de trinta e poucos anos.
Judith não se queixou. Como poderia fazê-lo? Vivia em Harewood graças à caridade de seu tio. Sua avó sim
protestou, de modo que Judith a agradava uma ou outra vez tirando touca quando estavam sozinhas na saleta de
sua avó.
-
Tudo isso porque é muito linda, Judith - disse sua avó, - e Louisa sempre temeu o tipo de beleza que você
possui.
Judith tinha se limitado a sorrir. Sabia muito bem que isso não era certo.
Não demorou em dar-se conta de que grande parte das conversações familiares que tiveram lugar nos dias
prévios à chegada dos convidados foi para seu conhecimento, apesar de que raras vezes se dirigiam a ela de
forma direta. Alguns dos convidados possuíam título ou eram filhos da aristocracia mais seleta. Todos ocupavam
um lugar destacado na sociedade. Quase todos eram ricos e aqueles que não eram chegavam respaldados pelo
berço e a ascendência. A maioria dos cavalheiros que acudiriam estava perdidamente apaixonada por Julianne e a
ponto de declarar-se. Embora Julianne não tivesse claro que fosse aceitar nenhum. Tinha a certeza de que
poderia conseguir outra pessoa... sempre e quando ele ganhasse sua aprovação.
-
Lorde Rannulf Bedwyn é irmão do duque de Bewcastle, mãe - explicou tia Louisa na sala de estar durante
a segunda noite. - É o terceiro filho, mas mesmo assim o segundo na linha de sucessão, já que nem o duque nem
lorde Aidan Bedwyn geraram um varão. Lorde Rannulf é o segundo na linha de sucessão ao ducado.
-
Vi o duque de Bewcastle em Londres esta primavera - comentou Julianne. - É solene, arrogante e tudo o
que se pode esperar de um duque. E olhe que surpresa! Seu irmão deve visitar lady Beamish, sua avó e nossa
vizinha.
Já que tia Louisa, tio George e a avó deviam ser muito conscientes de que lady Beamish era sua vizinha,
Judith chegou à conclusão de que ela era a destinatária da dita informação. Lady Beamish, ao que parece a avó
materna do duque de Bewcastle, vivia perto.
-
Sei que está desejando que lorde Rannulf chegue - disse a avó enquanto erguia uma resplandecente mão
carregada de anéis do braço da poltrona. - Comentou-me isso quando fui visitá-la faz uns dias. Judith, carinho, se
importaria de me passar mais bolos? Por desgraça, a cozinheira os fez muito pequenos hoje. Terá que falar com
ela, Louisa. Não duram mais que três bocados.
Entretanto, Julianne não tinha terminado com seu discurso. - e lady Beamish está particularmente interessada
em me apresentar lorde Rannulf – disse - Aceitou com entusiasmo a sugestão de mamãe de que ele participasse
das atividades previstas para a festa. E me convidou, junto ao resto de nossas hóspedes, a Grandmaison para uma
festa ao ar livre.
-
É óbvio que sim, querida - disse tia Effingham, que sorria cheia de orgulho. - Lorde Rannulf Bedwyn é o
herdeiro de lady Beamish, além de possuir uma considerável fortuna própria. É normal que deseje acertar uma
boa aliança, e há melhor escolha possível que uma linda jovem de bom berço e fortuna que é também sua
vizinha? Seria uma aliança magnífica para você, não lhe parece, Effingham? - O tio George, que estava lendo um
livro, limitou-se a grunhir. - Agora se dará conta, Julianne - continuou sua mãe, - de por que tomou a decisão
correta ao seguir meu conselho de não alentar as atenções do primeiro cavalheiro que lhe propôs matrimônio em
Londres.
-
Sim, é claro - conveio Julianne. - Poderia me haver casado com o senhor Beulah, que é um chato; ou com
sir Jasper Haynes, que nem sequer é charmoso. Embora seja possível que não me case com lorde Rannulf
Bedwyn. Tenho que ver se eu gosto. É muito mais velho.
Nesse momento ordenaram a Judith que subisse ao segundo andar para deixar os brincos de sua avó no
porta-joias - porque como sempre que os usava por mais de uma hora, tinham-lhe machucado - e trouxesse os
brincos de rubis com forma de coração.
Corações! A ela sim que doía o coração, pensou enquanto subia apática a escada. Sua maior preocupação não
tinha demorado a desaparecer, para seu enorme alívio, já que teve o período no dia seguinte a sua chegada a
Harewood. Embora suspeitasse que nada a livraria da profunda depressão durante bastante tempo. Não podia
pensar em outra coisa que não fossem o dia e meio e as duas noites que tinha passado em companhia de Ralph
Bedard; revivia sem cessar cada momento, cada palavra, cada carícia e cada sensação, incapaz de desfazer-se das
lembranças um só instante por medo de que se desvanecessem por completo e perguntando-se ao mesmo tempo
se não seria melhor para ela que fizessem precisamente isso.
Em ocasiões tinha a impressão de que lhe partiria o coração. Mas sabia que os corações não se partiam pelo
mero fato de que seus proprietários fossem infelizes... e estúpidos. E ela fora estúpida até não poder. Entretanto,
aferrava-se às lembranças como a um salva-vidas.
Já estava bem avançada a manhã do dia prévio à chegada dos convidados, quando Julianne entrou como uma
exalação no quarto de vestir de sua avó feito um feixe de nervos enquanto Tillie arrumava o cabelo grisalho de
sua senhora com seu habitual e complicado estilo e Judith preparava o tônico matutino, que lhe assegurava que
não inchassem muito os tornozelos.
-
Vovó, ele veio. Ele veio, Judith - anunciou, - Chegou faz uns dias e vai vir esta tarde para apresentar seus
respeitos. - Uniu as mãos sobre o peito e começou a dar voltas sobre o tapete.
-
Isso é maravilhoso - disse a avó. - Acredito que está um pouco mais alto na parte esquerda, Tillie. Quem
diz que vem?
-
Lorde Rannulf Bedwyn - respondeu Julianne com impaciência. - Lady Beamish enviou uma nota esta
manhã para anunciar sua intenção de nos visitar esta tarde com a ideia de nos apresentar lorde Rannulf. Vinte e
oito anos não é muito velho não? Acha que é charmoso, vovó? Espero que não seja espantosamente feio. Pode
ficar com ele se for, Judith. - pôs-se a rir com jovialidade.
-
Suponho que o filho de um duque terá ao menos um porte distinto - replicou a avó. - Costumavam ter,
ou era assim nesta época. Ah, obrigado, Judith, carinho. Esta manhã sinto que me falta o fôlego, um sinal
inequívoco de que vão me inchar as pernas.
-
Temos que nos assegurar de estar no salão vestidas com nossos melhores vestidos - disse Julianne. - Ah,
vovó... o filho de um duque nada menos! - Inclinou a cabeça para depositar um beijo na face de sua avó antes de
dirigir-se apressada até a porta. Mas se deteve com a mão no trinco. - Por certo, Judith, quase me esqueço.
Mamãe diz que se lembre de pôr a touca que lhe deu. Será melhor que não deixe que a veja com a cabeça
descoberta como está agora.
-
Me passe os bombons, Judith, se for amável - disse sua avó depois que Julianne partiu - Nunca me
acostumarei ao sabor dessa medicina. Louisa deve ter a cabeça cheia de serragem se insistir em que use toucas
quando não é mais que uma menina. Embora me atrevesse a dizer que não quer que seu cabelo eclipse os cachos
loiros de Julianne. Não teria que preocupar-se. A menina é bastante bonita para que qualquer idiota perca a
cabeça. O que ponho esta tarde, Tillie?
Pouco tempo depois, Judith colocou o vestido de musselina verde claro, um de seus favoritos, embora agora
lhe pendurasse no corpo como um saco, e atou as estreitas fitas da touca sob o queixo. Pelo amor de Deus,
parecia à tia solteirona de alguém, pensou com uma careta antes de afastar-se com decisão do espelho. De
qualquer forma ninguém ia incomodar-se em olhá-la essa tarde. Perguntou-se se Julianne aceitaria lorde Rannulf
embora pudesse ser um anão corcunda com cara de gárgula. Supunha que sua prima seria incapaz de resistir à
tentação de transformar-se em lady Rannulf Bedwyn, sem importar seu aspecto ou seu comportamento.
Rannulf tinha passado o primeiro dia em Grandmaison em companhia de sua avó, conversando com ela;
passeando pelos jardins principais, onde a anciã se negou a agarrar-se a seu braço; falando a respeito das
atividades recentes de seus irmãos e irmãs; compartilhando com ela a primeira impressão que lhe tinha causado
sua cunhada Eve, lady Aidan; e respondendo a todas suas perguntas.
Notou que se movia mais devagar que de costume e que parecia estar cansada a maior parte do tempo, mas o
orgulho e a dignidade a mantinham erguida e ativa, de modo que não se queixou nenhuma só vez e tampouco
aceitou sua sugestão de que se retirasse cedo para descansar.
Rannulf se vestiu com especial atenção para visitar Harewood Grange e permitiu que seu valete o ajudasse a
vestir seu casaco azul mais ajustado e elegante, a que tinha os enormes botões de bronze, e lhe atasse o lenço ao
pescoço com um desses complicados nós. Vestiu as calças justas de cor nata e as botas de cano longo com o
arremate branco. Já que usava o cabelo muito comprido para arrumar o bruto como ditavam a última moda, ou
para qualquer outro estilo que estivesse em voga, o recolheu à altura da nuca com uma estreita fita negra e fez
pouco caso dos afligidos comentários de seu valete, segundo os quais tinha todo o aspecto de haver fugido de um
retrato familiar que fazia duas gerações.
Ia cortejar uma mulher. Deu um suspiro diante de semelhante admissão. Ia visitar sua possível noiva. E não
tinha a menor ideia de como ia livrar se nesse momento. Tinha prometido a sua avó. Estava muito doente; não o
estava enganando. Além disso, sua petição fora a de lhe prometer que teria em conta à moça, não que se casaria
com ela. Tinha sido o mais justa possível com ele.
Entretanto, sabia que estava preso. Preso por seu sentido da honra e por seu amor por ela. Lhe daria a lua e
as estrelas se as quisesse, e assim havia dito. Mas a única coisa que sua avó queria era vê-lo bem casado antes de
morrer, talvez com um filho no ventre de sua esposa ou inclusive já no berço. Rannulf não iria ver a moça
somente para verificar se era apropriada. A cortejaria. Casaria com ela antes que acabasse o verão se o aceitasse.
E não tinha a menor dúvida de que aceitaria. Não havia engano com respeito a suas aptidões, em especial
tratando-se da filha de um simples baronete de linhagem irrepreensível e considerável fortuna.
Viajava para Harewood Grange em um cabriolé junto a sua avó, desejando pela primeira vez em sua vida que
Aidan não tivesse sido descartado como herdeiro pelo mero feito de ter sua vida resolvida como oficial de
cavalaria. A despeito de tudo, sabia que o problema radicava em que amava sua avó. E ela estava morrendo.
E pensar que quase tinha atrasado sua chegada uma semana... Se Claire Campbell não o tivesse abandonado,
nesse momento estaria em York, desfrutando de um tórrido romance com ela enquanto que sua avó esperava,
cada dia mais perto do final. Ainda não era capaz de pensar em Claire sem que o embargassem a fúria, a
humilhação e a culpa. Como não se deu conta de... ?
Obrigou-se a afastá-la de seus pensamentos. A atriz tinha formado parte de um sucesso irrelevante de seu
passado. E tal como acabaram as coisas, tinha-lhe feito um favor ao fugir dessa maneira.
-
Já chegamos - disse sua avó quando o cabriolé saiu entre escuras árvores cujos ramos serviam de dossel
ao extenso e sinuoso caminho de entrada. - Você gostará, Rannulf. Prometo que você gostará.
Segurou a mão da anciã e a levou aos lábios.
-
Espero de coração, vovó – respondeu. - Já estou meio apaixonado por ela somente por sua
recomendação.
-
Moço descarado! - exclamou ela.
Uns minutos mais tarde tinham entrado no espaçoso saguão recoberto de mármore, tinham subido uma
elegante escadaria curvada e o rígido e azedo mordomo anunciava sua presença às portas do salão.
Havia cinco pessoas no aposento, mas não era difícil adivinhar quem era a que importava. Enquanto Rannulf
fazia uma reverência e murmurava umas palavras de saudação a sir George, lady Effingham e sua mãe, a senhora
Law, deu-se conta com certo alívio de que a única jovem presente, a quem lhe apresentaram em último lugar,
possuía em efeito uma beleza deliciosa. Era de baixa estatura, tanto que duvidava que seu alto da cabeça chegasse
à altura dos ombros, e magra. Tinha o cabelo loiro, olhos azuis e tez rosada. A moça sorriu e fez uma reverência
quando sua mãe a apresentou e Rannulf lhe devolveu a saudação e a contemplou com apreciação.
Provocava-lhe uma estranha sensação saber com certeza que estava vendo sua futura esposa... não tão futura,
para falar a verdade.
Maldição. Maldita fosse sua imagem!
As saudações foram seguidas de um alvoroço de risadas e conversa animada, momento que a senhora Law
aproveitou para lhes apresentar a sua dama de companhia, em quem nem sequer tinha reparado até esse
momento: a senhorita Law. Sem dúvida era parenta da família, uma mulher gordinha e sem curvas, de idade
indefinida, que tinha curvado a cabeça e tinha movido sua cadeira até ficar atrás da anciã quando todos tomaram
assento.
A senhora Law convidou lady Beamish a sentar-se junto a ela no sofá para poder desfrutar de uma agradável
conversa em particular, segundo suas próprias palavras, e a Rannulf convidou a ocupar um assento ao lado de sua
avó. A senhorita Effingham escolheu com deliberação um sofá duplo que se encontrava perto dele. Serviu-se o
chá e a visita começou oficialmente. Lady Effingham levou o peso da conversação, embora quando pediu a sua
filha que contasse a lorde Rannulf algo a respeito das festas às quais tinha comparecido em Londres durante a
temporada social, a moça obedeceu encantada e suas maneiras não foram nem muito abertas nem muito tímidas.
Falou sem hesitações em voz baixa e doce, sempre com um sorriso nos lábios.
Estava mais que disposta a aceitá-lo, deu-se conta Rannulf após dez minutos de conhecê-la. Igual a sua mãe.
Para elas devia ser o enlace do século, é claro. Rannulf sorriu e falou com soltura e sentiu como se fechava o laço
ao redor de seu pescoço. Percebeu de que Effingham apenas realizou alguma contribuição à conversação.
Tinham deixado a bandeja do chá junto à mesa adjacente ao lugar onde se sentava Rannulf. O prato com os
deliciosos sanduíches de pepino japonês já tinha passado de mãos uma vez, igual ao das massas. Serviu-se outra
rodada de chá, depois que lady Effingham tinha despachado à criada com um gesto da cabeça. Entretanto, a
senhora Law parecia não ter satisfeito seu apetite. O vestido de seda rangeu ao redor de sua gordinha figura e as
pedras preciosas do colar, dos brincos dos anéis e dos braceletes resplandeceram a luz do sol quando deu meia
volta para dirigir-se à mulher que estava atrás dela.
- Judith, carinho - disse, - seria amável de me trazer de novo as massas? Hoje estão particularmente
deliciosas.
A melancólica e disforme acompanhante ficou em pé e passou por trás do sofá onde estava sentado Rannulf
para apanhar o prato. Ele estava concentrado na lista de hóspedes que a senhora Effingham estava recitando para
seus ouvidos.
-
Ah, carinho, ofereça também aos outros, se não se incomodar – disse a anciã quando sua dama de
companhia se dispôs a voltar para seu assento atrás do sofá. - Lady Beamish não apanhou nenhuma a última vez.
Mas tem por diante todo o esforço que supõe a viagem de volta para casa, Sarah.
-
Também esperamos que meu enteado venha - estava dizendo lady Effingham a Rannulf, - embora nunca
se pode estar certo com Horace. É um jovem encantador e não deixam de lhe enviar convites para festas de
verão.
-
Não, obrigado, senhorita Law - respondeu sua avó em voz baixa enquanto repelia o prato com os bolos. Já comi mais que o suficiente.
Rannulf levantou a mão para repetir o mesmo gesto que sua avó quando a mulher ficou diante dele e lhe
ofereceu o prato com a cabeça tão curvada que a borda da touca lhe ocultava o rosto. Embora para falar a
verdade tampouco ele ergueu a vista. Mais tarde não soube dizer o que foi o que lhe chamou a atenção de
repente. Não era mais que uma dessas mulheres invisíveis que estavam acostumados a abundar nas casas dos
ricos. Nunca se reparava nelas.
Fosse o que fosse, que o pôs de sobreaviso e ela levantou a cabeça apenas um ápice. O suficiente para que
seus olhos se encontrassem. A mulher baixou a cabeça imediatamente e se afastou antes mesmo que ele pudesse
terminar o gesto.
Olhos verdes. Um nariz ligeiramente salpicado de sardas. Law. A senhorita Law. Judith. Judith Law.
Por um instante se sentiu completamente desorientado. Claire Campbell.
- Isto... Peço-lhe mil perdões - disse a lady Effingham. - Não. Não, não acredito que tenha o prazer de
conhecê-lo, senhora. Horace Effingham. Não, sem dúvida. Embora seja possível que o tenha visto alguma vez.
A dama de companhia deixou o prato, voltou a passar atrás dele - e nesse momento Rannulf foi muito
consciente dela enquanto o fazia - e afastou a cadeira um pouco mais antes de voltar a sentar-se.
Nem sequer se atreveu a olhá-la, embora não tinha a menor dúvida de que não se equivocou. Não se tratava
de que estivesse procurando olhos verdes e sardas aonde fosse. Não o fez. Não tinha desejado voltar a
encontrá-la na vida, nem tinha esperado fazê-lo. Além disso, tinha o convencimento de que ela se encontrava em
York.
Contudo, seus sentidos o tinham brindado com a prova irrefutável da verdade, por muito estranha que esta
fosse.
Queria isso dizer que não havia nenhuma atriz chamada Claire Campbell? Até isso fora uma engenhosa
mentira? Era Judith Law, parente da família. Uma parenta pobre, a julgar pelas aparências. Daí que viajasse com
uma bolsa vazia... daí também que viajasse em uma diligência. Permitiu-se uma aventura com ele quando se tinha
apresentado a oportunidade. Tinha sacrificado sua virtude e sua virgindade em um ato imprudente, arriscando-se
às terríveis consequências.
As consequências...
Rannulf não tinha a menor ideia do que lhe disseram nem do que respondeu durante os cinco minutos que
passaram até que sua avó ficou em pé para partir. A imitou, conseguiu de algum modo dizer o apropriado para
semelhante ocasião e se encontrou sentado de novo no cabriolé cinco minutos depois, após ter ajudado sua avó a
subir à carruagem em primeiro lugar. Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, embora só por um instante.
Não estava sozinho.
-
E bem? - perguntou sua avó quando o veículo se colocou em marcha.
-
Bom, vovó - começou, - não há dúvida de que é muito bonita. Ainda mais do que me fez acreditar.
-
E também possui umas maneiras deliciosas - disse ela. - Se houver algum excesso, deve-se à
impulsividade da juventude e não demorará para maturar com as responsabilidades do matrimônio e a
maternidade e sob a mão paciente de um bom marido. Será um bom enlace para você, Ralf. Talvez não muito
brilhante, mas acredito que nem sequer Bewcastle poderia encontrar muitas objeções.
-
Jamais se falou – replicou - de que Wulf escolhesse a minha esposa, vovó.
A anciã riu entre dentes.
-
Mas aposto o que quiser que esteve a ponto de ter uma apoplexia quando descobriu que Aidan se casou
com a filha de um mineiro - arguiu.
-
Depois de semelhante impressão - afirmou ele, - estou seguro que dará sua aprovação a uma jovem tão
apropriada como a senhorita Effingham.
-
Quer isso dizer que está disposto cortejá-la a sério? - perguntou sua avó colocando uma mão sobre sua
manga.
Rannulf notou como essa pele pálida e fina se esticava sobre os ossos e lhe cobriu a mão com a sua.
-
Acaso não concordei retornar amanhã à noite para o jantar, quando tiverem chegado todos os
convidados? - recordou-lhe.
-
É certo. - A anciã suspirou. - Esperava que se mostrasse mais difícil. Não lamentará, prometo-lhe isso. Os
Bedwyn sempre se mostraram resistentes a casar-se, mas seus matrimônios acabaram sendo uniões por amor em
todos e cada um dos casos, como bem sabe. Sua pobre mãe jamais se recuperou depois do parto de Morgan e
morreu muito antes do que deveria, mas foi muito feliz com seu pai, Rannulf, e ele a adorava.
-
Sei - disse ao mesmo tempo em que lhe dava uns tapinhas na mão. - Sei, vovó.
Entretanto, a cabeça lhe bulia com pensamentos a respeito de Judith Law, aliás, Claire Campbell. Como
demônios iriam se evitar durante as próximas semanas? Pelo menos já entendia o motivo de sua fuga. Tinha
querido acompanhá-la para vê-la atuar, sem dar-se conta de que em primeiro momento tudo o que tinha visto
dela fora uma farsa.
Isso não diminuía a fúria que sentia. A moça o tinha enganado. Apesar de todos os excessos que tinha
cometido em sua vida, jamais lhe teria passado pela cabeça seduzir uma mulher de bom berço. E assim se sentia
exatamente nesse momento: como um sedutor de inocentes. Um maldito e lascivo canalha.
Não havia dúvida de que a vida tinha piorado bastante desde que recebeu a carta de sua avó em Londres.
-
É tão grande, mamãe... - queixou-se Julianne, que não obstante juntou as mãos sobre o peito como se
estivesse extasiada.
O tio George tinha descido para se despedir de lady Beamish e lorde Rannulf Bedwyn e não tinha voltado
para o salão.
-
Mas tem um porte elegante - adicionou tia Effingham. - Suas roupas não levam enchimento, asseguro-lhe
isso, e tampouco precisa.
-
Embora não seja absolutamente charmoso, não lhe parece? - perguntou Julianne. - E tem o nariz muito
grande.
-
Mas tem olhos azuis e bons dentes - interveio sua mãe. - E todos os Bedwyn têm esse nariz, querida. É o
que se conhece como nariz aristocrático. Muito distinto.
-
E seu cabelo! - exclamou Julianne. - É longo, mamãe. E usava um rabo-de-cavalo!
-
Devo confessar que isso é um pouco estranho - afirmou tia Effingham. - Mas o cabelo sempre se pode
cortar querida, sobretudo se o pede uma dama pela qual sinta afeto. Ao menos não é calvo.
Mãe e filha deixaram escapar umas risadas tolas.
-
Em meus tempos, Julianne - disse a avó, - o cabelo comprido era a última moda entre os homens,
embora alguns raspassem a cabeça e usavam perucas. Seu avô não, é claro. Eu conservaria seu cabelo. Em minha
opinião, o cabelo comprido é muito atraente.
-
Ora! -foi o comentário de Julianne. - O que opina você de lorde Rannulf Bedwyn, Judith? Acha que é
bonito? Deveria aceitá-lo?
Judith teve mais de meia hora para recuperar a compostura. Acreditou que desmaiaria quando o viu entrar na
sala. Não podia ser, não podia ser… tinha pensado durante um fugaz instante. A mente e a vista deviam estar lhe
fazendo uma brincadeira. Embora fosse inequívoco e indiscutível:
Ralph Bedard e lorde Rannulf Bedwyn eram a mesma pessoa. O sangue lhe tinha abandonado a cabeça,
deixando-a fria e encharcada em suor, amortecendo os ruídos e fazendo que tudo o que a rodeava se balançasse e
desse voltas como se não fosse real.
Ralph... Rannulf. Bedard... Bedwyn. Pareciam-se, mas eram bastante distintos para ocultar sua verdadeira
identidade a uma atriz ambiciosa e exigente. E bastante diferente para que ela não se precavesse da semelhança de
não ter se encontrado com o homem cara a cara. Tinha-lhe suposto um esforço enorme não desmaiar e atrair
assim mais atenção indesejada para sua pessoa. Mas ainda se sentia bastante instável para perder o sentido se não
tomasse cuidado.
-
Bonito? – repetiu - Não, não me parece isso, Julianne. Embora sim, é certo que tem um porte distinto, tal
como diz tia Louisa.
Julianne pôs-se a rir, ficou de pé de um salto e começou a dar voltas da mesma forma que fez no quarto de
vestir de sua avó horas antes.
-
Mostrou-se muito atento, não acham? – perguntou. - Escutou tudo que eu disse e não pareceu nem
condescendente nem aborrecido, como muitos outros cavalheiros quando uma mulher fala. Me casarei com ele,
mamãe? Farei, vovó? Você não gostaria de estar em meu lugar, Judith?
-
Primeiro terá que pedir sua mão a papai - recordou tia Effingham enquanto ficava em pé. - Mas é
evidente que gostou muito você, querida, e está claro que lady Beamish tem toda a intenção de promover o
enlace. Deve ter bastante influência sobre ele. Acredito que podemos ser otimistas.
-
Judith, carinho - disse a avó, - teria a amabilidade de ajudar a me levantar? Não sei por que estou tão
torpe ultimamente. Acredito que teremos que voltar a chamar o médico, Louisa. Deve me dar mais remédios.
Será melhor que subamos a meus aposentos e que depois chame Tillie, Judith, se não se importar. Acredito que
deitarei durante uma hora.
-
Ah, nesse caso não terá nada que fazer, Judith - disse tia Effingham. - Reúna-se comigo na biblioteca
dentro de uns minutos. Terá que escrever os cartões que indicarão os lugares dos comensais durante o jantar de
amanhã e realizar um sem-fim de tarefas. Não ficará de braços cruzados. Estou segura de que seu pai lhe disse o
que o diabo pode fazer com mãos ociosas.
-
Descerei logo que vovó esteja preparada - prometeu Judith.
-
Julianne, querida - disse sua mãe, - tem que descansar e não se fatigar muito. Amanhã deve ter sua melhor
aparência.
A cabeça de Judith seguia dando voltas. Era lorde Rannulf Bedwyn e tinha ido ali para cortejar Julianne e
casar-se com ela. Ao menos, isso era o que sua tia e sua prima acreditavam. Era provável que o visse todos os
dias durante as duas próximas semanas. Veria os dois juntos.
Ele saberia? Tinha-a reconhecido? Por que, em nome de Deus, teve que levantar a cabeça quando ele ergueu
a mão para repelir um pastel e depois ficou quieto? Por que não se antecipou a esse gesto e tinha seguido seu
caminho? Olharam-se nos olhos. Havia tornado a curvar a cabeça antes de poder distinguir algum sinal de
reconhecimento em seu olhar, mas o havia sentido.
A teria reconhecido? A humilhação de que a tivesse visto em semelhante estado, de saber quem e o que era,
era impossível de suportar. No caso de que não a tivesse reconhecido essa tarde, não haveria dúvida de que o
faria em algum momento das semanas seguintes. Não poderia esconder-se dele de forma permanente. Tinha
escutado que sua avó combinava uma visita com lady Beamish para a tarde seguinte, enquanto os convidados
chegavam a Harewood. Ela, Judith, teria que acompanhá-la? Estaria ele ali?
Acreditou que a vida não podia piorar. Mas tinha se equivocado. Sentiu um golpe de dor. Supunha-se que os
sonhos e a realidade não se mesclavam nunca. Por que seu sonho, o mais glorioso de toda sua vida, espatifou-se
contra a realidade? Talvez porque jamais fora um sonho?
-
Agarrarei em seu braço, Judith, se não for muito incômodo - disse sua avó descarregando todo seu peso
sobre ela. - Deu-se conta de que Louisa se esqueceu de apresentá-la lady Beamish e lorde Rannulf? A vi curvar a
cabeça mortificada e me senti indignada, não me importa confessar. Apesar de tudo, é sua sobrinha e prima irmã
de Julianne. Mas isso é o que acontece com gente empenhada em subir na escala social, nunca se voltam para
olhar aos que estão em degraus inferiores por temor que semelhante associação os desmereça aos olhos de
outros. Perdeu peso desde que chegou querida? Esse vestido fica enorme e não tira o menor partido de sua
encantadora figura. Temos que pedir a Tillie que aperte as costuras, me assegurarei de que coma como é devido.
Olhe, ao final me incharam os pés. Talvez o tônico que me preparou esta manhã não fosse bastante forte.
-
Teve uma tarde muito ocupada, vovó - disse Judith para tranquilizá-la. - Se sentirá melhor depois de
descansar um momento e puser os pés no alto.
CAPÍTULO 7
A carruagem que levava a senhora Law a Grandmaison Park no dia seguinte era coberta e todas as janelas
permaneciam fechadas a despeito de ser um dia ensolarado e caloroso. Uma corrente de ar poderia provocar um
de seus catarros, explicou a Judith, que estava sentada junto a ela e não tinha dúvida de que ambas se derreteriam
pelo calor. Contudo, sua avó estava de muito bom humor e não deixou de tagarelar durante todo o trajeto. Lady
Beamish fora sua melhor amiga desde que se mudou para Harewood dois anos atrás, explicou-lhe. Era muito
agradável afastar-se de vez em quando da casa, onde Louisa estava sempre de mau humor por alguma coisa.
Judith não tinha desfrutado de um momento de pausa durante toda a manhã, que tinha transcorrido em um
tráfego de recados à cozinha, a outras dependências, aos estábulos e às cocheiras enquanto tia Effingham se
assegurava de que não tinha esquecido um só detalhe dos preparativos para a chegada dos convidados. Enquanto
isso, Julianne, que tinha o mesmo número de pés e mãos que sua prima, passou a manhã dando exuberantes
voltas e saltos, se lançado as janelas para ver se alguém chegava antes do tempo ou correndo escada acima para
trocar os sapatos, o cinto ou os laços do cabelo; em poucas palavras, esgotando-se, como dizia sua mãe com uma
carinhosa advertência.
Embora a esperança de Judith de que não lhe ordenassem acompanhar sua avó durante a visita dessa tarde se
desvanecesse quando sua tia a olhou já avançada a manhã e descobriu com desagrado que as faces de sua
sobrinha estavam ruborizadas de uma forma indecorosa, que tinha os olhos anormalmente brilhantes e que uma
mecha de cabelo tinha escapado da touca à altura da nuca. Julianne tinha escolhido esse mesmo momento para
falar com sua mãe.
-
Lady Margaret Stebbins não é mais bonita que eu, não é, mamãe? -tinha perguntado com repentina
ansiedade. - Nem Lilian Warren, nem Beatrice Hardinge, não lhe parece? Sei que Hannah Warren e Theresa
Cooke não o são, ainda que sejam encantadoras e as amo com loucura. Mas eu serei a mais bonita de todas, não é
mesmo?
Tia Effingham se apressou a abraçar sua filha e a assegurar que era dez vezes mais bonita que qualquer de
suas queridas amigas, que chegariam nessa mesma tarde. Entretanto, seu sério olhar posou sobre Judith enquanto
pronunciava essas palavras e na rebelde mecha de cabelo que sua sobrinha estava ocultando atrás da touca.
-
Não é necessário que esteja aqui quando chegarem nossos convidados esta tarde, Judith - havia dito. Não será de nenhuma utilidade e estorvará todo mundo. Pode acompanhar minha mãe a Grandmaison e assim
Tillie ficará aqui para me servir de ajuda.
-
Claro, certamente tia Louisa - havia dito Judith, que sentiu um nó no estômago quando Julianne cravou
os olhos nela com curiosidade.
-
Pobre Judith - tinha comentado sua prima, - jamais terá uma apresentação na sociedade, apesar de ser
alguns anos mais velha que eu. Que desagradável e fastidioso para você não poder se mesclar por igual com a alta
sociedade. Mamãe diz que seu caso não seria tão desesperado se o tio tivesse feito um matrimônio melhor. Não
sabe a sorte que tem de que a convidassem a viver aqui, onde ao menos poderá se acotovelar com gente de
linhagem.
Judith não tinha respondido. Nem sequer lhe tinham dado a oportunidade de pensar se considerava
oportuno expressar sua indignação no que se referia a sua mãe; Julianne tinha virado para tia Louisa para lhe
pedir sua opinião sobre o vestido que tinha escolhido.
E nesse momento Judith se encontrava na carruagem junto a sua avó, abanando-se para suportar o calor. Era
provável que os cavalheiros não prestassem muita atenção às damas de avançada idade, em especial quando se
esperava a visita de outra anciã. Seria estranho que lorde Rannulf Bedwyn estivesse com sua avó essa tarde.
Logo ia descobrir quão equivocada estava.
Depois de descer da carruagem e entrar no vestíbulo de Grandmaison, acompanharam-nas a uma espaçosa
sala de estar de tetos altos onde a luz se refletia sobre os adornos dourados das paredes em tom marfim e se
respirava uma opulenta elegância. Os quadros que decoravam a sala, tecidos de paisagens com marcos dourados,
acrescentavam profundidade e beleza. As enormes portas francesas que havia ao fundo estavam abertas, de
forma que os gorjeios dos pássaros e o aroma das flores inundavam a sala. Judith poderia haver-se apaixonado
por semelhante casa a primeira vista não se deu conta de que ali havia duas pessoas em lugar de somente uma.
Lady Beamish estava se levantando de uma poltrona que havia junto a lareira. Lorde Rannulf Bedwyn já
estava em pé ao lado da lareira. Judith curvou a cabeça e se escondeu na medida do possível atrás de sua avó
enquanto atravessavam o salão. Desejou poder estar em qualquer outro lugar do mundo. Sentia-se extremamente
humilhada e mais feia que de costume, vestida como estava com seu vestido de algodão listrado recém
modificado, a touca e um chapéu com uma aba enorme que tia Louisa lhe deu porque já não o usava.
-
Gertrude, querida - disse lady Beamish com afeto antes de dar um beijo em sua avó na face. - Como se
encontra? E vejo que trouxe a senhorita Law contigo. Que agradável. É uma das netas das quais me falou?
-
Sim, Judith - disse sua avó, que a olhou com um radiante sorriso. - É a segunda filha de Jeremiah e minha
favorita. A verdade é que temia que meu filho enviasse uma de suas irmãs em lugar dela.
Surpreendida, Judith olhou de esguelha sua avó. Estava claro que a anciã não as conhecia o bastante para ter
uma favorita - Como vai, senhorita Law? - perguntou lady Beamish com amabilidade. - Sente-se.
Enquanto isso, lorde Rannulf fez a reverência de rigor à avó em primeiro lugar e depois a ela, enquanto
murmurava seu nome. Devolveu-lhe o gesto sem olhá-lo e se sentou na cadeira mais próxima. Entretanto,
enquanto tirava as luvas percebeu de quão horrível era seu comportamento na impossibilidade de ocultar sua
identidade durante muito mais tempo, se acaso ele não a descobriu a essa altura. Levantou a cabeça e o olhou
diretamente nos olhos.
Ele a estava contemplando com os olhos semicerrados. Judith ergueu o queixo o mais que pôde, apesar de
sentir que o rubor inundava suas faces.
Os seguintes minutos estiveram ocupados com os comentários de rigor. Lady Beamish perguntou pela saúde
da família de Judith e a avó perguntou pela de lorde Rannulf Bedwyn. Também se comentou a chegada dos
hóspedes essa tarde a Harewood e o fato de que lorde Rannulf tivesse a intenção de cavalgar até ali para o jantar.
Nesse momento a voz de lady Beamish adquiriu um tom mais enérgico.
-
Gertrude e eu somos velhas amigas, Rannulf – disse, - nós gostamos mais de passar uma hora juntas
falando de coisas que só a nós interessam. Tem permissão para escapar do tédio de se comportar conforme
ditam as boas maneiras. Por que não acompanha à senhorita Law ao exterior e lhe mostra os jardins principais?
Depois talvez goste de sentar-se no caramanchão enquanto você segue com seus assuntos.
Judith apertou as mãos com força sobre seu regaço. - Parece que aqui estamos estorvando, senhorita Law disse ele antes de dar uns passos em sua direção e lhe fazer uma ligeira reverência enquanto fazia um gesto com a
mão em direção às portas francesas - Gostaria de dar um passeio?
-
Possivelmente, lorde Rannulf - disse a senhora Law quando Judith ficou em pé a contra gosto, - seria
você tão amável de fechar as portas ao sair. Se não lhe parecer mal Sarah, é claro. Acredito que uma de minhas
febres está me espreitando. Judith teve que me abanar o rosto durante todo o caminho até aqui.
Judith passou por cima do braço que lhe ofereciam. Apressou-se a chegar até as portas francesas e saiu no
terraço ladrilhado. Encontrava-se em um atalho que atravessava o centro dos jardins principais quando se deteve
a ouvir que as portas se fechavam atrás dela. Para onde estava fugindo? E por que teria que fazê-lo? Embora
fosse certo que jamais havia se sentido tão mortificada como nesse momento.
-
Bem, senhorita Judith Law - disse ele em voz baixa enfatizando o nome, e ela se deu conta com certo
sobressalto de que o tinha justo atrás. Sua voz destilava um temperado veneno.
Judith cruzou os braços às costas, virou-se e cravou o olhar com atrevimento em seu rosto, cuja proximidade
e familiaridade eram espantosas.
-
Bem, lorde Rannulf Bedwyn - disse ela, com a mesma ênfase nas palavras.
-
Touché! - Olhou-a com o costumeiro brilho zombador nos olhos. Assinalou o atalho com um gesto Damos um passeio? Da sala podem nos ver perfeitamente onde nos encontramos agora.
Conforme pôde observar Judith, os jardins principais foram desenhados com uma precisão geométrica e
estavam atravessados por uma série de atalhos calçados que conduziam em linha reta, como se tratassem dos
raios de uma roda, até a fonte que se encontrava no centro: um cupido de mármore que se apoiava sobre um pé
justo no meio da pia enquanto a água saía disparada da flecha que segurava sobre seu arco e voltava a cair sobre o
reservatório de água. Umas sebes baixas e podadas de modo impecável delineavam os atalhos e demarcavam os
maciços de flores, que reportavam um festim de cor e de variedades à vista e uma doce fragrância ao olfato.
-
Enganou-me - disse ele enquanto caminhavam.
-
E você a mim. - apertou os antebraços com mais força às costas.
Quem dera não tivesse descoberto jamais a verdadeira identidade desse homem. Por que tinha que estar
acontecendo tudo aquilo? De todos os possíveis destinos da Inglaterra, tinham que encaminhar-se a casas que
não distavam mais que oito quilômetros entre si. E por acaso fora pouco, o homem pensava assistir à festa
campestre que se daria em Harewood.
De verdade ia casar com Julianne? Tinha-o planejado antes de sua viagem?
-
Pergunto-me - disse ele com um tom de voz agradável e indiferente- se a sua avó e a seus tios interessaria
saber que é uma atriz e uma cortesã.
Estava ameaçando-a? Teria medo, possivelmente, de que ela o delatasse?
-
E eu me pergunto - replicou Judith com aspereza. - se não lhes interessaria saber que o homem que
pretendem que aspire à mão de minha prima Julianne tem por costume enredar-se em aventuras amorosas com
desconhecidas durante suas viagens.
-
Nada faz senão demonstrar o pouco que sabe do mundo, senhorita Law - disse ele. - Sem dúvida os
Effingham são mais que conscientes de que os cavalheiros têm certos... digamos interesses que perseguem
sempre que se apresenta a oportunidade, tanto antes como depois do matrimônio. É você uma convidada de
honra na casa de seu tio?
-
Sim, convidaram-me a viver em Harewood - respondeu ela.
-
E como é que não se encontra ali esta tarde para receber os convidados? - inquiriu lorde Bedwyn.
-
Minha avó precisava de minha companhia - respondeu Judith.
-
Mente, senhorita Law - disse ele. - De fato, você mente muitíssimo. É uma parenta pobre. Veio a
Harewood na qualidade de criada sem salário, a fim de evitar a sua tia a necessidade de atender as exigências de
sua avó, se minhas hipóteses forem corretas. O matrimônio de seu pai não foi tão vantajoso como o de sua tia?
Tinham chegado à fonte e se detiveram ali. Judith sentia a frescura das gotas de água que caíam sobre suas
faces. - Minha mãe - respondeu com irritação - pertence a uma família acima de toda recriminação. E meu pai,
além de ser clérigo, é um homem de recursos.
-
De recursos - repetiu ele com um que de ironia. - Mas não de fortuna? E ditos recursos minguaram até tal
ponto que seus pais se viram obrigados a enviar uma de suas filhas a viver com uns parentes ricos?
Judith rodeou a fonte para chegar até o atalho que havia do outro lado. Ele a rodeou em sentido contrário
antes de colocar-se de novo junto a ela.
-
Suas perguntas são muito impertinentes - afirmou ela. - Minhas circunstâncias não são de sua
incumbência. Nem tampouco as de meu pai.
-
É a filha de um cavalheiro - disse ele com suavidade.
-
É claro que sim.
-
E está zangada - acrescentou lorde Rannulf.
Estava? Por quê? Porque era humilhante que a vissem tal e como realmente era? Porque seu único sonho
roubado, que devia sustentá-la durante o resto de sua solitária vida, fez-se em pedaços? Porque ele parecia tão
tranquilo e indiferente ante essa horrível coincidência? Porque zombava dela e de seus pais? Porque Julianne era
jovem, bonita e rica? Porque Branwell tinha esbanjado a pequena fortuna que seu pai tinha economizado com
tanto esforço? Porque a vida não era justa? Quem alguma vez disse que deveria ser?
-
E é uma covarde - acrescentou ele depois de um breve silêncio. - Nem sequer teve a coragem de me olhar
nos olhos e me contar essa história a respeito de que havia outro homem. Nem sequer teve a coragem de
despedir-se de mim.
-
Não - admitiu Judith. - Não, não tive.
-
E dessa forma - continuou ele - fez-me ficar como um estúpido. A mulher do hospedeiro me deu um
sermão por havê-la tratado mal e me aconselhou que cavalgasse atrás de você e engolisse o orgulho.
-
Sinto muito - sussurrou ela.
-
De verdade? - Ele baixou o olhar para observá-la e Judith se deu conta de que uma vez mais tinham
deixado de caminhar. - A teria tomado mesmo que houvesse dito a verdade. Dá-se conta disso? A teria
transformado em minha amante. A teria mantido; teria cuidado de você.
Nesse momento Judith se sentiu furiosa e sabia muito bem por que. Por que tinha que morrer o único
grande sonho de sua vida de uma maneira tão infame e dolorosa? De repente o odiou; desprezou e odiou esse
homem por obrigá-la a ser consciente da sordidez do que tinha acontecido entre eles.
-
Vejamos. - deu uns golpes sobre os lábios com um dedo e olhou para cima como se estivesse meditando.
- Acredito que isso tivesse sido durante alguns dias, pode ser uma semana no máximo. Até que nos cansássemos
um do outro, o que traduzido significa, conforme acredito, até que você se cansasse de mim. Não, muito
obrigado, lorde Rannulf. Eu desfrutei de nosso encontro. Encheu uns dias potencialmente aborrecidos enquanto
aguardávamos que parasse de chover. Já me tinha cansado de você então. Não obstante, teria sido muito
desconsiderado dizer, já que admitiu que queria desfrutar de mim durante uns dias ou até mesmo uma semana
mais. De modo que escapuli enquanto estava fora. Perdoe-me.
Ela o olhou fixamente em silêncio durante longo momento, com uma expressão indecifrável.
-
Se me mostrar onde se encontra o caramanchão, me sentarei ali até que minha avó envie alguém para me
buscar - acrescentou Judith.
Ele falou de repente, passando por cima sua sugestão. - Está grávida? Já sabe?
Se um buraco negro tivesse tido a amabilidade de abrir-se sob seus pés, Judith teria saltado de boa vontade
em seu interior. - Não! - exclamou com as faces acesas. - É claro que não.
-
É claro? - Com as sobrancelhas arqueadas, esse homem era a viva imagem de um irreverente e arrogante
aristocrata. - Os bebês chegam como resultado dessas atividades das quais nós desfrutamos, senhorita Law.
Acaso não sabia?
-
É claro que sabia! - Se era possível sentir-se mais envergonhada, Judith não podia imaginar em que
circunstâncias. - Suponho que não acreditará que eu teria permitido...
Uma mão no alto a deteve.
-
Por favor, senhorita Law - disse com um tom de voz enfastiado, - deixe de atuar como se fosse uma
mulher do mundo. Porque é uma atuação, igual a sua Viola ou sua lady MacBeth. Está certa de que não?
-
Sim. - De repente sentiu os lábios rígidos e quase não pôde pronunciar a palavra. - Estou bastante segura.
Onde está o caramanchão?
-
Por que usa uma roupa tão espantosa? - perguntou ele. Judith o olhou com os lábios apertados.
-
Semelhante pergunta não é digna de um cavalheiro - replicou enquanto ele aguardava sua resposta.
-
Não estava vestida dessa forma para viajar - disse lorde Rannulf, - embora seja culpa minha não haver
dado conta de que não era mais que uma garota de campo brincando de ser uma atriz e uma cortesã. É boa... em
ambas as coisas. Mas de onde saíram esse chapéu, essa ridícula touca e esse vestido tão largo?
-
Suas perguntas são muito insolentes - afirmou Judith.
Entretanto, seus olhos e seu sorriso zombavam dela de uma forma bastante perversa.
-
Suponho - disse ele, interrompendo-a uma vez mais, - embora temo seja mais uma certeza que uma
hipótese, que quando sua tia a viu chegar a Harewood se deu conta de que, por desgraça, você eclipsaria muito
sua filha e decidiu ocultá-la atrás do melhor disfarce que pôde imaginar. Estou certo?
É claro que não estava certo. Acaso era cego? A única coisa que fez tia Louisa era insistir, inclusive mais que
seu pai, em que ocultasse seus feios traços.
-
Ou também seu cabelo era parte da atuação? - perguntou ele antes que seus lábios esboçassem um sorriso
torcido ainda mais zombador - Está calva sob a touca, senhorita Law?
-
Suas perguntas são repetitivas e ofensivas, lorde Rannulf - disse - Tenha a amabilidade de me indicar onde
se encontra o caramanchão ou pedirei a algum jardineiro que me mostre o caminho.
O homem a observou durante um instante mais; soprou pelo nariz em um gesto que poderia ter sido de fúria
e em seguida estalou a língua, afastou o olhar e começou a retroceder o caminho pelo qual chegaram até que
tomou um atalho adjacente que conduzia - conforme pôde comprovar Judith - às grades cobertas de rosas que
deviam contornar os limites do caramanchão.
Era um lugar tão bonito que roubava o fôlego ou o teria feito em outras circunstâncias. Fechado em três dos
lados por altas grades que o protegiam do vento, descia ao longo de quatro amplos terraços em direção a um
arroio borbulhante. Havia rosas por toda parte, de todos os matizes e cores, de todos os tipos e tamanhos. O ar
estava carregado de seu perfume.
Judith se sentou em um banco de ferro forjado colocado no terraço superior e cruzou as mãos sobre o
regaço.
- Não precisa me fazer companhia – disse - Estarei muito bem aqui só rodeada por semelhante vista.
Ele permaneceu de pé a seu lado sem dizer nada durante o que pareceu um bom momento. Judith não
levantou a vista para ver se a estava olhando ou se não fazia mais que contemplar os arredores, embora sim
pudesse ver a ponta de uma das botas de montar riscando uma e outra vez o mesmo desenho sobre a
pavimentação que havia ao lado do banco. Não podia suportar sua proximidade. Não podia suportar a realidade,
nem tampouco o fato de saber que seu sonho roubado se fez em pedacinhos para sempre.
E então ele se afastou sem dizer uma palavra e ela se sentiu vazia.
Rannulf se dirigiu diretamente a seu quarto. E começou a andar de um lado a outro.
Era a filha de um cavalheiro. Maldita fosse sua imagem! Não deveriam tê-la deixado viajar sozinha, sem nem
sequer uma criada que lhe oferecesse certa respeitabilidade. Seu pai merecia que lhe dessem um tiro por permitir
isso. Não deveria ter aceitado cavalgar com ele nem muito menos utilizar essa voz rouca e fingir que era atriz.
Nem paquerar com ele. Nem permitir que lhe roubasse um beijo sem lhe arrancar a cabeça dos ombros por
semelhante impertinência.
A moça tinha que conhecer as regras do decoro tão bem como ele.
Ele conhecia essas regras.
Apoiou ambas as mãos sobre o batente da janela, respirou fundo, conteve o fôlego e o deixou escapar muito
devagar. Olhou para baixo. Um criado bordejava os jardins principais em seu caminho de volta à casa. O copo de
limonada que Rannulf tinha ordenado que enviassem a Judith já fora entregue, parece.
Ela não deveria ter aceitado a escandalosa sugestão de que se mudassem da hospedaria aquela outra
estalagem muito mais tranquila, situada junto ao prado do mercado. Nem haver-se mostrado de acordo em
compartilhar um quarto com ele. Nem ter jantado a sós com ele. Nem ter estimulado seu desejo com essa
atuação... Onde demônios tinha aprendido a atuar assim? Nem ter deixado solto esse cabelo de sereia.
Por todos os diabos, não deveria ter se deitado com ele. Teria que conhecer as regras.
Ele conhecia essas regras.
Deu um murro no batente da janela e amaldiçoou entre dentes.
Ele conhecia as regras, maldição. Seu pai tinha criado filhos ingovernáveis e teimosos que desprezavam os
costumes e as opiniões de outros a menor oportunidade. Também tinha criado filhos honoráveis, que sabiam que
regras não se podiam romper.
Havia-lhe dito que a teria tomado até sabendo a verdade sobre ela. A teria transformado em sua amante,
tinha-lhe assegurado. O teria feito? Provavelmente não... Não, sem lugar a dúvidas.
Era a filha de um cavalheiro.
Por todos os santos! Era certo que a moça nem sequer sabia ainda se tinha conseguido escapar do pior dos
destinos. Era uma mentirosa consumada. Não seria de estranhar que também lhe tivesse mentido a respeito.
Poderia dar à luz a seu bastardo em um pouco menos de nove meses.
Estampou o punho no batente uma vez mais e se afastou da janela para começar a andar de novo de um lado
a outro do quarto, com os punhos apertados de ambos os lados do corpo. Maldição, maldição, maldição!
Ao final, abriu de repente a porta e saiu como uma exalação para o corredor sem fechar a porta. Sem pensar
duas vezes.
Ela continuava sentada onde a deixou, com as mãos no regaço, uma sobre a outra com as palmas para cima;
o copo de limonada, ao qual apenas teria dado um gole, encontrava-se sobre uma pequena mesa de ferro forjado
que o criado devia ter colocado a seu lado. A moça contemplava o arroio e só girou um pouco a cabeça quando
ele apareceu sob o arco gradeado, procedente do terraço.
-
Estive dando voltas por meu quarto - disse, - tentando me convencer de que você era a única culpada do
ocorrido. Mas não é certo. Eu sou igualmente culpado.
Ela girou por completo a cabeça para olhá-lo e Rannulf se encontrou contemplando uns surpreendidos e
abertos olhos verdes. - O que? - perguntou.
-
Você era uma jovem inocente e inexperiente - disse Rannulf. - E eu estou muito longe de ser inocente e
inexperiente. Teria que me ter dado conta. Deveria me haver precavido do engano.
-
Está se culpando pelo que aconteceu entre nós? - perguntou ela com um tom estupefato. - Que absurdo!
Não tem sentido jogar a culpa em ninguém. Foi algo que aconteceu de mútuo acordo. Acabou-se e é melhor
esquecer.
Quem dera fosse tão fácil!
-
Não acabou - afirmou ele - Tomei sua virgindade. Agora é você, se me permite dizer com certa crueldade
e sem disfarces, mercadoria danificada, senhorita Law; e não é possível que seja tão inocente para não dar-se
conta desse fato.
Com as faces vermelhas, ela girou a cabeça de repente para voltar a olhar à frente e se levantou com
brutalidade.
-
O que o faz pensar... ? - começou a dizer.
-
Não, não são coisas minhas - replicou ele. - Estava um pouco ébrio, tanto pelo vinho que tinha
consumido como por sua atuação e seus encantos. Depois que fugiu, a hospedeira me explicou por que tinha
trocado os lençóis de nossa cama depois da primeira noite que passamos juntos. Havia sangue nos que retirou,
como muito bem se encarregou de me assinalar.
As costas da moça encolheram de forma evidente. - Você é uma dama, senhorita Law - disse ele, - embora
seja certo que não pertence a uma família rica nem de relevância social. Pertence a uma classe social muito abaixo
de qualquer nível no que tanto minha família como meus pares esperariam que eu escolhesse uma esposa, mas
não tenho outro remédio. Não é que culpe a você. Culpo a mim mesmo por estar tão cego como para não me
dar conta da realidade. Embora seja muito tarde para me lamentar. Me daria a honra de casar-se comigo?
Nessa hora suas costas não encolheram. Ficou rígida. Durante alguns instantes, Rannulf chegou a pensar que
não ia responder lhe. Entretanto, afinal o fez.
-
Não - disse com uma voz firme e bastante precisa.
E ato seguido se afastou dele, descendo o amplo terraço até deixar atrás as rosas e deter-se na beira do
arroio. Talvez devesse fazer a proposta com palavras ternas; ter se colocado diante dela e ter tomado sua mão.
Em troca, tinha-a obsequiado com a pura verdade, porque de qualquer modo ela teria reconhecido qualquer tipo
de engano por sua parte. Em seu papel de Claire Campbell tinha parecido uma mulher inteligente. Foi atrás dela.
-
Por que não? -perguntou.
Não sou o problema de ninguém, lorde Rannulf - respondeu ela. - E não serei o bálsamo que alivie a
consciência culpada de ninguém. Ainda que não seja necessário que se sinta culpado. Fui a você de maneira
voluntária E... deitei-me com você de boa vontade. Era algo que queria experimentar e decidi aproveitar a
oportunidade quando se apresentou. Tem toda a razão quanto ao motivo de minha presença em Harewood. Não
é muito provável que se descubra que uma mulher em minhas circunstâncias uma mulher desonrada ou
mercadoria danificada. As mulheres como eu permanecem solteiras durante toda a vida. Suponho que, depois de
tudo, a possibilidade de me casar deveria ser tentadora. Poderia me transformar em lady Rannulf Bedwyn e ser
mais rica do que jamais cheguei a sonhar. Entretanto, não me casarei por que você não tenha outro remédio ou
porque seja muito tarde para que você escape da armadilha que eu represento aos seus olhos. Não me casarei
porque a honra o obrigue a me oferecer matrimônio tão imprudente e desigual. Para você não seria uma honra
que aceitasse sua proposta, e sim um martírio.
-
Rogo que me desculpe - disse ele - Não pretendia dizer que...
-
Claro que não - conveio ela, - você não pretendia dizer nada. Limitava-se a constatar um fato. Por qual de
todas essas razões esperava que eu aceitasse com alegria sua proposta lorde Rannulf? Porque é você o filho de
um duque e um homem imensamente rico? Porque minhas esperanças de me casar com qualquer outro seriam
escassas mesmo se não tivesse perdido a virgindade? Porque o decoro dita que deveria me casar com o homem
que me seduziu dado que ele teve a boa vontade de me propor isso embora, é claro, você não me seduziu?
Porque me disse que o honraria se eu o aceitasse? Minha resposta é não.
O alívio pugnava com a incredulidade e a indelével sensação de culpa. Tinha sido a crueldade de sua
proposta que a tinha ofendido. Se fizesse o pedido da forma adequada, faria ela o correto?
-
Me perdoe - disse ele - Acreditei que desprezaria as palavras doces e aduladoras. Permita que...
-
Não. - virou-se para ele e o olhou nos olhos. - Foi uma experiência efêmera, lorde Rannulf. Jamais
pretendi que durasse mais tempo. Sentia curiosidade, o satisfiz e também encontrei satisfação. Não sentia o
menor desejo de continuar com a relação e certamente tampouco sinto o menor desejo de me casar com você.
Por que deveria fazê-lo? Não sou tão inocente nem tão ignorante para não saber como são os homens de sua
posição. Tive ocasião de comprovar durante a viagem e suas palavras de hoje confirmam o que já sabia. Você não
é nem inocente nem inexperiente, conforme proclamou com orgulho. Qualquer um que saiba como são as
coisas, assegurou, compreenderia que deve esperar um comportamento semelhante tão antes como depois do
matrimônio. Até no caso de que desejasse me casar com você, não o faria. Por sabendo que iria transformar-me
em uma esposa não desejada, abandonada em alguma tranquila e respeitável propriedade campestre enquanto seu
marido continua com sua vida de flerte e libertinagem como se ela não existisse? Queria viver uma aventura com
você, não o ter como marido; e por muito que me satisfez à aventura, não estou disposta a repeti-la. Que sorte
para você! Depois de tudo não terá que enfrentar o desprezo de seus pares nem o descontentamento de seu
irmão, o duque de Bewcastle. Que tenha um bom dia.
Por estranho que parecesse, apesar de suas loquazes e desdenhosas palavras, da ira apenas reprimida e do
vestido que tão mal a vestia, a moça voltava a atraí-lo de repente e o fez recordar a intensa atração sexual que
tinha sentido por ela durante o dia e meio e as duas noites que passaram juntos. Até esse momento nem sequer
tinha passado pela cabeça que fosse a mesma mulher.
-
É essa sua última palavra? - perguntou.
-
Que parte do que lhe disse é a que não compreendeu, lorde Rannulf? - inquiriu ela sem deixar de olhá-lo
nos olhos. Entretanto, antes que pudesse responder, Rannulf se deu conta de que havia alguém mais no
caramanchão. Levantou a vista e descobriu o mesmo criado de antes justo sob o arco, limpando a garganta.
Rannulf arqueou as sobrancelhas.
-
Enviaram-me para dizer à senhorita Law que deve retornar à sala de estar, milorde - disse.
-
Obrigado - replicou Rannulf com secura.
Não obstante, quando se virou para oferecer o braço a Judith Law, ela se apressou a atravessar os terraços
inferiores, levantando as saias com ambas às mãos e fazendo pouco caso de sua existência.
Não a seguiu. Ficou ali olhando-a, embargado pelo que viu. Embora não tinha nem ideia de por que se sentia
aliviado, logo recordou que de uma maneira ou de outra teria que casar-se com alguém nesse mesmo verão.
Sentia-se irritado. E continuava consumido pela culpa. E bastante excitado, maldição!
CAPÍTULO 8
Harewood Grange era um fervedouro de ruído e atividade quando a carruagem deixou Judith e sua avó no
terraço. Conforme puderam comprovar, todos os convidados que se esperavam já chegaram. A maioria se
encontrava no salão, tomando chá com tia Louisa, tio George e Julianne. Aqueles que chegaram mais tarde ainda
estavam em seus respectivos aposentos, trocando de roupa. No terraço se amontoavam multidões de baús, bolsas
de viagem e caixas de chapéus, que numerosos criados e valetes desconhecidos se apressavam a transportar a
seus aposentos correspondentes tão rápido como podiam.
- Estou muito cansada para fazer presença, Judith - disse sua avó. - Tenho a sensação de que estou a ponto
de sofrer uma de minhas enxaquecas. Mas você não pode perder a reunião. Se for tão amável, me acompanhe a
meus aposentos e depois me traga uma xícara de chá e talvez uns dois pastéis... os que estão cobertos por esse
glacê branco, carinho. E depois tem que pôr um vestido bonito e se reunir com Louisa e Julianne no salão para
que a apresentem a todos os convidados.
Judith não tinha a mínima intenção de fazer tal coisa. Acabava de vislumbrar a oportunidade de desfrutar a
primeira hora de verdadeira liberdade desde que chegara a Harewood e não pensava desperdiçá-la. Correu para
seu quarto assim que chamou Tillie a fim de que ajudasse sua avó a meter-se na cama para tirar uma sesta,
colocou rapidamente um dos poucos vestidos que ainda não foram submetidos às mudanças de sua tia - um
velho vestido de algodão cor amarelo limão que guardava com especial carinho, - atirou a touca de um lado para
substituí-la por seu chapéu de palha e se apressou a descer a escada de serviço, que descobriu poucos dias atrás
enquanto fazia vários encargos na cozinha. Escapuliu pela porta traseira e saiu aos jardins da cozinha, com as
verduras de um lado e os maciços de flores do outro. Os prados verdes se estendiam ao longe até os pés de uma
colina salpicada de árvores. Judith se encaminhou nessa direção e não demorou em aliviar o passo, erguendo o
rosto para o sol e a ligeira brisa para desfrutar da maravilhosa sensação que supunha sentir sobre o cabelo, a testa
e o pescoço, que por regra geral estavam cobertos pela touca.
Quão louca estava para ter repelido uma proposta de matrimônio? De um homem com título e fortuna? Um
homem com o qual se deitou? Ao qual achava extremamente atraente? Cujas lembranças esperara que
inundassem os sonhos do resto de sua vida? O matrimônio era o objetivo primitivo de qualquer mulher; ela
desejava com ardor que o matrimônio lhe reportasse segurança, filhos e um pouco de consolo, talvez inclusive
amizade.
Durante alguns anos tinha aguardado com paciência a oportunidade de conhecer um homem disposto a
casar com ela; um homem a quem seu pai achasse aceitável e fosse passível a seus próprios olhos. Tinha sido
bastante sensata para não esperar jamais que seus sonhos de encontrar o amor se transformassem em realidade.
E, entretanto essa manhã -fazia pouco mais de uma hora- tinha recusado lorde Rannulf Bedwyn.
Acaso estava louca?
A colina não era muito alta, embora de qualquer modo do topo proporcionasse uma encantadora vista da
campina que a rodeava, Judith podia olhar em todas as direções. A brisa soprava um pouco mais forte ali em
cima. Colocou-se de cara ao vento, fechou os olhos e jogou a cabeça para trás.
Não, não estava louca. Como poderia ter aceitado quando ele nem sequer tinha tentado dissimular o
ressentimento que lhe provocava o fato de ver-se obrigado a fazer semelhante proposta? Como ia aceitar quando
deixou claro o muito que desprezava sua modesta classe social? Como ia aceitar quando tinha confessado sem
disfarces que o que tinha acontecido entre eles não era uma circunstância incomum para ele e que semelhante
aventura continuariam produzindo-se até depois de seu matrimônio?
Como podia casar-se com um homem que detestava com todas as suas forças?
Mesmo assim, pensou enquanto espiava um pequeno lago na parte mais afastada do pé da colina em cuja
direção se pôs em marcha, sua negativa se viu afetada por uma irrefletida loucura; o orgulho tinha nublado seu
bom senso. E era este último quem lhe recordava nesse momento que apesar do matrimônio com lorde Rannulf
tivesse suposto acabar encerrada em algum canto perdido enquanto ele continuava com suas aventuras amorosas,
teria sido um matrimônio apesar de tudo. A teria transformado na respeitada senhora de seu próprio lar.
Em troca, dependia de tio George, que mal reparava em sua existência, e era o objeto do desprezo e as
ordens de tia Louisa, que continuariam durante incontáveis anos no futuro. Só sua avó fazia suportável sua vida
nesses momentos. Repreendeu-se para si mesma ao perceber o rumo da autocompaixão que tinham tomado seus
pensamentos. Havia destinos piores. Poderia estar casada com um homem que se importasse com sua
insignificância, que descuidasse dela, que fosse infiel e...
Bom, havia destinos piores!
O lago que se encontrava ao pé da colina era íntimo e encantador. Estava rodeado de erva alta, flores
silvestres e algumas árvores. Parecia um lugar abandonado e era muito provável que não o usassem nem sequer o
frequentassem.
Possivelmente, pensou, poderia transformar-se em seu refúgio particular durante os dias, os meses e os anos
vindouros. Ajoelhou-se na erva e colocou uma mão na água. Estava fresca e clara, não tão fria como supôs.
Recolheu um pouco de água com as mãos e afundou seu acalorado rosto nelas.
Estava chorando, comprovou de repente. Ela quase nunca chorava. Entretanto, as lágrimas eram ardentes
em contraste com a frescura da água, e de seu peito brotavam uma série de soluços impossíveis de controlar.
A vida era mais injusta em algumas ocasiões. Tinha estendido a mão só uma vez em sua vida para
apoderar-se de um sonho breve e maravilhoso. Não tinha exigido nem esperado que se prolongasse. Só desejou
que a lembrança desse sonho perdurasse durante o resto de sua vida.
Era evidente que pedira muito.
Nesse momento seu sonho desmoronou por completo. As lembranças estavam manchadas... todas as
lembranças. Porque ele descobriu que ela não era a rutilante estrela, a extravagante atriz que lhe tinha parecido
atraente apesar de seus defeitos físicos. E porque ela descobriu que ele era um calhorda.
Entretanto, acabava de lhe propor matrimônio e ela o recusou.
Ficou em pé e encaminhou de volta ao topo da colina.
Não podia permitir que sentissem falta dela. Se assim fosse, tia Louisa se encarregaria de que não pudesse
desfrutar de um só instante de ócio no futuro.
Ao chegar à porta traseira, descobriu que alguém a fechou com chave. Não conseguiu abri-la apesar de todos
seus esforços e ninguém atendeu sua chamada quando bateu com os nódulos. Rodeou a casa em direção à
entrada principal, desejando com todas as suas forças que os convidados continuassem reunidos no salão a fim
de poder escapulir para seu quarto sem que a descobrissem.
Quando dobrou a quina do terraço dianteiro, uns moços guiavam dois cavalos em direção aos estábulos e
vários criados estavam descendo um monte de bagagem de uma carruagem. Havia dois cavalheiros de costas para
ela; um deles dava as ordens pertinentes com voz impaciente e arrogante. Judith retrocedeu e teria desaparecido
de novo atrás da quina se o outro cavalheiro não tivesse virado um tanto a cabeça, deixando seu perfil à vista.
Ela o olhou fixamente sem dar crédito ao que via e em seguida se apressou a aproximar-se dele, esquecendo
que não queria que a vissem.
-
Bran? – gritou - Branwell?
Seu irmão se virou com as sobrancelhas erguidas e depois sorriu enquanto se aproximava dela correndo.
-
Jude? – perguntou - Você também está aqui? Fantástico! - tirou o chapéu, levantou-a do chão com um
forte abraço e a beijou na face. - Também vieram outros? Eu gosto do chapéu... muito favorável.
Ia vestido à última moda e para falar a verdade parecia muito charmoso e elegante com seu cabelo loiro
revolto pela brisa e esse sorriso afetuoso em seu entusiasmo, juvenil e rosto atraente. Por um instante Judith
esqueceu seus desejos de torturar com lentidão e traição todas e cada uma das partes do corpo de seu irmão, da
cabeça até as unhas dos pés.
-
Só estou eu – respondeu - Uma de nós foi convidada e me tocou.
-
Fantástico! - exclamou.
-
Mas o que está fazendo você aqui, Bran? - perguntou ela.
Antes que seu irmão pudesse responder, o outro cavalheiro se uniu a eles.
-
Bom, bom, bom - disse, submetendo-a a esse tipo de escrutínio descarado que teria feito que seu pai
desse uma reprimenda a ela, de havê-lo presenciado. - Quer nos apresentar, Law?
-
Judith - disse Branwell. - Minha irmã. Horace Effingham. Jude. Nosso primo por parte do tio George.
Há! Assim, tinha acudido; o filho do primeiro matrimônio do tio George. Tia Effingham ficaria encantada.
Essa era a primeira vez que Judith o via em toda sua vida. Superava em alguns anos os vinte e um de Branwell e
era alguns centímetros mais baixo que seu irmão; na realidade não era muito mais alto que ela. Era um pouco
mais robusto que Bran e sua compleição morena lhe conferia uma atração que poderia pontuar-se de agradável.
Seu sorriso revelou uns dentes muito grandes e muito brancos.
-
Prima - disse, enquanto estendia uma mão firme, mas suave, para tomar a sua. - É um verdadeiro prazer.
Sinto-me repentinamente encantado de ter sucumbido à persuasão de minha madrasta e de ter vindo ao que
pensava que ia ser todo um aborrecimento. Trouxe seu irmão comigo para aliviar o tédio. Tomarei a liberdade de
chamá-la de Judith, posto que somos parentes próximos. - levou sua mão aos lábios e a sustentou ali mais tempo
do que o necessário.
-
Effingham é um grande tipo, Jude - disse Branwell com entusiasmo. - Levou-me às corridas e me deu
conselhos muito úteis sobre como escolher um ganhador; e também a Tattelsall's, onde me aconselhou como
escolher os melhores cavalos. Uma noite me convidou ao White's e tomei parte em uma das mesas e ganhei
trezentos guinéus antes de perder trezentas e cinquenta. De qualquer modo, só perdi cinquenta enquanto que os
tipos que estavam comigo perderam centenas. E o White's! Deveria vê-lo, Judith; claro que não pode, porque é
uma mulher.
Judith tinha se recuperado da surpresa inicial e também do prazer de ver seu irmão. Branwell, o único varão
entre quatro mulheres - o bonito, entusiasmado e alegre Bran -, sempre fora o menino mimado. Tinha ido ao
colégio à custa do gasto que supôs para seu pai e tinha retornado a casa com umas notas medíocres. Entretanto,
tinha se destacado em todos os jogos, era o melhor amigo de todo mundo. Depois tinha ido a Cambridge, onde
superara os exames por um fio. Mas não havia se sentido atraído nem por uma carreira eclesiástica, nem pela
advocacia, nem pela política, nem pelo corpo diplomático, nem pelo exército. Não sabia o que queria fazer.
Precisava ir a Londres, mesclar-se com gente adequada e descobrir com exatidão onde podia aplicar seu talento e
habilidade para ganhar uma fortuna.
Durante o ano que tinha transcorrido desde sua volta de Cambridge, Branwell tinha esbanjado todo o
dinheiro que seu pai dispôs para ele; e depois tudo o que economizou para os modestos dotes de suas filhas.
Nesse momento seu irmão estava gastando o salário que permitia à família viver independentemente. E mesmo
assim seguia sendo o menino mimado, que não demoraria em deixar para trás as loucuras da juventude e se
disporia a recuperar a fortuna familiar. Inclusive seu pai, que era tão rigoroso com suas filhas, não via em
Branwell nada mau que o tempo e a experiência não pudessem emendar.
-
Encantada de conhecê-lo, senhor Effingham - disse Judith, escapando de sua mão logo que a cortesia o
permitiu. - Alegra-me muito vê-lo de novo, Bran. Mas devo me apressar a entrar. Vovó estará a ponto de
despertar da sesta e devo ver se precisa de algo.
-
Vovó? - perguntou Branwell. - Tinha-me esquecido que a anciã estava aqui. Uma velha harpia, não é
Jude?
A Judith não agradou muito o tom desrespeitoso de seu irmão.
-
Tenho-lhe muitíssimo carinho - replicou com sinceridade. - Talvez queira lhe apresentar seus respeitos
assim que tenha se refrescado, Bran.
-
Se Judith estiver com ela, o acompanharei, Law - disse Horace Effingham com uma gargalhada.
Não obstante, Judith já se afastava com urgência, enquanto comparava sua situação em Harewood Grange
com a de seu irmão. Ela estava ali na qualidade de criada sem salário, enquanto que Bran acabava de chegar como
convidado. Apesar de ser a causa de suas desditas. De todas elas. Se não fosse por Bran, não teria estado na
diligência. Não estaria ali.
De qualquer forma, não tinha sentido voltar a cair em autocompaixão.
Descobriu, não sem certo alívio, que o saguão e a escada continuavam desertos. Enquanto subia apressada,
escutou o murmúrio das vozes procedentes do salão.
Rannulf, tal e como acontecia ao resto de sua família, nunca havia se sentido particularmente atraído pelas
reuniões sociais, quer fossem em Londres durante a temporada, em Brighton, em um dos balneários
frequentados no verão ou em qualquer festa campestre celebrada com o passar dos anos. A festa que teria lugar
em Harewood prometia ser da mais insípida, conforme comprovou ao chegar. Mesmo assim, não podia livrar-se
dela. Devia passar as duas semanas seguintes esforçando-se por agradar à senhorita Effingham. E durante essas
duas semanas, ou pouco depois teria que propor matrimônio a jovem.
Duas propostas a duas mulheres diferentes e com apenas um mês de diferença. Embora da segunda delas
não haveria liberação possível.
Desde sua chegada a Harewood para o jantar tinha resultado embaraçosamente óbvio que era o convidado
de honra, mesmo que não pernoitasse na mansão como o resto dos presentes. E não era só o convidado de
honra, também o pretendente predileto na hora de conceder a mão da senhorita Effingham. A mãe da jovem o
guiou através do salão pouco depois de sua chegada, com o fim de lhe apresentar aqueles convidados que ainda
não conhecia - a maioria deles, para falar a verdade-, convidou sua filha a que os acompanhasse. A dama os
arrumou pouco depois para que fosse o par de sua filha durante a procissão de entrada ao salão, onde descobriu
que ambos se sentariam lado a lado para jantar.
Resultou-lhe interessante descobrir que um dos convidados era um tal Branwell Law, um moço loiro e de
aparência agradável que claramente era o irmão de Judith Law. Não o tinha mencionado Claire Campbell? De
Judith e a senhora Law não havia rastros, algo pelo qual estava muito agradecido. Dizer que se sentia
envergonhado depois de seus encontros no jardim, de maneira especial depois do segundo deles no
caramanchão, seria calcular por baixo. Tinha-o recusado!
A senhorita Effingham parecia extremamente jovem e sua estupidez alcançava níveis alarmantes. Seu único
tema de conversa eram as festas às quais tinha assistido em Londres e os contínuos comentários sobre como este
e aquele - a maioria cavalheiros com título - tinham-na tratado com atenção e tinham desejado dançar com ela
quando já tinha prometido todas as peças a outros cavalheiros.
Acreditava com firmeza que os descansos nos bailes deveriam ter lugar cada duas peças em lugar de cada
três, de modo que pudesse haver mais oportunidades de troca de casal e assim um maior número de cavalheiros
desfrutasse de um baile com a dama de sua escolha. O que opinava lorde Rannulf a respeito?
Lorde Rannulf pensava - ou isso afirmou- que era uma sugestão notavelmente inteligente que teria que
propor a algumas das anfitriãs mais proeminentes de Londres, em particular a aquelas que formavam o comitê
organizador do Almack'S.
-
Como se sentiria - perguntou a jovem, olhando-o com esses olhos azuis totalmente abertos e a colher
suspensa sobre o pudim - se quisesse dançar com uma dama e ela desejasse com desespero dançar com você, mas
tivesse comprometidas todas as peças com outros cavalheiros, lorde Rannulf?
-
Raptaria-a - respondeu e observou como ela abria os olhos um pouco mais antes de desfazer-se em
alegres e agudas gargalhadas.
-
Não o faria – replicou - Ou sim? Causaria um tremendo escândalo e depois, não sei se sabe, se veria
obrigado a pedir sua mão em matrimônio.
-
Absolutamente - contradisse ele – A levaria a Gretna Green, me casaria com ela sobre a bigorna.
-
Que romântico! - exclamou com um pequeno arquejo de surpresa. - A sério faria isso, lorde Rannulf?
Com alguém a quem admirasse?
-
Só se não tivesse nenhuma peça de baile livre - disse.
-
Há! - exclamou ela com uma gargalhada. - Se a moça soubesse disso com antecedência, se asseguraria de
que não restasse nenhuma. E depois poderia levá-la a toda pressa... Não obstante você não faria algo tão
escandaloso, certo? – Em seus olhos aparecia o remorso da dúvida.
Rannulf estava farto daquele estúpido joguinho.
-
Sempre me asseguro – disse - de chegar ao baile com tempo suficiente para conseguir ao menos uma peça
se houver alguma dama em particular a quem admire.
O sorriso desapareceu dos lábios da moça.
-
Há muitas damas que admira, lorde Rannulf? -perguntou.
-Neste momento - respondeu ele, cravando os olhos nela, - só vejo uma, senhorita Effingham.
-
Oh!
Era certo que a jovem sabia quão bonita estava com os lábios franzidos desse modo. Manteve a expressão
uns instantes antes de ruborizar-se e baixar a vista para seu prato. Rannulf aproveitou a oportunidade e se virou
para fazer um comentário à senhora Hardinge -a mãe da senhorita Beatrice Hardinge-, que estava sentada de seu
outro lado. Lady Effingham ficou em pé pouco depois para assinalar às damas que chegou a hora de retirar-se ao
salão enquanto os cavalheiros tomavam o porto.
A primeira pessoa que Rannulf viu quando entrou no salão meia hora mais tarde foi Judith Law, que estava
sentada perto da lareira junto a sua avó. Usava um vestido de seda cinza pálido que parecia tão disforme como o
de algodão listrado que tinha usado em Grandmaison essa mesma manhã. E voltava a usar touca. Era um pouco
mais bonita que a outra, embora também lhe ocultasse o cabelo por completo. Segurava um pires e uma taça para
a anciã, conforme comprovou Rannulf, enquanto esta sustentava um prato com um pastel de nata do qual estava
dando boa conta.
Esqueceu-se de ambas as mulheres depois de fazer um amistoso gesto de cabeça em direção à senhora Law,
que sorriu antes de lhe devolver o gesto. Era desconcertante descobrir que a moça fosse quase invisível para o
resto dos congregados no salão... tal e como o fora para ele no dia anterior, quando foram apresentados. Toda
sua vibrante e voluptuosa beleza estava oculta do modo mais eficaz.
Sir George Effingham indicou que tomasse assento a seu lado para jogar whist, mas lady Effingham tomou
com firmeza seu braço e o conduziu para o piano, onde lady Margaret Stebbins estava regalando com atenção os
convidados com uma peça de Bach.
- É a seguinte, Julianne, querida, não é certo? - perguntou lady Effingham antes que lady Margaret tivesse
sequer acabado - Aqui está lorde Rannulf para ajudá-la a passar as páginas da partitura.
Rannulf se resignou a passar a noite distraindo e adulando a um bando de senhoritas dadas a risadas tolas,
enquanto trocava comentários engenhosos com um grupo de jovens cavalheiros de aspecto atordoado. Sentiu-se
como se tivesse cem anos.
Judith Law, não pôde evitar dar-se conta, não teve nem um momento de descanso graças a sua avó. Passou
toda a noite dando passeios para a bandeja de chá. Em duas ocasiões teve que sair do salão. A primeira vez
retornou com os óculos de sua avó, que esta deixou de um lado sem usar. A segunda com um xale de caxemira
que acabou dobrado e esquecido sobre o braço da poltrona da anciã. Contudo, Rannulf percebeu que falavam
muito entre elas, sorriam-se com frequência e pareciam desfrutar de sua mútua companhia.
Sorriu e elogiou a senhorita Effingham, que acabava de finalizar sua segunda peça no piano e que estava
claramente ansiosa para que a audiência requeresse um bis. Enquanto isso, a honorável senhorita Lilian Warren e
sua irmã aguardavam seu turno para sentar-se a frente do instrumento.
E nesse momento se produziu uma comoção junto à bandeja de chá. Ao que parece Judith Law estava
servindo uma taça de chá quando alguém - Horace Effingham, comprovou Rannulf - deu-lhe um tranco no
cotovelo. O chá se derramou pela parte dianteira de seu vestido, obscurecendo a seda cinza até ficar quase
transparente e fazendo que se colasse ao peito. A moça soltou um grito e Effingham tinha tirado um lenço com o
qual estava tentando secá-la. Ela utilizava uma mão para afastá-lo enquanto esforçava-se por afastar o tecido do
busto com a outra.
-
Judith! -gritou lady Effingham com um funesto tom de voz. - Moça torpe e desajeitada! Saia daqui
imediatamente.
-
Não, não, foi minha culpa, mãe - replicou Effingham. - Deixa que seque seu vestido, prima.
Tinha um olhar risonho, percebeu Rannulf. E lascivo.
-
Meu Deus! - murmurou à senhorita Effingham. - Judith acaba de converter-se em motivo de riso.
Rannulf se descobriu apertando os dentes enquanto atravessava o salão a grandes passadas em busca do xale
que repousava sob o cotovelo da senhora Law. Aproximou-se com rapidez do lugar onde estava a bandeja de chá
e colocou o xale sobre os ombros de Judith Law, por trás e sem chegar a tocá-la. A moça se virou, surpreendida e
agradecida, enquanto segurava os extremos do xale e se envolvia nele de forma protetora.
-
Ah! – exclamou - Obrigado.
Rannulf respondeu com uma breve reverência.
-
Queimou-se, senhora? - perguntou. - Será que ninguém parou para pensar que acabava de entornar-se em
cima uma xícara de chá fervente?
-
Só um pouco – respondeu - Na realidade não é nada. - Deu meia volta para sair com presteza do salão,
mas Rannulf conseguiu ver que mordia o lábio inferior com força.
De repente, se descobriu frente a frente com Horace Effingham, cuja lasciva expressão parecia estar a ponto
de converter-se em uma piscada de cumplicidade.
-
Que galante por sua parte – disse - ter encontrado um xale com o qual ocultar o atordoamento da dama.
Tinha feito de propósito, compreendeu de repente Rannulf ao observar o homem com os olhos
semicerrados. Pelo amor de Deus! Tinha feito de propósito.
-
Poderia ter sofrido uma queimadura grave - disse com voz cortante. - Aconselharia que fosse mais
cuidadoso no futuro quando se aproximar de uma bandeja de chá.
E nesse momento Effingham se atreveu a piscar um olho enquanto murmurava:
-
Eu sim que estou ardendo, embora ela não esteja. E igual a você, Bedwyn, me atreveria a apostar. Muito
brilhante de sua parte encontrar a desculpa perfeita para aproximar-se com presteza.
Nesse momento lady Effingham elevou de novo a voz, embora nessa hora sua voz fosse alegre e afável.
-
Vamos, que todo mundo siga divertindo-se – disse - Peço desculpas pela desafortunada e lamentável
interrupção. Minha sobrinha não está acostumada a mover-se entre os círculos refinados e temo que seja um
pouco torpe.
-
Bom, tia, eu não diria tanto - replicou o jovem Law.
-
Jude nunca foi torpe. Não foi mais que um acidente.
-
Lorde Rannulf. - A senhora Law lhe puxou a manga e Rannulf se deu conta ao olhá-la de que o incidente
a tinha perturbado. - Muitíssimo obrigado por ser o único com o aprumo necessário para ajudar Judith e lhe
evitar deste modo parte da vergonha. Devo me apressar a subir para comprovar a gravidade de seu estado.
Colocou suas duas gordinhas mãos nos braços da poltrona em busca de apoio.
-
Me permita, senhora - disse Rannulf, oferecendo uma mão.
-
Você é muito amável. - A anciã apoiou todo seu peso nele enquanto ficava em pé. - Acredito que deve ser
o calor o causador do inchaço de meus tornozelos e o motivo de minha contínua falta de ar.
Na opinião de Rannulf se tratava bem da enorme quantidade de bolos de nata que a senhora parecia
consumir e de seu indolente estilo de vida.
-
Me permita acompanhá-la, senhora - ofereceu-se.
-
Bom, se não lhe causar muitos incômodos - disse a anciã. - Nem sequer gostaria de tomar essa xícara de
chá, você sabe? Mas queria que Judith se separasse de meu lado e se mesclasse com os convidados. É muito
tímida e até insistiu em jantar comigo esta noite porque me encontrava muito cansada para descer ao salão.
Pensei que talvez desfrutasse se alguém lhe desse um pouco de conversação. Estou muito aborrecida com Louisa
por ter esquecido de apresentá-la aos convidados depois do jantar. Suponho que tem muitas coisas na cabeça.
Rannulf não teve a intenção de acompanhá-la além da parte superior da escada. Entretanto, a anciã se
apoiava de tal modo em seu braço que se viu obrigado a levá-la até a porta de seus aposentos. Ao menos deu por
certo que era seu quarto até que a mulher ergueu uma mão coberta de anéis e bateu na porta.
A porta se abriu quase imediatamente e Rannulf se viu preso pela carga que tinha pendurada no braço. Judith
tinha desfeito tanto do vestido como da touca. Seu cabelo, apesar estar preso com grampos, soltou-se em muitos
lugares, de maneira que umas compridas e brilhantes mechas acobreadas caíam sobre seus ombros, lhe
emoldurando o rosto. Usava uma camisola folgada cujos extremos fechava com uma mão. Mesmo assim deixava
à vista uma ampla porção de pele nua que se estendia desde seus ombros até a união de seus seios. A pele que
ficava a escassos centímetros destes tinha adquirido uma cor vermelha intensa.
-
Oh! - Suas faces não demoraram a adotar a mesma tonalidade que a queimadura. - Eu... eu pensei que era
alguém com o unguento que pedi. - Cravou o olhar em sua avó, mas Rannulf intuiu que estava muito consciente
dele. Sua mão aferrou com mais força os extremos da camisola.
-
Judith, carinho, queimou-se! - exclamou a senhora Law, soltando o braço de Rannulf e correndo para sua
neta com uma rapidez da qual jamais a teria acreditado capaz. - Minha pobre menina!
-
Não é nada, vovó - tranquilizou-a Judith, mordendo o lábio.
Não obstante, Rannulf percebeu que tinha os olhos cheios de lágrimas e soube que devia estar padecendo
uma tremenda dor.
-
Me permita - disse-lhe - ir em busca da governanta para me assegurar de que trazem o unguento sem mais
demora. Enquanto isso, senhorita Law, uma toalha úmida sobre a queimadura a ajudará a aliviar parte da dor.
-
Obrigada - disse ela, olhando-o nos olhos.
Seus olhares se entrelaçaram um instante antes que a moça se virasse e a anciã lhe rodeasse os ombros com o
braço.
Rannulf se afastou apressado, entretendo-se com umas agradáveis visões nas quais banhava Horace
Effingham em algo muitíssimo mais quente que o chá.
CAPÍTULO 9
Judith permaneceu em seu quarto durante dois dias curando as dolorosas feridas do peito. Sua avó tinha
esquecido suas próprias doenças já que contava com as de outra pessoa para distrair-se, visitava-a frequentemente
e lhe levava bombons, notícias do resto da casa e conselhos de que permanecesse na cama e dormisse tudo o que
pudesse. E Tillie por ordens de sua avó, levava bandejas de comida ao quarto e voltava a cada hora para lhe
aplicar unguento calmante.
Horace Effingham enviou um buquê de flores por Tillie, acompanhado de uma nota onde explicava que as
recolhera com suas próprias mãos e que lhe desejava uma pronta recuperação.
Branwell foi vê-la pessoalmente. - Está desfrutando da festa campestre? - inquiriu Judith depois que
perguntou por sua saúde.
-
Estou me divertindo muito - respondeu seu irmão - fomos cavalgar em Clynebourne Abbey esta manhã.
Não restam mais que algumas ruínas, mas eram bastante pitorescas. Cavalgamos primeiro até Grandmaison para
convidar Bedwyn que se unisse a nós. Acredito que Julianne gosta dele, mas acabará com o coração quebrado, se
quer saber minha opinião. Os Bedwyn estão em um degrau muito mais elevado. Bewcastle... me refiro ao duque
de Bewcastle, o cabeça de família... é conhecido por ser um homem impassível, e seria improvável que aprovasse
uma aliança com a filha de um simples baronete.
-
Alegra-me que desfrutasse da cavalgada. - Judith esboçou um sorriso. - perguntou-se o que diria Branwell
se soubesse que lorde Rannulf Bedwyn lhe tinha proposto matrimônio no dia anterior, sem ir mais longe.
-
Uma coisa, Jude. - levantou-se com brutalidade da cadeira em que estava sentado e caminhou até a janela
de seu dormitório para contemplar a vista, de costas para ela. - Por acaso não poderá me emprestar algumas
libras, não é? Trinta, talvez?
-
Não, asseguro que não posso - respondeu ela. - Duvido que pudesse reunir um xelim mesmo que pusesse
meu moedeiro de barriga para baixo e o espremesse. Para que precisa de trinta libras? - lhe parecia uma soma
exorbitante.
Seu irmão deu de ombros e se virou para olhá-la com um sorriso sobressaltado.
-
Não tem importância – afirmou. - É uma soma insignificante e Effingham me disse que não me
preocupasse a respeito. Mas detesto estar em dívida com ele. Detesto que pague todos os gastos de minha
viagem, mas papai se tornou notavelmente miserável de uns tempos para cá. Está zangado por algo?
-
A viagem até aqui custou trinta libras? - perguntou Judith com estupefação.
Não compreende o que significa ser um cavalheiro que se move em companhia de outros cavalheiros,
Jude - replicou ele - tem que seguir o ritmo. A gente não pode aparecer como um caipira, sem casacos na medida
e com botas que pareçam fabricadas por um sapateiro popular. É necessário alojar-se nos estabelecimentos que
estão na moda e ter um cavalo decente para viajar. E a menos que a gente confie em si mesmo todo momento,
deve fazer sempre o que fazem outros cavalheiros e ir aonde vão... aos clubes, às corridas, a Tattersall’s.
-
Deve dinheiro a mais gente, Bran? - perguntou Judith, que não estava muito segura de querer escutar a
resposta.
Ele fez um gesto desdenhoso com a mão e lhe sorriu, embora alguma coisa terminasse por não se enquadrar
na expressão.
-
Todo mundo deve dinheiro – respondeu - Qualquer um consideraria excêntrico um cavalheiro se não
devesse uma pequena fortuna ao alfaiate, ao sapateiro e ao merceeiro.
-
Tem também dívidas de jogo? - perguntou Judith antes de poder conter-se. Na realidade não queria saber.
-
Insignificantes. - Esboçou de novo esse estranho sorriso. - Nada que ver com as de alguns companheiros,
que devem mil. Alguns tipos perdem propriedades inteiras em uma mão de cartas Jude. Eu nunca aposto mais do
que posso me permitir perder.
Judith foi muito covarde para lhe perguntar a quanto ascendia à soma de suas dívidas de jogo.
-
Bran - disse-, quando pensa se decidir por alguma profissão?
-
Para falar a verdade - afirmou ele com o mesmo sorriso alegre de sempre, - estive pensando em me casar
com uma garota rica, uma lástima que Julianne tenha posto os olhos em Bedwyn... Embora me atrevesse a dizer
que não tem nenhuma oportunidade em um milhão de apanhá-lo. Não obstante, as irmãs Warren têm pai mais
rico que Creso, ou isso ouvi, e ambas são muito bonitas. Embora suponha que seu pai não me desse à mínima
atenção, não acha?
Disse como se a mesma ideia fosse uma brincadeira bem intencionada, mas Judith não estava tão segura. Era
óbvio que estava endividado até o pescoço... uma vez mais. Ela não sabia se seu pai poderia tirá-lo do atoleiro
nesse momento sem ficar completamente arruinado. E o que aconteceria então a sua mãe e a suas irmãs?
-
Vamos, Jude - disse Branwell enquanto ficava em pé e pegava suas mãos, - não fique tão séria. Sairei
disto. Não deve preocupar-se por mim. Queimou-se muito?
-
Estarei bem em dois dias - respondeu.
-
Estupendo. - Apertou-lhe as mãos. - Se por acaso conseguir algumas libras durante as duas próximas
semanas, possivelmente quando papai lhe enviar sua atribuição, poderia arrumar para me emprestar algo? Me
viria muito bem, já sabe, e aqui não há muitas formas de gastar isso não é?
-
Não espero que me enviem nenhum dinheiro - respondeu Judith.
-
Ah. - Franziu o cenho - veio só de visita, não é certo, Jude? Papai não a terá enviado para que vivas aqui a
custa da generosidade do tio George, não é? Isso seria o cúmulo. O que ocorre a papai ultimamente?
O que lhe ocorre é você, Bran, pensou Judith. A papai e a todos nós. Mas embora estivesse bastante zangada
para lhe gritar uma boa reprimenda e lhe dizer algumas verdades que parecia ignorar, a chegada de Tillie com o
unguento e uma dose de láudano impediu que o fizesse.
-
Vai ter que me desculpar, Bran – disse - Devo descansar um momento.
-
Certamente. - levou uma das mãos de Judith aos lábios e esboçou um de seus sorrisos mais doces. - Se
cuide, Jude. Sabe quanto me alegro de ter uma de minhas irmãs aqui. Sinto muitas saudades de todas, se por
acaso não sabia.
Se houvesse alguém que o coloca-se no trilho, pensou Judith, talvez tivesse possibilidades de seguir adiante.
De qualquer modo, ela não tinha tempo para meditar no assunto. A dor era horrível. Quem ia imaginar que uma
simples xícara de chá poderia chegar a ser tão letal?
Ao terceiro dia, Judith se atreveu a descer depois do almoço. Esperava poder evitar os convidados e
encontrar sua avó. Mas como era de esperar, a primeira pessoa que a viu descer as escadas foi Horace Effingham,
que se apressou a aproximar-se com um sorriso nos lábios.
-
Judith! – exclamou - Por fim se recuperou. Ofereço minhas mais humildes desculpa por minha estupidez
da outra noite na sala de estar. Estamos tentando decidir o que fazer esta tarde, agora que a chuva de ontem à
noite e as nuvens desta manhã desapareceram. Venha e nos diga o que pensa. Ofereceu-lhe o braço.
-
Para falar a verdade preferiria não ter que fazê-lo - afirmou Judith. - Não conheço ninguém. Sabe onde
está vovó, Horace?
-
Não conhece ninguém? - inquiriu o homem. - Fico pasmado. Ninguém a apresentou aos convidados?
-
Não tem a menor importância. - Judith sacudiu a cabeça.
-
Ah, claro que tem - corrigiu ele. - Não posso deixar que escape depois de ter aguardado pacientemente
durante três dias que aparecesse. Vem.
Ela tomou a contra gosto o braço que ele oferecia e foi arrastada de uma forma indecorosa contra seu flanco
enquanto a guiava à sala de estar. Entretanto, admitiu poucos minutos depois, era melhor que alguém a
apresentasse aos convidados. Não era uma criada, apesar de tudo, e seria embaraçoso topar com gente a qual não
fora apresentada como era devido durante a seguinte semana e meia. Embora, claro estava que parecia quase uma
criada.
Branwell sorriu e lhe perguntou como estava; a senhora Hardinge se compadeceu dela por seu desafortunado
acidente e Julianne disse que se alegrava de ver que estava em pé de novo e de que os livrasse das tediosas
conversas da avó e de suas constantes exigências. A maior parte dos convidados, não obstante, não fez intento
algum de entabular conversa, embora se mostrassem educados durante a apresentação.
Judith teria escapado logo que terminaram as apresentações, mas se viu atrasada, ao menos durante uns
instantes, pela chegada de lady Beamish e lorde Rannulf Bedwyn. -Ah, duas apresentações mais, prima - disse
Horace enquanto a conduzia até eles.
-
Já tive o prazer - replicou ela, mas era muito tarde para evitar um encontro cara a cara.
-
Senhorita Law - disse lorde Rannulf com uma reverência - espero que se encontre bem.
Devolveu-lhe a reverência e tentou não pensar na última vez que o viu junto à porta de seu quarto,
acompanhado pela avó, lhe dando conselhos sobre como tratar a queimadura olhando-a com verdadeira
preocupação antes de afastar-se a grandes passadas para apressar a chegada de um criado com o unguento que ela
tinha solicitado. Depois do que tinha ocorrido essa manhã, a única coisa que queria era odiá-lo até a morte e
esquecer-se dele.
-
Rannulf me falou de seu desafortunado acidente comentou lady Beamish. - Confio em que não lhe tenha
deixado um dano permanente, senhorita Law.
-
Certamente que não; muito obrigado, senhora - assegurou Judith. - Encontro-me bastante bem.
Julianne deu umas palmadas para chamar a atenção de todos.
Estava resplandecente com um vestido de musselina amarelo claro e seus cachos loiros agitando-se com cada
gesto em torno de seu rosto com forma de coração.
-
Optamos – anunciou - por passear pelo longo atalho do bosque durante uma hora e depois fazer um
piquenique no prado para tomar o chá. Agora que lorde Rannulf Bedwyn chegou, não há razão para demorar
mais. - Olhou o homem com um sorriso radiante e Judith, que não pôde evitar olhá-lo, contemplou como este
fazia uma reverência a sua prima para mostrar seu acordo enquanto lhe dirigia um olhar agradecido.
Doía. Por estúpido que parecesse, doía.
-
Nesse caso apanhemos nossos chapéus e gorros e nos ponhamos em marcha - disse Julianne.
Seus planos pareceram gozar do favor geral. Produziu-se um breve alvoroço quando a maioria dos ocupantes
da sala se apressou a preparar-se para a saída.
-
Devo ir procurar vovó - murmurou Judith antes de soltar-se pôr fim do braço de Horace.
Entretanto, sua avó acabava de entrar na sala de estar com tia Effingham e a ouviu.
-
Não preciso que se preocupe por mim, carinho - disse, olhando-a com um carinhoso sorriso. - Sarah me
fará companhia. Agora que se levantou, deveria sair e se divertir com gente jovem.
-
O ar fresco lhe fará bem depois de alguns dias de confinamento, senhorita Law - assinalou lady Beamish
com amabilidade.
Tia Effingham tinha outras ideias, é claro.
-
A verdade é que precisaria de sua ajuda, Judith - apressou-se a afirmar - foi desafortunado que sua
estupidez tivesse como consequência uma longa temporada de ociosidade.
-
Mas, mãe - protestou Horace, sorrindo de forma sedutora à tia Effingham, - asseguro que eu também
preciso com urgência da ajuda de Judith: preciso que me livre do destino de me converter em um solteirão.
Talvez não tenha percebido que o número de cavalheiros supera ao das damas nesta festa.
-
Isso se deve a que não me informou que foste vir, Horace - replicou ela um pouco envergonhada- Nem
de que ia trazer
Branwell contigo.
-
Judith. - Horace lhe fez uma reverência. - vá apanhar seu chapéu.
A vida em Harewood estava sendo mais exasperante do que tinha pensado. Embora sua mãe sempre as
mantinha ocupadas quando estavam em casa e seu pai tinha rígidas normas de comportamento, jamais havia se
sentido tão impotente.
Nem com essa absoluta falta de liberdade.
Ao menos em seu lar lhe pediam frequentemente sua opinião e consultavam suas preferências. Ali não. Teria
sido uma surpresa para todos descobrir que ela teria preferido muito ficar a trabalhar para sua tia que permitir o
duvidoso prazer de passear pelo bosque junto a Horace sentindo-se como uma intrusa e ver-se obrigada a
contemplar como Julianne e lorde Rannulf Bedwyn caminhavam de braço dados, ela tagarelando sem cessar e ele
inclinando a cabeça para escutá-la melhor. Puseram-se a rir algumas vezes e Judith recordou a contra gosto as
ocasiões nas quais ele tinha rido com ela, sobretudo à saída da loja do povoado, quando desembrulhou sua
caixinha de rapé.
O atalho do bosque ziguezagueava através das árvores até a parte ocidental da casa e fora desenhado com
esmero para ressaltar ao máximo sua beleza. As flores silvestres cresciam ao lado do caminho e de vez em
quando apareciam bancos e pequenas grutas, a maioria no topo das elevações do atalho, que proporcionavam
agradáveis vista da casa e do resto da propriedade. Era um caminho desenhado para proteger aos que passeavam
do calor do verão e do frio vento de outono.
Judith foi incapaz de apreciar o encanto da paisagem, embora pensasse que poderia converter-se em um
retiro tranquilo com o passar dos anos, quando tivesse alguma hora livre.
Não estava desfrutando dessa hora em particular. Horace fazia pouco caso de todos os outros para
concentrar toda sua atenção nela. Não obstante, longe de lhe parecer aduladoras, seus cuidados eram cansativos.
Horace tentou entrelaçar seu braço com o dela, mas Judith apertou as mãos às costas com firmeza. Tentou
caminhar mais devagar com o fim de se afastar do resto do grupo, mas Judith acelerou o passo com decisão cada
vez que a distância aumentava. Olhava-a com mais frequência que à paisagem, em especial seu busto, que nem
sequer o folgado vestido que usava podia ocultar por completo. Comentou a forma em que lhe tinha aderido o
vestido ao corpo no dia que derramou o chá, revelando uma silhueta que deveria estar vestida de uma forma
muito mais favorecedora.
- Eu diria que minha madrasta tem algo a ver com seus vestidos e suas toucas –afirmou - Parece decidida a
casar Julianne este verão, se for possível com Bedwyn. Deu-se conta de que minha irmã é muito mais bonita que
as demais garotas convidadas? - Riu baixo - Mamãe não pode permitir que haja nenhuma competidora em um
ponto tão crucial para a vida de Julianne. E muito menos se tratando de uma prima.
A Judith não ocorreu nada que responder a esse comentário, de modo que guardou silêncio. Aumentou a
longitude de seus passos para cortar a distância que os separava do senhor Peter Webster e da senhorita Theresa
Cooke, o casal mais próximo a eles. Mas nesse momento Horace soltou uma exclamação de enfado e se deteve.
Havia uma pedra incrustada no salto de sua bota, explicou-lhe antes de apoiar a mão contra o tronco que havia
junto a Judith e levantar o pé para tirar a pedra de modo que ela ficou presa entre seu corpo e a árvore.
-
Bom, já está - disse depois de uns momentos antes de voltar a colocar o pé sobre o chão e levantar a
cabeça para sorrir a Judith.
Estava muito perto e os outros os tinham deixado bastante atrás.
-
Sabe, Judith? - disse Horace, com a vista cravada em seu rosto, embora acabasse descendo até seu busto Poderia fazer que sua estadia em Harewood fosse muito mais agradável. E poderia me convencer de que viesse
de visita muito mais frequentemente do que tenho por costume.
Uma de suas mãos se ergueu com um propósito evidente. Ela a separou com um tapa e se moveu para
rodeá-lo; mas posto que o homem não retrocedesse, a única coisa que conseguiu foi aproximar-se mais dele.
-
Estou bastante cômoda como estou - afirmou Judith. - Estamos ficando para trás.
Ele riu baixo antes que sua mão alcançasse o objetivo e se fechasse ao redor de seu seio. Embora somente
durante um breve instante. Horace afastou a mão e se afastou um pouco quando o rangido dos ramos augurou o
retorno de um dos passeantes. Judith teria se posto a chorar pelo alívio quando viu Branwell.
-
Ah, ah - disse seu irmão com jovialidade, - temos algum problema?
-
Quase me vi obrigado a pedir a sua irmã que me tirasse à bota - respondeu Horace, rindo entre dentes. Tinha uma pedra incrustada no salto e foi dificilíssimo me livrar dela.
-
Ah - disse Branwell, - então Bedwyn estava equivocado.
Enviou-me de volta porque acreditou que talvez Jude não se sentisse bem e precisava que a escoltassem até
em casa. O problema da pedra está solucionado, não é assim?
-
Livrei-me dela - respondeu Horace enquanto oferecia seu braço a Judith. - Judith? Não acha que
deveríamos acompanhar o retorno de Branwell até a dama que tenha sido bastante afortunada para desfrutar de
sua companhia? Sabia que seu irmão se converteu no preferido de todas elas?
Entretanto, Judith não estava disposta a deixar passar a oportunidade que se tinha apresentado de bandeja,
por assim dizer.
-
Sigam sem mim - disse, - os dois. Não preciso que ninguém me acompanhe, mas a verdade é que me
sinto bastante fraca depois de ter passado os dois últimos dias em meu quarto. Voltarei para casa e me sentarei
com vovó e lady Beamish. Ou talvez me deite um momento.
-
Está segura, Jude? -perguntou Branwell. - Não me importaria de acompanhá-la absolutamente.
-
Muito segura. - Esboçou um sorriso.
Minutos depois deixou para trás o bosque e se apressou a alcançar a segurança da casa. Sentia um
desagradável formigamento na pele. Essa mão fora como uma serpente, tal e como ela imaginava que seria o tato
de uma serpente. Tinha-lhe oferecido transformar-se em sua amante. Acaso todos os homens eram iguais?
Entretanto, fora lorde Rannulf quem enviou Branwell, lembrou. De verdade acreditou que se encontrava
mal? Ou teria adivinhado a verdade? Mas como era possível que tivesse notado sequer que Horace e ela ficaram
para trás?
Ainda não podia retornar a casa, compreendeu de súbito.
Embora conseguisse chegar à intimidade de seu quarto, a sensação de confinamento seria muito forte. E
havia ainda mais probabilidades de que sua avó ou tia Effingham a vissem antes de consegui-lo. Estava muito
nervosa para enfrentar tanto a tão carinhosa amabilidade de uma como à azeda irritação da outra.
Virou para a parte traseira da casa e dois minutos depois corria através dos jardins da cozinha e do prado que
se estendia para o topo da colina. Tinha intenção de parar ali para deixar que o vento e a vista apaziguassem sua
alma inquieta. Entretanto, o lago parecia deliciosamente fresco e isolado. Estremeceu ao recordar essa mão
fechada sobre seu peito uma vez mais. Sentia-se suja.
Depois de quase três dias em companhia da senhorita Effingham e seus convidados, Rannulf desejava com
todas suas forças retorna à tranquila discrição de Lindsey Hall, o ancestral ducado que lhe servia de lar durante a
maior parte do ano. Ali se celebravam festas campestres e a maioria dos convidados era escolhida com cuidado,
sempre tendo em conta sua capacidade de dizer algo razoável. Possivelmente Freyja e Morgan, suas irmãs,
fossem pouco convencionais, teimosas, difíceis e bastante diferentes ao resto das damas de sua classe, mas
Rannulf as preferia muito mais às jovens como as honoráveis senhoritas Warren, a senhorita Hardinge, a
senhorita Cooke e lady Margaret Stebbins. Todas eram amigas íntimas da senhorita Effingham, que presumia
diante delas que se tratasse de seu novo e adorado cãozinho pequinês.
Não poderia fazer isso, pensava ao menos uma vez durante cada hora que passava em sua companhia. Não
poderia casar-se com ela, atar-se a sua bonita estupidez para o resto de sua vida. Acabaria mais louco que uma
cabra em menos de um ano. Freyja e Morgan fariam picadinho da moça e Bewcastle a deixaria cravada no lugar
somente com um olhar desdenhoso.
Entretanto, uma vez por hora ao menos, e justo depois de pensar o anterior, chegava à lembrança da
promessa que fez a sua avó de que tentaria tê-la em conta como possível noiva. Passou tempo suficiente em
companhia da anciã para dar-se conta de que estava muito doente. Seria uma terrível decepção para ela se ao
menos não anunciasse seu compromisso nesse verão. E qualquer decepção poderia levá-la à tumba. Não podia
fazer isso.
De modo que perseverou e suportou o tolo flerte da senhorita Effingham, encantou suas amigas e brincou
com os jovens cavalheiros, quem faziam que se sentisse como um octogenário mesmo que só ultrapassasse em
alguns anos à maioria deles.
Tinha deixado de um lado o sentimento de culpa que lhe inspirava Judith Law. O que tinha acontecido entre
eles não fora uma sedução e ela chegou até extremos insuspeitados para enganá-lo. Ele fez o correto e lhe tinha
proposto matrimônio. A moça o tinha recusado. Não havia razão alguma para que seguisse sentindo-se
responsável por ela. Não obstante, conhecia os tipos da estirpe de Horace Effingham. E sabia que o acidente do
chá fora deliberado por sua parte. Rannulf supunha que o homem tentaria levar a cabo suas libidinosas intenções
na menor oportunidade.
Não tinha demorado a perceber enquanto passeavam pelo bosque de que Effingham estava tentando ficar a
sós com Judith e de que ela resistia como podia a seus esforços. E depois tinham desaparecido por completo. Por
acaso, Branwell Law estava muito perto e não fora difícil persuadi-lo de que voltasse atrás para ajudar a sua
indisposta irmã.
Law retornou minutos mais tarde junto a Effingham e anunciou que sua irmã se sentia um pouco fraca e
tinha insistido em retornar à casa sozinha. Entretanto, Rannulf observou um momento depois, quando deixaram
atrás outro banco do qual se via a casa e a propriedade, que ela não se dirigia para a mansão... e que não parecia
nem débil nem exausta. Afastava-se correndo pela parte traseira da casa.
O chá ao ar livre estava disposto no prado que havia frente à fachada principal quando saíram do caminho
do bosque. Todos passeavam em grupo de um lado a outro, riam e se mesclavam com as pessoas. Rannulf
aproveitou a oportunidade para livrar-se do bate-papo vazio e jactancioso da senhorita Effingham ao menos
durante um momento e se retirou com seu prato ao terraço, onde sua avó e a senhora Law estavam sentadas lado
a lado.
-
Pergunto-me onde estará Judith - disse a senhora Law, que passeava a vista ao redor em busca de sua
neta.
-
Branwell não disse, senhora? - perguntou Rannulf. - Sentiu-se um pouco esgotada depois de um
momento e retornou a casa para descansar. Não permitiu que seu irmão a acompanhasse.
-
Mas está perdendo o chá - afirmou à senhora Law. - Me encarregarei de que Tillie suba uma bandeja. Se
fosse tão amável, lorde Rannulf...
Ele ergueu uma mão para detê-la.
-
Se me permitir o atrevimento, senhora - disse, - poderia sugerir que possivelmente fosse melhor deixar
que a senhorita Law descanse um pouco mais?
-
Certamente que sim - conveio à anciã. - Tem razão se importaria de aproximar esse prato de bolos, lorde
Rannulf? Sua avó não apanhou nenhum, mas estou segura de que deseja prová-los.
Ele levou o prato e o ofereceu primeiro a sua avó, que fez um gesto negativo com a cabeça, e depois à
senhora Law, que agarrou três, antes de voltar a colocá-lo sobre a mesa. Ninguém lhe prestava atenção, descobriu
ao dar uma olhada a seu redor. Lady Effingham estava falando com a senhora Hardinge e a senhorita Effingham
se encontrava com um alegre grupo formado pela senhorita Hannah Warren, lorde Braithwaite e Jonathan
Tanguay.
Rannulf escapuliu pela quina da casa sem que ninguém descobrisse e rodeou o edifício até a parte traseira.
Não havia sinais da moça. Perguntou-se aonde teria ido. Já teria retornado? Talvez estivesse descansando de
verdade em seu quarto a essa altura. Havia uma colina salpicada de árvores não muita longe. Semicerrou os olhos
para observar a distância, mas não a viu. Parecia um lugar tranquilo, de qualquer forma. Apertou o passo e se
dirigiu para lá.
Sem nenhuma dúvida, Judith devia ter retornado à casa, pensou minutos depois enquanto ascendia os
últimos metros em direção ao topo da colina e observava a vista com agrado. Muito melhor. No fundo não tinha
albergado esperança alguma de encontrá-la, não é? Para que? Não tinha se detido a fazer-se semelhante pergunta
até esse momento.
Havia um lago mais abaixo. Parecia descuidado e cheio de mato, ainda que de qualquer modo fosse
encantador. Surpreendeu-se que não estivesse conectado com o atalho do bosque. Estava tentando decidir descer
ou não quando a viu. A moça acabava de aparecer por baixo dos ramos de um salgueiro chorão. Nadando.
Estava de costas e movia as pernas com lentidão enquanto seu cabelo se esparramava a seu redor como uma
nuvem escura.
Deus... Tinha ido ali para estar sozinha. Deveria respeitar sua intimidade.
Não obstante, descobriu que suas pernas o levavam colina abaixo apesar de tudo.
CAPÍTULO 10
Foi mais uma sensação que uma imagem ou um som: pressentimento de que não estava sozinha. Abriu os
olhos e virou a cabeça com certo temor, esperando que Horace tivesse conseguido segui-la até ali.
Durante um instante experimentou um imenso alívio ao ver que era lorde Rannulf Bedwyn quem estava
sentado junto a um monte de roupa sob o salgueiro, com uma perna esticada diante ele e o braço apoiado sobre a
outra.
Sua roupa! Moveu-se com rapidez até que somente sua cabeça ficou fora da água. Levantou os braços para
afastar o cabelo do rosto e, ao dar-se conta de que estavam nus, voltou a inundá-los imediatamente e os estendeu
sob a superfície a fim de manter o equilíbrio.
Tinha sido uma soberana estupidez arriscar-se a nadar naquele lugar com somente a anágua.
-
Não vou - disse ele em voz baixa, embora sua voz chegasse perfeitamente até ela dá margem - correr com
sua roupa nem lhe impor meus cuidados.
-
O que quer? - perguntou. Sentia-se mais do que envergonhada, a despeito do dia e as duas noites que
passaram juntos. Para falar a verdade, aquilo parecia ter acontecido fazia uma eternidade. Tal como parecia que
tivesse acontecido a outra pessoa.
-
Só um pouco de tranquilidade - disse ele. - Fez-lhe mal?
-
Não. - Salvo que esteve chapinhando na água durante vários minutos em um intento desesperado por
sentir-se limpa.
-
Me reuniria com você - disse lorde Rannulf. - Mas temo que uma ausência prolongada possa
considerar-se de má educação. Por que não sai e se reúne aqui comigo?
A Judith pareceu assombroso e alarmante o tentador que lhe era a sugestão. Não tinham nada mais que
dizer-se e, entretanto... entretanto a tinha salvado de uma situação potencialmente desagradável no atalho do
bosque. Embora dias atrás tivesse admitido que era um aventureiro, ela sabia de algum jeito que podia confiar em
que não lhe imporia seus cuidados. Acabava de dizê-lo.
-
Não quer que a veja em roupa interior? - perguntou quando ela não se aproximou imediatamente da
margem. - Vi-a com menos.
Partiria se ela pedisse? Era muito provável. Queria que partisse? Nadou muito devagar para ele. Não. Para ser
completamente sincera consigo mesma, devia admitir que a resposta era não.
Apoiou as mãos na margem, tomou impulso e colocou o joelho na erva assim que foi possível. A água
desceu por seu corpo. A anágua se aderia a ela como uma segunda pele. Virou-se e se sentou com os pés metidos
na água.
-
Talvez - disse sem olhá-lo - pudesse ser amável de me dar o vestido, lorde Rannulf.
-
A única coisa que conseguiria seria molhá-lo também - disse ele - e sua situação não melhoraria
absolutamente. O melhor seria que não o pusesse até o momento de retornar a casa e primeiro tirar a anágua.
-
Está sugerindo... ? - começou ela.
-
Não, não sugiro nada. Não vim aqui para seduzi-la, senhorita Law - disse, enfatizando as últimas palavras.
Por que tinha ido ali? Em busca de um pouco de tranquilidade, tal e como havia dito? A teria encontrado por
acaso?
Judith se deu conta de que ele estava se pondo em pé e de que começara a tirar o casaco. Um instante depois,
sentiu o peso e a maravilhosa calidez do casaco sobre os ombros. E depois ele sentou ao seu lado e cruzou as
pernas, com um aspecto informal e depravado.
-
Incomodou-a durante estes três dias, da noite do chá até hoje? - perguntou-lhe.
-
Não - respondeu Judith - e suponho que não voltará a fazê-lo. Acredito que hoje deixei bastante clara
minha postura.
-
Sério? - perguntou ele. Era muito consciente de que o homem estava contemplando seu perfil, apesar de
não se virar para olhá-lo.
-
Por que não me deixou clara sua postura?
-
Agora? - inquiriu ela. - Acaba de me dizer que...
-
Quando me ofereci levá-la a cavalo - explicou ele - Quando sugeri que compartilhássemos um quarto na
estalagem do mercado.
Judith foi incapaz de dar uma resposta adequada, embora soubesse que ele esperava uma resposta. Tirou os
pés da água, rodeou as pernas com os braços e inclinou a cabeça até apoiá-la em cima dos joelhos.
-
Isso foi diferente - disse afinal em um sussurro. Mas por que fora diferente? Talvez porque tinha
pressentido a princípio que se tivesse se negado, ele não teria insistido? Mas como estaria segura? Estaria certo? Queria viver essa experiência. - Embora ela tivesse desejado um sonho.
-
Isso quer dizer que a viveria com Effingham se tivesse sido ele quem aparecesse em meu lugar? perguntou.
Judith se pôs a tremer. - Não, é claro que não.
Lorde Rannulf ficou calado durante um momento e quando por fim voltou a falar, mudou de assunto.
-
Seu irmão é um cavalheiro que se veste na moda - disse, - e que se move nos círculos da moda. Me
atreveria a dizer até que são círculos dissolutos, a julgar por sua amizade com Horace Effingham. Está
desfrutando da vida indolente de um convidado enquanto você está aqui como uma espécie de criada de alta
categoria. Equivoco-me ao pensar que há uma história por trás de tão díspares situações?
-
Não sei - disse ela antes de levantar a cabeça e cravar o olhar na água. - Acha isso?
-
Seu irmão é a ovelha negra da família? - perguntou ele. - Embora você o ame apesar de tudo...
-
É claro que o amo - replicou ela. - Bran é meu irmão e ainda que não fosse, seria muito difícil que o
quisesse mal. Enviaram-no ao colégio e à universidade para que recebesse a educação de um cavalheiro. É normal
que deseje mesclar-se com outros cavalheiros em uma situação de igualdade. É normal que se mostre um pouco
esbanjador até que descubra o que deseja fazer com sua vida e escolha uma profissão. Não é um depravado. Só
é...
-
Desconsiderado e egoísta? - sugeriu o homem quando pareceu que ela era incapaz de encontrar a palavra
adequada. - Sabe seu irmão que é o culpado por você estar aqui?
-
Ele não... - começou ela.
-
Mente muito, sabe? - disse ele.
Judith virou a cabeça e o fulminou com o olhar.
-
Não é assunto seu, lorde Rannulf – replicou. - Nada que tenha que ver com minha vida ou com minha
família é de sua incumbência.
-
Não, não é - conveio ele. - Mas só porque você assim o quis, senhorita Law. Suas irmãs sofreram um
destino parecido ao seu?
-
Elas continuam em casa - respondeu Judith com uma onda de nostalgia que a fez voltar a apoiar a testa
sobre os joelhos.
-
Por que você? -perguntou-lhe. - Ofereceu-se voluntariamente? Não posso acreditar que alguém esteja
impaciente por vir a este lugar e padecer a carinhosa dedicação de sua tia.
Ela suspirou.
-
Cassandra é a mais velha – explicou - e a mão direita de nossa mãe. Pamela é a terceira e a beleza da
família. Não teria suportado partir e deixar de ser o centro da admiração de todo mundo... e não estou dizendo
que se vanglorie de sua aparência. Hilary é muito jovem. Só tem dezessete anos. Lhe teria quebrado o coração ter
que deixar nossos pais... e isso teria quebrado também a todos.
-
Quer dizer que ninguém romperá o coração por sua ausência? - perguntou-lhe.
-
Uma de nós tinha que vir - disse ela. - E todos choraram quando parti.
-
E apesar de tudo - insistiu lorde Rannulf. - segue defendendo esse mequetrefe esbanjador que tem por
irmão?
-
-Não tenho nenhuma necessidade de fazê-lo - replicou, - e tampouco de censurá-lo. Não diante de você.
Entretanto, não estava zangada com ele por misturar-se nem por ter compreendido a situação tão bem.
Sentia uma traiçoeira sensação de bem-estar ante o fato de que alguém se interessasse bastante por sua vida para
lhe fazer perguntas. Alguém que compreendesse, talvez, até onde chegava o sacrifício que fez de forma
voluntária... embora não tinha dúvidas de que ela teria sido a escolhida mesmo que não se oferecesse.
-
Onde aprendeu a atuar? - perguntou-lhe. - Acaso sua família oferece representações teatrais de
aficionados no vicariato, a reitoria ou onde quer que vivam?
-
Vivo em uma reitoria - esclareceu, voltando a levantar a cabeça. - Deus santo, não; meu pai teria uma
apoplexia. Opõe-se com veemência à interpretação e ao teatro e assegura que é obra do diabo. Mesmo assim,
sempre me encantou atuar. Estava acostumada a sair às escondidas às colinas, onde ninguém podia me ver nem
me ouvir, e interpretar os diferentes papéis que tinha memorizado.
-
Parece ter memorizado uma boa quantidade - disse lorde Rannulf.
-
Bom, não é muito difícil - assegurou ela. - Se interpretar o papel como se fosse esse personagem, as
palavras se transformam em algo seu e parecem as mais lógicas nessas circunstâncias, não sei se me entende.
Nunca memorizei um papel de forma deliberada. Limito-me a me transformar em diferentes personagens.
Judith guardou silêncio, bastante mortificada pelo entusiasmo com o que tinha explicado sua paixão pela
interpretação. Sempre tinha desejado ser atriz quando crescesse, até que compreendeu que não era uma profissão
respeitável para uma dama.
Lorde Rannulf permaneceu a seu lado em silêncio, com uma mão sobre o joelho enquanto que com a outra
arrancava tufos de erva de forma distraída. Judith o recordou tal e como o tinha visto pouco antes, com a cabeça
inclinada para Julianne, escutando com atenção seu bate-papo.
-
Diverte-lhe brincar com os sentimentos de Julianne? - perguntou. As palavras saíram de sua boca antes
que tivesse plena consciência de que ia dizê-las em voz alta.
A mão do homem se deteve.
-
Julianne tem sentimentos com os quais se possam brincar? - perguntou ele a sua vez. - Não acredito,
senhorita Law. Vai à caça de um marido com título, e quanto mais rico e mais alta seja sua posição social, melhor.
Me atreveria a dizer que o filho de um duque com fortuna própria é uma presa muito apetecível para ela.
-
Então, não acredita que procure o amor ou que ao menos tenha esperanças de encontrá-lo? – inquiriu. Que possua sentimentos ternos? Deve ser um cínico.
-
Absolutamente - respondeu ele. - Limito-me a ser realista. Pessoas de minha posição não escolhem seus
cônjuges por amor. O que aconteceria à estrutura da sociedade civilizada se começássemos a fazer isso? Casamos
por dinheiro e posição.
-
Nesse caso sim está brincando com ela - disse - Meu tio é um simples baronete, de modo que sua filha
deve estar muito abaixo do interesse do filho de um duque.
-
Volta a estar equivocada - replicou lorde Rannulf. - Os títulos não são tudo. A linhagem de sir George
Effingham é impecável e é um latifundiário rico. Minha avó acredita que a aliança seria da mais adequada.
E seria?
-
Assim sendo, vai se casar com Julianne? - perguntou. Não tinha conseguido acreditar até esse momento,
apesar do que disseram tia Effingham e Julianne.
-
Por que não? - Lorde Rannulf deu de ombros. - É jovem, bonita e encantadora. De berço bom e rico.
Judith não entendia por que seu coração e sua mente acabavam de verem-se embargados por semelhante
desassossego. Ela teve sua oportunidade com ele e a tinha recusado. Embora claro que sabia o motivo. A simples
ideia de que ele pudesse estar com Julianne lhe era insuportável. É jovem, bonita e encantadora. E também uma
cabeça oca vaidosa e egoísta. Acaso merecia esse homem outra coisa? Tudo o que lhe tinha contado a respeito de
si mesmo lhe indicava que não. E, entretanto...
-
É óbvio - acrescentou ele, - tanto a senhorita Effingham como sua mãe terão uma desilusão se esperam
vê-la transformada em duquesa algum dia. Sou o segundo na linha de sucessão, mas meu irmão mais velho se
casou recentemente. Se as coisas seguirem o curso habitual, é provável que sua esposa fique grávida logo. Em
caso de nascer um varão, me veria relegado à terceira posição.
Judith sabia de antemão a expressão que teria aparecido no rosto de lorde Rannulf e, como era de esperar,
quando levantou a vista para olhá-lo descobriu o já familiar gesto zombador.
-
Pode ser que lady Aidan - prosseguiu ele. - cumpra seu dever com devoção e dê a luz a doze filhos em
outros tantos anos. Isso me deixaria quase sem esperanças. O que é o oposto à esperança? O desespero? Cada
filho de Aidan me afundará mais e mais no desespero.
Judith compreendeu de súbito que sua intenção não era tanto a de zombar dela ou de si mesmo como a de
fazê-la rir. E o tinha conseguido. Que imagem mais absurda tinha criado. Soltou uma gargalhada.
-
Que terrível e triste para você - disse.
-
Pois se considerar que minha situação é desesperada - comentou, - imagine a de Alleyne, meu irmão mais
novo. Aidan gerando filhos sem cessar e eu com vinte e oito anos e em grave perigo de me casar a qualquer
momento e de ter filhos próprios.
Ela soltou outra gargalhada, nesse momento olhando-o. - Isso está melhor - disse ele com um estranho
brilho nos olhos que bem poderia ser bom humor. - Precisa sorrir e rir mais frequentemente. - Estendeu a mão
para lhe acariciar o nariz com a ponta do indicador durante um instante e depois a retirou, movendo-se inquieto
enquanto pigarreava e cravava o olhar na margem oposta do lago.
Para Judith pareceu que acabara de marcá-la a fogo. - O duque não se casará? -perguntou.
-
Bewcastle? Duvido muito. Nenhuma mulher é bastante boa para Wulf. Ou talvez isso não seja de todo
justo. Desde que herdou o título e tudo o que isso suportava a idade de dezessete anos, dedicou sua vida a
cumprir com os deveres ducais e a ser o cabeça da família.
-
E o que faz você, lorde Rannulf? - perguntou - Enquanto seu irmão se dedica a seus deveres, o que resta
a você?
Ele deu de ombros.
-
Quando estou em Lindsey Hall – começou, - passando o tempo com meus irmãos e irmãs. Cavalgo e saio
para caçar e pescar com eles ou visito nossos vizinhos. Meu melhor amigo Kit Butler, o visconde de Ravensberg,
vive perto. Continuamos muito unidos, apesar da horrível briga que tivemos faz uns anos, que nos deixou
machucados e sangrando, e de ser um homem casado. Também me dou bem com sua esposa. Quando não estou
em Lindsey Hall eu gosto de me mover. Evito Londres sempre que posso e me canso logo de lugares como
Brighton, onde não há mais que frivolidade e descuido. No ano passado embarquei em uma excursão a pé pelas
highlands escocesas e este ano mesmo percorri o Distrito dos Lagos. O exercício, a experiência e a companhia
estiveram bem.
-
Gosta de ler? - perguntou-lhe.
-
A verdade é que sim. - Olhou-a com um sorriso lânguido. - Surpresa?
Não estava surpresa, embora tampouco deixava de estar, se deu conta de que sabia muito pouco sobre ele. E
deveria, é claro, alegrar-se que as coisas continuassem assim.
-
Suponho - disse enquanto apertava os joelhos - que os filhos dos duques não têm que trabalhar para
viver.
-Não os filhos do duque que foi meu pai - respondeu - Somos indecentemente ricos por direito próprio,
deixando de lado Bewcastle, que possui meia Inglaterra e parte de Gales. Não, não precisamos trabalhar, embora
certamente se tenham certas expectativas para os filhos mais novos. Aidan é o segundo, portanto era de esperar
que seguisse a carreira militar, coisa que fez sem pigarrear. Vendeu seu cargo recentemente... depois de casar-se.
Bewcastle esperava que o subissem a general em alguns anos. Como terceiro filho, a ideia era que eu me
dedicasse a Igreja. Não cumpri com meu dever.
-
Por que não? – perguntou. - Será que sua fé não é bastante forte?
Ele arqueou as sobrancelhas.
-
Conheço muito poucos cavalheiros que se decidiram pela vida religiosa movidos pela fé - respondeu ele.
-
Você é um cínico, lorde Rannulf - concluiu Judith. O homem esboçou um sorriso.
-
Imagina-me subindo ao púlpito nos domingos pela manhã, levantando a batina por cima dos tornozelos e
dando um apaixonado sermão a respeito da moralidade, a decência e o fogo do inferno? - inquiriu.
Muito a seu pesar, Judith lhe devolveu o sorriso. Teria detestado vê-lo como um clérigo: sério, devoto,
virtuoso, crítico e totalmente sem alegria. Como seu pai.
-
Meu pai me via levando a mitra de um bispo - comentou-lhe. - Talvez até mesmo como arcebispo de
Canterbury. O teria decepcionado se tivesse vivido. Em seu lugar decepcionei meu irmão.
Notava certo que de amargura em sua voz?
-
Nesse caso - indagou Judith, - sente-se culpado por não ter feito o que se esperava de você?
Ele deu de ombros.
-
Trata-se de minha vida - respondeu. - Ainda que às vezes me pergunte se há algum motivo ou sentido
para viver? Sua vida pede-lhe isso, Judith? Encontra algum sentido ou motivo a tudo o que aconteceu a sua
família nos últimos tempos e por tanto a você?
Ela afastou o olhar.
-
Não me faço essas perguntas – replicou. - Vivo o dia a dia.
-
Mentirosa - disse ele em voz baixa - O que lhe proporciona o futuro aqui? Um interminável vazio ao
longo dos anos? E mesmo assim não se pergunta por quê? Ou que sentido tem continuar vivendo? Acredito que
sim o faz, cada hora de cada dia. Eu vi à autêntica Judith Law, recorda? E não tenho nada claro que aquela
vibrante e apaixonada mulher do Rum e o Tonel fosse um engano e que esta mulher serena e disciplinada de
Harewood seja a autêntica.
Judith ficou em pé segurando o casaco a seu redor com as duas mãos.
-
Estou aqui muito tempo – disse - sentirão minha falta e tia Louisa se zangará. Partirá primeiro? Ou... se
virará enquanto me visto?
-
Não olharei - prometeu enquanto apoiava os pulsos sobre os joelhos e baixava a cabeça.
Judith deixou cair o casaco atrás dele.
-
Temo que esteja úmida por dentro - disse-lhe.
Tirou a anágua, que seguia úmida, com toda a rapidez de que foi capaz e colocou o vestido. Retorceu o
cabelo até convertê-lo em um coque que ocultou sob a touca. Colocou o chapéu e atou as fitas com força sob o
queixo.
Um interminável vazio ao longo dos anos.
Tocavam-lhe castanholas os dentes enquanto se apressava a recompor sua aparência.
-
Já estou vestida - disse, e lorde Rannulf ficou em pé com agilidade antes de virar-se para ela.
-
Peço perdão - desculpou-se se a incomodei.
-
Não, não o fez - assegurou ela- Sou uma mulher, Rannulf. As mulheres estão acostumadas ao
aborrecimento, a esperar um futuro sem...
-
Esperança?
-
Sem promessas nem troca de emoções – corrigiu - todas as mulheres levam uma vida aborrecida, tanto se
casam ou se envelhecerem a mercê da caridade de parentes ricos, como é meu caso. Esta é a verdadeira Judith,
lorde Rannulf. A que tem diante de si.
-
Judith. - aproximou-se para apoderar-se de sua mão antes que ela pudesse sequer pensar em retirá-la.
Entretanto, lorde Rannulf se deteve de repente, cravou a vista no chão que os separava, emitiu um suspiro e
lhe soltou mão depois de dar um forte aperto.
-
Rogo-lhe que me desculpe – repetiu - por entristecê-la quando faz um instante a fiz rir. Também eu devo
retornar senhorita Law. Seguro que minha avó está pronta para voltar para casa. Eu rodearei a colina e sairei ao
jardim dianteiro pela lateral. Você pode subir a colina e entrar pela parte posterior de casa. Está bem?
-
Sim - respondeu ela, que o observou enquanto se afastava sem olhar para trás nenhuma só vez.
Não demorou a desaparecer de sua vista. Judith inspirou fundo e soltou o ar muito devagar. Na realidade não
queria começar a conhecê-lo como pessoa. Não queria descobrir nada agradável nele. Seu futuro já era bastante
horrível sem ter que acrescentar o arrependimento.
Arrependimento! Arrependia-se da resposta que lhe deu três dias atrás? Não, não o fazia. É óbvio que não.
Tinha-lhe deixado muito claro um momento antes o tipo de mulher que seria sua esposa ideal e ela não tinha
qualidade em nenhum dos aspectos. Além disso, quando lorde Rannulf se casasse seria com o único propósito de
ter filhos que levassem seu nome. Reservaria todas suas energias, todo seu encanto e toda sua paixão para
mulheres como a inexistente Claire Campbell.
Não, não se arrependia de sua decisão. Entretanto, sua alma se arrastou junto com seus pés durante todo o
caminho de volta para casa.
CAPÍTULO 11
Como era habitual, Rannulf fora convidado a Harewood à tarde seguinte, momento para o qual já se teria
planejado algum plano para sua distração e a de todos outros. Entretanto, toda uma procissão de carruagens se
aproximou de Grandmaison pela manhã cedo. O mordomo entrou na saleta para avisar do sucedido lady
Beamish, que estava sentada a mesa escrevendo cartas, e também a Rannulf, que lia sua correspondência, uma
carta previsivelmente curta de seu amigo Kit e outra mais longa de sua irmã Morgan.
Da carruagem que encabeçava a comitiva desceu um lacaio com a ordem de convidar lorde Rannulf a
reunir-se com os convidados de Harewood em uma excursão cujo destino era um povoado a uns doze
quilômetros. Entretanto, quando o servente bateu na porta, Rannulf já estava no vestíbulo e se encaminhava ao
exterior para receber o convite das mãos da própria senhorita Effingham, que tinha descido da carruagem
acompanhada da honorável senhorita Lilian Warren e sir Dudley Roy-Hill. Os passageiros das outras três
carruagens também estavam apeando, e todos pareciam de muito bom humor.
Judith Law não se encontrava entre eles, comprovou Rannulf com uma simples olhada. Horace Effingham
sim.
-
Deve vir conosco, lorde Rannulf - disse a senhorita Effingham enquanto dava um passo em sua direção e
estendia as duas mãos. - Vamos às compras a gastaremos todo o dinheiro. E depois tomaremos chá no Cervo
Branco. É muito elegante.
Rannulf tomou suas mãos e se inclinou sobre elas. A jovem tinha uma aparência da mais atraente com um
vestido de passeio verde claro e o chapéu de palha. Seus grandes olhos azuis faiscavam diante da espera de um
dia de aventura. Até onde Rannulf podia ver, a senhora Hardinge, que viajava na última carruagem, era a única
acompanhante do grupo.
-
Concederemos dez minutos para que se prepare Bedwyn - gritou Effingham com jovialidade. - Nem um
segundo mais.
-
Guardei um lugar em minha carruagem - acrescentou a senhorita Effingham, que não tinha pressa alguma
por retirar suas mãos - embora o senhor Webster e lorde Braithwaite competissem por ela.
Rannulf imaginou o dia que se avizinhava. Duas horas na carruagem pela manhã e outras duas no caminho
de volta, todas elas em estreita companhia de sua futura noiva. Algumas horas de lojas com ela, depois tomaria o
chá sentado a seu lado na estalagem. E sem dúvida a volta a Harewood mais tarde, onde também se sentaria
junto a ela durante o jantar e se veria obrigado a passar as páginas da partitura enquanto ela tocava o piano ou a
sentar-se junto a ela como par de cartas no salão depois do jantar.
Tanto sua avó como a mãe da moça estariam encantadas pelo feliz progresso do cortejo.
-
Rogo-lhe que me desculpe. - Soltou-lhe as mãos, enlaçou as suas atrás das costas e esboçou um sorriso de
desculpa para ela e o grupo em geral. - Mas prometi passar o dia com minha avó a fim de planejar as atividades
de amanhã. - No dia seguinte se celebraria a festa ao ar livre em Grandmaison, um acontecimento ao qual não
tinha dedicado o menor pensamento até esse instante.
A expressão da senhorita Effingham se decompôs e o presenteou com uma linda careta.
-
Mas qualquer um pode planejar uma festa ao ar livre – replicou. - Estou segura que sua avó o liberará de
sua promessa quando souber qual é nosso destino e que nos desviamos expressamente para convidá-lo.
-
Sinto-me honrado de que o tenham feito - assegurou ele. - Mas me resulta impossível romper uma
promessa. Que tenham um bom dia.
-
Falarei com lady Beamish em pessoa -insistiu a senhorita Effingham com o rosto resplandecente. - O
liberará se eu pedir.
-
Obrigado - replicou Rannulf com firmeza, - mas não. Não posso partir hoje. Permita-me que a ajude a
subir a sua carruagem, senhorita Effingham.
O semblante da moça mostrou claramente sua desilusão e Rannulf sentiu uma ferroada de remorso. Sem
dúvida lhe tinha estragado o dia. Não obstante, enquanto aceitava sua mão e erguia a vista para observá-lo com
uma expressão que não foi capaz de decifrar imediatamente, gritou em direção ao terraço:
- Lorde Braithwaite - chamou com jovialidade, - pode sentar-se comigo apesar de tudo. Para falar a verdade
me parecia de boa educação reservar um lugar para lorde Rannulf, mas lhe é impossível vir.
A Rannulf fez graça observar, depois de deixá-la nas mãos de outro homem e esperar como ditava a
educação que a procissão prosseguisse viagem, que ela não o olhou nenhuma só vez, mas sim se dedicou a sorrir
ao paquerar com Braithwaite, a lhe colocar a mão na manga e a conversar animadamente com ele.
A tonta tentava lhe causar ciúmes, pensou enquanto voltava para casa. Sua avó acabava de aparecer no
vestíbulo.
-
Rannulf? – perguntou. - Vão sem você?
-
Têm uma excursão planejada para todo o dia - respondeu enquanto se apressava a aproximar-se da anciã
para lhe oferecer o braço. Sua avó se negava a utilizar bengala, mas ele sabia que frequentemente precisava
apoiar-se sobre algo para caminhar. - Não gostaria de deixá-la sozinha tanto tempo.
-
Mas que tolice, moço - replicou ela. - Como acha que me arrumo quando não está aqui... como sempre?
Acompanhou-a em direção à escada ao supor que queria retirar-se a seus aposentos. Cortou suas passadas
para ajustar seus passos ao da anciã.
-
Fui uma decepção para você, vovó? - perguntou - Por não optar pela Igreja como profissão. Por não vir
frequentemente apesar de que faz anos que me nomeou seu herdeiro. Por não demonstrar interesse algum por
meu futuro herdeiro...
A anciã o observou com olhos críticos enquanto subiam as escadas. Rannulf se deu conta de que subia os
degraus um a um e de que sempre levantava primeiro o pé esquerdo. - O que provocou esta crise de consciência?
- inquiriu a mulher.
Não estava seguro. A conversa com Judith Law, talvez. As coisas que lhe havia dito a respeito da ociosidade
dos cavalheiros; sua própria admissão de que não tinha cumprido com seu dever, tal e como Wulf e Aidan
faziam. Negou-se a converter-se em clérigo. Mas tampouco fez outra coisa. Não era melhor que esse mequetrefe
de Branwell Law, salvo que ele dispunha de dinheiro com o qual desfrutar de uma vida ociosa. Tinha vinte e oito
anos, estava enfastiado e vagava sem rumo; a sabedoria que tinha acumulado ao longo de sua existência o levava
a cínica conclusão de que a vida não tinha sentido.
Acaso tinha tentado dar sentido à vida?
Respondeu à pergunta de sua avó com uma própria. - Desejou alguma vez que viesse mais frequentemente,
que mostrasse interesse pela casa e a propriedade, que aprendesse o trabalho que acarretam e talvez que
fiscalizasse sua administração e reduzisse suas responsabilidades? Que conhecesse seus vizinhos? Que me
transformasse em um membro ativo desta comunidade?
À anciã faltava o fôlego quando chegaram à parte superior da escada. Rannulf se deteve para permitir que se
recuperasse.
-
Teria a amabilidade de me dizer a que vem tudo isto?
-
Estou planejando me casar, não?
-
Sim, é óbvio. - Precedeu-o a sua saleta particular, onde Rannulf se sentou em uma cadeira depois que a
ajudou a se sentar. - De modo que essa ideia despertou seu sentido latente da responsabilidade, tal e como
esperava que fizesse. É uma coisa muito doce, não parece? Mais caprichosa e frívola do que tinha imaginado, mas
nada que o tempo e a maturidade não possam corrigir. Sente algo por ela, Rannulf?
Pensou em mentir descaradamente. Entretanto os sentimentos não eram indispensáveis para o matrimônio
que tinha prometido ter em conta.
-
Isso chegará com o tempo, vovó – disse - Sua descrição da moça é bastante acertada.
-
E, entretanto - replicou ela com o cenho franzido, - acaba de recusar a oportunidade de passar todo o dia
a seu lado.
-
Me ocorreu - explicou- que poderia me reunir com seu administrador, vovó, para ver se tinha tempo de
me mostrar os campos e me explicar algumas coisas. Sou bastante ignorante no que se refere a estes assuntos.
-
Deve se aproximar o final dos tempos - comentou a anciã. - Nunca acreditei que viveria para ver este dia.
-
Isso quer dizer que não me considera presunçoso? - inquiriu ele.
-
Meu querido moço. - inclinou-se para diante - sonhei em verte não só como um homem casado e pai de
família, mas também como um homem adulto, amadurecido e feliz. Foi um moço encantador desde que nasceu,
mas já tem vinte e oito anos.
Rannulf ficou de pé.
-
Pois irei endireitar meu caminho - disse com um sorriso, - a deixarei descansar.
Havia uma nova vitalidade em seus passos quando desceu a escada. Surpreendia-se não ter pensado antes
nessa possibilidade, contente como estava com sua vida ociosa em Lindsey Hall -que era o lar de Bewcastle, não
o seu- e em qualquer lugar que pudesse desfrutar de uns dias ou semanas de entretenimento.
E, entretanto durante anos tinha sabido que chegaria o dia em que se transformaria em um latifundiário.
Tinha muitas coisas que fazer, muito que aprender, de modo que quando chegasse o momento fosse capaz de
dar-se à terra tanto como receber dela.
Entretanto, devia fazê-lo com Julianne Effingham a seu lado, sua mente expulsou essa ideia. Pensaria nisso
em outro momento.
A Judith teria encantado unir-se à excursão de compras, sobretudo depois que Branwell pediu diretamente.
Entretanto, quando tia Effingham se apressou a afirmar com bastante firmeza que necessitava que sua sobrinha
ficasse em casa, não pôs objeções. De qualquer forma não tinha dinheiro algum que gastar, e não tinha a menor
graça ir às lojas se não se podia comprar nem a mais insignificante ninharia para recordar o dia. Além disso,
Horace não tinha demorado em secundar o convite de Bran. E se fosse, teria que ver como Julianne e lorde
Rannulf Bedwyn conversavam e riam juntos durante todo o dia.
Não o amava. Mas se sentia sozinha e deprimida, e em um momento de loucura -sim, uma loucurapermitiu-se saborear outra vida muito diferente... com ele. Não podia evitar recordar. Seu corpo recordava,
sobretudo durante os momentos nos quais baixava a guarda. Começava a despertar a noite com o corpo exaltado
por algo que jamais voltaria a ter.
Em termos gerais, agradou-lhe passar o dia escrevendo um monte de convites para o grande baile da semana
seguinte e levando alguns pessoalmente ao povoado -a pé todo o trajeto de ida e de volta porque não tinham lhe
oferecido a caleche- e depois cortar flores do jardim da cozinha e fazer arranjos para cada uma das salas diurnas.
Passou uma hora no salão organizando a bolsa de fios de sua tia, que se tinham embaraçado de maneira
impossível, separando os fios com paciência antes de voltar a enrolá-los em sedosas meadas. Esta tarefa se viu
interrompida duas vezes: uma para subir a escada em busca do lenço de sua avó e outra para levar o prato de
bombons que tanto gostava.
Mas ao menos sua avó era uma companhia agradável. Sempre que tia Effingham não estava com elas
conversavam animadamente sobre um sem-fim de temas. À avó adorava lhe contar histórias a respeito de seu
avô, a quem Judith não chegou a conhecer apesar de ter sete anos quando morreu. Ambas se puseram a rir
quando Judith contou à anciã algumas anedotas de sua casa com o simples propósito de entretê-la, como aquela
vez em que todos os aldeãos tinham perseguidos como loucos um leitão que escapou por todo o cemitério e o
jardim da reitoria, até que seu pai saiu do estúdio e conseguiu que o apavorado animal se detivesse em seco ao
olhá-lo com sua expressão eclesiástica mais severa.
Foi então quando o mordomo as interrompeu.
-
Peço-lhes perdão, senhoras - disse sem deixar de olhar a ambas como se não soubesse muito bem a quem
dirigir-se, - mas há... isto... uma pessoa na entrada que insiste em falar com o senhor Law. Nega-se a acreditar que
o jovem não se encontra aqui.
-
Quer falar com Branwell? - perguntou Judith. - De quem se trata?
-
Será melhor que o faça entrar, Gibbs - disse sua avó. - Embora não entendo por que não acredite.
-
Não. - Judith ficou de pé. - irei ver o que quer.
O homem que havia na entrada tinha um chapéu entre as mãos ao qual não deixava de dar voltas e parecia
muito incomodado. Tanto sua idade como sua roupa fizeram que Judith abandonasse imediatamente a ideia de
que se tratava de um amigo de Bran que se encontrava pela área e que decidiu visitá-lo de surpresa.
-
Posso ajudá-lo em algo? - perguntou-lhe. - O senhor Law é meu irmão.
-
Seriamente, senhorita? - O homem fez uma reverência. - Mas tenho que ver o cavalheiro em pessoa.
Tenho que lhe entregar algo em mãos. Sua irmã não me servirá. Diga-lhe que venha se não se importar.
-
Não se encontra aqui - disse Judith. - Não voltará até a noite. Embora o senhor Gibbs já houvesse dito,
conforme tenho entendido.
-
Mas é que sempre dizem isso - replicou o homem - e quase nunca é certo. Não consentirei que me evite,
senhorita. O verei cedo ou tarde. Diga-lhe que esperarei que volte.
Por que motivo? - perguntou-se Judith. E a que vinha essa insistência que raiava a grosseria? Como
descobriu que Bran estava ali? De qualquer modo, ela não era nenhuma idiota. Sentiu uma ferroada de apreensão.
-
Nesse caso deverá esperar na cozinha - informou-lhe - se o senhor Gibbs permitir, claro está.
-
Me siga - disse o mordomo, que olhou o visitante com uma expressão altiva, como se tratasse de um
verme especialmente repugnante.
Judith os observou afastar-se, carrancuda, antes de retornar ao salão.
Entretanto, nem sequer teve a oportunidade de sentar-se quando escutou o som dos cavalos e as carruagens
e foi à janela para dar uma olhada. Sim, tinham retornado, muito mais cedo do que esperava.
-
Já estão de volta? - A surpresa de sua avó era fiel reflexo da sua.
-
Sim - respondeu Judith. - Não demoraram muito.
Claro que à volta não teriam tido que dar a volta até Grandmaison. Teriam levado lorde Rannulf com eles.
Contra sua vontade, viu-se se inclinando para a janela para espioná-lo enquanto desembarcavam da carruagem.
Mas foi lorde Braithwaite quem ajudou Julianne a descer, e atrás deles o fizeram à senhorita Warren e sir Dudley
Roy-Hill. Tia Effingham tinha saído para recebê-los.
-
O que queria esse homem de Branwell? - perguntou sua avó.
-
Não tenho a menor ideia - respondeu Judith. - Queria vê-lo pessoalmente.
-
Suponho que seja um amigo - comentou sua avó.
Judith não a contradisse. Um instante depois a porta do salão se abriu de par em par e Julianne entrou feita
uma fúria, com uma expressão mal-humorada, os lábios franzidos e sua mãe lhe pisando os calcanhares. Tia
Effingham fechou a porta atrás dela. Era de supor que os convidados se dirigiram a seus aposentos para
refrescar-se depois ter passado o dia fora.
-
Não pôde vir - disse Julianne com voz tensa e gritando - Tinha prometido a lady Beamish que ficaria com
ela. Mas não me deixou que a convencesse para que o liberasse de sua promessa. Não queria vir. Não gosta. Não
vai pedir minha mão. Ah, mamãe, o que vou fazer? Tenho que me casar com ele! Morrerei se tiver que me
conformar com alguém inferior.
-
Voltou para casa muito cedo, Julianne - comentou a avó - O que aconteceu?
-
As lojas não valiam à pena - respondeu com petulância - Tudo parecia maltrapilho em comparação com
os produtos que havia inclusive nas lojas mais modestas de Londres. Entretanto, todos queriam deter-se em
todas as partes e não deixavam de exclamar maravilhados perante algo. Estava mortalmente aborrecida na hora
de chegar. E quem quer que tenha pontuado o Cervo Branco de elegante é que não viu nada elegante em sua
vida. Tivemos que esperar dez minutos para tomar chá morno e umas massas rançosas. E se Hannah e Theresa
disserem que o seu estava quente, mamãe, mentem. Foi uma estupidez ir a esse lugar. Estou segura de que teve
um dia fantástico comparado ao meu, Judith.
Judith compreendeu que fora a negativa de lorde Rannulf a unir-se à comitiva o que condenou a excursão ao
fracasso. Por que teria se negado?
-
É claro que gosta, queridinha - disse tia Effingham para acalmá-la - Lady Beamish foi bastante explícita
na hora de promover uma união entre os dois, e lorde Rannulf se mostrou do mais atento. Se não pôde ir contigo
hoje, tenha por certo que tinha uma boa razão. Não deve demonstrar que está aborrecida com ele. Amanhã se
celebrará a festa ao ar livre em Grandmaison e já sabe que também nos convidaram para jantar. Tudo sairá bem
amanhã, verá. Deve ter sua aparência encantadora de sempre, queridinha. Nenhuma dama pega cavalheiro algum
com um aborrecimento.
-
Comprei dois chapéus, embora um eu não gostasse nada - disse Julianne um tanto mais calma - E o
outro, temo, é de um estilo que não me favorece. Também comprei umas fitas. Não podia decidir que cor eu
gostava mais, assim comprei duas. Embora não havia nenhuma que eu gostasse de verdade. - Deixou escapar um
longo suspiro - Que dia mais insípido!
Chegando a esse ponto, sua avó decidiu retirar-se a seus aposentos e Judith a ajudou a ficar em pé e a
acompanhou até lá.
-
Estes brincos me machucam - lamentou sua avó enquanto tirava um quando se aproximavam de seu
quarto e fazia uma careta. - Sempre esqueço que o fazem. Embora meu porta-joias esteja tão desorganizado que
me limito a colocar a mão e tirar o que estiver mais acima. Tenho que guardar estes no fundo.
-
Eu o farei, vovó - ofereceu-se Judith.
Entretanto, quando viu o interior da enorme caixa de madeira esculpida em que sua avó empilhava sua
considerável coleção de joias, soube que deviam tomar medidas drásticas.
-
Você gostaria que organizasse tudo? - perguntou - Vovó, o porta-joias está dividido em compartimentos.
Se usar um para os anéis, outro para os brincos e outros para os broches, os colares e os braceletes, tudo seria
muito mais fácil de encontrar.
Sua avó suspirou.
-
Seu avô sempre estava comprando joias porque sabia o muito que eu gostava. E como pode ver, guardo
as peças mais valiosas separadas. - Assinalou a bolsa de veludo borgonha que estava quase escondida sob o
desordenado monte de joias. - Organizará isso tudo? Que amável de sua parte, Judith, carinho. Nunca me dei
bem em manter as coisas em ordem.
-
Levarei o porta-joias a meu quarto - sugeriu Judith - para não incomodá-la enquanto descansa.
-
Sim, preciso descansar - admitiu a avó. - Acredito que o frio me afetou o estômago quando me sentei
ontem no terraço com Sarah. Pensei que o chá me sentaria bem, mas não foi assim. Tillie me dará um tônico de
algo, suponho.
Judith levou o pesado porta-joias a seu quarto e derrubou tudo sobre a cama. Seu avô devia ter sido muito
apaixonado por sua avó, pensou com um sorriso, para lhe dar de presente tantas e tão ostentosas joias, muitas
das quais apenas se podiam distinguir de suas resplandecentes companheiras.
Estava organizando os colares, o último monte que restava, quando bateram na porta e Branwell se apressou
a entrar a despeito dela ainda não ter acabado de perguntar quem era. Estava branco como um lençol.
-
Jude - disse, - preciso que me ajude.
-
O que aconteceu? - De repente recordou do pertinaz visitante.
Devia ser o causador da confusão de seu irmão. - O que queria esse homem?
-
Bom. -Tentou esboçar um sorriso. - Não era mais que um mensageiro. Que falta de vergonha, maldita
seja. As pessoas têm dívidas com seu alfaiate e seu sapateiro e se vê açoitado por meio país, como se sua palavra
de cavalheiro não fosse suficiente para assegurar o pagamento.
-
Era um alfaiate que exigia o pagamento de uma dívida? - perguntou com um pesado colar de safiras na
mão.
-
Não era o alfaiate em pessoa - respondeu ele. - Contratam indivíduos para estes assuntos, Jude. Ele me
disse que tenho duas semanas de prazo para pagar.
-
Quanto dinheiro? - inquiriu com os lábios repentinamente ressecados.
-
Quinhentos guinéus - respondeu com um sorriso apagado - Há tipos que lhes devem dez vezes mais, mas
ninguém os persegue.
-
Quinhentos... - Por um instante, Judith acreditou que ia desmaiar. O colar caiu sobre seu regaço com um
golpe.
-
A verdade é que não vai restar mais remédio a papai que pagar a dívida - disse Branwell enquanto se
aproximava da janela. - Sei que é muito e sei que não pode repetir-se. Devo corrigir meus hábitos e tudo isso.
Mas está feito, não é? Assim papai vai ter que me tirar deste embrulho. Mas dará um ataque se o peço
pessoalmente ou se digo por carta. Escreverá por mim, não é, Jude? Explique a ele. Diga-lhe...
-
Bran – interrompeu-o com uma voz que parecia vir de muito longe, - não estou segura de que papai
possa lhe dar tanto dinheiro. Mesmo se o tiver, não restará nada mais. O arruinará igual à mamãe, a Cass, a
Pamela e a Hilary.
O semblante do jovem empalideceu ainda mais, se algo assim era possível. Inclusive os lábios adquiriram um
tom esbranquiçado. - A coisa está tão mal? - perguntou- É verdade, Jude?
-
Por que acha que estou aqui, Bran? - inquiriu ela. - Porque vir viver com tia Effingham é o sonho de
minha vida?
-
Ah, por Deus... - Olhou-a com uma careta de compaixão. - Sinto muitíssimo, Jude. Não queria acreditar,
mas é verdade, não é? Eu fui o culpado disto? Bom, pois acabou. Arrumarei isso, verá. Pagarei minhas dívidas e
recuperarei a fortuna familiar. Me encarregarei de que volte para casa e de que todas vocês tenham dinheiro para
conseguir um marido. Eu...
-
Como, Bran? - Em lugar de sentir-se comovida por seu efusivo remorso, Judith estava zangada. Apostando forte nas corridas e nos clubes de cavalheiros? Nos alegraria muitíssimo mais que escolhesse uma
profissão respeitável e que se assentasse em uma vida decente.
-
Me ocorrerá algo - disse ele - Verá Jude. Me ocorrerá algo. Arrumarei isso sem ter que recorrer a papai.
Santo céu! - Seus olhos posaram de forma distraída no porta-joias- De quem são todas essas joias? Da vovó?
-
Estavam todas embaralhadas - explicou, - exceto as mais valiosas, que estão nesta bolsa. Ofereci-me para
organizar.
-
Aí deve haver toda uma fortuna - disse seu irmão.
-
Nada disso, Bran - disse ela com voz turva. - Não recorrerá à vovó para pagar suas dívidas. Estas joias são
dela, são suas lembranças da vida com o vovô. Talvez valham uma fortuna, mas são dela... nem tuas nem minhas,
nunca lhe prestamos muita atenção, em parte porque papai sempre nos transmitiu a impressão de que não era
respeitável, embora não tenha a menor ideia de seus motivos. Pode ser que seja um pouco cansativa segundo as
circunstâncias, sempre esquecendo as coisas em outro aposento e queixando de sua saúde, embora de um tempo
para cá o faça menos. Mas lhe peguei muito carinho. É divertida e adora rir. E juraria que não tem nenhum pingo
de maldade no corpo... que é mais do que posso dizer de sua filha... ou de seu filho. - ruborizou-se por haver dito
algo tão desleal de seu próprio pai.
Branwell suspirou.
-
Não, é óbvio que não pedirei ajuda à anciã - disse - Sobretudo porque seria humilhante admitir diante
dela que me encontro em apuros. Ainda que, pelo amor de Deus, nem sequer se daria conta de que falta uma,
duas ou dez peças dessas, não acha?
Judith o deteve com um olhar sério.
-
Só estava brincando, Jude – explicou - Não me conhece o bastante para saber que jamais me ocorreria
roubar minha própria avó? Só era uma brincadeira.
-
Sei, Bran. - ficou em pé e sucumbiu ao impulso de lhe dar um abraço. - Terá que encontrar a maneira de
sair você sozinho do atoleiro. Talvez se visitar os comerciantes envolvidos possa chegar a algum acordo com eles
para lhes pagar uma mensalidade o...
Ele soltou uma gargalhada, um som carente de humor.
-
Não deveria tê-la incomodado com meus problemas - respondeu. - Esqueça Jude. Apesar de tudo são
meus problemas, não os seus. Arrumarei isso. E quanto a você, não vejo por que não pode atrair um marido
decente embora viva neste lugar sem nenhum dote. Claro que não o fará com essa aparência. Jamais entendi por
que papai insistia a mamãe para que sempre usasse touca quando as demais nem sequer as punham. Nunca
compreendi o que tem de horrível seu cabelo. Sempre acreditei que as mulheres ruivas são muito atraentes.
-
Obrigada, Bran. - Sorriu - Devo terminar isto e devolver o porta-joias ao quarto da avó. Tenho que
admitir que me põe um pouco nervosa ter todas estas joias aqui. Quem dera pudesse ajudá-lo, mas não está em
minha mão.
Seu irmão esboçou um sorriso e pareceu recuperar sua expressão habitual.
-
Não se preocupe - disse. - Os homens passam por este tipo de coisas todo o tempo. Mas sempre as
arranjam. Eu também o farei.
A frase se converteu em uma espécie de lema para ele, percebeu Judith. As arrumaria. Mas ela não via como.
Seu pai se veria afetado cedo ou tarde, pensou, igual a sua mãe e suas irmãs. E ela se veria presa por séculos e
séculos com tia Effingham. Até esse momento não se deu conta de que uma parte dela seguia acalentando a
esperança de que retornaria para casa, de que tudo voltaria para a normalidade.
CAPÍTULO 12
O clima cooperou em grande parte com a festa ao ar livre em Grandmaison. Apesar de o dia ter amanhecido
com o céu coberto de nuvens que pareciam pressagiar chuva, a tarde foi limpa e ensolarada, com o calor justo
para não se tornar cansativo. O salão estava disponível para qualquer um que se sentisse mais inclinado a
sentar-se no interior, mas haviam tornado a abrir as portas francesas e a maioria dos convidados se encontravam
fora, passeando pelos atalhos dos jardins principais, sentados no caramanchão ou caminhando pela grama e pelo
atalho do arroio. No terraço dispuseram umas longas mesas cobertas com toalhas de um branco imaculado,
carregadas com apetitosos alimentos de todas as classes possíveis, além de bules e enormes jarras de limonada e
ponche.
Judith estava decidida a passá-lo bem. Usava o que sempre tinha considerado seu vestido mais bonito, o de
musselina verde claro; embora igual à maior parte de seus vestidos não tinha escapado às alterações. Usava
também uma de suas próprias toucas sob o chapéu que lhe deu tia Louisa. Não se sentia bonita, mas jamais se
iludiu com respeito a sua aparência. De qualquer modo, essa tarde não se considerava muito diferente do resto
dos convidados da vizinhança. Em sua maior parte não pareciam nem de perto tão elegantes nem na moda como
o grupo de Harewood. E Judith tinha a vantagem de ter conhecido muitos deles no dia anterior, quando tinha
entregue os convites para o baile.
Passou a primeira meia hora acompanhada da esposa e a filha do vigário, com as quais acreditou possível
poder cercar uma amizade com o tempo. Elas por sua vez apresentaram a algumas pessoas que se dirigiram a ela
de forma educada e nem a olharam com desdém - pior ainda - viraram-se imediatamente como se não estivesse
ali. Depois de quase uma hora, uniu-se a sua avó no salão e lhe levou um prato de comida do terraço. Estiveram
sentadas ali tranquilamente até que lady Beamish as descobriu e as arrastou até o caramanchão depois de
persuadir sua avó de que o ar era quente e de que a brisa era quase inexistente.
Estava desfrutando da festa, disse-se Judith depois de deixar conversando às duas velhas amigas. A seu redor
distinguia os sons das risadas e a diversão. Parecia que os jovens se moviam em grupos, às vezes em casais, com
um aspecto vivaz e exuberante enquanto desfrutavam da companhia de outros. Inclusive os convidados de mais
idade pareciam ter alguém com quem falar ou sentirem-se mais cômodos... igual a ela, é óbvio. Ela tinha sua avó.
Julianne estava rodeada por suas amigas mais íntimas e por alguns cavalheiros convidados de Harewood.
Lorde Rannulf estava ao seu lado, tal e como estivera a maior parte da tarde, e sua prima o olhava com uma
expressão resplandecente, embora dissesse algo que provocou as gargalhadas de todo o grupo.
Ia casar-se com Julianne.
Judith desejou de repente estar a sós depois de descobrir que era possível sentir-se mais só que nunca em
meio a uma multidão, algo que nunca tinha acontecido em seu lar. Ninguém lhe prestava atenção nesse
momento. No geral, em quase todas as grandes mansões se podia encontrar um pouco de tranquilidade se
alguém fosse para a parte traseira. Tomou um atalho que rodeava o lado da casa e descobriu os esperados jardins
da cozinha na parte posterior. Por sorte, estavam desertos e imediatamente começou a respirar com mais calma.
Teria que superar de uma vez, disse-se com determinação; teria que superar essa sensação de estar fora do
lugar, essa perda de confiança em si mesma e essa autocompaixão.
Os estábulos se encontravam no outro extremo da casa e havia um curral atrás. Passou junto à área cercada e
contemplou os cavalos pastando ali, aliviada de que não houvesse nenhum cavalariço pelo lugar que pudesse
vê-la e perguntar que fazia tão longe da festa.
Além dos estábulos o terreno descia em uma inclinada costa coberta de erva até uma área de floresta. Judith
desceu quase correndo e se viu rodeada por arbustos de rododendro, envolta de repente por sua intensa
fragrância. Adiante dela, uma vez que desceu a inclinação, descobriu um bonito mirante e, mais à frente, um lago
de nenúfares.
O mirante tinha forma hexagonal e estava completamente fechado sob seu pontiagudo teto de telhas de
madeira, embora contasse com janelas em todos os lados. Provou o trinco e a porta se abriu para dentro sem
dificuldade graças a umas dobradiças bem lubrificadas. No interior o chão estava coberto de ladrilhos e havia um
banco estofado em pele por todo o perímetro do mirante. Era claro que se usava de vez em quando. Estava
limpo. Havia alguns livros amontoados de um lado do banco. Embora estivesse claro que não era o refúgio
privado de alguém. Não estava fechado com chave.
Entrou e deixou a porta aberta para poder respirar a fragrância dos rododendros e escutar o canto dos
pássaros; além disso, queria ter uma boa vista do formoso e bem conservado lago de nenúfares, com suas águas
de cor verde escura sob o dossel de ramos e o surpreendente contraste da brancura dos nenúfares.
Era um pequeno paraíso na terra, decidiu enquanto se sentava no banco, entrelaçava as mãos sobre o regaço
e se permitia relaxar um pouco pela primeira vez em toda à tarde. Deixou de um lado a nostalgia de seu lar, a
solidão e a tristeza. Não era próprio dela acalentar sentimentos negativos durante muito tempo e ditos
sentimentos estavam curvando-a há muitos dias. Ali podia encontrar beleza e tranquilidade para nutrir seu
espírito e aceitaria semelhante presente abrindo-se ao que lhe ofereciam e dando a oportunidade de que lhe
chegassem à alma.
Respirou fundo e relaxou ainda mais. Fechou os olhos durante dois minutos, embora não estivesse
adormecida. Sentia-se feliz e consciente da sorte que recebia. Perdeu o sentido do tempo. - Bonita vista,
certamente - disse com suavidade uma voz procedente do vão da porta, o que a trouxe de volta a desagradável
realidade como se estivesse dormindo de verdade.
Horace estava ali, com um ombro apoiado contra o marco da porta e as pernas cruzadas à altura dos
tornozelos.
-
Ah, - disse ela, - assustou-me. Fui dar um passeio, descobri o mirante e me sentei para descansar uns
momentos. Deveria retornar agora mesmo. - Ficou em pé e se deu conta de que o lugar não era espaçoso
absolutamente.
-
Por quê? - perguntou ele sem mover um ápice - Porque minha madrasta poderia ter alguns recados que a
encarregar? Porque sua avó poderia necessitar que lhe levasse mais bolos? A festa durará algum tempo mais e os
convidados de Harewood ficarão depois que todos os outros partirem, como bem sabe. Nos convidaram para
jantar. Relaxe. Não sentirão sua falta durante um bom tempo.
Isso era precisamente o que ela temia.
-
É tudo muito pitoresco, não lhe parece? - disse Judith com jovialidade. E mais longínquo e afastado,
pensou.
-
Muito, sim - conveio ele sem afastar os olhos dela. - E o seria ainda mais se tirasse o chapéu e a touca.
Ela sorriu.
-
É isso um cumprimento, senhor Effingham? – inquiriu - O agradeço. Ficará aqui um momento mais? Ou
retornará a casa comigo?
-
Judith. - Esboçou um sorriso que revelou seus perfeitos dentes brancos. - Não há nenhuma necessidade
de se mostrar tímida... nem de me chamar senhor Effingham. A vi abandonar a festa porque se sentia sozinha e
afastada. Aqui não a apreciam, não é? Deve-se a minha madrasta que a trata como se fosse uma parenta pobre e
respira essa impressão na maioria dos convidados, que a veem somente como a dama de companhia de sua avó.
E que obrigaram a se disfarçar dessa forma. Sou o único homem aqui, além de seu irmão, que teve o privilégio de
espiar o que há debaixo.
Judith se repreendeu em silêncio por se vestir da forma que o fez no dia que Horace chegou com Bran. Não
teria mostrado interesse nela se a tivesse visto com o aspecto que tinha nesse momento. Não lhe ocorreu
nenhuma resposta sensata a essas palavras.
-
Não obstante, nem todos a desprezam - disse ele.
-
Bom. - Judith se pôs a rir. - Muito obrigado. Mas de verdade devo ir agora. - Deu um passo para diante.
Se desse um mais, daria de frente com ele. Entretanto, tal e como fez no atalho do bosque, o homem se manteve
em seu lugar e não se afastou para deixar que passasse - Desculpe-me, por favor, senhor Effingham.
-
Suponho – acrescentou - que teve uma educação rígida e limitada na reitoria, não é assim, Judith? Se por
acaso não sabe, um interlúdio romântico poderia ser muito divertido, sobretudo quando a festa é tão aborrecida.
-Não tenho o menor interesse em um interlúdio romântico - replicou ela com firmeza.
-
Isso é porque nunca teve a oportunidade - disse ele - Corrigiremos essa falta em sua educação, Judith.
Poderíamos acaso pedir uma ambientação mais... pitoresca para a primeira lição?
-
Já basta - disse ela com tom cortante. Estava assustada de verdade, já que esse homem parecia não ser
capaz de aceitar um não por resposta, nem sequer quando o dava com firmeza. - Parto daqui. E o aconselharia
que não tentasse me deter. O tio George e tia Louisa não se sentiriam muito agradados com você se o fizesse.
Ele riu entredentes com o que parecia genuína diversão. - Muito inocente... – disse - De verdade acha que me
jogariam a culpa? E de verdade acha que chegaria a dizer-lhes - Deu um passo para frente e ela meio passo para
trás.
-
Eu não gosto disto, senhor Effingham – disse - Seria pouco cavalheiresco de sua parte aproximar um
centímetro mais de mim ou continuar falando de um assunto que me é extremamente desagradável. Deixe-me
sair agora mesmo.
Em lugar de permitir - levantou a mão, desatou os laços de seu chapéu e o jogou junto com a touca sobre o
banco que havia a suas costas antes de agarrá-la. A metade de seu cabelo caiu sobre um ombro e Judith escutou
Effingham ofegar.
Foi a última coisa que escutou ou viu de forma consciente durante o que pareceu uma eternidade, embora na
realidade não fosse mais que um minuto ou talvez dois. Começou a golpeá-lo como uma possessa com ambos os
punhos, deu-lhe chutes e lhe cravou os dentes em qualquer lugar que ficasse perto de sua boca... Mas não gritou,
percebeu mais tarde. Jamais fora das que gritavam. De qualquer modo, era estranho que apesar de tão irrefletidas
pareciam suas ações, uma parte dela se afastou da situação para contemplar quase com indiferença como lutava
perdida no pânico com o fim de liberar-se e como Horace a dominava sem muito esforço, ria baixo a maior parte
do tempo e amaldiçoava quando em duas ocasiões ela conseguiu lhe acertar um golpe.
De repente, seu corpo se viu apertado contra o do Horace, com o vestido levantado até a metade das pernas
e uma das coxas do homem entre as suas, enquanto lhe aprisionava as mãos contra o peito e aproximava essa
asquerosa boca úmida à sua. Foi então quando recuperou o bom senso. Esse homem pretendia violá-la e ela não
seria capaz de detê-lo. Ainda que não se rendesse com docilidade. Seguiu lutando e o pânico se apropriou de
novo dela ao dar-se conta de que seus esforços não serviam para livrar-se, e sim para agradá-lo e excitá-lo ainda
mais.
E de repente, sem nenhum tipo de aviso, viu-se livre e contemplou com aterrorizada incredulidade o enorme
monstro que acabava de afastar Horace de seu lado e que ainda grunhia de modo ameaçador quando se virou e o
lançou fora do mirante. O monstro era lorde Rannulf Bedwyn, que saiu atrás de Horace, levantou-o do chão com
uma mão e o estampou contra o tronco de uma árvore.
Judith procurou a apalpadelas o batente mais próximo e se agarrou a ele. - Talvez não tenha notado - estava
dizendo lorde Rannulf, ainda com esse rouco grunhido - que a dama não estava interessada.
-
Isto é um pouco exagerado, não lhe parece, Bedwyn? - perguntou Horace, que tentava em vão escapar da
mão que aferrava as lapelas de seu casaco - Mostrava-se mais tímida que relutante. Ambos sabemos que... Ai!
Lorde Rannulf tinha puxado a mão livre para trás e tinha encravado o punho no estômago de Horace.
-
O que ambos sabemos - disse em um tom de voz que sugeria que estava apertando os dentes - é que
chamá-lo de verme, Effingham, seria difamar o reino dos insetos.
-
Se gostar da moça... Ai! - Horace se dobrou para diante quando recebeu outro murro no estômago, mas
lorde Rannulf o manteve em seu lugar com a mão esquerda.
-
Agradeça – disse - que estejamos na propriedade de minha avó e que há uma festa em curso. De outra
maneira, seria um enorme prazer para mim ordenar à senhorita Law que partisse para lhe dar a surra que merece.
Garanto-lhe que terminaria inconsciente e ensanguentado sobre o chão, com o rosto alterado de forma
permanente.
Deixou cair à mão e Horace, visivelmente aturdido, separou-se do tronco e começou a recolocar o casaco e a
camisa. - Acha isso, Bedwyn? - perguntou com fingida despreocupação. - Ah, e tudo por uma moça que não faz
mais que arquejar pelos cuidados de qualquer um que use calças.
Lorde Rannulf teve muito presente que não devia arruinar a festa de lady Beamish com uma briga. Não deu
nenhum murro em Horace na cara. Todos foram dirigidos ao corpo, acima da cintura. Judith se segurou com
mais força ao batente da janela e contemplou a cena sem ao menos perceber que Horace, apesar de sacudir os
punhos de vez em quando, não acertou nenhuma só vez. Não era uma briga, embora Effingham pudesse querer
tê-la transformado em uma. Era um castigo. E terminou somente quando seu agressor esteve de quatro e
vomitou presa de terríveis ânsias sobre o chão.
-
Pode ser que deseje - disse lorde Rannulf com a voz só ligeiramente entrecortada - apresentar suas
desculpas por não ficar para jantar, Effingham. Me daria vontade de vomitar se o visse sentado à mesa de minha
avó. Manter-se-á afastado da senhorita Law no futuro, entendido? Mesmo que eu não esteja perto para ver se a
persegue. Chegaria a me inteirar e a próxima vez lhe daria uma surra que o deixaria a um passo da morte... isso se
tiver sorte. Desapareça de minha vista agora mesmo.
Horace ficou em pé com muita dificuldade, apertando o estômago com uma mão. Estava tão pálido que
tinha adquirido um tom esverdeado. Não obstante, olhou lorde Rannulf antes de dar meia volta e afastar-se a
tropicões.
-
Me pagará por isso - disse. A seguir cravou o olhar em Judith. - E você também. - O ódio resplandecia
em seu olhar.
E então, quando por fim partiu, Judith se deu conta de que tinha os nódulos brancos de tanto apertar o
batente, o estômago revolto e os joelhos trêmulos. Lorde Rannulf ajeitou a roupa e se virou para ela. Só nesse
instante Judith se deu conta de que teria que ter aproveitado esse momento para recuperar a compostura, mas
mesmo assim não pôde soltar o batente.
-
Sinto que tenha presenciado semelhante amostra de violência - disse ele - Deveria a ter enviado de volta à
casa primeiro, mas supus que não iria querer que todos a vissem de semelhante forma e soubessem
imediatamente o que tinha acontecido dentro do mirante, - quando ela não lhe respondeu - Estava lutando com
todas suas forças –acrescentou - Tem coragem.
Ato seguido, afastou a mão de Judith do batente, separou-lhe os dedos com cuidado, colocou-a sobre a sua e
depositou a outra em cima. Tinha os nódulos avermelhados, conforme comprovou ela. - Não voltará a acontecer
- assegurou ele - Conheço os tipos como Effingham. Abusam das mulheres que não os adoram e idolatram e se
comportam como uns covardes diante dos homens que lhes pedem contas. Asseguro-a que me tem medo e que
não passará por cima de minhas advertências.
-
Eu não o convidei a fazer nada disso - afirmou Judith com um tremor na voz que foi incapaz de controlar
- Não vim aqui com ele.
-
Sei -disse ele - Vi-a rodear a casa e percebi que ele a seguia. Custou-me uns minutos me desembaraçar da
companhia e desaparecer sem que se dessem conta. Rogo que me perdoe por vir tão tarde.
Judith podia ver seu cabelo... de ambos os lados de seu rosto. Seu vestido, compreendeu quando olhou para
baixo, moveu-se com o esforço, de modo que seu modesto decote revelava nesse momento a parte superior de
seus seios. Ergueu a mão livre para prender o vestido e descobriu que ainda tremia, tanto que nem sequer podia
segurar o tecido.
-
Vem. - Lorde Rannulf também agarrou essa mão entre as suas e a obrigou a sentar-se no banco. Tomou
assento a seu lado sem lhe soltar as mãos e deixou que seu braço exercesse uma relaxante pressão sobre seu
ombro - esqueça de seu aspecto por uns instantes. Aqui não virá ninguém. Apoia a cabeça sobre meu ombro se
desejar. Respira a paz que nos rodeia.
Ela seguiu sua sugestão e permaneceram sentados assim durante cinco minutos, possivelmente dez, sem falar
nem mover-se. Como podiam dois homens na aparência similares ser tão distintos? Perguntou-se. Lorde Rannulf
lhe fez uma proposta depois do acidente da diligência, uma da mais imprópria, e a pusera em prática. O que o
diferenciava de Horace? Para falar a verdade ela mesma já tinha respondido essa pergunta. E ainda acredita em
sua resposta, talvez mais que nunca. Lorde Rannulf teria continuado sozinho no lombo de seu cavalo naquele dia
se lhe houvesse dito que não. A teria deixado na hospedaria se ela se negasse a mudar-se à estalagem do mercado.
Teria permitido dormir no banco do salão privado se lhe houvesse dito que não. Não, na realidade lhe teria
cedido à cama e ele teria dormido no banco. Sabia que o teria feito. Lorde Rannulf Bedwyn estava mais que
disposto a paquerar e até a deitar-se com uma mulher interessada, mas jamais forçaria uma que não estivesse.
E mesmo assim desonraria os votos matrimoniais tomando amantes? Não encaixava com o que seu instinto
lhe dizia. De qualquer forma, ela estava - sim, certamente que estava - apaixonada por ele, de modo que era
normal que o idealizasse. Não devia começar a acreditá-lo um homem perfeito.
Levantou a cabeça, separou a mão da do homem e se afastou do consolo que tinha encontrado em seu
ombro. Ele não a olhou, descobriu com agradecimento, quando ajustou o sutiã e, em ausência de escova,
penteou o cabelo o melhor possível antes de recolher lhe na nuca com os grampos que pôde encontrar e
ocultá-lo sob a touca e o chapéu.
-
Já estou pronta para retornar - disse enquanto ficava em pé - Muito obrigado, lorde Rannulf. Não sei se
alguma vez serei capaz de lhe devolver o favor. Parece que sempre estou em dívida com você. - Ofereceu-lhe sua
mão direita. Estava bastante firme, teve o orgulho de comprovar.
Ele a estreitou entre as suas e se levantou.
-
Se desejar – disse - pode se ausentar do jantar e das atividades posteriores anunciando que está indisposta.
Me encarregarei de que a levem de volta para casa na carruagem de minha avó e enviarei uma criada para que
fique contigo se temer que a incomodem ali. Só tem que decidir.
Senhor, era mais que tentador. Judith não sabia se seria capaz de sentar-se para jantar e manter a compostura
enquanto conversava com quem estivesse sentado a seu lado. Não sabia se seria capaz de ver lorde Rannulf
sentado junto a Julianne, falando e rindo com ela. Mas era uma dama, recordou-se. E apesar de não ser mais que
um membro de menor categoria da família de tio George, formava parte dela, apesar de tudo.
-
Obrigado - disse, - mas ficarei. Ele esboçou um sorriso imediatamente.
Eu adoro essa forma de erguer o queixo que tem, como se desafiasse o mundo –afirmou - Parece-me que
é nesses momentos quando a verdadeira Judith Law sai em cena.
Levou suas mãos aos lábios e, por um momento, ela esteve a ponto de tornar a chorar ante a efêmera ternura
da carícia. Em troca se limitou a sorrir.
-
Suponho – disse - que sim há um pouco de Claire Campbell em Judith Law.
Não se segurou em seu braço, embora ele o oferecesse. O destino havia tornado a reuni-los, mas sua
camaradagem terminava aí. Tinha-a salvado e a tinha consolado porque era um cavalheiro. Não devia dar mais
importância a seu comportamento. Não deveria aferrar-se a ele. Recolheu a saia pelos lados e subiu com
dificuldade a costa que conduzia aos estábulos.
-
Retornarei por onde vim - disse quando chegaram ao topo. - Você deve seguir um caminho diferente,
lorde Rannulf.
-
Sim - conveio ele antes de afastar-se para a parte dianteira dos estábulos, deixando-a com uma
inexplicável sensação de vazio no peito.
Acaso tinha esperado que se negasse a fazê-lo?
Passou apressada junto ao curral e os jardins da cozinha e estremeceu ao pensar que poderia ter retornado
em circunstâncias muito diferentes se ele não se desse conta de que Horace a tinha seguido. Não suportava
sequer imaginar.
Entretanto, como se deu conta? Estava convencida de haver escapulido sem que ninguém a visse. Não
obstante, Horace a tinha visto, igual à lorde Rannulf. Talvez não fosse tão invisível como começara a acreditar,
apesar de tudo.
CAPÍTULO 13
A Rannulf foi atribuído o assento que havia entre lady Effingham e a senhora Hardinge durante o jantar, já
que sua avó fora muito mais discreta na hora de distribuir a mesa do que era lady Effingham em Harewood.
Supôs um alívio para ele, mesmo que uma das damas só falava de quão duro era ter seis filhas para apresentar a
sociedade quando teria gostado mais ficar em sua propriedade durante todo o ano, e a outra ria e se compadecia
dele pelo fato de ver-se obrigado a acompanhar a duas matronas quando sem dúvida preferiria estar sentado
junto há alguém muito mais jovem e bonita.
- Até poderia mencionar -sugeriu enquanto olhava de esguelha - alguém muito particular.
A senhorita Effingham, que se encontrava no mesmo lado da mesa que Rannulf embora afastada, falava
animadamente com Roy-Hill e Law, seus companheiros de mesa. Em algumas ocasiões sua mãe se inclinou para
frente a fim de averiguar o motivo de um ou outro estalo de risadas.
- Lorde Rannulf, eu mesma e todos outros nos sentimos separados da diversão, queridinha - disse em uma
dessas ocasiões.
Judith Law estava sentada do outro lado da mesa e conversava em voz baixa com seu tio e com Richard
Warren. Ao olhá-la nesse momento ninguém teria adivinhado a terrível experiência que sofreu algumas horas
antes. Era muito mais dama que sua tia, face à fachada de elegância e sofisticação desta última. Como as demais
damas de Harewood, a moça se trocou em um aposento atribuído a tal feito no andar superior. Estava vestida
com o mesmo vestido de seda listras cor bege e dourado que tinha usado no Rum e o Tonel na segunda noite.
Rannulf o recordava por sua singela elegância, que naquele momento acreditou deliberada para não ressaltar sua
aparência, igual ao resto de seus vestidos. Essa noite o vestido tinha apliques de uma cor bege mais escuro nos
lados, uma banda do mesmo material ao redor do decote que evitava que não pudesse apreciar-se nem um
centímetro de seu busto e uma cintura quase inexistente. Usava uma bonita touca debruada de renda que, como
era de esperar, cobria-lhe o cabelo.
Quantos dos que estavam sentados à mesa? - perguntou-se Rannulf - davam-se conta de que tinha menos de
trinta anos apesar de estar vendo-a a uma semana? Ou quantos saberiam de que cor era seu cabelo. Ou os olhos,
já repararam?
Havia algo que lhe tinha ficado angustiosamente claro durante o transcurso do dia. Não podia - não podia de
nenhuma maneira - casar-se com a mucosa dos Effingham. Ficaria louco em menos de uma semana de
matrimônio. Não se tratava somente de que fosse uma tola e uma cabeça oca. O pior era sua forma de ser tão
presunçosa e egocêntrica. E o único motivo pelo qual a jovem tentava chamar sua atenção era por ser o filho de
um duque e um homem rico. Não tinha tentado absolutamente conhecê-lo como pessoa. E era provável que
nunca o fizesse. Poderia passar cinquenta anos casado com uma mulher que jamais saberia -nem se importariaque ele tinha passado os últimos dez anos negando a culpa que o embargava por não ter cumprido com seu dever
de aceitar uma carreira eclesiástica, tal e como seu pai tinha planejado para ele, e ter escolhido em troca uma vida
de libertinagem ocasional sem nenhum objetivo. Nem que decidiu fazia pouco dar um sentido e um significado a
sua vida transformando-se em um latifundiário capacitado, cabal, responsável e possivelmente algo progressista e
benévolo.
A conversação do jantar não exigia um uso intensivo de intelecto. Teve tempo de pensar muito durante esse
tempo.
Não podia casar-se com a senhorita Effingham. E tampouco podia decepcionar sua avó. Acaso era o único
que se dava conta da rigidez de sua postura, das marcadas linhas que havia nas comissuras de seus lábios, detalhe
que evidenciavam uma dor reprimida? Ou que o brilho de seus olhos mascarava o cansaço extremo que a
embargava? Com tudo isso, a anciã tinha disposto que a festa ao ar livre culminasse com um jantar a qual
seguiriam várias atividades, em honra aos convidados de Harewood. Rannulf a observou em várias ocasiões com
afeto e exasperação.
E depois estava Judith Law. Perguntou-se se a moça se dava conta de que foram dois os homens que
babaram por ela essa tarde. Para sua infinita vergonha, Rannulf a tinha desejado quase com tanto desespero
como Effingham. Pálida, desarrumada e com o cabelo descoberto tinha um aspecto comovedoramente atraente e
seu trêmulo atordoamento o tinha tentado a consolá-la de forma muito diferente da que tinha escolhido.
Sentou-se junto a ela no mirante refreando seus desejos, concentrando toda sua força de vontade em lhe
proporcionar o sereno e passivo consolo que tinha percebido que ela precisava e repreendendo-se a cada instante
com a ideia de que não se diferenciava tanto de Effingham.
Sempre tinha visto as mulheres como criaturas cujo fim era o de lhe proporcionar prazer e satisfação;
criaturas às quais se podia tomar, usar, pagar e esquecer. Salvo suas irmãs, é óbvio; e outras damas, todas elas
mulheres virtuosas; e inclusive algumas de duvidosa moral que o tinham repelido.
O problema das mulheres tão magníficas e voluptuosas como Judith Law residia em que os homens sempre
as olhavam com luxúria e possivelmente jamais viam a pessoa que se ocultava atrás da deusa.
Sua avó interrompeu suas divagações quando se levantou da cadeira e convidou o resto das damas a reunir-se
com ela no salão. Depois de sua marcha, era uma tentação atrasar-se com o porto e a afável conversação
masculina durante um período indefinido, já que suspeitava que sir George Effingham e um bom número do
resto dos cavalheiros se mostrariam encantados de passar o resto da noite sentado à mesa. Entretanto, tinha que
cumprir com seu dever e prometeu que faria o papel de anfitrião para tirar de sua avó parte das cargas sociais.
Levantou-se passados uns escassos vinte minutos e outros cavalheiros o seguiram até o salão.
Não tinha a menor intenção de consentir que as mesmas jovens de sempre animassem a reunião tocando o
piano, como era o costume; nem de permitir que a senhorita Effingham monopolizasse o instrumento uma vez
que tivesse ocupado a banqueta enquanto lhe passava as páginas da partitura.
-
Tomaremos o chá – anunciou - e depois cada um de nós tentará entreter os outros. Todos os que...
vejamos... todos os que tenham menos de trinta anos.
Elevou-se um coro de protestos, em sua maioria masculinas, mas Rannulf ergueu uma mão e pôs-se a rir.
-
Por que se espera sempre que sejam as damas quem faça adorno de todos seus talentos e habilidades? –
perguntou - Não tenho dúvida de que todos podem fazer algo para amenizar uma reunião deste tipo.
-
Céus... - lamentou-se lorde Braithwaite, - ninguém gostaria de me ouvir cantar, Bedwyn. Quando me uni
ao coro do colégio, o professor de canto me disse que o mais benévolo que lhe ocorria era comparar minha voz à
serena cascata de um casco de navio. E isso pôs fim a meus dias como cantor.
Produziu-se uma gargalhada geral.
-
Não haverá exceções - disse Rannulf. - Há outras formas de entreter as pessoas além do canto.
-
E o que você vai fazer, Bedwyn? -perguntou Peter Websster - Ou vai se excluir do assunto se amparando
atrás do papel de mestre de cerimônias?
-
Espere e verá - respondeu Rannulf. - Parece-lhes bem que demos dez minutos para o chá antes de retirar
a bandeja?
Ele foi o primeiro. Parecia justo. Tinha aprendido alguns truques de mágica ao longo dos anos e tinha
desfrutado entretendo Morgan e sua tutora. Levou a cabo alguns deles nesse instante; truques tolos como fazer
desaparecer uma moeda de sua mão e fazê-la reaparecer detrás da orelha direita da senhorita Cooke ou no bolso
do colete de Branwell Law; ou fazer que um lenço se transformasse de repente em um relógio de bolso ou no
leque de uma dama. Tinha, é claro, a vantagem de havê-los planejado com antecipação. Sua audiência exclamou
maravilhada e aplaudiu com entusiasmo, como se fosse um virtuoso da arte.
Teve que persuadir alguns dos convidados e algum deles - sir Dudley Roy-Hill se negou categoricamente se
fazer de idiota, conforme disse; mas foi do mais surpreendente descobrir durante a seguinte hora a variedade de
talentos, em ocasiões impressionantes, que tinham jazido ocultos durante a primeira metade da festa. Como era
de prever, as damas escolheram a música, a maioria o canto ou o piano; uma - a senhorita Hannah
Warren - a harpa do salão, que Rannulf não recordava ter escutado tocar anteriormente. Law cantou uma
trágica balada com uma agradável voz de tenor e Warren cantou um dueto barroco com uma de suas irmãs.
Tanguay recitou o Kubla Khan de Coleridge com tal paixão e sensibilidade que as damas estalaram em
entusiasmados aplausos quase antes que a última palavra tivesse saído de sua boca. Webster realizou uma
elogiável imitação de um baile cossaco que contemplou durante uma de suas viagens, dobrando os joelhos,
cruzando os braços, levantando os pés, dando saltos e acompanhando-se com sua própria voz, o que conseguiu
que tanto a audiência como ele mesmo estalassem em gargalhadas antes que caísse desabado sobre o tapete com
escassa elegância. Braithwaite, animado possivelmente pela boa acolhida de sua história como menino do coro,
contou três anedotas mais sobre seus dias de escola, todas em seu próprio detrimento, e adornou os detalhes com
hilariantes exageros até que as damas, e até alguns cavalheiros, tiveram que limpar as lágrimas enquanto seguiam
rindo.
-
Bom - disse lady Effingham com um suspiro quando Braithwaite se sentou, - já fizemos todos. Poderia
continuar assim durante uma hora mais. Foi uma ideia esplêndida, lorde Rannulf. Nos divertimos muito. De fato,
eu...
Entretanto, Rannulf ergueu uma mão para interrompê-la. - Não tão depressa, senhora – disse - Não fizemos
todos. Ainda falta a senhorita Law.
-
Bom, para falar a verdade não acredito que Judith queira fazer o ridículo - apressou-se a dizer sua
carinhosa tia.
Rannulf não lhe fez o mínimo caso. - Senhorita Law?
Ela tinha erguido a cabeça de repente e o olhava com os olhos abertos como pratos e uma expressão
horrorizada. Rannulf tinha concebido tudo aquilo para chegar a esse preciso momento. Enfurecia-o que a
tivessem transformado em uma mulher invisível, em pouco mais que uma criada, e tudo porque esse mucoso que
tinha por irmão acreditou que podia viver acima de suas possibilidades financiado pelo poço sem fundo da
fortuna de seu pai. Embora fosse por uma vez, Judith se faria visível em toda sua magnificência enquanto todos
os convidados permanecessem em Harewood.
Tinha sido uma aposta arriscada desde o começo, é claro. Mas fora planejado antes dos desagradáveis
sucedidos que tinham tido lugar essa tarde. Rannulf não deixou de dar voltas durante toda a noite à ideia de
deixar que seguisse passando despercebida.
-
Mas eu não possuo nenhum talento em particular, milorde - respondeu ela - Não sei tocar piano nem
cantar salvo de forma passável.
-
Possivelmente - disse ele, olhando-a diretamente aos olhos - tenha memorizado algum verso ou alguma
passagem da Bíblia.
-
Eu... - Judith fez um gesto negativo com a cabeça.
Deixaria aí, decidiu Rannulf. Equivocou-se de parte para parte. Tinha-a envergonhado e talvez a tivesse
magoado.
-
Possivelmente, senhorita Law - disse sua avó com amabilidade, - estaria disposta a nos ler um poema ou
uma passagem da Bíblia se trouxéssemos o livro da biblioteca. Falando com você esta tarde me dei conta de que
tem uma voz muito agradável. Mas só se o desejar. Rannulf não insistirá se você for muito tímida.
-
É óbvio que não, senhorita Law - disse ele antes de fazer uma reverência.
-
Nesse caso, lerei, senhora - disse com tom resignado.
-
Se importaria de trazer algum livro da biblioteca, Rannulf - solicitou sua avó - Um pouco de Milton ou de
Pope, possivelmente? Melhor a Bíblia?
De modo que só tinha conseguido envergonhá-la, pensou Rannulf enquanto se encaminhava para a porta da
biblioteca. Entretanto, antes que a alcançasse, uma voz o deteve.
-Não, por favor - disse Judith Law antes de ficar em pé - Trazer um livro e encontrar uma passagem
adequada somente serviria para atrasar as coisas. Eu... representarei uma pequena cena que memorizei.
-
Judith! - exclamou sua tia, que parecia verdadeiramente horrorizada. - Não acredito que uma reunião
desta categoria queira ver-se submetida às representações teatrais de uma colegial...
-
Sim, sim, Judith! - exclamou a senhora Law quase ao mesmo tempo, produzindo um tinido de anéis e de
braceletes ao juntar as mãos. - Isso seria magnífico, carinho.
Judith caminhou muito devagar e com evidente desinteresse para a área que havia frente à lareira e que fora
limpa para os entretenimentos que não tinham que ver com a música. Permaneceu ali de pé durante uns
instantes, apertando-os nódulos de uma mão contra os lábios e olhando o chão. Rannulf, que sentia os
batimentos do coração no peito como se fosse um martelo, foi consciente de que os convidados começaram a
remexer-se em seus assentos com desconforto. Supôs que algum deles a via nesse momento pela primeira vez.
Tinha o aspecto de uma tutora singela e gordinha.
E nesse instante, ela levantou a vista, com o acanhamento e o rubor ainda pintados no rosto.
-
Declamarei o papel de lady MacBeth da última parte da obra - disse e olhou um instante a Rannulf antes
de afastar o olhar. - A cena de sonambulismo que é provável que todos vocês conheçam; a cena em que ela tenta
sem cessar limpar das mãos o sangue do assassinato do rei Duncan.
-
Judith! - advertiu lady Effingham. - Devo pedir que se sente. Esta se pondo em ridículo e está
envergonhando a todos.
-
Cale-se! - exclamou a senhora Law. - Guarda silêncio, Louisa, e nos deixe desfrutar.
A julgar pela expressão de estupor do rosto de lady Effingham, Rannulf supôs que era a primeira vez em
muito tempo que sua mãe lhe falava dessa maneira.
Entretanto, não podia prestar muita atenção a ninguém que não fosse Judith Law, que tinha um aspecto do
mais inapropriado para o papel que tinha escolhido. Seria possível que tivesse cometido um terrível engano? O
que ocorreria se ela se visse intimidada pela ocasião e a companhia?
Judith deu as costas a todos. E enquanto a olhava, Rannulf começou a relaxar de forma gradual. Pôde vê-la,
antes mesmo que se virasse, e meter-se no corpo, na mente e na alma de outra mulher. Já tinha visto antes. E em
dado momento, ela inclinou a cabeça para frente, tirou a touca e a deixou cair ao chão, seguida dos grampos.
Sua tia ofegou e Rannulf foi consciente pelo menos de que alguns cavalheiros presentes se endireitavam em
seus assentos.
Nesse momento, ela se virou.
Já não era Judith Law em um de seus disfarces. Seu vestido folgado se transformou em uma camisola. Seu
cabelo se desordenou enquanto dava voltas na cama, primeiro tentando conciliar o sonho e depois dormindo
inquieta. Tinha os olhos abertos, mas com a expressão estranha e vazia de uma sonâmbula. Além disso, seu rosto
estava tão carregado de horror e repugnância que não guardava nenhuma semelhança com o de Judith Law.
Suas trêmulas mãos se ergueram lentamente até ficar à frente de seu rosto com os dedos estendidos, que se
pareciam mais a serpentes que a dedos. Tentava lavar as mãos e as esfregava com desespero antes das erguer de
novo para as contemplar com atenção.
Nessa cena havia outros dois personagens, um médico e uma criada, para presenciar e descrever seu aspecto
e seus atos. Suas palavras não eram necessárias essa noite. Estava claro que era uma mulher atormentada, uma
mulher que estava passando um calvário, inclusive antes que abrisse a boca. E então começou a falar.
-Ainda estão manchadas - disse com uma voz grave e esgotada que apesar tudo chegava alta e clara até o
fundo da sala que parecia conter o fôlego.
Tocou a mancha da palma com o dedo indicador da mão contrária, beliscou-a, arranhou-a e lhe cravou as
unhas; suas ações estavam cada vez mais frenéticas. -longe de mim esta horrível mancha...!. Rannulf estava preso
por completo em seu feitiço. Encontrava-se perto da porta, sem ver nem ouvir outra coisa que não fosse ela: lady
MacBeth, a triste, horrível e culpada ruína de uma ambiciosa mulher que se acreditou bastante forte para incitar
ao assassinato e inclusive cometê-lo. Uma moça, formosa, desencaminhada e ao final, trágica a quem se
compadecia do fundo da alma, porque já era muito tarde para que voltasse atrás e aplicasse sua recém adquirida
sabedoria às decisões passadas.
Embora possivelmente não seja muito tarde para aqueles de nós bastante afortunados para ter cometido
pecados menos irrevogáveis, pensou ele.
Ao final, ela escutou uma chamada na porta do castelo e entrou em pânico ante a possibilidade de que a
apanhassem literalmente com as mãos manchadas de sangue por um assassinato que se cometeu fazia muito
tempo.
-Vem, me dê a mão... - disse a um invisível MacBeth enquanto afundava os dedos em seu também invisível
braço. Quem desfaz o fato?... À cama.
Virou-se nesse momento e, embora só se movesse alguns passos dentro do reduzido espaço, pareceu que
atravessava a toda velocidade uma enorme distância, com o pânico e o horror acompanhando-a a cada passo.
Acabou, tal e como começara, de costas à audiência.
Produziu-se um momento de absoluto silêncio... e a seguir um prolongado, genuíno e ensurdecedor aplauso.
Rannulf se sentiu invadido pelo alívio e se deu conta, não sem certo assombro, de que estava à beira do pranto.
Roy-Hill assobiou.
Lorde Braithwaite ficou em pé de um salto. - Bravo! – gritou - Bravo, senhorita Law!
-
Onde aprendeu a atuar assim, Jude? - perguntou seu irmão - Não tinha a menor ideia.
Entretanto, ela estava agachada no chão, apoiada sobre um joelho e ainda de costas ao resto da sala,
recolhendo o cabelo antes de ocultá-lo sob a touca uma vez mais. Rannulf atravessou a sala para lhe oferecer a
mão.
-
Muito obrigado, senhorita Law - disse. - Foi uma atuação magnífica e um final do mais adequado para
nosso jogo. Eu não gostaria de ser quem se apresentasse a seguir.
Ela voltava a ser Judith Law, com o rosto ruborizado pela vergonha. Colocou a mão sobre a sua, mas
continuou com a cabeça curvada enquanto se apressava a chegar à cadeira que ocupou junto à senhora Law sem
olhar ninguém.
A senhora Law, percebeu Rannulf, estava enxugando os avermelhados olhos com um lenço. Agarrou uma
das mãos de sua neta e lhe deu um forte aperto, embora não dissesse nada.
Rannulf se afastou.
-
Mas minha querida senhorita Law - disse lady Beamish, - por que cobre esse maravilhoso e lindo cabelo
sendo tão jovem como é?
Os olhos de Judith se abriram de par em par pela surpresa, descobriu Rannulf quando voltou a olhá-la.
Descobriu também nesse mesmo instante que era o centro de atenção de todos os cavalheiros.
-
Lindo, senhora? – perguntou - Bom, eu não acredito. É da cor do diabo, conforme sempre disse meu pai.
Minha mãe sempre disse que tem a cor das cenouras. A cor do diabo mesmo! Seu próprio pai havia dito isso?
-
Bom - disse a avó de Rannulf com um sorriso, - Eu o compararia com um ardente entardecer tingido de
ouro, senhorita Law. Mas seguro que a estou envergonhando. Rannulf...
-
Já se tem feito bastante tarde, lady Beamish - disse lady Effingham com firmeza antes de ficar em pé, - já
que minha sobrinha decidiu prolongar o entretenimento e converter-se no centro da atenção. Foi muito amável
com ela e lhe agradeço muito semelhante condescendência, mas já chegou à hora de irmos.
Teve que trazer as carruagens à parte dianteira, carregados com a bagagem que se precisou para trocar-se de
roupa depois da festa ao ar livre, e as criadas e os valetes que vieram de Harewood. Mas em meia hora os
convidados se puseram em marcha e Rannulf pôde acompanhar sua avó até o quarto. Sua pele tinha uma cor
quase cinzenta pelo cansaço, percebeu, embora ela jamais admitisse tal coisa.
-
Foi tudo muito agradável - afirmou à anciã - A senhorita Effingham estava especialmente encantadora
vestida de rosa.
Usava um vestido rosa? Nem sequer havia notado.
-
Entretanto, tem muito pouca compostura – acrescentou - É claro, só teve como exemplo sua mãe e lady
Effingham tem uma desagradável tendência à vulgaridade. A jovem esteve flertando durante o jantar e mais tarde
com todos os cavalheiros que tinha ao alcance só porque você não estava ao seu lado, conforme acredito,
Rannulf. É um comportamento deplorável em uma jovem que ainda espero que se converta em sua noiva. Está
satisfeito com ela?
-
Só tem dezoito anos, vovó - disse ele - Não é mais que uma menina. Maturará com o tempo.
-
Suponho que sim. - Sua avó exalou um suspiro quando chegaram ao alto da escada - Lorde Braithwaite é
todo um gênio do humor. É capaz de causar hilaridade a partir das circunstâncias mais correntes e não se
preocupa que zombem dele. Mas a senhorita Law... ! Tem essa classe de talento que a faz se sentir humilde e
honrada de estar em sua presença.
-
Assim é - disse Rannulf.
-
Pobre moça. - A anciã suspirou de novo. - É linda além das palavras e nem sequer sabe. Seu pai deve ser
um desses clérigos puritanos e amargurados. Como é possível que tenha dito umas coisas tão espantosas sobre
esse glorioso cabelo?
-
Me atreveria a dizer, vovó - disse ele, - que viu o muito que a olham alguns de seus paroquianos e chegou
à conclusão de que deve haver algo pecaminoso em sua aparência.
-
Estúpido! É um destino terrível ser pobre e mulher, não parece? - disse a anciã. - E que a deixem nas
mãos da caridade de alguém como Louisa Effingham... Mas ao menos a senhorita Law tem a sua avó. Gertrude a
adora.
Quem desfaz o fato... ? Essa frase que ela tinha pronunciado como lady MacBeth seguia rondando a cabeça
de Rannulf depois que sua avó entrou no quarto de vestir e ele se retirou a seu próprio quarto.
Era a pura verdade. Não podia voltar atrás e cavalgar a sós em busca de ajuda depois de encontrar a
diligência tombada. Não podia devolver sua virgindade. Não podia apagar o dia e meio nem as duas noites nos
quais tinham falado, rido e se amaram e nos que estava disposto a persegui-la onde fosse, até os limites do
mundo se tivesse sido necessário.
Não podia voltar atrás e mudar nada daquilo.
De algum jeito, apaixonou-se por Claire Campbell, admitiu finalmente para si mesmo. Não se tratava
somente de luxúria. Havia mais sentimentos implicados. Não estava apaixonado por Judith Law, mas havia algo...
e não era pena. Teria causado repulsão se não tivesse podido sentir mais que compaixão por ela. Tampouco se
tratava de luxúria, apesar de desejá-la com todas as suas forças deitar-se com ela, por ignominioso que parecesse.
Não se tratava de... Para falar a verdade, não sabia do que se tratava. Nunca fora dado às emoções profundas.
Tinha tingido seu mundo com um lânguido e aborrecido cinismo desde que tinha uso de razão.
Como poderia definir o que sentia por Judith Law quando não tinha referência alguma com a que
compará-lo? Não obstante, de repente recordou seu sereno, sombrio, sério, sempre correto, sempre responsável
irmão Aidan, que tinha aceitado um posto na cavalaria do exército no dia de seu décimo oitavo aniversário, tal e
como estava previsto desde que nasceu. Aidan, que recentemente se casou sem dizer a ninguém da família, nem
sequer a Bewcastle, e que depois vendera seu cargo no exército para viver com sua nova esposa, só porque fez
um juramento solene ao moribundo irmão da jovem, um oficial com o qual serviu na Península. Rannulf tinha
acompanhado Aidan de Londres até a propriedade de sua esposa na primeira etapa de sua viagem até
Grandmaison e conhecera lady Aidan... e aos dois meninos que tinha adotado.
Rannulf tinha observado com estupefação como os dois meninos saíam correndo da casa para saudar Aidan,
a pequena chamando-o de papai, e ele os abraçava e lhes demonstrava o mesmo afeto como se fossem os
amados frutos de sua semente. Já a seguir tinha olhado sua esposa, que se aproximava devagar depois dos
meninos, e a tinha rodeado com seu braço livre antes de beijá-la.
Sim, pensou Rannulf, esse podia ser seu ponto de referência. Esse momento no qual Aidan tinha rodeado
Eve com o braço e a tinha beijado; esse momento no qual tinha parecido jovem, humano, exuberante, vulnerável
e invencível ao mesmo tempo.
Só havia uma palavra para descrever o que tinha presenciado. Amor.
Caminhou de forma impulsiva até seu quarto de vestir em busca do casaco que pendurava no armário.
Remexeu no interior do bolso até que achou o que estava procurando. Puxou-o, tirou o papel marrom que o
envolvia e contemplou a barata caixinha de rapé com o horrível porco gravado na tampa. Riu baixo, fechou os
dedos em torno da caixa e sentiu uma tristeza quase agonizante.
CAPÍTULO 14
Judith voltou para casa na última carruagem com sua avó, tinha demorado mais que outros em preparar-se
para partir e tinha pedido a Judith em duas ocasiões se teria a amabilidade de retornar ao quarto onde se trocou
para assegurar-se de que não tinha esquecido nada. Quando chegaram a Harewood já era muito tarde. Todos os
convidados se retiraram a seus aposentos para dormir. Tia Effingham a esperava no vestíbulo.
-
Judith - disse com um tom que não pressagiava nada bom, - ajudará mamãe a chegar a seus aposentos e
depois se reunirá comigo na saleta.
-
Eu também vou, Louisa - disse sua mãe.
-
Mãe - começou lady Effingham lançando a anciã um desanimado olhar, embora fizesse um intento por
suavizar o tom de voz, - é tarde e está cansada. Judith a levará para cima e chamará Tillie se não a estiver
esperando. Ela a ajudará a se despir e a deitar e também lhe levará uma xícara de chá e um tônico que a ajude a
conciliar o sonho.
-
Não quero me deitar nem tomar uma xícara de chá -replicou a anciã com firmeza - Irei a saleta. Judith,
carinho, importaria de me oferecer seu braço de novo? Suponho que passei muito tempo sentada no
caramanchão esta tarde. O vento me deixou rígidas todas às articulações.
Judith estava esperando o sermão que claramente estava a ponto de receber. Não podia acreditar que tivesse
ousado atuar diante de uma audiência... Sem dúvida seu pai a teria castigado fazendo-a passar toda uma semana
em seu quarto a pão e água por ter feito algo semelhante em casa. Inclusive se tivesse soltado o cabelo. Tinha
atuado e tinha reagido ante a audiência, que a tinha obsequiado com sua mais absoluta atenção apesar de não ter
sido consciente disso naquele instante. Transformou-se em lady MacBeth. Tinham gostado tanto que tinham
aplaudido e a tinham elogiado. O que fez não podia ser tão mau. Todos os outros fizeram o possível para
entreter ao resto, e nem todos através da música. Ela era uma dama. E tão convidada de lady Beamish como
qualquer outra pessoa que estivesse presente.
Lady Beamish lhe havia dito que seu cabelo era maravilho e lindo. De que outra maneira o havia descrito?
Judith franziu o cenho enquanto subia a escada muito devagar ao lado de sua avó, seguidas por tia Effingham.
Eu o compararia com um ardente entardecer tingido de ouro. Lady Beamish, embora fosse uma mulher de
maneiras impecável não era dada a adulações frívolas e falsas, suspeitava Judith. Seria possível, pois, que alguém
pudesse ver seu cabelo dessa maneira. Um ardente entardecer tingido de ouro.
-
Estes brincos me machucam tanto como os outros - disse sua avó enquanto os tirava quando entravam
na saleta. - Bem que os usei durante toda a tarde é claro. Onde os ponho para que não se percam?
-
Dê-me vovó - disse Judith, que os apanhou e os guardou em sua bolsa, onde poderiam estar seguros - Os
deixarei no porta-joias quando subirmos.
Horace estava na sala, percebeu Judith ao entrar, sentado sobre o braço de uma poltrona com uma taça de
algum licor escuro na mão, balançando uma perna de forma indolente enquanto a olhava com insalubre
insolência. Julianne também estava ali, secando-os olhos com um lenço debruado de renda.
-
Sente-se melhor, Horace? - perguntou a avó - foi uma verdadeira lástima que se sentisse indisposto e
perdesse o jantar e os entretenimentos posteriores no salão.
-
Indisposto, vovó? - Horace se pôs a rir - Só era a indisposição que provoca o aborrecimento. Sei por
experiência quão aborrecida podem ser as noites em casa de lady Beamish.
Judith, com um nó no estômago por causa da repugnância, tentou não olhá-lo nem escutar sua voz.
-
Foi uma noite espantosa - afirmou Julianne. - Estive sentada a meia mesa de distância de lorde Rannulf
durante o jantar, e ele não protestou pela disposição dos assentos, embora estivesse na casa de sua avó. E eu que
acreditava que lady Beamish estava promovendo nosso enlace... Seguro que a convenceu para que me mantivesse
separada dele. Não gosta. Não vai pedir minha mão. Nem sequer me aplaudiu com mais entusiasmo que a lady
Margaret quando toquei o piano e isso que eu toquei muitíssimo melhor que ela. E nem sequer me pediu um bis.
Nunca me senti mais humilhada em toda a vida. Nem tão infeliz. Odeio-o, mamãe. Odeioo!
-
Ah certo, queridinha - disse sua mãe com intenção de tranquilizá-la. Embora fosse evidente que sua
cabeça estava em assuntos que nada tinham que ver com o mal-estar de sua filha - E agora, senhorita Judith Law,
vai ser você tão amável de explicar-se.
-
Explicar-me, tia? - perguntou Judith enquanto ajudava sua avó a sentar-se em seu lugar de costume junto
ao fogo. Decidiu que não se deixaria acovardar. Não fez nada errado.
-
Qual - perguntou sua tia - foi o propósito do vulgar espetáculo que deu esta noite? Estava tão
envergonhada que apenas fui capaz de manter a compostura. Seu pobre tio foi incapaz de articular palavra no
caminho de volta para casa e se encerrou na biblioteca ao chegar.
-
Santo céu! Prima - disse Horace com certa ironia, - o que é que fez?
Entretanto, antes que Judith pudesse pensar em uma réplica adequada para sua tia, sua avó interveio.
-
Vulgar, Louisa? – perguntou - Vulgar? Judith concordou depois ser persuadida, igual o fez o resto dos
jovens que entretiveram os convidados. Representou uma cena e posso lhe dizer que jamais contemplei uma
atuação melhor. Surpreendeu-me e deleitou-me. Emocionou-me tanto que estive a ponto de me pôr a chorar. Foi
em muito a melhor interpretação da noite e é evidente que todos, ou quase todos, compartilhavam minha
opinião.
Judith olhou sua avó com estupefação. Jamais a escutara falar de um modo tão apaixonado. Estava zangada
de verdade, comprovou. Atirava faíscas pelos olhos e tinha as faces avermelhadas.
-
Mãe - replicou tia Louisa, - acredito que seria melhor que ficasse à margem deste assunto. Uma dama não
solta o cabelo em público e se converte no centro de atenção de todos com semelhante... dramatismo.
-
Santo céu! - disse Horace, que estalou a língua e levantou o copo em direção a Judith, - de verdade fez
isso prima?
-
Uma dama solta o cabelo à noite - prosseguiu a anciã. - E quando começa a andar sonâmbula não tem
tempo de tornar a prendê-lo Judith não era ela esta noite, Louisa. Era lady MacBeth. Disso se tratava, de
inundar-se no personagem, de fazer que este adquirisse vida para os espectadores. Embora claro, não espero que
você compreenda.
A Judith surpreendia que sua avó sim o fizesse.
-
Sinto muito a ter incomodado, tia Louisa – disse - Mas não posso me desculpar por servir de
entretenimento ao grupo quando tanto lorde Rannulf Bedwyn como lady Beamish insistiram que o fizesse.
Tivesse sido imperdoável me mostrar tímida. Assim que me decidi a fazer algo que acreditei poder fazer bem.
Não compreendo por que tem tanta aversão ao teatro. Parece-se com meu pai nesse aspecto. Nenhum outro
convidado pareceu escandalizar-se. Mas bem justamente o contrário, de fato…
Sua avó lhe tinha segurando uma das mãos e a estava esfregando como se estivesse fria.
-
Devo supor, minha querida Judith - começou sua avó - que seu pai jamais lhe contou isso, não é? Nem
ele nem Louisa nunca chegaram a perdoar seu avô pelo que lhes fez, e ambos estiveram fugindo disso toda sua
vida. Embora nenhum dos dois teria vida se seu avô não o tivesse feito.
Judith a olhou com o cenho franzido, sem compreender.
-
Mãe! - exclamou tia Louisa com brutalidade. - Já é suficiente. Julianne...
-
Seu avô me conheceu no salão do teatro Covent Garden de Londres - explicou à anciã. - Disse que se
apaixonou por mim muito antes disso, quando me viu no cenário, e eu sempre acreditei apesar de que todos os
cavalheiros estavam acostumados a dizer coisas parecidas... E houve um grande número deles. Seu avô se casou
comigo três meses depois e passamos trinta e dois maravilhosos anos juntos.
-
Vovó? - Julianne estava totalmente estupefata. - Foi atriz! Senhor, isto é intolerável. Mamãe, o que
acontecerá se lady Beamish descobrir? E lorde Rannulf? Morrerei de vergonha. Juro que o farei.
-
Ah, ah - murmurou Horace.
A anciã deu uns tapinhas na mão de Judith.
-
Quando a vi em menina, soube que você era a que mais se parecia comigo, carinho - disse - Esse cabelo!
Seu pobre pai e sua mãe estavam horrorizados porque sugeria uma exuberância imprópria para uma menina
criada na reitoria; como também sugeriam que talvez tivesse herdado algo mais de sua escandalosa avó. Quando a
vi esta noite, foi como ver a mim mesma faz cinquenta anos. Salvo que você é muito mais linda do que eu jamais
fui, e também muito melhor atriz.
-
Vovó... -disse Judith, que apertou a mão gordinha cheia de anéis entre as suas. De repente uma boa parte
de sua própria vida adquiria sentido. Uma grande parte.
-
Pois bem, não tolerarei este comportamento, jovenzinha - interveio tia Louisa. - Envergonhou a mim e a
minha jovem e impressionável filha diante de convidados que selecionei entre a flor e nata da sociedade, assim
como diante de lady Beamish e do filho de um duque que está cortejando Julianne. Recordo-a que está aqui
graças à gentileza e a caridade de seu tio. Ficará aqui uma semana mais, já que a necessitarei para atender as
necessidades de sua avó. Amanhã escreverei a meu irmão para lhe dizer que estou muito aborrecida contigo. Não
há dúvida de que não se surpreenderá o mínimo. Oferecerei me encarregar de uma de suas irmãs em seu lugar.
Nesta ocasião pedirei de forma explícita que seja Hilary, que é bastante jovem para saber qual é seu lugar. E você
voltará para sua casa desonrada.
Horace voltou a estalar a língua. - Prima - disse - Só durou uma semana. - Judith deveria sentir-se aliviada e
até mesmo eufórica. Ia para casa? Embora seu pai se inteiraria de todo o referente à atuação em casa de lady
Beamish. E Hilary se veria obrigada ocupar seu lugar em Harewood.
-
Se Judith se for, eu também o farei - declarou sua avó - Venderei algumas de minhas joias, Judith. Deve
saber que valem uma fortuna. Compraremos uma casinha em algum lugar e juntas nós faremos um lar ali e
levaremos Tillie.
Judith lhe apertou a mão de novo.
-
Vamos, vovó - disse - É tarde e está chateada e cansada. A ajudarei chegar a seu quarto. Falaremos pela
manhã.
-
Mamãe? - choramingou Julianne. - Não está me escutando. Seguro que já não se preocupa por mim. O
que vou fazer com lorde Rannulf? Tenho que me casar com ele. Mal me deu atenção esta noite. E agora vai
descobrir que sou a neta de uma atriz!
-
Minha queridíssima Julianne - começou sua mãe, - há muitas maneiras de apanhar um marido. Será lady
Rannulf Bedwyn antes que termine o verão. Confia em mim.
Horace sorriu com malícia a Judith quando ela passou ao lado com sua avó apoiada em seu braço.
-
Recorda o que a adverti, prima - disse em voz baixa.
Durante a semana seguinte, Rannulf passou as manhãs, e inclusive uma ou outra tarde, com o administrador
de sua avó aprendendo os pormenores dos trabalhos de um imóvel.
Surpreendeu-se ao descobrir que desfrutava estudando os livros de contabilidade e outra série de
documentos legais tanto como quando cavalgava pelos terrenos agrícolas da propriedade e as granjas dos
arrendatários a fim de vê-las com seus próprios olhos e falar com os granjeiros e trabalhadores. Embora se
cuidasse muito em um aspecto.
-
Não a estou ofendendo, não é, vovó? - perguntou durante desjejum uma manhã, enquanto lhe segurava
uma magra mão de pele quase transparente sulcada por veias azuladas, a sustentava com supremo carinho. - Não
estarei dando a impressão de que estou fazendo com o controle como se já fosse o amo e senhor, não é? Deve
saber que desejaria que vivesse ao menos dez ou vinte anos mais.
-
Não estou segura de que fiquem as forças necessárias para lhe dar o gosto –replicou. - Mas está
iluminando meus últimos dias, Rannulf. Não esperava isso, confesso, mas sim estava convencida de que
aprenderia com rapidez e faria um bom trabalho quando eu já não estivesse. É um Bedwyn apesar de tudo, e os
Bedwyn sempre levaram o dever muito a sério, sem importar o que outros digam deles.
Ele levou a mão aos lábios e a beijou.
-
Agora bem, se pudesse vê-lo casado - prosseguiu ela, - minha sorte seria completa. Mas é Julianne
Effingham a mulher adequada para você? Esperava que fosse. É uma vizinha, sua avó é uma de minhas melhores
amigas e, além disso, é jovem e bonita. O que opina, Rannulf?
Tinha acalentado a esperança de que sua avó mudasse de opinião e deixasse de lhe impor esse enlace. Ao
mesmo tempo sabia que a anciã se sentiria um pouco decepcionada se não se casasse logo.
-
Acredito que será melhor que siga visitando Harewood a cada dia – disse - A festa campestre acabará em
uma semana. E ainda resta o grande baile. Prometi que consideraria com seriedade a moça e assim o farei, vovó.
Entretanto, à medida que avançava a semana descobriu que o problema era que jamais chegaria a gostar da
senhorita Effingham por muito que a conhecesse. A jovem seguia fazendo caretas quando se negava a dar
atenção cada minuto de cada hora de cada dia e seguia insistindo em castigá-lo paquerando com outros
cavalheiros. Seguia tagarelando sobre ela mesma e seus lucros e conquistas cada vez que estava com ele e ria
como uma estúpida com suas adulações. Conseguia que se sentisse mais aborrecido que uma ostra. E é óbvio sua
mãe não deixava de fazer tudo que estava em sua mão para que estivessem juntos. Sempre acabavam sentados
um ao lado do outro quando jantava em Harewood, coisa que acontecia quase todas as noites. Sempre
compartilhavam a carruagem se ia a alguma das numerosas excursões a diferentes lugares de interesse. Sempre o
queriam para que passasse as páginas das partituras.
Às vezes pensava que talvez continuasse com suas visitas a Harewood nem tanto por agradar sua avó mais
pela esperança de conversar em particular com Judith Law. Temia que depois de tudo tivesse cometido um
engano imperdoável ao obrigá-la a atuar em Grandmaison. Nunca a tinha visto muito em Harewood, mas os
últimos dias sobressaiam por sua ausência. Jamais se sentava à mesa para jantar. Como tampouco o fazia à anciã.
Jamais se unia às excursões nem às atividades ao ar livre. Nas poucas ocasiões nas quais aparecia no salão à noite,
comportava-se mais que nunca como uma dama de companhia para a senhora Law e se retirava cedo com ela.
Rannulf percebeu uma coisa imediatamente. Quando Tanguay a convidou que jogasse cartas como seu par,
lady Effingham lhe informou que sua mãe se encontrava indisposta, que precisava que a senhorita Law a
acompanhasse a seus aposentos e ficasse com ela. Quando Roy- Hill a convidou a unir-se ao grupo para que
tocasse piano, a senhorita Effingham informou que sua prima não tinha o menor interesse em algo relacionado
com a música. Quando todos decidiram jogar charadas uma noite e Braithwaite a escolheu em primeiro lugar
para que estivesse em sua equipe, lady Effingham comunicou que à senhorita Law sentia dor de cabeça e que
tinha permissão para partir do salão nesse mesmo momento.
Os convidados varões se deram conta por fim da existência de Judith Law. E lady Effingham a estava
castigando por esse motivo. Entretanto, Rannulf tinha plena consciência de que ele era o único responsável.
Tinha cometido um engano. Tinha piorado sua vida em lugar de melhorá-la. E por isso não fez intento algum de
falar com ela quando sua tia ou sua prima se encontravam perto. Não queria piorar a situação ainda mais.
Esperaria o momento adequado.
Todo mundo foi ao povoado um dia antes ao grande baile, inclusive lady Effingham, dado que a maioria dos
convidados precisavam fazer algumas compra para a ocasião. Rannulf tinha declinado o convite de unir-se à
comitiva. Sua avó decidiu aproveitar essa oportunidade para visitar a senhora Law com a esperança de encontrar
a casa em calma. Rannulf a acompanhou apesar de assegurar que não era necessário.
-
Não as incomodarei, vovó - tranquilizou-a - Darei um passeio depois de apresentar meus respeitos à
senhora Law.
Tinha albergado a esperança de convidar Judith Law que o acompanhasse, mas a moça não se encontrava no
salão.
-
Está em seu quarto escrevendo cartas a suas irmãs, acho - disse a senhora Law quando Rannulf se
interessou pela saúde de sua neta. - Embora não vejo o motivo, já que as verá muito em breve.
-
As irmãs da senhorita Law virão a Harewood? - perguntou lady Beamish. - Seguro que adorará isso.
A senhora Law suspirou.
-
Uma delas o fará – respondeu. - Mas Judith volta para casa.
-
Lamento ouvir isso - replicou lady Beamish. - Sentirá muito sua falta, Gertrude.
-
Sim - admitiu a senhora Law. - Muitíssimo.
-
É uma jovenzinha encantadora - afirmou lady Beamish. - E quando atuou para nós faz uns dias percebi
sua extraordinária beleza. E o talento que tem. Herdou-o de você, é claro.
Rannulf se desculpou e saiu ao exterior. Era um dia frio e nublado, embora a chuva não fizesse presença.
Caminhou em direção à colina que se elevava a costas da mansão. Não esperava ver Judith Law ali, mas
dificilmente poderia ir a seu quarto e chamar a sua porta.
A moça se encontrava de novo no lago, embora não nadasse nessa ocasião, mas estava sentada diante do
salgueiro com as mãos enlaçadas sobre os joelhos e com o olhar perdido na água. Tinha a cabeça descoberta,
com o cabelo trançado e recolhido na nuca, enquanto o chapéu -que lhe tinha comprado- descansava a seu lado
sobre a erva. Não havia sinais de nenhuma touca. Usava um casaco de manga larga sobre o vestido.
Desceu a colina muito devagar, sem intenção alguma de ocultar que se aproximava. Não queria surpreendê-la
nem assustá-la. A moça o escutou quando estava a meio caminho e olhou por cima do ombro um momento
antes de retomar a postura anterior.
-
Parece ser que lhe devo desculpas - disse ele - Embora suponha que uma mera desculpa seja bastante
inapropriada... - ficou atrás dela e apoiou um ombro contra o tronco da árvore.
-
Não me deve nada - replicou ela.
-
Vão enviá-la de volta pra casa - disse ele.
-
Não acredito que isso possa considerar-se como um castigo, não lhe parece? -perguntou.
-
E uma de suas irmãs vai ocupar seu lugar nesta casa.
Inclusive à sombra da árvore e com o céu nublado, o cabelo preso sobre seu alto da cabeça parecia brilhar
com o fulgor do ouro e do fogo.
-
Sim. - Viu-a inclinar a cabeça até deixar a testa apoiada sobre os joelhos, em uma postura que começava a
reconhecer como característica da moça.
-
Não deveria ter me intrometido - disse. O eufemismo do século. - Sabia que a pessoa com mais talento da
sala ainda não tinha atuado e não pude resistir a persuadi-la.
-
Não tem que lamentar nada - assegurou ela. - Me alegro que acontecesse. Passou tempo sonhando
fazendo justo o que fiz quando lady Beamish e você insistiram em que contribuísse com algo para a diversão
geral. Foi o primeiro ato que fiz por vontade própria desde que cheguei aqui. Ajudou-me a compreender quão
desgraçada fora. Fui muito mais feliz estes últimos dias, embora talvez não lhe seja evidente durante as poucas
vezes que me viu. Vovó e eu decidimos que é melhor para mim me comportar como todos esperam quando me
vir obrigada a permanecer com os outros, mas reduzimos essas ocasiões ao mínimo. Quando estamos juntas
falamos como nunca e rimos e nos divertimos. Ela... - Levantou a cabeça e pôs-se a rir entre dentes - Gosta de
escovar meu cabelo durante ao menos meia hora. Diz que faz bem a suas mãos... e a seu coração. Acredito que
contribui para que sua mente esqueça todas essas enfermidades imaginárias. Está muito mais animada, muito
mais alegre quando cheguei.
Recordou com total precisão o momento em que ele se ajoelhou atrás dela na cama do Rum e o Tonel para
lhe escovar o cabelo antes de fazer amor.
-
Sentirá muitas saudades quando for - disse ele.
-
Quer vender algumas de suas joias e comprar uma casinha em algum lugar para que possamos viver
juntas - explicou Judith. - Embora não acredito que isso chegue a acontecer. De qualquer maneira não deve
sentir-se culpado por ser o causador involuntário de tudo o que está acontecendo. Alegra-me que tenha
acontecido. Aproximou-me muito mais de minha avó e agora entendo minha vida muito melhor.
Não lhe explicou nada mais, mas ele recordou de repente algo que foi dito fazia escassos momentos.
-
Minha avó diz que herdou seu talento da senhora Law - comentou.
-
Ah, assim lady Beamish sabe - disse ela - E você também? Minha tia e minha prima estão horrorizadas
pela possibilidade de que qualquer de vocês descubra a verdade.
-
Que sua avó foi atriz? - perguntou enquanto se separava da árvore para sentar-se na erva junto a ela.
-
Em Londres. - percebeu que Judith estava sorrindo. - Meu avô se apaixonou por ela ao vê-la no cenário,
foi conhecê-la no salão do Covent Garden e se casaram três meses depois, para o imperecível espanto de sua
família. Minha avó era a filha de um comerciante de tecidos. Tinha tido muito êxito como atriz e tinha uma legião
de admiradores entre os cavalheiros. Deve ter sido muito linda, embora também fosse ruiva, como eu.
Era difícil imaginar à senhora Law como uma linda jovem ruiva, perseguida pelos dândis e os galãs da época.
Embora não impossível. Inclusive nesse momento em que estava gorda, velha e grisalha, possuía certo encanto e
sua pessoa enfeita de joias sugeria certa excentricidade de caráter que ia em consonância com seu passado como
atriz. Bem poderia ter sido uma beleza em sua juventude.
-
Manteve sua forma até que meu avô morreu - disse Judith. - Foi então quando começou a comer para
consolar-se, ou isso me disse. Mais tarde se transformou em um costume. Parece-me muito triste que desfrutasse
de um matrimônio tão feliz e que seus dois filhos, tanto meu pai como minha tia, se envergonhem dela e de seu
passado, não acha? Eu não me envergonho dela.
Rannulf havia segurado sua mão antes de dar-se conta.
-
Por que deveria se envergonhar quando ela é a responsável por sua beleza, seu talento e a riqueza de sua
personalidade? - perguntou-lhe.
E, entretanto, pensou enquanto pronunciava essas palavras, os Bedwyn estariam à frente daqueles dispostos
a evitar uma mulher de ascendência tão desonrosa. Surpreendia-lhe que sua avó, até sabendo a verdade a respeito
de sua amiga, considerasse Julianne Effingham uma noiva adequada para ele, por impecável que fosse sua
linhagem paterna. Bewcastle bem poderia considerar o assunto de uma maneira muito diferente.
-
Me diga uma coisa - pediu, com uma repentina tensão e urgência na voz - E peço que seja sincero. Por
favor. Sou bonita?
E de repente Rannulf compreendeu tudo: compreendeu por que a ensinaram a ver seu cabelo como um
motivo de vergonha e rubor; por que a tinham animado a acreditar que era feia. Cada vez que seu pai, o reitor, a
olhasse teria uma lembrança da mãe que poderia pô-lo sob suspeita ante seus paroquianos e seus pares se
chegassem a saber da verdade. Sua segunda filha sempre deve ter lhe parecido uma cruz a carregar.
Levantou-lhe o queixo com a mão livre e lhe virou a cabeça para que o olhasse no rosto. Tinha as faces
avermelhadas pelo espanto.
-
Conheci muitas mulheres, Judith - disse - admirei as mais lindas, adorando a algumas inalcançáveis a
distância, perseguindo outras com certa perseverança. É o que os cavalheiros ricos, ociosos e aborrecidos como
eu estamos acostumados a fazer. E posso afirmar com total sinceridade que jamais vi uma mulher cuja beleza
possa equiparar-se à sua.
Seria verdade essa afirmação tão desmedida? Seria de verdade tão linda? Ou era somente porque esse
encantador pacote continha Judith Law? Não importava. Apesar de tudo, esse batido clichê segundo o qual a
beleza residia no coração encerrava uma grande verdade.
-
É linda - repetiu antes de inclinar a cabeça e depositar um ligeiro beijo em seus lábios.
-
Sou? - Seus olhos verdes estavam marejados de lágrimas quando ele levantou a cabeça. - Não sou vulgar?
Não tenho um aspecto vulgar?
-
Como poderia a beleza ser vulgar? - perguntou-lhe.
-
Quando os homens me olham – confessou - e me vêm de verdade, olham-me com lascívia.
-
Isso é porque a beleza feminina acordada o desejo nos homens - explicou-lhe - E quando não existe o
controle ou se carece de galanteria, quer dizer, quando o homem não é um cavalheiro, aparece a lascívia.
-
Você não me olhou assim - disse ela.
Ele se sentiu envergonhado. Apenas vê-la e a tinha desejado e a tinha perseguido Nem mais nem menos que
por pura luxúria.
-
Não o fiz? - perguntou.
Ela negou com a cabeça.
-
Havia algo em seus olhos – disse - apesar de suas palavras e seus atos. Um pingo de... humor, talvez. Não
sou capaz de defini-lo. Não me provocou repulsa. Me fez sentir... feliz.
Que Deus o ajudasse.
-
E me fez sentir linda - acrescentou. Esboçou um lento sorriso. - Pela primeira vez na vida. Obrigada.
Rannulf engoliu em seco com desconforto. Merecia que o açoitassem pelo que lhe fez. E em troca lhe
agradecia.
-
Será melhor que voltemos para a casa - disse a moça, que levantou a vista quando lhe retirou a mão do
queixo. - Acredito que vai chover.
Ficaram em pé e uma vez que sacudiram as fibras de erva, Judith colocou o chapéu com supremo cuidado
sobre o cabelo e atou as fitas a um lado do queixo com um enorme laço. Sem a touca sob o boné, sua beleza era
deslumbrante.
-
Eu subirei a colina e você pode rodeá-la para voltar a entrar pela frente - disse-lhe.
Mas a ele tinha ocorrido uma ideia melhor, embora nem a tinha meditado nem desejasse fazê-lo.
-
Vamos juntos – propôs. - Não há ninguém que possa nos ver.
Ofereceu-lhe o braço e ela aceitou depois de duvidar um instante; depois, os dois subiram a colina juntos
enquanto lhes caía em cima uma ou outra gota de chuva.
-
Suponho que deve aborrecer-se muito no campo - disse - Embora não se somou a muitas das atividades
programadas para esta semana.
-
Estou aprendendo a levar os cultivos e a administração da propriedade - explicou - e estou me divertindo
muitíssimo.
Ela virou a cabeça para olhá-lo.
-
Está se divertindo? -pôs-se a rir. Ele a imitou.
-Também me surpreendeu - confiou-lhe - Granddmaison será meu chegado o momento, e contudo, jamais
me tinha interessado por seu funcionamento. Agora sim. Assim já pode imaginar dentro de uns anos,
percorrendo com passo lento minha propriedade com um cão desgrenhado preso aos calcanhares, um casaco
folgado sobre os ombros e sem mais assunto de conversa que as colheitas, as drenagens e o gado.
-
É difícil de imaginar. - A moça pôs-se a rir de novo. - Me conte isso O que aprendeu? O que viu? Tem
planejado fazer mudanças quando a propriedade for sua?
A princípio Rannulf acreditou que as perguntas nasciam das boas maneiras, mas logo se deu conta de que
estava realmente interessada. De maneira que falou durante todo o caminho de volta a casa sobre temas que o
teriam feito bocejar apenas duas semanas atrás.
As duas anciãs continuavam no salão onde Rannulf as deixou. Judith teria soltado de seu braço antes de
entrar na casa e teria se retirado a seu quarto, mas ele não permitiu. - Só são minha avó e a sua – disse. - Ninguém
retornou ainda do povoado.
Manteve seus braços enlaçados quando entraram na sala e ambas as mulheres levantaram a vista.
-
Me encontrei com a senhorita Law quando estava passeando – explicou - e desfrutamos de nossa mútua
companhia durante toda esta hora.
Rannulf percebeu que os olhos de sua avó se aguçaram imediatamente.
-
Senhorita Law - disse-lhe, - esse chapéu é encantador. Por que não o vi antes? O ar fresco deu um toque
de cor a suas faces. Venha e sente-se a meu lado para que me possa dizer onde aprendeu a atuar tão bem.
Rannulf também tomou assento depois de puxar a campainha a instâncias da senhora Law, a fim de ordenar
mais chá recém feito.
CAPÍTULO 15
Judith não estava segura de que devesse assistir ao baile de Harewood apesar de que sua avó havia dito que
estava obrigada a fazer presença, embora só fosse para lhe fazer companhia.
-
De qualquer forma, atreveria-me veria a dizer que todos os jovens competirão para dançar contigo assegurou - notei o muito que mudou sua atitude para com você durante esta semana, carinho, tal e como deve
ser. É minha neta, igual à Julianne ou Branwell.
Era uma perspectiva bastante tentadora, devia admitir Judith, assistir a um baile e pares com os quais dançar.
Sempre tinha desfrutado muitíssimo dos bailes que celebravam no povoado. Nunca lhe tinha faltado par.
Naquela época tinha pensado que todos se mostravam muito amáveis ao dançar com ela, embora tivesse
começado a forjar uma nova possibilidade em sua mente.
Jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.
Tinha muita vontade de assistir ao baile, mas lhe dava pavor que lorde Rannulf escolhesse tão famoso
acontecimento na festa campestre para anunciar seu compromisso com Julianne. Não seria capaz de suportar,
pensou Judith, nem de ver a expressão triunfal no rosto de sua prima e no de sua tia. Não seria capaz de suportar
a cínica resignação que apareceria no rosto do homem... e tinha a certeza de que essa seria sua expressão.
Estava a ponto de tomar a decisão de não assistir quando, ao retornar a seu quarto depois de tomar o café da
manhã cedo, encontrou-se com Branwell na escada.
-
Bom dia, Jude. - Colocou-lhe uma mão no ombro e lhe deu um beijo na face. - Tão madrugadora como
sempre, não é? Nesse caso será melhor que descanse esta tarde para estar linda. Todos os cavalheiros querem
dançar contigo esta noite e estiveram me pedindo que a convença, como se fosse eu que a tivesse proibido
participar de todas as atividades destas duas semanas. Suponho que foi tia Louisa - disse enquanto dava uma
olhada rápida a seu redor e baixava a voz. - Se quer saber a verdade, é humilhante ver que tratam a minha própria
irmã como se fosse uma espécie de criada só porque papai é um clérigo e tio George uma espécie de paxá.
-
Na realidade não me entusiasma muito o baile, Bran - disse a jovem.
-
Fofocas! – exclamou - Todas sempre gostaram dos bailes. Me escute, Jude, logo que tenha saldado
minhas dívidas com todos esses incômodos e insolentes comerciantes, vou embarcar em uma carreira
profissional e desbravar uma fortuna. E assim poderá retornar pra casa e tanto você como as demais encontrarão
maridos respeitáveis e tudo ficará bem.
Judith não havia dito a seu irmão que ia retornar pra casa -com desonra- nem que Hilary teria que ocupar seu
lugar em Harewood.
-
Mas como vai saldar suas dívidas, Bran? - perguntou a contra gosto. Tinha tentado não pensar nelas ao
longo da semana. Inclusive tinha pensado durante um embaraçoso momento em pedir ajuda a sua avó...
A alegre expressão de Bran se desmoronou um instante, embora não demorou para recuperar o sorriso e a
aparência despreocupada.
-
Já me ocorrerá algo - respondeu-lhe - Tenho toda a confiança do mundo. Não deve preocupar-se por
nada. O que tem que fazer é pensar no baile. Me promete que o assistirá, Jude?
-
Bom, está bem - respondeu de modo impulsivo antes de começar a subir de novo a escada. - Irei.
-
Esplêndido! - exclamou Bran a suas costas.
Assim, havia uma coisa mais que teria que fazer livremente antes de retornar a casa, decidiu. Iria ao baile. E o
faria tal e qual como era, não como essa parenta pobre a que mantinham afastada dos olhares dos outros com
tanta eficácia como se fosse uma monja. Dançaria com todos os cavalheiros que a convidassem. E se ninguém o
fizesse, se sentaria com sua avó e desfrutaria do acontecimento de qualquer modo. Se fosse anunciado o
compromisso de Julianne... Sua ousadia fraquejou por um momento e teve que aferrar-se ao trinco da porta de
seu quarto. Se fosse anunciado o compromisso de Julianne com lorde Rannulf, ergueria o queixo, esboçaria um
sorriso e lançaria mão de toda a dignidade própria de uma dama que fosse capaz de reunir.
Como era possível - perguntou-se enquanto entrava em seu quarto - que o fugaz beijo nos lábios do dia
anterior tivesse despertado suas emoções de uma forma tão poderosa como o fizeram os encontros sexuais
consumados na estalagem do mercado umas semanas atrás? Talvez porque naquele tempo não era mais que sexo
enquanto que o do dia anterior fora...? O que? Amor não. Ternura possivelmente? Lorde Rannulf havia dito que
era linda e depois a tinha beijado. Mas não com desejo; embora possivelmente também houvesse um pingo de
ambas as partes. Houve algo mais que desejo. Houve... sim, devia ser ternura.
Talvez depois de tudo, pensou, uma vez que retornasse a casa e separasse de sua mente a imagem de Julianne
casada com ele, seria capaz de recuperar seu sonho roubado e continuar vivendo de suas lembranças nos anos
vindouros.
-
O primeiro que pensei ao me inteirar do baile de Harewood - disse lady Beamish a seu neto, - foi que
seria o acontecimento perfeito para anunciar seu compromisso com Julianne Effingham. Tinha-lhe ocorrido essa
possibilidade, Rannulf?
-
Sim - respondeu ele com sinceridade.
-
E...?
Sua avó estava sentada frente a ele no salão do térreo, com um aspecto mais frágil e magro que nunca,
embora suas costas seguissem tão retas como o pau de uma vassoura e não se apoiava no respaldo da poltrona,
conforme comprovou Rannulf.
-
Segue sendo seu mais prezado desejo? - perguntou por sua vez. A anciã pareceu meditar durante uns
instantes antes de responder.
-
Meu mais prezado desejo? – repetiu - Não, Rannulf. Esse seria o de vê-lo feliz. Embora para isso tivesse
que continuar solteiro.
Acabava de liberá-lo... e de lhe impor a pesada carga do amor.
-
Não -replicou ele - Não acredito que permaneça solteiro, vovó. Logo que se envolve de forma ativa com
a terra, entende e aprecia o eterno ciclo da vida, a morte, a renovação e a reprodução. Tal e como você precisa se
assegurar de que esta terra passará a minhas mãos e às de meus descendentes, eu preciso estar seguro de que
passará as mãos de meu filho depois de minha morte; ou talvez de uma filha ou de um neto. Tenha por certo que
me casarei.
Nem sequer se tinha exposto semelhante possibilidade até esse momento, mas soube que suas palavras
encerravam uma grande verdade.
-
Com Julianne Effingham? - perguntou sua avó. Rannulf a olhou, mas nem sequer o amor podia
misturar-se na verdadeira essência de seu ser.
-
Não com a senhorita Effingham - respondeu em voz baixa. - Sinto muito, vovó. Não só não professo
afeto algum a jovem, mas sim me provoca uma profunda aversão.
-
Alegra-me sabê-lo - foi à surpreendente resposta de lady Beamish. - Foi uma tolice por minha parte,
nascida do desejo egoísta de vê-lo casado em seguida, antes que fosse muito tarde. - Vovó...
Ela ergueu uma mão.
-
Sente algum tipo de afeto pela senhorita Law? - perguntou-lhe.
Rannulf a olhou sem pestanejar antes de limpar garganta. - Pela senhorita Law?
-
Possui muitas qualidades das que sua prima carece - afirmou à anciã.
-
Mas é pobre - replicou Rannulf com voz cortante antes de ficar em pé para aproximar-se das portas
francesas, que permaneciam fechadas essa manhã posto que o dia seguisse tão frio e nublado como o anterior. É possível que o mequetrefe de seu irmão acabe arruinando sua família dentro de pouco, se minhas hipóteses
forem corretas. O pai é um cavalheiro, filho de uma antiga atriz e neto de um comerciante de tecidos. É bastante
possível que a mãe seja uma dama, embora também seja possível que não tivesse fortuna nem posição social
alguma antes de casar-se com o reverendo Law.
-
Ah! - exclamou sua avó. - Envergonha-se dela.
-
Me envergonhar? - Contemplou a fonte com olhar furioso e expressão carrancuda. - Teria que acalentar
algum tipo de sentimento por ela para me sentir envergonhado.
-
E não é assim? - inquiriu lady Beamish.
A conversação era provocada pelo impetuoso plano que pusera em marcha no dia anterior a fim de que sua
avó tomasse nota de Judith Law e de uma possível relação entre eles. Entretanto, a anciã não havia dito nada
durante o trajeto de volta pra casa nem tampouco durante o resto do dia. Rannulf a olhou por cima do ombro.
-
Vovó - disse, - faz duas semanas dava um passeio com ela pelos jardins para agradá-la. Animei-a que nos
entretivesse neste mesmo salão faz só uma semana, quando a maioria do resto de seus convidados já o fez.
Encontrei-me com ela nos arredores de Harewood ontem, onde passeamos e conversamos durante uma hora.
Por que ia acalentar algum tipo de sentimento por ela?
-
O estranho seria que não o tivesse - respondeu sua avó. - É uma mulher de beleza extraordinária uma vez
que se olhe além de seu disfarce e o conheço bastante para saber que admira as mulheres lindas. Entretanto, esta
moça possui algo mais que beleza. Também tem uma boa cabeça sobre os ombros. A igual a você quando se
decide a usá-la, como muito bem demonstraste vindo para ver-me nesta ocasião. Além disso, Rannulf, tinha uma
expressão muito peculiar no rosto quando retornou ontem de seu passeio.
-
Uma expressão? - Olhou-a com o cenho franzido. - Refere a uma expressão de ridículo amor? Não sinto
tal coisa.
E, entretanto queria que sua avó discutisse sua afirmação, que o animasse, que o convencesse de que uma
relação entre eles seria adequada.
-
Não - disse ela - Não teria dado nenhuma importância se fosse alguma estúpida expressão varonil,
embora talvez tivesse insistido a recordar que a moça é uma dama, sobrinha de sir George Effingham e neta de
minha melhor amiga.
E Rannulf se sentiu terrivelmente culpado... outra vez! - Bewcastle jamais aceitará semelhante união disse-lhe.
-
E, entretanto - recordou sua avó, - Aidan acaba de casar-se com a filha de um mineiro e Bewcastle não só
deu a boas-vindas a jovem, mas sim dispôs sua apresentação à rainha e celebrou um baile em sua honra em
Bedwyn House.
-
Bewcastle encontrou um fato consumado no caso de Aidan - arguiu Rannulf. - A única coisa que fez foi
arrumar o que considerava um completo desastre.
-
Dentro de um momento me oferecerá seu braço para me ajudar a subir a meus aposentos - disse a anciã.
- Mas antes vou dizer-lhe algo, Rannulf: se permitir que o orgulho e a vergonha mascarem sentimentos mais
ternos e que isso o impeça de ter a oportunidade de celebrar um matrimônio que responderia a todas suas
necessidades (incluindo as do coração), seria do mais grosseiro por sua parte jogar toda a culpa em Bewcastle.
-
Não me envergonho dela - replicou. - Justamente o contrário, para falar a verdade. Estou... - Fechou a
boca e se aproximou de sua avó com urgência assim que esta ficou em pé.
-
Acredito que a expressão correta é estou apaixonado - disse a anciã enquanto colocava uma mão com
delicadeza sobre o braço de seu neto. - Mas nenhum neto meu que se aprecie admitiria jamais acalentar um
sentimento tão absurdo, não é certo?
Não era certo, pensou Rannulf. Por muito que o envergonhasse admitir, Judith Law seguia despertando sua
luxúria. Gostava dela. Atraía-o. Encontrava-se pensando nela de forma constante quando estava acordado e
sonhava com ela quando estava dormido. Tinha descoberto que podia falar com ela como não fora capaz de
fazer com nenhuma outra mulher, salvo possivelmente com Freyja. Entretanto, inclusive com sua irmã devia
manter uma atitude cínica e enfastiada. Não podia imaginar a si mesmo falando com entusiasmo sobre agricultura
e a administração de uma propriedade com Freyja. Com Judith Law podia relaxar e ser ele mesmo, embora
tivesse a impressão de que só fazia duas semanas que descobriu seu verdadeiro eu.
Em essência, sua avó acabava de dar sua bênção para que cortejasse Judith Law. Bewcastle... bom, Bewcastle
não era seu guardião.
Perguntou-se se Judith teria a intenção de assistir ao baile essa noite. Teria que ter em conta que ela já o tinha
recusado em uma ocasião só duas semanas atrás. Mas talvez pudesse persuadi-la que mudasse de opinião. Devia
agir com muito cuidado, é claro, e não em público, a fim de não humilhar à senhorita Effingham. Por muito
estúpida e petulante que fosse a jovem, não merecia algo assim.
Judith trabalhou com esforço na costura durante toda a manhã, caso os preparativos do baile a mantivessem
ocupada toda à tarde. E não se equivocou. Sua tia a fez correr de um lado para outro a cada minuto, levando
mensagens e ordens à governanta ou ao mordomo, nenhum dos quais estava onde se supunha que devia estar.
Atribuiu-lhe a monumental tarefa de preparar os arranjos florais que deviam adornar o salão, assim como a de
colocá-los nos lugares indicados, combinando-os com esmero com as plantas de interior. Gostava da tarefa, mas
assim que chegou ao salão descobriu que os criados não deixavam de lhe consultar todos os problemas, por
insignificantes que fossem.
Justo depois a enviaram ao povoado a comprar uma fita para adornar o cabelo de Julianne, depois de ter
chegado à conclusão de que as que tinha comprado no dia anterior não eram adequadas nem em cor nem em
largura, apesar ter sido pagas e entregues. A ida e a volta supunham um trecho bastante longo. Por regra geral,
Judith teria agradecido a possibilidade de estar ao ar livre, embora se tratasse de um dia nublado. Entretanto,
tinha acalentado a esperança de desfrutar de um momento para lavar o cabelo e ter um descanso antes que
chegasse a hora de vestir-se para o baile. Apressou-se a concluir o encargo com o fim de dispor de algum tempo
para si mesma.
Quando retornou, a porta do quarto de Julianne estava ligeiramente entreaberta. Judith ergueu a mão para
anunciar sua presença com umas batidas, mas escutou a risada de Horace procedente do interior. Não a tinha
incomodado abertamente desde a semana anterior, embora jamais desperdiçasse a oportunidade de fazer algum
comentário obsceno ou sarcástico ao ouvido. Evitava-o na medida do possível. Decidiu esperar. Também
poderia levar a fita ao quarto de tia Effingham e depois fingir que tinha se esquecido que devia levá-la
diretamente ao quarto de sua prima.
-
Devo conseguir esse homem e ponto - estava dizendo Julianne com voz petulante, concentrada em seu
tema favorito. - Sentirei uma mortificação inexprimível se não se declarar antes que todos os convidados
abandonem Harewood. Todos sabem que esteve me cortejando. Todos sabem que recusei os olhares do resto de
meus admiradores, inclusive as de lorde Braithwaite, porque lorde Rannulf está a ponto de pedir minha mão.
Judith deu meia volta para partir.
-
E o terá, tonta - disse Horace. - Será que não ouviu o que mamãe acaba de dizer? Terá que obrigá-lo a lhe
propor matrimônio. A única coisa que tem que fazer é se assegurar de que alguém os encontre em uma situação
comprometedora. E ele fará o mais honorável. Conheço homens como Bedwyn. Ser um cavalheiro é para eles
tão importante como a vida.
Chegados a esse ponto, Judith achou impossível não continuar escutando.
-
Horace tem razão, queridinha - disse tia Effingham. - E o apropriado é que se case contigo depois de ter
brincado de modo deliberado com seus sentimentos.
-
Mas como vou fazê-lo? - perguntou Julianne.
-
Senhor! - exclamou Horace com aborrecimento. - Acaso não tem imaginação, Julianne? Tem que lhe
dizer que está a ponto de desmaiar ou que tem calor ou frio ou algo que o obrigue a lhe acompanhar a um lugar
privado. Talvez a biblioteca. Ninguém salvo papai a frequenta e nem sequer ele estará ali esta noite já que
considerará que seu dever é permanecer no salão de baile. Fecha a porta quando entrarem. Se aproxime muito
dele. Consiga que a abrace e que a beije. E nesse momento eu os surpreenderei... papai e eu o faremos. Seu
compromisso será anunciado antes que o baile termine.
-
Como vai convencer papai que o acompanhe à biblioteca? - perguntou Julianne.
-
Se não for capaz de imaginar isso para arrastá-lo a seu lugar favorito no mundo, comerei meu chapéu replicou Horace. - O novo de pele de castor.
-
Mamãe?
-
Funcionará, sem dúvida - apressou-se a responder tia Effingham. - Já sabe, queridinha, que uma vez que
se converta em lady Rannulf Bedwyn terá que se dedicar de corpo e alma a convencer lorde Rannulf de que tudo
fizemos por seu bem. E enquanto isso desfrutará de sua fortuna e de sua posição social.
-
E de Grandmaison quando lady Beamish morrer - acrescentou Julianne, - e de uma casa em Londres,
suponho. O persuadirei de que compre uma. E serei a cunhada do duque de Bewcastle e poderei realizar meu
desejo de visitar sua residência, Bedwyn House. Para falar a verdade, talvez vivamos ali enquanto estivermos na
cidade, em lugar de compramos uma casa própria. E suponho que os verões passaremos no campo, em Lindsey
Hall.
Conseguirei que...
Judith ergueu a mão e chamou com força à porta antes de abri-la e entregar a fita a Julianne.
-
Espero que esta lhe assente bem - disse - Era a única de cor rosa que havia na loja, mas em minha opinião
é um tom precioso, mais intenso e mais adequado para sua tez que os outros.
Julianne desenrolou a fita, estudou-a com cuidado e a jogou na penteadeira que havia atrás dela.
-
Acredito que eu gosto mais das outras – replicou - demorou muitíssimo, Judith. Acredito que deveria ter
se apressado mais, já que o encargo era para sua própria prima.
-
Talvez, prima - disse Horace, - possa usar uma das fitas que Julianne decida não usar. Ah! Que falta de
tato por minha parte. O rosa não lhe assenta bem, não é? Há alguma cor que o faça?
-
Não há dúvida de que Judith se sentirá muito mais cômoda esta noite ficando em seu quarto - interveio
tia Effingham. - Vamos comparar as fitas com mais calma, queridinha. Não quererá que...
Judith saiu do quarto e se dirigiu ao seu sem perder tempo.
Seria certo que não tinha intenção de pedir a mão de Julianne por iniciativa própria? Tão desesperadas
estavam Julianne e tia Effingham por consegui-lo como marido que se viam obrigadas a lhe preparar uma
armadilha que o deixasse em uma situação supostamente comprometedora? Horace tinha razão, concluiu. Lorde
Rannulf Bedwyn era um cavalheiro e não havia dúvida de que pediria a mão de qualquer dama se acreditasse tê-la
comprometido. Ela sabia de primeira mão.
O coração lhe pulsava com força quando fechou a porta de seu quarto. Que se casasse com Julianne por
decisão própria fora uma possibilidade muito difícil de aguentar. Mas que o fizesse sendo a vítima de um
engano...
Judith desfrutou de um jantar tranquilo com sua avó na saleta particular da anciã, posto que nenhuma delas
se sentisse muito inclinada para jantar com os convidados. Depois se separaram com o fim de vestir-se para o
baile.
Judith estava mais nervosa do que se atrevia a admitir. Pôs-se mil vezes seu vestido de seda de listras bege e
dourado para assistir aos bailes celebrados no povoado. Nunca fora o último grito da moda nem estava muito
adornado. Seus pais sempre foram muito rígidos no referente ao recato, mais ainda em seu caso. Mas ao menos
seguia sendo um traje elegante que lhe sentava muito bem. Sempre tinha gostado dele, até que a criada de tia
Louisa lhe acrescentasse umas peças dos lados e cobrisse o decote.
Passou toda a manhã tirando os apliques. Havia devolvido o vestido a sua forma original, salvo pela longa
fita de seda cor de pêssego que sua avó a tinha presenteado poucos dias antes dizendo que a cor lhe sentaria
maravilhosamente e que ela não o usaria jamais. A fita era bastante longa para que os extremos chegassem quase
até o chão depois de fazer um primoroso laço na parte frontal da cintura alta.
Não houve nenhuma criada que a ajudasse a preparar-se. De qualquer forma, tinha desfrutado em raras
ocasiões dos serviços da criada da reitoria, posto que as exigências de sua mãe e de suas três irmãs ocupavam
todo o tempo da moça. Judith estava acostumada a pentear-se até para as ocasiões formais. Teve tempo tanto de
lavar o cabelo como de sacar-lhe Quando o afastou do rosto com a escova, tinha o brilho lustroso do cabelo
limpo; o recolheu em duas tranças que enrolou e retorceu de um modo muito favorecedor na parte posterior da
cabeça. Utilizou um espelho de mão para comprovar o resultado enquanto se sentava frente da penteadeira.
O estilo era elegante, concluiu. Com cuidado para não arruinar o esmerado penteado que tanto lhe havia
custado fazer, puxou duas largas mechas que se frisaram assim que lhes passou a escova. Seu cabelo era bastante
encaracolado para que as mechas caíssem em belas ondas sobre suas orelhas. Repetiu a operação nas têmporas.
Não colocou touca, nem sequer a de bonita renda que sempre tinha usado às reuniões ou às noites.
Jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.
Contemplou sua imagem no espelho e ficou em pé para poder ver-se de corpo inteiro. Tentou olhar-se
através dos olhos de um homem que talvez tivesse pronunciado essas palavras com total sinceridade. Ela
confiava em sua honestidade. Havia-o dito de coração.
Era linda. Sou linda!
Pela primeira vez em sua vida podia contemplar-se e acreditar que possivelmente houvesse algo de verdade
na, ao que parece, absurda declaração. Sou linda!
Escapuliu para o quarto de sua avó antes que a coragem a abandonasse. Chamou com suavidade à porta do
quarto de vestir e entrou.
Sua avó ainda seguia sentada frente ao espelho enquanto Tillie, a suas costas, prendia três longas plumas em
seu cabelo cinza, recolhido em um complicado penteado. A anciã usava um vestido de noite de um intenso tom
rubi que ficava eclipsado pelos brilhos das inumeráveis e enormes joias que lhe adornavam o pescoço, o peito, os
gordinhos pulsos, cada um dos dedos de ambas as mãos salvo os polegares e as orelhas. Usava inclusive um
intrincado e imenso broche preso no vestido abaixo de um ombro. Sobre a mesa da penteadeira repousavam um
lornhão2 com incrustações de pedras preciosas.
Em suas maçãs do rosto se distinguiam dois círculos de ruge.
Entretanto, Judith apenas desfrutou de um momento para assimilar a aparência de sua avó. A anciã a olhou
do espelho, virou-se na banqueta demonstrando uma incomum agilidade – fazendo com que Tillie deixasse
escapar uma exclamação antes de colocar-se de novo a suas costas com as plumas na mão - e uniu as mãos entre
o tinido das joias.
-
Judith! – exclamou - Ah, meu carinho! Está... Tillie, que palavra estou procurando?
-Linda? - sugeriu a criada - Está, senhorita.
-Linda nem se aproxima - disse a senhora Law, fazendo um gesto depreciativo com a mão - Vire-se, vire-se,
Judith, e deixa que lhe dê uma olhada.
Judith riu, estendeu os braços com elegância de ambos os lados do corpo e virou muito devagar.
-
Estou bem? -perguntou.
-
Tillie - disse sua avó, - minhas pérolas. O colar comprido e o curto, por favor. Nunca as uso, Judith,
porque na minha idade preciso de algo que brilhe para afastar os olhares de minhas rugas e outros tristes
atributos. - Deixou escapar uma sincera gargalhada. - Entretanto, as pérolas ressaltarão sua deliciosa beleza sem
competir com ela.
As pérolas não estavam no joalheiro, e sim em uma gaveta. Tillie, que acabou por fim de colocar as plumas
com satisfação, tirou-as com presteza e as segurou para observá-las. – Lhe assentarão maravilhosamente,
senhorita - disse.
A avó de Judith ficou em pé e assinalou a banqueta. -Sente-se, carinho – disse, - para que Tillie possa colocar
o colar mais longo no cabelo sem desfazer o penteado. Eu gosto de como enrolou as tranças. A sua idade eu
usava multidão de cachos, cachos e cachos de cabelo por toda a cabeça e não era nem a metade de linda que
você. Claro que nunca fui famosa por meu bom gosto. Seu avô acostumava zombar de mim por isso, embora
insistisse que me amava tal e qual era.
Dez minutos mais tarde, Judith usava o colar mais curto ao redor do pescoço e descobriu que tinha o
comprimento perfeito para o modesto decote de seu vestido. As pérolas que adornavam seu cabelo não eram
visíveis pela frente, mas Tillie lhe mostrou com um espelho como tinha ficado a parte posterior de sua cabeça e
ao mover-se pôde comprovar o pesado balanço do colar e escutar o roçar das pérolas.
Esboçou um sorriso antes de soltar uma gargalhada. Sim, era. Sem dúvida nenhuma. Era linda!
2
Lornhão: óculos de mão para se colocar nos olhos na hora de ler.
Não importava que fosse a dama menos elegante do baile e que todas as convidadas a eclipsassem. Não
importava absolutamente. Era linda e estava desfrutando de sua aparência pela primeira vez em toda sua vida.
Sua avó, também entre gargalhadas, agarrou o lornhão em uma mão e inclinou a cabeça, fazendo que as
plumas se movessem para cima e para baixo.
- Magnífica - disse- Essa era a palavra que estava procurando. Está magnífica, carinho. - Deu uns tapinhas no
braço de Judith com o lornhão - Desçamos a agarrar os corações de todos os homens do baile. Eu ficarei com os
velhos e você pode ficar com os jovens. Até Tillie se uniu a suas gargalhadas nesse momento.
CAPÍTULO 16
Rannulf jamais tinha assistido a um baile por vontade própria. Embora isso não quisesse dizer que não
tivesse assistido uma boa quantidade deles, já que a sociedade civilizada tinha decretado que seus membros
estavam obrigados a divertir-se dançando de vez em quando. O baile de Harewood, como pôde comprovar logo
que sua avó e ele deixaram para trás a linha de recepção e entraram no salão, parecia ter congregado um grande
número de pessoas para tratar-se de um acontecimento rural. Não tinha reparado nos esforços para decorar a sala
com grandes ramos de flores e plantas de interior.
Olhou a seu redor e lhe fez graça, embora não foi nada surpreendente, descobrir que era muito fácil
distinguir os convidados da festa campestre, todos esplendidamente vestidos com seus enfeites londrinos,
daqueles que procediam dos arredores e cujas roupas eram muito mais singelas. A senhorita Effingham, a quem
acabava de deixar atrás na linha de recepção, estava resplandecente com um vestido de fina renda sobre cetim
rosa, com a cintura alta e o decote baixo conforme ditava a moda e o cabelo loiro penteado em elaborados
cachos entrelaçados com laços de cor rosa e pedras preciosas. E a ele, como não, tinham-no manipulado de
modo que se visse obrigado a lhe pedir que fosse seu par para a dança tradicional que abriria o baile.
Foi então quando localizou Judith Law, que acabava de afastar o olhar dele e se inclinou para dizer algo a sua
avó. Rannulf tomou ar muito devagar. A moça tinha um aspecto muito parecido ao que tinha a primeira vez que
a havia visto com esse vestido: voluptuosa e elegante. A simplicidade do desenho não fazia mais que acentuar a
feminilidade das curvas e a vibrante beleza da mulher que o usava. Penteou o cabelo com simplicidade para trás,
mas o tinha preso na nuca com um complicado desenho que se via realçado de forma delicada e bela pelas
pérolas que o adornavam.
De repente, sentiu o impulso de algo que não era luxúria, embora sem dúvida incluía o desejo. Deu-se conta
de que esteve esperando todo o dia até que chegasse esse momento, temendo possivelmente que ela não se
dignasse aparecer.
A senhora Law ergueu um de seus braços cheio de joias e fez um gesto com o empetecado lornhão.
-
Ah, aí está Gertrude - disse sua avó. - Vou me sentar com ela para contemplar a festa, Rannulf.
Rannulf a escoltou através da sala e se deu conta de que Judith não estava tão isolada como estivera sempre
no salão e durante a maior parte das atividades que aconteceram durante as duas semanas anteriores. Roy-Hill e
Braithwaite estavam ao seu lado.
Depois de trocar as saudações de rigor, sua avó se sentou junto à senhora Law.
-
Esta noite está especialmente encantadora, senhorita Law - disse sua avó. - Tem intenções de dançar,
suponho.
-
Obrigada, senhora. - Judith se ruborizou e esboçou um sorriso, algo que Rannulf não a tinha visto fazer
quase nunca nas duas semanas anteriores. - Sim, lorde Braithwaite foi bastante amável para oferecer-se em me
guiar na primeira peça e sir Dudley solicitou a segunda.
-
Suponho, nesse caso - disse lady Beamish, - que se algum cavalheiro deseja dançar com você esta noite
será melhor que o diga logo.
-
Bom... - Judith se pôs a rir.
-
Senhorita Law - Rannulf fez uma reverência, - me daria honra de reservar a terceira peça para mim?
Nesse instante ela o olhou fixamente, com esses adoráveis olhos verdes totalmente abertos enquanto a luz
dos lustres arrancava brilhos de seu cabelo vermelho. Talvez fosse nesse preciso momento que Rannulf percebeu
do quão pouco disposto esteve nas semanas passadas a chamar a cada coisa por seu nome. O que sentia por
Judith Law não era nem luxúria nem ternura nem afeto nem atração nem amizade, embora todas essas coisas
estivessem incluídas no sentimento que se negava a identificar.
Amava-a.
-
Obrigada, lorde Rannulf. - Fez uma leve reverência. - Será um prazer.
O murmúrio de espera que se ergueu ao seu redor distraiu a atenção de Rannulf. Lady Effingham tinha
entrado no salão de baile e se aproximava do estrado da orquestra. Sir George ia atrás dela, com sua filha no
braço. Rannulf percebeu que tinham esperado que ele se apresentasse para começar o baile. Deu um passo para
diante para reclamar a sua companheira que estava ruborizada, sorridente e, para falar a verdade, muito bonita.
-
Ouvi, lorde Rannulf - disse Julianne Effingham quando ocuparam os lugares opostos nos extremos das
filas das damas e os cavalheiros, - que as regras do decoro não se aplicam aos bailes rurais e que os cavalheiros
podem pedir a uma dama que dance com eles tantas vezes quanto quiserem. Entretanto, ainda me preocupa que
possa considerar uma falta de maneiras dançar mais de duas vezes com o mesmo companheiro. O que opina
você?
-Talvez - sugeriu ele - o mais apropriado seja escolher um companheiro diferente para cada peça, em especial
quando a reunião... como a de esta noite, por exemplo... é bastante numerosa para proporcionar amplas
oportunidades.
Tinha dado, é claro, a resposta incorreta... e com total deliberação.
-Mas em ocasiões -disse ela com uma risada - as boas maneiras podem ser aborrecidos, não lhe parece?
-
Certamente que sim - conveio Rannulf. Braithwaite tinha se colocado atrás dele e Judith atrás da
senhorita Effingham.
-
De qualquer forma, inclusive as boas maneiras que estipula a alta sociedade -acrescentou Julianne
Effingham - permitem que um cavalheiro dance com a mesma dama em duas ocasiões sem incorrer em falta
alguma. Em todos os bailes que assisti durante a temporada, sempre me solicitaram que dance duas vezes com o
mesmo cavalheiro e ninguém me acusou jamais de ser mal educada ao fazê-lo, embora muitos cavalheiros se
queixassem quando ficava sem peças livres.
-
Quem poderia culpá-los? - perguntou ele. A jovem voltou a rir.
-
A quarta peça será uma valsa - informou - Não pude dançá-la até quase metade da temporada, quando
lady Pulôver por fim me deu seu consentimento. Acredito que o fez porque havia muitos cavalheiros que se
queixavam diante dela de que não podiam dançar comigo. Suponho que muitos dos que há aqui esta noite nem
sequer conhecem os passos, mas roguei a mamãe que a incluísse entre as peças. Imagino que você conheça os
passos, não é assim, lorde Rannulf?
-
Consegui finalizar algumas valsas sem destroçar os pés de meu par - admitiu.
Ela riu de boa vontade.
-
Vamos - disse, - estou segura de que nem sequer correu o risco de que isso acontecesse, só está rindo as
minhas custas. Estou convencida de que não pisará nos pés. Meu Deus! - Seu rosto adquiriu um encantador
rubor e levou uma mão à boca - estava-me pedindo que fosse seu par, não é? Morrerei de vergonha se não for
assim.
Ele franziu os lábios; a situação tinha sua graça apesar de tudo.
-Não posso permitir que morra em meio de seu próprio baile, senhorita Effingham –disse. Demonstraremos a todos seus convidados quão superiores são suas habilidades para dançar a valsa.
-
Bom, não só as minhas -replicou ela com modéstia. - As suas também, lorde Rannulf. Sabe dançar a valsa,
Judith? Me atreveria a dizer que meu tio alguma vez a permitiu aprender os passos, não é? Considera-se um baile
escandaloso, mas eu acredito que é absolutamente divino. Meu professor de baile dizia que devem tê-lo criado
pensando em mim, porque meus pés são ligeiros e delicados. Era muito tolo. Acho que estava meio apaixonado
por mim.
A orquestra começou a tocar os lembre iniciais da dança tradicional e evitou que Judith respondesse.
Embora fosse óbvio fora uma pergunta retórica. Rannulf se concentrou em sua companheira tal e como ditavam
as boas maneiras, embora toda sua atenção estivesse posta no objeto de seu amor, que se movia com elegância ao
lado de sua prima.
Judith estava sem fôlego quando lorde Braithwaite a acompanhou ao lugar onde se encontrava sua avó.
Tinha sido uma dança da mais vigorosa e tinha desfrutado muito apesar de ter que suportar a proximidade de
lorde Rannulf e de Julianne. Entretanto, também isso teve suas compensações. Tinha compreendido, graças ao
modo em que ele tinha impedido todos os esforços de Julianne para levá-lo ao terreno das adulações e o flerte,
que na realidade não estava se comportando como um homem que estivesse a ponto de declarar-se. E talvez
fosse até mais importante o fato de ter escutado como as engenhava Julianne para conseguir que ele dançasse
com ela a valsa que seria a quarta peça. Seria nesse momento quando teria que vigiar com mais atenção, embora
não sabia como poderia salvar lorde Rannulf de uma armadilha tramada de antemão que nem sequer conhecia.
Não podia advertir-lhe sem mais. Passaria por uma estúpida!
- Talvez, senhorita Law - disse lorde Braithwaite, - seu pai lhe tenha permitido aprender os passados da valsa.
E talvez queria me conceder a honra de dançá-la comigo.
O homem a tinha observado com aberta admiração durante todo o baile. Para Judith fora muito adulador.
Era um jovem charmoso e afável.
-
Meu pai não teve a oportunidade de proibir nem de aprovar as lições de valsa -explicou ela. - O baile nem
sequer chegou ainda a nossa localidade. Desfrutarei observando como dança com outra pessoa, milorde.
Judith se deu conta de que sua avó, cujas plumas se moviam ao uníssono com as de lady Beamish enquanto
ambas conversavam e comentavam a cena que tinham diante, estava retirando os brincos com um gesto de dor.
Pobre vovó... será que alguma vez compreenderia que não havia brincos que não a machucasse?
-
Vovó - Judith se inclinou de forma solícita sobre ela, - quer que os leve para cima e os guarde?
-
Ah, carinho, faria? - perguntou à anciã. - Mas perderá a dança com sir Dudley.
-
Não, não perderei - assegurou Judith. - Não demorarei mais que um minuto.
-
Nesse caso lhe agradeceria muito - disse sua avó enquanto lhe punha as joias na mão. - Se importaria de
me trazer os que têm forma de estrela, se não for muito problema? - É claro.
Judith saiu apressada do salão de baile e subiu a escada em direção aos aposentos de sua avó depois de
apanhar uma vela de um candelabro da parede. Encontrou o enorme porta-joias e voltou a colocar os preciosos
brincos na bolsa de veludo da qual tinham saído à maior parte das joias que a anciã usava essa noite -embora
ainda estivesse repleta- antes de procurar na seção que ela mesma tinha atribuído aos brincos. Entretanto, não
pôde encontrar os que tinham forma de estrela. Rebuscou em vão entre os colares e os braceletes. Estava a ponto
de escolher outro par quando recordou que os brincos com forma de estrela eram os que havia tirado da mão de
sua avó na noite que passaram em Grandmaison. Deviam estar na bolsa que tinha usado nessa noite. Fechou o
porta-joias e o guardou tão rápido como pôde; correu até seu quarto e descobriu com alívio que os brincos
estavam onde pensava que estariam. Saiu apressada do quarto e deu um encontrão com uma criada que passava
por ali. Assustadas, ambas soltaram um grito em uníssono e depois Judith pôs-se a rir, desculpou-se por estar
com tanta pressa e desceu a toda velocidade a escada.
Através das portas do salão de baile pôde ver que já estavam formando os grupos, mas a má sorte quis que se
chocasse contra Horace quando se apressava a passar entre eles. Deteve-se em seco, ruborizada e sem fôlego.
-
Vai a alguma parte com tanta pressa, prima? - perguntou antes de lhe bloquear o caminho quando ela
tentou passar a seu lado. - Ou deveria perguntar se veio de algum lugar com tanta pressa? Algum recado,
possivelmente?
-
Fui apanhar outros brincos para vovó – disse - Se me desculpar, prometi esta dance a sir Dudley.
Para seu alívio, o homem se afastou e fez um exagerado gesto com o braço para que passasse. Ela se
apressou a cumprir o encargo de sua avó e se aproximou com uma desculpa até seu par. Era muito agradável
voltar a dançar tão logo. Sir Dudley RoyyHill iniciou uma conversação quando os passos da dança assim o
permitiram e Judith se encontrou com os inequívocos olhares de admiração de muitos outros cavalheiros. Em
casa haveria se sentido um pouco incomodada ao pensar que teria feito algo para despertar semelhantes olhadas
lascivas. Mas lascívia era uma palavra que utilizava seu pai. Essa noite, com sua recém descoberta confiança em
sua própria beleza, dava-se conta de que essas olhadas somente expressavam admiração. E se descobriu sorrindo
cada vez mais.
Entretanto, foi consciente em todo momento de que ia dançar a seguinte peça com lorde Rannulf Bedwyn.
O homem não teve outro remédio e ela sabia muito bem. O comentário de lady Beamish a respeito de que se
algum homem queria lhe pedir uma dança teria que fazê-lo logo o tinha obrigado a comportar-se como um
cavalheiro. Embora não se importasse muito. Em duas ocasiões - ambas junto ao lago-lorde Rannulf tinha
passado o tempo a seu lado quando poderia ter evitado os encontros sem dificuldade alguma. Assim bem podia
dançar com ela. E Judith se importava o mínimo o que tia Effingham tivesse que dizer a respeito na manhã
seguinte, embora sem dúvida seria longo e tedioso. Logo voltaria para casa, onde ao menos não teria que
comportar-se como uma criada.
Estava impaciente para que começasse a próxima dança. Quem dera pudesse durar toda a noite. Ou para
sempre.
Quem dera pudesse durar toda a noite, ou inclusive para sempre, pensou Rannulf. Ela dançava os lentos e
majestosos passos do antigo minueto com graça e elegância. Só o tinha olhado nos olhos em duas ocasiões e por
um breve espaço de tempo, mas havia uma expressão em seu rosto que revelava interesse e sem dúvida
felicidade.
Rannulf não lhe tirava os olhos de cima enquanto, ao seu redor, as múltiplas cores dos vestidos e os casacos
giravam com lentidão ao compasso da música; a luz dos lustres arrancava brilhos dos cabelos e as joias, e a
fragrância das colônias e as centenas de flores se mesclavam no quente ambiente.
Era estranho o diferente que lhe parecia essa outra mulher da estalagem O Rum e o Tonel. Naquela época,
embora tivessem falado e rido juntos e tinha desfrutado de sua companhia, ela fora em quase todos os aspectos
que importavam pouco mais que um corpo extraordinariamente desejável para levar para cama. Nesse instante
era...
Bom, nesse instante era Judith.
-
Desfruta do baile? - perguntou quando uniram as mãos e se aproximaram por um momento.
-
Muitíssimo - respondeu, e Rannulf sabia que dizia a verdade.
Ele também. Estava desfrutando de um baile, coisa que nunca fez antes; desfrutando do lento minueto, coisa
que jamais fez antes.
Havia algo entre eles, pensou, semelhante a uma intensa corrente de energia que os unia e os isolava do resto
das pessoas que se encontrava na sala. Tinha a certeza de que não era algo imaginário. Sem dúvida alguma ela
também o sentia. E não se tratava somente de desejo sexual.
-
Sabe dançar a valsa?
-
Não. - Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
Eu há ensinarei algum dia, pensou Rannulf.
Judith o olhou nos olhos e lhe sorriu como se tivesse escutado seus pensamentos.
Rannulf sabia que era a inveja de todos os homens que se encontravam no salão. Perguntou-se se ela se dava
conta da comoção que estava causando essa noite ou da agressividade com que sua tia a olhava.
-
Talvez - disse ele, - se não tiver prometido já todas as danças, poderia reservar outra para mim. A última?
Ela ergueu a vista de novo e o olhou nos olhos durante uns instantes.
-
Obrigada - disse.
Essa foi quase a totalidade de sua conversação durante o baile.
Entretanto, também estava essa sensação de unidade, de corações e sentimentos compartilhados, de que as
palavras não eram necessárias.
Talvez, pensou ele, ao final da noite estivesse cansada de dançar e pudessem sentar-se juntos em algum lugar,
à vista de outros convidados em nome do decoro, para manter uma conversação particular. Talvez pudesse
averiguar os sentimentos que acalentava por ele e se a oferta que lhe fez sofreu alguma mudança durante as duas
últimas semanas.
Talvez até pedisse de novo essa noite que se casasse com ele; embora para falar a verdade preferisse
perguntar-lhe na manhã seguinte, fora, onde poderiam desfrutar de uma completa intimidade. Pediria permissão a
seu tio, a levaria ao pequeno lago e se declararia.
Havia algo no comportamento de Judith - estava certo de que não era imaginação sua - que lhe permitia
albergar a esperança de que o aceitaria de uma vez por todas.
Rannulf se entreteve com tais planos e pensamentos enquanto a via dançar e contemplava o resplendor de
felicidade -seguro que era isso- que iluminava seu rosto.
E foi nesse instante quando a música chegou a seu inevitável fim. - Obrigado - disse ele enquanto lhe
oferecia o braço para escoltá-la de novo até onde se encontrava sua avó.
Ela virou a cabeça para olhá-lo com um sorriso.
-
Formam um par de danças muito elegante - afirmou lady Beamish quando se aproximaram.
Lady Effingham estava atrás da cadeira de sua mãe, comprovou Rannulf.
-
Judith, querida - disse com uma voz enjoativa, - espero que tenha agradecido lorde Rannulf da forma
adequada à amável deferência que mostrou ao tirá-la para dançar. Mamãe parece muito cansada. Estou segura de
que não se importará de levá-la a seu quarto e ficar ali com ela.
Entretanto, a senhora Law se inchou como um globo de ar quente, imersa em muitos brilhos e tinidos.
-
Posso lhe assegurar que não estou cansada absolutamente, Louisa – afirmou - Que barbaridade! Perder o
resto do baile e deixar a minha querida Sarah aqui sentada sozinha... Além disso, Judith prometeu a peça
posterior à valsa ao senhor Tanguay e seria de muito má educação por sua parte desaparecer agora.
Lady Effingham arqueou as sobrancelhas, mas não pôde dizer nada mais em sua presença e na de sua avó.
Tocava o turno da valsa e Rannulf se viu obrigado a dançar com a senhorita Effingham. Pelo menos a
achava divertida, pensou enquanto se inclinava em uma reverência e se virava para procurá-la. Embora sem
dúvida ela não acharia aduladora a natureza de sua diversão. Além disso, estava desejando que chegasse à última
dança. E a manhã seguinte. Embora não deveria albergar muitas esperanças a respeito. Se Judith Law não
desejava casar-se com ele, não mudaria de opinião nem por sua posição nem por sua fortuna.
Suspeitava que teria que amá-lo antes de aceitar. Amava-o?
A insegurança, a incerteza e o desassossego eram emoções completamente desconhecidas para um homem
que tinha cultivado o tédio e o cinismo durante a maior parte de sua vida adulta.
Julianne tinha os olhos mais brilhantes e as faces mais rosadas que em toda a noite, conforme comprovou
Judith. Embora essa expressão podia atribuir-se por inteiro ao fato de estar dançando com lorde Rannulf de
novo. Semelhante reação era da mais compreensível para Judith.
Muito mais nefasto era o fato de que Horace se aproximou de tio George e o tivesse levado além do grupo
de velhos cavalheiros com os quais esteve conversando. Judith tinha recusado um convite para ir com o senhor
Warren, que tampouco dançava a valsa, em busca de uma limonada; embora tivesse sorrido para agradecer. Tinha
que ficar no salão de baile. Contemplou a cena com o coração descontrolado. Sem dúvida o repugnante
estratagema que fora tramado no quarto de vestir de Julianne essa tarde não podia tratar-se de algo sério. Quem
poderia desejar uma oferta de matrimônio obtida de semelhante maneira?
Não obstante, sabia que Julianne desejava com desespero converter-se em lady Rannulf Bedwyn.
E tia Effingham estava igualmente desesperada por casar sua filha com ele.
Era provável que Horace também desfrutasse com a ideia de vingar-se de lorde Rannulf pelo que lhe fez
junto ao mirante na semana anterior.
Judith apenas prestava atenção à natureza escandalosa e apaixonante da valsa, onde as damas e os cavalheiros
dançavam em pares e se tocavam com ambas as mãos enquanto giravam ao redor da pista, um nos braços do
outro. Em outras circunstâncias, poderia ter sentido inveja daqueles que conheciam os passos e tinham galantes
pares com os quais executá-los.
Mal prestava atenção às oscilantes plumas dos tocados de sua avó e de lady Beamish, que estavam sentadas
frente a ela e desfrutavam do espetáculo fazendo algum comentário ocasional.
Branwell sabia dançar a valsa, descobriu com certa surpresa. Estava dançando com a senhorita Warren; ria
com ela como se não tivesse a menor preocupação no mundo.
Entretanto, até essa pequena distração com seu irmão esteve a ponto de ser fatal para a vigilância de Judith.
Quando posou a vista de novo em lorde Rannulf e Julianne, tinham deixado de dançar e ele tinha a cabeça
inclinada para escutar melhor o que lhe dizia. Sua prima esfregava um pulso, falava depressa e parecia um pouco
angustiada. Fez um gesto com um braço em direção à porta.
Enquanto isso, Horace seguia falando com seu pai.
Judith não esperou mais. Possivelmente aquilo fosse um disparate, mas tinha todo o aspecto de ser o início
do plano que escutara. Possivelmente tivessem trocado o lugar quando ela saiu do quarto de vestir de Julianne.
Mas teria que arriscar-se. Escapuliu do salão de baile com toda a rapidez e o sigilo do que foi capaz e se apressou
a descer as escadas, descobriu com alívio que não havia nenhum criado que pudesse perguntar aonde se dirigia e
entrou na biblioteca, um lugar tão sagrado para seu tio que ela jamais tinha visto o interior da sala.
Estava bastante escuro, mas por sorte podia ver o suficiente para encontrar o caminho até a janela e abrir as
pesadas cortinas. A noite estava iluminada pela luz da lua e as estrelas, depois que as nuvens do dia se
dispersaram ao longo da tarde. Havia luz suficiente para que pudesse encontrar o que precisava: duas estantes
abarrotadas de livros que chegavam até o teto. Correu para a que se encontrava atrás da porta e de um enorme
sofá.
O minuto que seguiu lhe pareceu eterno. O que aconteceria se tivesse ido ao lugar errado? E se Julianne
tinha arrastado lorde Rannulf a algum outro lugar para que o vissem beijando-a ou fazendo outra coisa que a
comprometesse?
E nesse mesmo momento a porta voltou a abrir-se.
-
Deve estar aqui. - Era a voz de Julianne, que parecia aguda e nervosa. - Papai me deu isso de presente em
meu baile de apresentação e se zangaria muitíssimo comigo se a perdesse. Inclusive se se desse conta de que não
a uso, se sentiria ferido e zangado.
Judith não podia imaginar tio George nem aborrecido, nem ferido e nem zangado.
-
Se recorda havê-la deixado aqui - disse lorde Rannulf, que parecia muito tranquilo e inclusive dava a
sensação de estar se divertindo, - então a recuperaremos e estaremos dançando a valsa em menos de dois
minutos.
Entrou na biblioteca sem nenhuma vela e Judith viu como Julianne fechava a porta empurrando-a com um
pé.
-
Ah, Senhor - disse sua prima, - essa porta sempre se fecha de repente. - Correu até lorde Rannulf e
exclamou de forma triunfal: - Há, aqui está! Sabia que devia havê-la deixado aqui quando desci para descansar um
pouco; embora me preocupasse muitíssimo estar equivocada e tê-la perdido de verdade. Lorde Rannulf, como
poderia lhe agradecer o sacrifício que tem feito ao interromper nosso baile e vir aqui comigo sem que meu pai se
inteire?
-
Colocando-a no pulso - respondeu ele - para que a possa levar de volta ao salão de baile antes que sintam
sua falta.
-
Senhor, este broche... - comentou ela - Não há luz suficiente. Se importaria de me ajudar?
Rannulf se inclinou para ela enquanto Julianne erguia o pulso, rodeava-lhe o pescoço com o braço livre e se
recostava contra ele.
-
Sinto-me terrivelmente agradecida - disse.
Como se esse gesto tivesse sido o sinal, a porta se abriu de novo; Horace ergueu a vela que levava,
resmungou uma imprecação e tentou impedir que seu pai visse o que acontecia na biblioteca. - Possivelmente
não seja tão boa ideia vir aqui para se afastar do ruído, apesar de tudo - disse em voz alta e clara. - Vamos, pai...
Entretanto, tio George, tal e como se supunha que devia fazer, tinha sentido o proverbial descuido
reprimido. Afastou Horace de um lado com o braço e entrou em grandes passadas no aposento justo no
momento em que Julianne gritava, separava-se de um salto e lutava com o decote de seu vestido, que de algum
modo desceu e deixou quase tudo à vista.
Tinha chegado o momento de começar com o contra-ataque. Há, aqui está - disse Judith, que saiu de seu esconderijo com um enorme livro aberto entre as mãos. - E aqui
estão, tio George e Horace para me ajudar a declarar o ganhador. E temo que seja Julianne, lorde Rannulf. O
primeiro animal que Noé liberou da arca para ver se as águas tinham baixado foi um corvo. E depois enviou uma
pomba. A pomba saiu três vezes, de fato, até que não retornou e Noé soube que devia haver terra firme de novo.
Mesmo assim, o primeiro foi um corvo.
A forma em que os quatro se viraram para ela e a olharam fixamente não teria desafinado em nenhuma
comédia. Judith fechou o livro com uma floreio.
-
Foi uma estupidez discutir sobre esse assunto – acrescentou - e descer os três no meio de um baile para
descobrir a resposta. Mas Julianne tinha razão, lorde Rannulf.
-
Bem - disse ele com um audível suspiro, - nesse caso suponho que devo aceitar a derrota. Embora tenha
sido melhor assim, já que teria sido muito pouco cavalheiresco de minha parte contradizer uma dama embora
tivesse tido razão. Não obstante, sigo pensando que em minha Bíblia é uma pomba.
-
Que demônios...? - começou a dizer Horace.
-
Julianne - disse Judith, interrompendo-o enquanto soltava o livro, - ainda não conseguiu fechar o
bracelete? Você tampouco, lorde Rannulf? Deixe-me tentar.
-
Que! - balbuciou tio George. - Desci para ter um instante de paz e descubro que minha biblioteca foi
invadida. Sabe sua mãe que pôs seu bracelete, Julianne? Suponho que sim. Um conselho, Bedwyn. Jamais discuta
com uma dama. Sempre têm razão.
Se tivesse podido desenhar um trovão, pensou Judith, sem dúvida alguma guardaria uma notável semelhança
com o rosto de Horace. Seus olhares se encontraram um instante e distinguiu a fúria assassina que aparecia em
seus olhos.
-
O terei em conta, senhor - assinalou lorde Rannulf. - Asseguro-lhe que esta foi à última vez que discuto
sobre corvos e pombas.
Julianne, que tinha os lábios apertados e o rosto cinzento, separou o braço de Judith, tentou fechar o
bracelete e ao não poder fazê-lo o tirou com fúria e o jogou sobre a mesa onde o tinha encontrado.
-
Horace - disse, - me leve até mamãe. Não me encontro bem.
-
Suponho que será melhor que volte a cumprir com meu dever - declarou tio George com um suspiro.
Um instante depois os três partiram, levando a vela com eles e deixando a porta entreaberta.
-
Que livro era esse? - perguntou lorde Rannulf após uns momentos de silêncio.
-
Não tenho a menor ideia - afirmou Judith. - Estava muito escuro para distinguir os títulos.
-
Está segura de que a primeira ave que saiu da arca foi um corvo? Teria apostado que era uma pomba.
-
Pois teria perdido - disse ela. - Sou a filha de um clérigo.
-
Suponho - começou a dizer ele - que tudo isto era uma armadilha para obter que sir George Effingham
acreditasse que tinha comprometido sem perdão a sua filha.
-
Sim.
-
Muito descuidado de minha parte – declarou - Esteve a ponto de funcionar. Acreditei que essa mucosa
era estúpida e aborrecida, mas inofensiva.
-
Mas Horace não é - assinalou ela. - E tia Louisa tampouco.
-
Judith - aproximou-se dela, - salvou-me que uma desastrosa sentença pelo resta da vida. Como poderei
agradecer isso
-
Estamos em paz – respondeu - Você me salvou a semana passada no mirante e eu o salvei esta semana.
-
Sim. -As mãos de Rannulf se encontravam sobre seus ombros, cálidas, firmes e conhecidas. - Judith...
Quando começara a utilizar seu nome de batismo? Tinha-o feito antes dessa noite? Judith cravou o olhar no
intrincado laço do lenço que usava no pescoço, mas só durante uns instantes. O rosto do homem se interpôs no
caminho antes de beijá-la.
Foi um beijo apaixonado, embora ele não afastasse as mãos de seus ombros e ela se limitou a aferrar-se às
lapelas do casaco. Lorde Rannulf lhe separou os lábios e ela abriu a boca para lhe facilitar o acesso. Sentiu sua
língua na boca, enchendo-a, possuindo-a, e a sugou para introduzi-la ainda mais.
Judith se sentia como um faminto que oferecessem um festim. Não podia saciar-se dele. Jamais poderia
saciar-se dele. Percebeu o familiar aroma de sua colônia.
E em um dado momento, sua boca se separou dela e a contemplou à luz da lua.
-
Retornemos ao baile – disse - antes que alguém faça um alvoroço por sua ausência. Obrigado, Judith. O
tempo que falta para a última dança vai ser do mais tedioso.
Judith tentou não buscar outro sentido a essas palavras. Lorde Rannulf se sentia aliviado de ter escapado.
Sentia-se agradecido. Recordava o tempo que passaram juntos quando a acreditava Claire Campbell, a atriz e
experimente cortesã. Isso era tudo.
CAPÍTULO 17
Judith dispôs de muito pouco tempo para reorganizar seus dispersos pensamentos e emoções. Talvez sua
volta ao salão no braço de lorde Rannulf passasse inadvertido para a maioria das pessoas, mas não para tia
Effingham, cuja expressão não pressagiava nada bom para sua sobrinha. Julianne tinha conseguido rodear-se de
cavalheiros justo no momento em que a valsa chegava a seu fim e nesse momento não parava de rir e paquerar
no centro de seu elenco de admiradores. Tio George tinha retornado junto ao grupo de cavalheiros de mais idade
e estava imerso em uma conversação. De Horace não havia nem rastros.
-
Mas onde foi, Rannulf? - perguntou lady Beamish quando seu neto acompanhou Judith ao lado da
senhora Law. - Vi-o dançando a valsa e imediatamente tinha desaparecido.
-
A senhorita Effingham descobriu de repente que perdeu seu bracelete – explicou - e a senhorita Law foi
tão amável de ajudarmos na busca. Por sorte, a encontramos justo no lugar onde a senhorita Effingham pensou
que poderia tê-lo deixado.
A avó de Judith esboçou um plácido sorriso, mas os penetrantes olhos de lady Beamish se detiveram um
instante em cada um deles. Claro, pensou Judith, a anciã fora a promotora da união entre seu neto e Julianne.
Sem dúvida se sentiria decepcionada porque o cortejo não estivesse avançando mais depressa.
Justo nesse momento lorde Rannulf se afastou para convidar uma jovenzinha a dançar que, conforme
recordava Judith, só o fez em uma ocasião durante toda a noite e o senhor Tanguay se aproximou dela para
reclamar sua peça.
Judith sorriu e lhe dedicou toda sua atenção, embora fosse muito difícil quando seu coração seguia
descontrolado por causa da tensão dos últimos quinze minutos.
Quando a música chegou a seu fim, Judith ria a gargalhadas. Tinha sido uma peça muito alegre, de passos e
giros complicados. De qualquer modo, o senhor Tanguay não teve oportunidade de acompanhá-la até o lugar
onde descansava sua avó, posto que Branwell apareceu frente a ela e a tomou pelo braço.
-
Peço que nos desculpe, Tanguay - disse ao homem. - Preciso falar com minha irmã um minuto.
Judith o olhou com surpresa. Apesar de ter trocado olhares e sorrisos, e até uma piscada em uma ocasião
durante o transcurso da noite, Bran estivera muito ocupado desfrutando da companhia das jovenzinhas para
procurar sua irmã a fim de começar uma simples conversação. O sorriso seguia em seu lugar, mas havia certa
rigidez em seus lábios. Estava inusualmente pálido e seus dedos se cravavam no braço de Judith de forma
bastante dolorosa.
-
Jude - disse uma vez que chegaram ao patamar da escada, justo à saída do salão de baile, e se assegurou
que ninguém podia escutá-los, - só queria lhe informar de que parto. Agora. Esta noite.
-
Do baile? - Olhou-o sem compreender.
-
De Harewood. - Bran sorriu e inclinou a cabeça em direção a Beatrice Hardinge, que passou por eles no
braço de um jovem desconhecido.
-
De Harewood? - Judith estava mais do que desconcertada. - Esta noite?
-
Effingham acaba de ter umas palavras comigo. Ao que parece, faz dois dias veio alguém mais exigindo a
importância de uma conta insignificante. Effingham o pagou sem nem sequer me informar. Agora quer que lhe
devolva o dinheiro junto com as trinta libras que lhe devo da viagem até aqui. - passou os dedos de uma mão
pelo cabelo. - É claro que tenho a intenção de lhe devolver o dinheiro, mas agora mesmo não posso fazê-lo.
Resolveu o assunto de um modo bastante desagradável e deixou cair uma série de comentários ofensivos, não só
para minha pessoa, mas também para você. Teria atiçado um bom murro no nariz ou inclusive o teria desafiado a
um duelo, mas como ia fazer, Jude? Estou na casa de tio George na qualidade de convidado estamos rodeados de
gente. Seria o cúmulo da má educação. Tenho que partir, é a única solução.
-
Mas esta noite, Bran? - Tomou uma das mãos de seu irmão entre as suas. Sabia muito bem por que era
tudo aquilo. Como se atrevia Horace a descarregar sua ira e sua frustração sobre Bran desse modo? - Por que não
esperar que amanheça?
-
Não posso – respondeu. - Tenho que ir agora. Assim que trocar de roupa. Há uma razão para fazê-lo.
-
Mas em plena noite? Santo Deus, Bran! O que vai fazer?
-
Não deve preocupar-se por mim - tranquilizou-a ele, afastando-se de suas mãos com evidente agitação
Tenho... tenho um plano. Conseguirei uma fortuna em muito pouco tempo, prometo-lhe isso - Dedicou-lhe um
pálido reflexo de seu antigo sorriso. - E depois devolverei a papai tudo o que gastou em mim nos últimos tempos
e vocês voltarão a ter uma posição segura. Tenho que ir, Jude. Não posso me demorar mais.
-
Deixa ao menos que o acompanhe até em cima - disse - e que me despeça quando se tiver trocado.
-
Não, não. -Voltou a olhar a seu redor, claramente impaciente por partir. - Fique aqui, Jude. Quero
escapulir sem que ninguém perceba. Devolverei- o dinheiro a Effingham logo que possa e depois me pagará de
outro modo pelo que disse de minha irmã. - Inclinou a cabeça e lhe deu um beijo na face.
Judith o observou enquanto partia, preocupada e presa de uma horrível premonição. Era evidente que seu
irmão devia uma enorme soma de dinheiro a um bom número de pessoas; pessoas entre as quais agora se
encontrava Horace, a quem sem dúvidas deveria muito mais que trinta libras. Mesmo assim, Bran saía correndo a
meia-noite, convencido de que ao menos tinha encontrado o modo de fazer em pouco tempo uma fortuna com a
qual pudesse pagar todas as suas dívidas. A única coisa que ia conseguir era piorar ainda mais a situação.
E arruinar por completo sua família.
Judith retornou ao baile com a alma nos pés. Nem sequer a ideia de dançar a última peça com lorde Rannulf
bastava para lhe levantar o ânimo.
De qualquer modo, sua desilusão ia ser muito maior em alguns minutos.
-
Judith - disse sua avó enquanto pegava sua mão e lhe dava um apertão, - minha querida Sarah não se
encontra muito bem. Há muita corrente com todas as janelas e as portas abertas, e para falar a verdade, o ruído é
ensurdecedor. Possivelmente possa ir à busca de lorde Rannulf.
-
Não há necessidade de formar tanto alvoroço, Gertrude rogou lady Beamish. - Sinto-me muito melhor
desde que me abanou o rosto.
Entretanto, Judith percebeu num só olhar de que a já pálida tez da anciã tinha adquirido um tom cinzento e
de que suas costas pareciam um pouco encurvadas em lugar de mostrar sua característica rigidez.
-
Está cansada, senhora - disse-lhe, - e não é de estranhar. Já é meia-noite. Agora mesmo vou à busca de
lorde Rannulf.
Não demorou. Chegou assim que Judith começou a procurá-lo entre os numerosos grupos de convidados
que iam de um lado a outro durante o descanso. Inclinou-se sobre a poltrona de sua avó e encerrou uma das
mãos da anciã entre as suas.
-
Está cansada, vovó? - perguntou-lhe com tanta ternura no rosto e na voz que Judith sentiu que o coração
dava um salto. - Devo confessar que eu também estou. Ordenarei que tragam a carruagem imediatamente.
-
Tolices! -exclamou lady Beamish. - Jamais abandonei um baile tão cedo. Além disso, ainda faltam duas
peças e o esperam duas jovens com as quais se comprometeu a dançar.
-
Não tinha convidado a ninguém para a seguinte peça e a senhorita Law ia ser meu par para a última.
Estou seguro de que aceitará minhas desculpas.
-
É claro - assegurou-lhes.
Lady Beamish lhe dirigiu um olhar penetrante apesar de seu evidente cansaço.
-
Obrigado, senhorita Law - disse-lhe - É muito amável e compassiva. Está bem, Rannulf, pode ordenar
que tragam a carruagem. Gertrude, querida, vou ter que lhe abandonar.
A avó de Judith riu baixo.
-
Não sei como fui capaz de manter os olhos abertos durante a última meia hora -disse-lhe. - Quando
chegar o seguinte descanso direi a Judith que me acompanhe a meu quarto se tiver a amabilidade. Depois poderá
retornar para dançar as últimas peças se o desejar. Foi uma noite muito agradável, não é certo?
-
Senhorita Law - disse lorde Rannulf, - se importaria de me ajudar a procurar um criado que leve uma
mensagem aos estábulos?
Para alguém de sua presença física e posição social não era um problema encontrar um criado e chamar sua
atenção. A mensagem foi enviada com presteza. Judith aproveitou a oportunidade para pedir ao mesmo criado
que enviasse Tillie aos aposentos de sua avó. Entretanto, lorde Rannulf tinha a intenção de falar a sós com ela.
Detiveram-se a saída do salão, quase no lugar exato onde estivera falando com seu irmão pouco antes. Uniu as
mãos atrás das costas e se inclinou um pouco para ela.
-
Não encontro palavras para descrever o muito que sinto não poder dançar a última peça - disse-lhe.
-
Mas não somos meninos - replicou Judith com um sorriso - para fazer uma manhã cada vez que nos
privam de uma diversão com a qual já contávamos.
-Pode ser que você seja uma santa, Judith - disse-lhe, entrecerrando os olhos com sua antiga expressão
zombadora, - mas eu não.
-
Agora mesmo seria capaz de me atirar ao chão no meio do salão de baile, chutar o piso, golpear o ar com
os punhos e soltar uma enxurrada de imprecações malsoantes.
Judith prorrompeu em alegres gargalhadas enquanto ele inclinava a cabeça e franzia os lábios.
-
Nasceu para rir e ser feliz - disse-lhe - Posso vê-la amanhã pela manhã?
Para que? Pensou Judith.
-
Estou segura de que todos estarão encantados - respondeu.
Ele a olhou sem pestanejar, com esse brilho zombador ainda presente nas profundidades de seus olhos.
-
Está sendo deliberadamente obtusa - disse-lhe. - Perguntei se posso ver você, Judith.
Era evidente que só podia referir-se a uma coisa. Entretanto, já o tinha pedido antes -de um modo que fora
bastante ofensivo- e lhe tinha respondido com uma negativa cortante. Embora isso por volta de duas semanas.
Muitas coisas tinham acontecido após. Muitas coisas tinham mudado, embora talvez só fosse sua opinião sobre
ele. Nem ele nem ela poderiam ter mudado tanto... Ela seguia sendo a filha empobrecida de um clérigo rural que,
embora jamais tivesse sido rico, tinha visto reduzida sua fortuna; enquanto que ele ainda era o filho de um duque
e o segundo na linha de sucessão ao título.
-
Se for esse seu desejo... - Judith descobriu que tinha respondido em um sussurro, embora ele a tenha
escutado.
Lorde Rannulf lhe fez uma profunda reverência e ambos retornaram ao salão, onde o homem ajudou sua avó
a ficar em pé, entrelaçou um dos braços da anciã com o seu em um gesto protetor e a guiou em direção à tia
Effingham e as enormes plumas se agitaram com rígida elegância- antes de abandonar o salão.
Judith se sentou na poltrona que acabava de abandonar lady Beamish e se perguntou se bastaria o que restava
da noite para assimilar tudo o que tinha acontecido durante o baile.
-Não se preocupe, Judith, carinho - disse-lhe sua avó enquanto movia uma gordinha mão para cobrir as suas,
unidas sobre o regaço, e lhe dava uns tapinhas. - Não tenho nenhuma intenção de me retirar do baile até que a
última nota musical se desvaneça. Mas não queria que Sarah pensasse que estava me abandonando. Temo que
esteja bastante doente há algum tempo, embora jamais fale de sua saúde.
E assim, depois de tudo Judith dançou a última peça - com lorde Braithwaite de novo, - embora tivesse
preferido retirar-se a seu quarto. Enquanto se via obrigada a sorrir e a responder a ligeira paquera de lorde
Braithwaite, em sua mente se mesclavam os incômodos pensamentos sobre Branwell com outros muito mais
eufóricos e apreensivos a respeito da visita que teria lugar na manhã seguinte.
No campo era estranho que qualquer baile que se apreciasse durasse até a uma da madrugada. Muitos dos
convidados que não pernoitavam na mansão partiram antes que as últimas peças acabassem. Nenhum se
demorou uma vez que concluíram. Como tampouco o fez a orquestra. Só a família, os convidados hospedados
na casa e alguns criados seguiam no salão quando se escutou uma pequena briga na entrada.
A voz de Tillie se escutava a perfeição, muito mais alta que o tom tranquilo e altivo do mordomo.
- Mas tenho que falar com ela agora mesmo - estava dizendo a criada, claramente incomodada por algo. - Já
esperei muito. Talvez seja muito tarde.
O mordomo começou a discutir, mas a avó de Judith, que acabava de ficar em pé e estava apoiada sobre o
braço de sua neta, olhou para a porta com expressão surpreendida. -Tillie? chamou-a - O que aconteceu? Entra
aqui agora mesmo.
Todo mundo deixou de falar para escutar quando a criada entrou com presteza na sala, retorcendo as mãos e
com semblante mudado.
-
São suas joias, senhora - choramingou.
-
O que aconteceu a elas? - perguntou tio George, coisa estranha nele.
-
Desapareceram! - informou Tillie com um dramatismo que qualquer heroína trágica teria invejado. Todas elas. Quando entrei no quarto de vestir, o porta-joias estava aberto de boca para baixo no chão e não
restava nenhuma só joia salvo as que usa, senhora.
-
Tolices, Tillie - disse Horace, aproximando-se de seu pai. - Suponho que o porta-joias caiu antes, com a
pressa de que vovó estivesse pronta a tempo para o baile, as guardou em uma gaveta para colocá-las em seu lugar
mais tarde. Seguro que esqueceu.
Tillie jogou mão de toda sua dignidade.
-
Não me teria ocorrido fazer tal coisa, senhor – replicou - Não teria jogado o porta-joias e se tivesse caído,
teria ficado no quarto de vestir para recolher todas as joias e colocá-las em seu lugar.
Enquanto, sua senhora se aferrava a sua neta com tanta força que os anéis se cravavam na mão de Judith de
forma dolorosa. - Desapareceram, Tillie? - perguntou- Roubadas? Dava a sensação de que todo mundo estivesse
esperando que se pronunciasse essa palavra. Elevou-se um murmúrio que foi crescendo enquanto se fazia a
comoção.
-
Nesta casa não há ladrões - assegurou tia Effingham com voz cortante. - Que barbaridade! Deve procurar
melhor, Tillie. Têm que estar em alguma parte.
-
Procurei por todos os lados, senhora - informou Tillie. - Três vezes.
-
Esta noite vieram muitas pessoas estranhas - disse a senhora Hardinge- acompanhadas de seus criados.
-
Todos nós somos estranhos - recordou o senhor Webster.
-
É impossível que suspeitemos de qualquer um de nossos convidados - replicou tio George.
-
Alguém roubou as joias de mamãe - recordou tia Louisa. - É claro que não desapareceram sozinhas.
-
Mas quem ia ter um motivo para fazer tal coisa? - perguntou à anciã.
Branwell, pensou Judith, que se sentiu envergonhada imediatamente. Bran jamais roubaria. Ou sim? A sua
própria avó? Poderia essa ser a razão que justificasse seu ato como um empréstimo em lugar de um roubo?
Quem mais poderia tê-lo feito? Bran havia se sentido esquecido durante a noite. Tinha abandonado Harewood
no meio do baile, no meio da noite. Parecia muito nervoso. Não tinha querido que o acompanhasse ao andar de
cima nem que se despedisse. Branwell. Tinha sido Branwell. Dentro de pouco todo mundo perceberia. Judith se
sentiu enjoada e teve que fazer um grande esforço para não desmaiar.
-
Quem está precisando de dinheiro? - perguntou Horace.
A pergunta flutuou no ar como se tratasse de uma obscenidade. Ninguém respondeu.
-
E quem teve oportunidade de fazê-lo? – seguiu - Quem conhecia o lugar onde vovó guardava suas joias e
quem seria bastante audaz para entrar em seu quarto com o fim de roubá-las?
Branwell. Judith tinha a impressão de que o nome de seu irmão ressonava sobre o pesado silêncio.
-
Não pôde ser um estranho - seguiu Horace. - Não a menos que seja um homem muito resoluto ou que
tenha um cúmplice na casa. Como ia saber qual era o quarto correto? Como ia sair triunfante sem que ninguém o
detectasse? Como ia conseguir que ninguém sentisse sua falta no salão? Houve alguém que desaparecesse do
salão embora fosse somente um momento?
Branwell.
Todo mundo pareceu falar em uníssono depois da pergunta. Todo mundo tinha uma opinião, uma sugestão
ou um comentário assombrado sobre o roubo. Judith inclinou a cabeça para sua avó.
-Quer se sentar, vovó? – perguntou. - Está tremendo.
Ambas tomaram assento e Judith começou a lhe esfregar as mãos. – As encontraremos – disse - Não se
preocupe.
Mas que distância teria percorrido seu irmão a essa altura? E aonde se dirigia? O que faria com as joias? As
empenhar? As vender? Era certo que não as venderia. Certo que ainda ficava uma fresta de honra em sua
consciência. Seu irmão se encarregaria de que as joias fossem devolvidas. Mas como conseguiria redimir-se?
- Não é tanto pelo valor das joias - disse-lhe sua avó - mas pelo fato de que foi seu avô quem as me deu de
presente. Quem pode me odiar deste modo, Judith? Um ladrão entrou em meu quarto. Como vou voltar ali
agora?
Sua voz soava trêmula e fatigante. Murcha e derrotada.
Tio George e Horace tomaram o controle da situação.
Enviaram o mordomo em busca dos criados para interrogá-los. Judith queria levar sua avó ao andar de cima,
mesmo que fosse ao seu próprio quarto, onde a anciã poderia estar tranquila e Tillie poderia lhe levar uma taça de
chá e todo o necessário para que trocasse de roupa. Entretanto, sua avó não consentiu mover-se.
Foi um processo longo e tedioso que não levaria a nenhum lugar, tal e como Judith compreendeu durante há
seguinte meia hora. O que lhe era mais surpreendente era o fato de que ninguém tivesse sentido ainda falta de
Branwell. Tio George perguntou se algum criado estivera no segundo andar, na ala dos quartos, no começo do
baile. Três deles assentiram, incluindo a criada com a qual ela deu um encontrão a caminho de seu quarto. Todos
tinham boas razões para estar ali e todos estavam trabalhando em Harewood tempo suficiente para contar com a
confiança de seus senhores.
-
E ninguém mais subiu? - inquiriu tio George com um suspiro.
-
Se me permite, senhor - disse a criada, - a senhorita Law esteve lá em cima.
Todos os olhos se viraram em direção a Judith, que sentiu que se ruborizava.
-
Subi para trocar os brincos da vovó – explicou. - Os que usava antes a machucavam. Mas o porta-joias
estava em seu lugar quando estive ali e as joias também. Apanhei os brincos, soltei os que levava e retornei aqui.
O roubo deve ter sido depois. Foi... me deixem pensar. Foi no primeiro descanso do baile.
-
Mas você saía de seu quarto, senhorita - disse a criada. - Saiu dali como um tufão e demos um encontrão.
Recorda?
-
Sim - respondeu Judith. - Os brincos que vovó queria estavam em minha bolsa de mão desde a tarde que
fomos a Grandmaison.
-
Então deve ser quando retornava ao salão quando esteve a ponto de tropeçar comigo, prima - interveio
Horace. - Tinha a respiração entrecortada. Parecia muito assustada. Mas sim, posso confirmar que foi no
primeiro descanso.
-
Judith, carinho. - Sua avó estava à beira das lágrimas. - Enviei-a ali e poderia tê-la enviado à morte. E se
tivesse encontrado o ladrão? Poderia tê-la golpeado na cabeça.
-
Não aconteceu nada, vovó - tranquilizou-a Judith. Quem dera tivesse se encontrado com Bran. Poderia
ter evitado todo esse pesadelo.
-Bom - disse Horace com voz resoluta, - teremos que começar a procurar e já.
-
Que desagradável - comentou tio George. - Não podemos revistar os aposentos dos convidados e não
acredito que ao ladrão tenha ocorrido esconder as joias em qualquer outro aposento da casa.
-
Bom, eu não tenho inconveniente em que revistem meus aposentos - afirmou Horace. - De fato, pai,
insisto que seja o primeiro.
-
Se me permite o atrevimento, sir George - disse o mordomo, que acabava de dar um passo à frente, permito de forma voluntária que se reviste meu quarto e os de toda a criadagem, a menos que alguém tenha uma
objeção. Se alguém a tiver, que diga agora.
Os criados guardaram silêncio. Depois de tudo, quem ia objetar quando ao fazê-lo se transformaria no
centro de todas as suspeitas?
Lorde Braithwaite limpou a garganta.
-
Pode revistar meus aposentos, senhor - disse-lhe.
O resto dos convidados expressou seu acordo com um murmúrio generalizado, embora Judith supusesse que
a maioria o fez a contra gosto. Que revistassem os aposentos seria uma espécie de violação que os faria sentir,
embora fosse por uns instantes, que eram suspeitos do roubo. Mas manteve a boca fechada.
-
Quer ir a seus aposentos, vovó? - perguntou a anciã uma vez que tio George, Horace, o mordomo e Tillie
abandonaram o salão. - Ou os meus se preferir?
-
Não. -Sua avó parecia mais abatida do que Judith jamais a tinha visto. - Ficarei aqui. Espero que não
encontrem as joias. Não é absurdo? Prefiro não voltar as ver jamais, a saber que alguém desta casa as roubou. Por
que não me pediu quem quer que as tenha levado? Tenho muitas. Teria dado alguma a qualquer parente, amigo
ou criado que estivesse em apuros. Mas suponho que a pessoa é muito orgulhosa para pedir ajuda, não é?
Julianne soluçava entre os braços de sua mãe, sem perder em nenhum momento um ápice de sua beleza.
-
A noite acabou sendo odiosa - choramingou. - Aborreci-me cada minuto da noite e estou segura de que
todos a proclamarão desastrosa e jamais voltarão a aceitar nosso convite.
A criadagem seguia guardando silêncio. Os convidados tinham formado pequenos grupos e conversavam em
voz baixa, claramente envergonhados.
Transcorreu outra meia hora antes que o grupo que terminava a revista retornasse, todos eles com
expressões muito sérias.
-
Encontramos isto - elevou-se a voz de tio George sobre o silêncio que acabava de cair sobre o salão de
baile. - Tillie a reconheceu. Estava no porta-joias de minha sogra - mostrou a bolsa de veludo cor borgonha que
normalmente continha as joias mais valiosas. Era óbvio que estava vazia. - E isto, que também formava parte de
suas joias. - Entre o polegar e o indicador da outra mão sustentava um solitário brinco de diamantes.
Os apenas audíveis murmúrios cessaram imediatamente. - Alguém tem algo que dizer a respeito? - perguntou
tio George. - Ambos os objetos se encontraram no mesmo aposento.
De Branwell, pensou Judith, o que lhe revolveu o estomago.
Ao que parece ninguém desejava pronunciar-se.
-
Judith - disse seu tio com voz baixa e carente de toda emoção, - a bolsa estava no fundo de uma das
gavetas de sua penteadeira. O brinco estava no chão, quase oculto atrás da porta.
Judith teve a sensação de que contemplava seu tio do fundo de um túnel muito extenso e escuro. Sentiu que
sua mente até se esforçava por decifrar os sons que tinham saído dos lábios do tio George, tentando convertê-los
em palavras.
-
Onde escondeu o resto, Judith? - perguntou-lhe no mesmo tom de voz - Não está em seu quarto.
-
O que? - Não sabia muito bem como tinha conseguido pronunciar algo. Nem sequer estava segura de que
seus lábios tivessem dado forma a essa palavra.
-
Não tem sentido fingir que tudo deve ser um equívoco prosseguiu seu tio - Judith, roubou joias muito
valiosas, pertencentes a sua própria avó.
-
Moça ingrata e malvada! -gritou tia Effingham com voz estridente. - depois de tudo o que tenho feito por
você e sua desprezível família. Será castigada por isso, escuta bem o que digo. Alguns delinquentes são
pendurados por muito menos.
-
Deveríamos ordenar que trouxessem um oficial - interveio Horace. - Peço desculpas a todos os outros
por estar lavando em público os trapos sujos da família. Se soubesse que se tratava de Judith teríamos mantido
em silêncio para poder investigar quando todo mundo se retirasse para dormir. Mas como íamos imaginar?
Judith estava em pé sem ser consciente de haver-se levantado - Eu não roubei nada - afirmou.
-É claro que não. É claro que não o fez - disse sua avó, que voltou a segurar sua mão. - Está claro que isto é
um engano, George. Judith é a última pessoa que me roubaria algo.
-
E contudo -acrescentou Julianne com evidente desprezo. - não tem nem um xelim, vovó. Não é certo,
Judith?
-
E seu irmão está até o pescoço de dívidas - assinalou Horace. - Devo confessar que suspeitei dele assim
que Tillie nos informou de sua descoberta. Alguém mais percebeu que desapareceu no meio do baile? Temo que
foi porque lhe lembrei certa dívida sem importância que devia resolver comigo. Ocorreu-me que podia ter feito
uma estupidez, embora me aborrecesse o fato de expressar minhas suspeitas em voz alta. Mas ao que parece foi
Judith.
-
Ou Judith em conspiração com Branwell - conjeturou tia Effingham. - É isso, moça perversa? É essa a
razão de que as joias não estejam em seu quarto? Seu irmão fugiu com elas?
-
Não, não e não! - gritou sua avó - Judith não fez nada errado. Essa bolsa... Eu... eu a dei a Judith para que
guardasse nela algumas de suas coisas. E o brinco. Judith está acostumada a levar porque me machucam, igual
aos que uso agora mesmo. Deve ter caído quando os levava de volta e nenhuma das duas nos demos conta.
-
Isso não há quem acredite, mãe - replicou tio George com o mesmo tom de voz Acredito que todos
deveríamos ir para cama e tentar dormir. Nos encarregaremos de Judith pela manhã. Ninguém terá que suportar
a vergonha de ter que vê-la de novo. Suponho que a enviaremos a sua casa para que seu pai diga o que fazer.
Enquanto isso, devemos ir atrás de Branwell.
-
Pai - disse Horace, - sigo acreditando que deveríamos chamar o oficial e...
-
Não enviaremos Judith a uma cela para provocar um sórdido escândalo que daria que falar por todo o
condado - disse tio George com firmeza.
Judith levou ambas as mãos à boca. Aquilo era muito horrível até para desejar que fosse um pesadelo em que
houvesse opção de despertar.
-
Espero de todo coração que meu irmão lhe de umas chicotadas, Judith - disse tia Effingham, - tal e como
deveria tem feito faz muitos anos. Escreverei para sugerir-lhe. E espero que a encerre em seu quarto esta noite,
Effingham, de modo que não possa nos roubar nenhuma outra coisa enquanto dormimos.
-
Não nos ponhamos melodramáticos - replicou seu marido. - Embora toda a situação tenha uma
desagradável semelhança com o pior dos melodramas. Judith, vá para seu quarto e fique ali até que a mande
chamar pela manhã.
-
Vovó. - Judith se virou para a anciã com as mãos estendidas. Entretanto, esta tinha as mãos unidas com
força sobre o regaço e nem sequer ergueu a vista.
-
Branwell está endividado - disse em voz baixa, de maneira que só Judith pudesse escutá-la - e não me
disse isso. Teria dado qualquer uma de minhas joias se me tivesse pedido ou se você me tivesse pedido. Acaso
não se deu conta?
A avó acreditava. Acreditava que ela tinha conspirado com Bran para lhe roubar as joias. Foi o pior
momento da noite. - Eu não o fiz, vovó - sussurrou Judith enquanto contemplava como uma lágrima deslizava
pelas mãos da anciã.
Jamais soube como saiu do salão de baile e subiu a seu quarto. Uma vez nele, ficou um longo momento
apoiada contra a porta, aferrando o trinco que havia a suas costas como se a força de seu corpo fosse à única
coisa a se interpor entre ela e o universo que acabava de desabar sobre sua cabeça.
CAPÍTULO 18
Certamente que era muito cedo para fazer uma visita, pensou Rannulf enquanto percorria a cavalo o longo
caminho de acesso a Harewood Grange, sobretudo na manhã posterior a um baile. Entretanto, esteve andando
por seu quarto como um urso enjaulado desde o amanhecer e não fora capaz de matar o tempo nem sequer
quando foi ao térreo, apesar de haver cartas para responder e outro registro no livro de contabilidade que tinha
que estudar.
Assim, decidiu sair com a esperança de encontrar ao menos sir George Effingham de pé e com o
convencimento de que Judith não estaria ainda na cama. Seria para ela tão difícil como a ele conciliar o sono?
Bem, certo que a moça não teria interpretado mal suas intenções a noite anterior. Quais seriam seus sentimentos
para ele?
Que resposta teria pensado lhe dar?
Se fosse outra negativa, teria que aceitá-la.
Era uma ideia deprimente, embora se aferrasse à esperança de que esse impulso magnético que tinha sentido
durante o baile não tivesse sido produto de sua imaginação. É óbvio que não o tinha imaginado. Entretanto, seu
coração pulsava com uma incomum ansiedade enquanto entrava no pátio dos estábulos, deixava Bucéfalo aos
cuidados de um cavalariço e se dirigia a casa.
-
Pergunte a sir George se posso falar em particular com ele disse ao criado que abriu a porta.
Um minuto mais tarde o fizeram passar à biblioteca, onde a noite anterior estivera a ponto de encontrar-se
com um horrível destino. Sir George estava sentado atrás de uma enorme mesa de carvalho, com aspecto
mal-humorado. Mas claro, esse era seu aspecto habitual, refletiu Rannulf. Era a viva imagem de um homem
insatisfeito com seu círculo familiar e que tampouco se sentia muito contente consigo mesmo.
-
Bom dia, senhor - saudou Rannulf. - Espero que todos tenham descansado bem depois da alegre noitada.
Sir George resmungou:
-
Saiu cedo, Bedwyn. Não estou seguro de que Julianne ou o resto se levantaram. Mas queria falar comigo,
não?
-
Será somente um momento, senhor – respondeu - Eu gostaria que me concedesse permissão para falar
em particular com sua sobrinha.
-
Com Judith? - Sir George franziu o cenho enquanto estendia a mão para apanhar uma pluma com a qual
começou a brincar.
-
Acreditei que talvez pudesse dar um passeio com ela - prosseguiu Rannulf. - Com sua permissão, é claro,
e sempre que ela aceite.
Sir George soltou a pluma.
-
Chegou muito tarde - disse o homem. - Partiu.
-
Como partiu? - Rannulf sabia que a família tinha intenção de mandá-la para casa, mas de modo tão
perverso e rápido na manhã posterior a um baile? Dese veria talvez, por ter frustrado os planos de matrimônio de
sua prima?
Sir George deixou escapar um fundo suspiro, se recostou na poltrona e indicou com um gesto a seu
convidado que tomasse assento frente a ele.
-Suponho que será impossível ocultar todos os fatos a você ou a lady Beamish -disse, - embora esperasse, e
ainda tinha a esperança, de que os detalhe mais sórdidos não cheguem aos ouvidos de outros vizinhos. Ontem à
noite nos apresentou uma situação muito desagradável, Bedwyn. As joias de minha sogra foram roubadas no
transcurso da noite e com a revista que fizemos encontramos provas irrefutáveis e inequívocas no quarto de
Judith. Também foi vista abandonando seu quarto de forma apressada durante o baile, quando não havia motivo
algum para que estivesse ali; pouco depois disso, Branwell Law desapareceu. Abandonou Harewood na metade
do baile sem despedir-se de ninguém.
Rannulf permaneceu na cadeira, imóvel.
-
Ordenei a Judith que permanecesse em seu quarto até esta manhã - continuou o homem, - embora me
negasse a fechar a porta com chave ou a deixar alguém montando guarda. Pareceu-me um tanto degradante para
a família tratá-la como uma prisioneira. Minha intenção era enviá-la para casa junto com uma escolta em minha
própria carruagem, com uma carta dirigida a seu pai. Esta carta. - Deu um tapa numa folha de papel dobrada e
selada que se encontrava sobre a mesa. - Mas quando esta manhã me dirigi a seu quarto acompanhado por uma
criada e chamei a sua porta, não obtive resposta. O quarto estava vazio. A maioria de seus pertences, se não
todos, continuam ali, mas não há rastros dela. Fugiu.
-
Acredita que foi para casa? - perguntou Rannulf, rompendo o pesado silêncio.
-
Duvido - respondeu sir George. - Meu cunhado é um homem rigoroso. Não é o tipo de pessoa que
acudiria uma mulher em semelhantes circunstâncias de forma voluntária. E, além disso, seu irmão não estará lá,
não acha? Suponho que terão planejado se encontrar em algum lugar e dividir o roubo. Essas joias devem valer
uma fortuna considerável, embora minha sogra jamais me permitisse guardar as mais valiosas em um lugar
seguro.
-
O que pensa fazer agora? - perguntou Rannulf.
-
Quem dera pudesse me manter a margem - respondeu o homem com evidente franqueza.- São os
sobrinhos de lady Effingham e os netos de sua mãe. Mas ao menos devemos recuperar as joias. Imagino que
agora que fugiram e têm que ser perseguidos é muito tarde para lutar com o problema de um modo discreto.
Suponho que terão que enfrentar à justiça e passar um tempo no cárcere. Não é uma perspectiva aduladora.
-
Os perseguirão? - perguntou Rannulf. Sir George suspirou de novo.
-
Dirigiremos o assunto com discrição o quanto seja possível - respondeu, - embora com uma casa a
transbordar de criados e convidados seria como tentar refrear o vento. Meu filho irá atrás deles manhã pela
manhã, assim que nossos convidados partam. Acha, e devo estar de acordo com ele, que seu único destino
possível é Londres, posto que levam só as joias e nada de dinheiro e não é algo do que possam desprender-se
com facilidade. Os perseguirá e os deterá ele mesmo se tiver sorte... se todos tivermos sorte. O mais provável é
que tenha que solicitar os serviços dos agentes de Bow Street.
Permaneceram sentados em silêncio durante um breve intervalo de tempo antes que Rannulf ficasse em pé
de repente. - Não o entreterei mais, senhor - disse- Pode estar seguro de que ninguém, salvo minha avó, saberá
nada disto através de mim. -Isso lhe honra. - Sir George ficou em pé. - É um assumo do mais desagradável.
Rannulf andou o caminho de acesso à propriedade no lombo de seu cavalo com mais rapidez que quando
chegou. Deveria ter suposto que ia acontecer algo assim. Ele mesmo estivera a ponto de ver-se comprometido
com a senhorita Effingham apesar de que não era o principal inimigo no que concernia a Horace Effingham. Sua
maior humilhação tinha provindo das mãos de Judith. Sua intenção seria que o castigo recaísse sobre ela.
E tinha escolhido um castigo bastante desagradável que sem dúvida não faria mais que piorar.
Sua avó se encontrava em seu salão privado, escrevendo uma carta. A anciã lhe sorriu e deixou a pluma de
um lado quando Rannulf entrou na sala depois de pedir permissão.
-
Que maravilhoso é ver que o sol brilha de novo - comentou lhe. - Eleva os ânimos, não lhe parece?
-
Vovó. - Rannulf cruzou a distância que os separava e tomou uma das mãos da anciã entre as suas. - Devo
deixá-la por alguns dias. Talvez um pouco mais.
-
Ah! - Lady Beamish não perdeu seu sorriso, mas seu olhar se tornou menos brilhante - ou se, é claro,
sente-se inquieto. Entendoo.
Rannulf levou a mão de sua avó aos lábios. - Alguém roubou as joias da senhora Law ontem à noite durante
o baile - explicou - e a culpa recai inteiramente sobre Judith Law. Encontraram provas em seu quarto.
-
Não, Rannulf! –exclamou. - Não pode ser.
-
Fugiu em algum momento da noite - prosseguiu, - o que consegue, em minha opinião, que a acusação
tenha mais peso.
A anciã o olhou sem piscar.
-
Jamais acreditaria algo semelhante da senhorita Law - disse-lhe. - Mas pobre Gertrude. Essas joias tinham
um enorme valor sentimental para ela.
-
Eu tampouco acredito que Judith o tenha feito - disse Rannulf. - Vou a sua procura.
-
Judith - repetiu sua avó - percebeu que é Judith para você, Rannulf, não?
-
Fui esta manhã até Harewood para lhe propor matrimônio - respondeu.
-
Bom. - Sua voz tinha recuperado sua costumeira vivacidade. - Será melhor que não se atrase mais.
Quinze minutos mais tarde, lady Beamish se encontrava no terraço, ereta como uma vela e sem necessidade
de apoiar-se em nenhum lugar, para se despedir de seu neto enquanto este abandonava os estábulos no lombo de
seu cavalo.
Sem dúvida Judith teria se assustado muito ao ter permitido que sua mente analisasse a natureza do apuro no
qual se encontrava. Estava sozinha sem mais posses que uma bolsa com seus pertences mais imprescindíveis. Ia a
caminho de Londres, onde esperava chegar depois de uma caminhada de uma semana ou possivelmente duas. Na
realidade não tinha a menor ideia de quanto tempo levaria. Não tinha dinheiro para comprar uma passagem em
uma diligência nem para passar a noite em uma estalagem nem para conseguir comida. Nem sequer sabia como ia
encontrar Branwell quando chegasse a Londres -se é que chegaria-, nem tampouco se seria muito tarde para
recuperar as joias e devolver a sua avó.
Por agora, tinha a certeza de que a perseguiriam. Logo apareceria algum homem - tio George ou um oficial
ou, o que era pior, Horace- cavalgando atrás dela para levá-la arrastada ao cárcere. Depois de ter fugido de
Harewood não teria a opção de que a enviassem de volta para casa. De qualquer modo, não estava muito certa de
que esse fosse um destino melhor que o cárcere. Como ia enfrentar seu pai quando era impossível demonstrar
sua inocência e ninguém podia demonstrar tampouco à de Bran?
Não, foi à simples perspectiva de enfrentar a horrível desgraça de retornar para casa e ver como Bran caía do
pedestal que sempre ocupou o que a tinha convencido pouco antes do amanhecer de fugir a pé enquanto ainda
tivesse a oportunidade. A facilidade com que conseguiu foi surpreendente. Tinha esperado encontrar-se com
alguém montando guarda em sua porta ou ao menos no vestíbulo do térreo.
Negava-se a deixar se arrastar pelo pânico. Depois de tudo, do que ia servir-lhe? Avançava com dificuldade
pelo caminho nessa tarde que era mais calorosa no momento, concentrada em mover um pé depois do outro e
em viver o presente conforme se apresentasse. Embora fosse muito mais fácil pensar que fazer. Pela manhã cedo
tinha viajado durante três ou quatro quilômetros na carreta de um granjeiro que fora bastante amável para
compartilhar com ela uma parte de pão duro. Depois tinha bebido água em um pequeno arroio. Mas mesmo
assim, seu estômago começava a grunhir pela fome e se sentia um pouco enjoada. Doíam-lhe os pés e estava
certa de que tinha criado outra bolha. A bolsa que transportava parecia pesar uma tonelada.
Era difícil não ceder à autocompaixão no melhor dos casos. E ao pânico mais absoluto no pior.
O medo lhe provocou um calafrio nas costas quando escutou o som dos cascos de um cavalo atrás dela.
Tratava-se de um só cavalo, pensou, não de uma carruagem. Já tinha acontecido várias vezes durante o dia, mas
tinha interrompido sua marcha para esconder-se atrás dos arbustos até que o caminho ficava livre de novo. Judith
se aferrou à esperança de sentir-se aliviada ao ver passar um cavalo estranho montado por um cavaleiro
desconhecido.
Entretanto, esse cavalo não passou longe. Diminuiu o passo quando chegou junto dela -Judith rogou que
fosse coisa de sua imaginação- e trotou durante um instante justo a suas costas. Não pensava olhar, embora se
preparasse para qualquer coisa. Um chicote? Correntes? Um corpo humano que se lançava sobre ela e a jogava
no chão? Escutava os ensurdecedores batimentos de seu coração nos ouvidos.
-
Está dando um passeio? -perguntou-lhe uma voz familiar. - Ou se dirige a algum lugar?
Judith se virou com rapidez e ergueu a vista em direção a lorde Rannulf Bedwyn, que parecia enorme e um
tanto ameaçador no lombo de seu cavalo. Deteve sua montaria e a estava olhando com seriedade apesar do tom
ligeiro de suas palavras.
-
Não é assunto seu, lorde Rannulf – respondeu - Pode seguir seu caminho.
Mas aonde ia esse homem? Retornava para casa?
-
Não se apresentou à entrevista que tínhamos esta manhã - disse-lhe, - assim que me vi obrigado a segui-la
a cavalo.
A entrevista! Tinha-a esquecido por completo.
-
Não me diga que esqueceu - acrescentou como se acabasse de lhe ler a mente. - Isso seria muito
humilhante, sabe?
-
Talvez não lhe tenham dito... - começou Judith.
-
Disseram-me sim.
-
Bom - seguiu ao perceber que o homem não pensava dizer nada mais, - nesse caso pode prosseguir seu
caminho ou retornar, lorde Rannulf, o que mais lhe convenha. Não terá nenhum desejo de relacionar-se com
uma ladra.
-
Isso é o que é? - perguntou ele.
Escutar essa pergunta de seus lábios resultou terrivelmente doloroso para Judith.
-
As provas eram irrefutáveis - respondeu.
-
Sim, sei - replicou ele - Não obstante, é uma ladra da mais inepta, Judith. Não deveria ter deixado provas
em seu quarto sabendo que cedo ou tarde acabariam encontrando-a.
Judith ainda não podia entender por que Bran tinha escondido a bolsa em seu quarto. O brinco
compreendia. Aterrorizado pela pressa, deve tê-lo deixado cair sem dar-se conta. O chão estava atapetado. Era
impossível escutar o tinido do brinco. Mas a bolsa... A única explicação que fora capaz de encontrar era que seu
irmão sabia que suspeitariam dele num primeiro momento e deu por feito que não revistariam seu quarto. Tinha
escondido a bolsa em sua penteadeira, supunha, como prova particular de sua culpa e como garantia de que
devolveria seu conteúdo tão rápido quanto fosse possível era uma explicação muito satisfatória... mas não lhe
ocorria outra coisa.
-
Não sou uma ladra – corrigiu - Não roubei nada.
-
Eu sei.
Sabia? Confiava nela? Ninguém o fez e era provável que ninguém o fizesse.
-
Aonde vai? - perguntou lorde Rannulf. Judith apertou os lábios e o olhou nos olhos.
-
Suponho que a Londres - acrescentou ele. - Acho que é um passeio muito agradável.
-
Não é de sua incumbência - replicou Judith. - Volte para Grandmaison, lorde Rannulf.
Não obstante, o homem se inclinou para diante na sela e estendeu uma mão para ela. Judith recordou com
claridade outra ocasião idêntica a essa e a primeira impressão que lhe causou esse homem: grande, forte, de
compleição bronzeada, de olhos azuis e nariz proeminente, com uma juba loira excessivamente longa,
absolutamente bonito, mas sim possuidor de uma perturbadora atração. Nesse momento era só Rannulf e pela
primeira vez desde que amanheceu sentiu desejo de tornar a chorar.
-
Me dê à mão e apoia o pé em minha bota - disse-lhe. Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
-
Sabe quanto demoraria para chegar a Londres andando? - perguntou-lhe.
-
Não farei todo o trajeto caminhando - respondeu Judith. - E como sabe que Londres é meu destino?
-
Tem dinheiro?
Ela voltou a apertar os lábios.
-
A levarei a Londres, Judith - disse-lhe. - E a ajudarei a encontrar seu irmão.
-
Como sabe que...?
-
Me dê à mão - ordenou-lhe.
Judith se sentiu derrotada e, ao mesmo tempo e por estranho que parecesse, reconfortada por sua enorme
presença, pelo fato de que soubesse o que tinha acontecido e por sua insistência em que cavalgasse com ele. Fez
o que lhe ordenava e imediatamente voltou a encontrar-se sentada na parte dianteira de sua sela de montar, a
salvo entre seus braços e suas pernas.
Como desejava que o tempo retrocedesse para poder reviver a aventura que os unira três semanas atrás e
mudar os acontecimentos posteriores.
-
O que pensa fazer quando o encontrar? - perguntou-lhe. - Entregá-lo às autoridades? Enviá-lo a prisão?
Poderia haver algo pior para ele que isso? Poderia ser...? -Judith foi incapaz de completar a espantosa
possibilidade.
-
Isso quer dizer que é culpado? - inquiriu ele.
-
Está muito endividado - respondeu, - e seus credores até o seguiram a Harewood como método de
pressão para que pague.
-
Acaso todos os homens endividados roubam as joias de suas avós? - perguntou Rannulf.
-
Bran sabia de sua existência - respondeu ela. - Inclusive viu o porta-joias. Brincou a respeito de como as
joias poderiam tirá-lo do apuro. Ao menos acreditei que era uma brincadeira. Ontem à noite me procurou na
metade do baile para me dizer que partia, que tinha a intenção de resolver suas dívidas e fazer uma fortuna em
pouco tempo. Estava muito nervoso. Não deixava de olhar a todo lado, como se esperasse que alguém se
lançasse sobre ele para detê-lo.
Não consentiu que o acompanhasse para me despedir.
-
A evidência parece entristecedora - comentou Rannulf.
-
Sim.
-
Igual no seu caso.
Judith virou a cabeça de repente para olhá-lo de frente. - Acha que sou culpada! –gritou. - Por favor,
deixe-me descer. Deixe-me descer!
-
O que quero dizer - prosseguiu o homem. - é que no momento as evidências enganam. Como é óbvio
que acontece no seu caso.
Judith o olhou sem pestanejar.
-
Então, acha que é possível que Branwell seja inocente? perguntou-lhe.
-
Quem mais pôde roubar as joias? - perguntou Rannulf por sua vez. - Quem mais tinha um motivo além
de vocês dois?
-
Ninguém - respondeu Judith com o cenho franzido. - Ou talvez um grande número de pessoas a quem
era tentadora a perspectiva de uma fortuna.
-
Exato - conveio ele. - Isso reduziria o número de culpados a noventa por cento da população inglesa.
Quem poderia ter algum motivo para arruinar a seu irmão e a você?
-
Ninguém. - O cenho de Judith se acentuou. - Todos admiram o encanto de Bran e sua natureza alegre.
Quanto a mim ninguém...
-
É quando menos uma possibilidade, não acha? - disse ele ao ver que seus olhos se arregalavam.
-
Horace? - A possibilidade era agonizantemente encantadora, posto que dessa maneira Branwell seria
considerado inocente.
-
Não resta dúvida de que tinha arquitetado um plano horrível para mim - recordou-lhe.
Entretanto, não podia aceitar uma hipótese pelo mero feito de que desejasse acreditar. Salvo que tanto a
bolsa oculta na gaveta como o brinco encontrado no chão teriam muito mais sentido se Horace fosse o culpado.
-
De qualquer modo devo encontrar Bran - disse, - embora só seja para pô-lo de sobre aviso. Preciso saber
a verdade.
-
Sim - conveio ele, - isso é certo. Quando comeu pela última vez?
-
Esta manhã – respondeu. - Mas não tenho fome.
-
Mentirosa – replicou. - Claire Campbell também tentou me enganar a respeito. Não sei se sabe que o
orgulho pode matá-la de fome. Dormiu ontem à noite?
Ela negou com a cabeça.
-
Nota-se - afirmou Rannulf. - Se este fosse nosso primeiro encontro, poderia confundi-la com uma mulher
medianamente atraente sem mais.
Judith não pôde evitar tornar a rir, embora imediatamente teve que levar uma mão aos lábios e tragar várias
vezes a fim de não começar a chorar como uma Madalena.
Uma das mãos de Rannulf afrouxou as fitas do chapéu, atadas sob o queixo. Assim que o tirou - era o
chapéu que lhe deu, - voltou a atar as fitas desajeitadamente na cela da montaria. Ato seguido, puxou-a até
deixá-la apoiada sobre seu corpo e a obrigou a colocar a cabeça sobre um de seus ombros.
-
Não quero ouvir nenhuma palavra mais de seus lábios até que cheguemos a uma estalagem de aspecto
respeitável onde possa lhe dar de comer - disse-lhe.
Não deveria ter se sentido tão à vontade. Ou talvez não estivesse. De repente se encontrava muito cansada
para pensar. Não obstante, sentia sob ela os fortes e sólidos músculos do peito e o ombro masculinos; cheirava
essa colônia ou o que quer que fosse que o fazia único; e tanto sua cabeça como seu chapéu a protegiam dos
raios do sol. Deixou-se levar por um agradável estado de sonolência e se imaginou deitada e a salvo no fundo de
um navio viking enquanto Rannulf permanecia em pé na popa, com um aspecto magnífico e em atitude
protetora. Ou de pé junto a ele no topo de uma colina enquanto a brisa agitava seu cabelo saxão e sua túnica,
sabendo que ele enfrentaria qualquer guerreiro feroz que ousasse invadir suas terras e o venceria sem ajuda de
ninguém. Judith teria acreditado que estava dormindo e sonhando se não tivesse sido consciente do que sonhava
e de não ter tido a capacidade de dirigir o sonho ao seu desejo.
Queria confiar nele como se fosse o eterno herói da mitologia.
CAPÍTULO 19
Deixou passar ao longe a estalagem porque adormeceu sobre seu ombro e supôs que precisava do sono
tanto como da comida. Deteve-se na seguinte estalagem decente e insistiu que Judith comesse absolutamente
tudo o que lhe serviram, ainda que depois de alguns bocados afirmasse que era incapaz de comer mais.
Já estava bem avançada à tarde. Não conseguiriam chegar a Londres essa noite. Pensou por um momento em
alugar uma carruagem e ir até Ringwood Manar, em Oxfordshire. Aidan confessou com evidente ternura em
Londres, enquanto arrumava todos os assuntos relativos à venda de seu cargo no exército com a impaciência
nascida do desejo de retornar junto a sua esposa, que Eve tinha uma forte tendência a dar proteção a todo tipo de
pessoas necessitadas e que a maior parte delas acabavam empregadas em sua casa. Ela aceitaria Judith mesmo que
a Aidan não parecesse bem e a olhasse com desconfiança. Talvez sua cunhada pudesse oferecer a Judith alguma
coisa do consolo que precisava.
Ainda que não achasse verdadeiro consolo até que encontrasse seu irmão, até que se convencesse acima de
qualquer dúvida de que ele não tinha nada a ver com o roubo das joias de sua avó. E não teria consolo, supôs
Rannulf, até que as joias e o ladrão tivessem aparecido e tanto ela como Branwell fossem inocentados de toda
culpa.
-
Será melhor irmos - disse Judith enquanto deixava a faca e o garfo sobre o prato vazio. - A que hora
chegaremos a Londres? Acha que Bran estará em seu alojamento?
-
Judith - começou ele, - está a ponto de cair de cansaço.
-
Tenho que encontrá-lo - afirmou ela. - E deve ser antes que venda as joias, no caso de que as tenha.
-
Não chegaremos a Londres esta noite - disse-lhe. Ela o observou com uma expressão vazia. - E embora o
fizéssemos disse, - não serviria de nada. Estaria dormindo em pé. Quase está agora mesmo.
-
Não deixo de pensar - confessou Judith - que vou despertar e descobrir que tudo isto não é mais que um
pesadelo. Tudo: os esbanjamentos de Bran, a carta em que minha tia convidava a uma de nós a viver em
Harewood e tudo o que aconteceu depois.
Incluído o que tinha acontecido durante sua viagem? Rannulf a contemplou em silêncio uns instantes. De
verdade fora a noite anterior quando sentiu esse forte vínculo com ela e se convenceu de que Judith aceitaria a
proposta de matrimônio que pensava lhe fazer essa manhã?
-
Será melhor que fiquemos aqui esta noite – disse. - Assim poderá descansar como é devido e estar pronta
para sair cedo pela manhã.
Ela levou as mãos ao rosto por um momento e sacudiu a cabeça; mas quando o olhou, em seus olhos havia
uma expressão de cansaço e resignação.
-
Por que saiu em minha busca? - perguntou. Ele compôs uma careta.
-
Possivelmente depois do desastre que esteve a ponto de acontecer com a senhorita Effingham - declarou,
- alegrasse-me ter alguma desculpa para evitar futuras visitas a Harewood Grange. Possivelmente estivesse farto
de me sentir preso no campo. Possivelmente não me fizesse graça à ideia de que Horace Effingham fosse seu
único perseguidor.
-
Horace também saiu em minha busca?
-
Está a salvo comigo - assegurou ele. - Mas preferiria que compartilhássemos um quarto esta noite. Repito
que está a salvo comigo. Não tentarei lhe impor meus cuidados.
-
Nunca o fez. - Ela o olhou com cansaço. - Estou muito esgotada para me levantar sequer da cadeira.
Talvez fique aqui toda a noite. - Esboçou um sorriso extenuado.
Rannulf ficou em pé e foi em busca do hospedeiro. Alugou um quarto em nome do senhor e a senhora
Bedard e retornou ao salão, onde Judith ainda continuava sentada com os cotovelos sobre a mesa e o queixo
apoiado nas mãos.
-
Vamos - disse antes de colocar uma mão sobre seus ombros e notar quão tensos tinha os músculos.
Apanhou sua bolsa de viagem com a outra mão.
Ela ficou em pé sem dizer uma palavra e o precedeu através do salão e a escada em direção ao quarto que lhe
tinha indicado.
-
Vão subir água quente – disse. - Tem tudo o que precisa?
Ela assentiu.
-
Dorme - ordenou Rannulf, - passarei o que resta da tarde lá em baixo para não lhe incomodar. Dormirei
no chão quando voltar.
Ela cravou a vista nas tábuas nuas do chão, igual a ele.
-
Não há nenhuma necessidade - afirmou.
Rannulf pensou que era mais que necessário. Jamais tinha forçado uma mulher. Seus apetites sexuais, embora
saudáveis, nunca tinham escapado a seu controle. Entretanto, o controle de todo homem tinha um limite. Apesar
de cansada, poeirenta e desarrumada como estava, Judith era todo um festim para a vista.
-
Dorme – disse - e não se preocupe com nada.
É claro, isso era mais fácil de dizer que fazer, admitiu Rannulf quando saiu do quarto para dirigir-se ao bar,
onde se sentou em um lugar do qual podia contemplar a entrada do local. Mesmo que chegassem a encontrar seu
irmão e ele alegasse que não era culpado -coisa que Rannulf sabia que faria-, mesmo que Judith chegasse a
acreditar, ainda teriam que provar sua inocência ante o resto do mundo. E mesmo que conseguisse fazê-lo, seu
irmão continuaria sendo um esbanjador que por certo estaria bastante endividado para arruinar sua família.
Rannulf se perguntou se ele teria sido tão ocioso e esbanjador se não tivesse contado com uma fortuna
pessoal com a qual financiar seus maus hábitos. Não estava nada seguro de qual seria a resposta.
Judith se lavou da cabeça aos pés com água quente e sabão antes de colocar a camisola que havia trazido
consigo, além de um vestido limpo e a roupa interior indispensável. Deitou-se na cama, quase enjoada pelo
cansaço, com a certeza de que dormiria assim que apoiasse a cabeça no travesseiro.
Entretanto, não foi assim.
Vieram-lhe à mente milhares de ideias e imagens, todas elas muito deprimentes. Durante duas horas, deu
voltas e mais voltas na cama; obrigou-se a manter os olhos fechados para não ver a luz do sol e a não escutar os
ruídos que procediam tanto do exterior como do interior da animada estalagem. Estava a ponto de voltar a
chorar pelo cansaço e a necessidade de encontrar algo que lhe proporcionasse um alívio momentâneo quando
por fim jogou as mantas de um lado e se levantou. Afastou o cabelo do rosto e se colocou junto à janela, com as
mãos apoiadas no batente. Estava escurecendo. Se tivesse seguido o caminho, nesse momento se encontrariam
duas horas mais perto de Londres.
Bran, pensou, onde está, Bran?
Teria na verdade roubado as joias? Transformou-se em um ladrão além de todo o resto? Seria ela capaz de
fazer algo para salvá-lo? Ou essa perseguição era inútil?
Em todo caso, se fora Branwell, por que deixou a bolsa de veludo na penteadeira? Teria muito mais sentido
que Horace o tivesse feito. Mas como poderia provar?
Nesse instante lhe veio à mente um pensamento muito reconfortante que não tinha ocorrido antes. Se Bran
tivesse decidido saldar suas dívidas roubando à avó, não teria roubado todas as joias. Teria tomado somente as
suficientes para cobrir os gastos. Teria pego somente algumas com a esperança de que jamais sentissem falta
delas, ou ao menos que demorassem para perceber sua ausência de maneira que as suspeitas não recaíssem sobre
ele. Não teria feito algo tão incriminador como fugir na metade do baile se tivesse roubado todas, não é?
Não obstante, a culpa poderia tê-lo feito fugir em lugar de pensar com lógica, como faria qualquer ladrão de
sangue-frio.
Apoiou a testa contra o cristal da janela e soltou um suspiro no mesmo momento em que a porta se abria
com cuidado a suas costas. Virou-se um pouco assustada, mas era só Rannulf, que a olhava com o cenho
franzido.
-
Não consigo dormir - disse ela se desculpando. O homem se incomodou em alugar esse quarto para que
ela pudesse descansar bem e nem sequer estava deitada.
Fechou a porta com firmeza e cruzou o pequeno quarto até chegar a seu lado
-
Está muito cansada – disse - e também muito nervosa. Tudo sairá bem, verá. Prometo-lhe isso.
-
E como pode me prometer isso? - perguntou.
-
Porque decidi que tudo sairá bem - afirmou com um sorriso, - e eu sempre saio com a minha.
-
Sempre? - Judith sorriu com pesar.
-
Sempre. Vem aqui.
Puxou-a pelos ombros e a estreitou contra seu peito.
Ela virou a cabeça e apoiou a face sobre seu ombro antes de suspirar. Rodeou-lhe a cintura com os braços e
se abandonou ao delicioso prazer que lhe reportavam essas mãos que esfregavam suas costas de cima abaixo,
enquanto seus dedos se afundavam nos músculos tensos para obrigá-los a relaxar-se.
Tudo sairá bem...
Porque decidi... e eu sempre saio com a minha.
Despertou do atordoamento ao dar-se conta de que a levava nos braços para cama e a depositava sobre o
colchão.
-
Mmm. - Olhou-o com olhos sonolentos. Rannulf estava sorrindo de novo.
-
Em outras circunstâncias - disse, - teria me ofendido muitíssimo que uma mulher caísse adormecida assim
que a abraço. - inclinou-se sobre ela para apanhar o outro travesseiro. - Não durma no chão - pediu Judith. - Por
favor, não o faça.
Continuava meio acordada quando dois minutos depois um peso adicional afundou a outra metade do
colchão e sentiu um agradável calor nas costas. Subiu-lhe as mantas até os ombros, conseguindo que se desse
conta que sentia-se gelada. O braço que as tinha subido rodeou a cintura com firmeza e a aproximou para o
corpo que lhe proporcionava calor. E então se deixou levar por um delicioso e profundo sono.
Rannulf despertou quando as primeiras luzes do amanhecer começaram a encher de tonalidades cinza o
quarto. Ainda dormindo, Judith acabava de virar-se para ele e se esfregou brandamente contra seu corpo. Seu
cabelo, conforme pôde notar, emoldurava seu rosto em selvagem desordem e caía sobre seus ombros.
Santo Deus, quem o fazia passar por essa prova de dor insuportável? Acaso quem quer que fosse não sabia
que ele era humano? Era muito cedo para levantar e começar a preparar a viagem. Segundo seus cálculos, Judith
teria dormido umas cinco ou seis horas, mas precisava de mais.
Podia notar seus seios contra o peito nu, suas coxas contra as suas. Seu corpo estava relaxado e quente.
Entretanto, já não podia se permitir o luxo de vê-la como Claire Campbell, a atriz experiente em questões de
sexo. Era Judith Law e era a mulher que amava.
Fez o firme propósito de elaborar uma lista de seus defeitos. Cenouras. A cor de seu cabelo se parecia com o
das cenouras, segundo a descrição de sua mãe. Tinha sardas. Se entrasse um pouco mais de luz no quarto,
poderia vê-las. E tinha uma covinha junto à comissura direita da boca... Não, isso não contava. Uma covinha não
era um defeito. Que mais? Que o Senhor o ajudasse, não havia nada mais.
E nesse preciso instante, ela abriu esses olhos sonolentos emoldurados por longas pestanas. Tampouco
encontraria nenhum defeito neles.
-
Achei que estava sonhando - disse com essa voz rouca que utilizou Claire Campbell.
-
Não.
Olharam-se um ao outro sob as luzes da alvorada: ela com os olhos semicerrados; ele com a sensação de um
homem que se afoga e tenta convencer-se de que não está mais em um barco. Desejava com desespero que
houvesse um pouco mais de espaço entre eles. Judith estava a ponto de perceber de forma física sua perfídia a
qualquer momento, face à presença de suas calças de montar, que não tirou em nome do decoro.
E então ela elevou uma de suas cálidas mãos e lhe roçou os lábios com os dedos.
-
É um homem incrivelmente bom - disse-lhe. - Ontem à noite me prometeu que tudo sairia bem e falava
sério, não é assim?
Também lhe tinha prometido que estaria a salvo dele. E já não estava seguro de ser capaz de manter essa
promessa.
-
Falava sério.
Ela afastou a mão e a substituiu por seus lábios.
-
Obrigada – sussurrou. - Uma noite de descanso conseguiu que tudo pareça diferente. Agora me sinto
muito segura.
-
Se soubesse o perigo que corre - advertiu ele, - sairia fugindo de camisola.
Sorriu-lhe... mostrando sua covinha.
-
Não referia a esse tipo de segurança - disse antes de voltar a beijá-lo.
-
Judith - disse Rannulf, - não sou de pedra.
-
Nem eu tampouco - replicou ela. - Não tem a menor ideia do quanto senti falta que me abraçasse... bom,
que me abraçasse.
Nem sequer nesse momento podia ter a certeza de que aquilo não fosse algo reprovável, de que não estivesse
se aproveitando de sua vulnerabilidade. Entretanto, ele não era nenhum herói extraordinário sem sentimentos
nem necessidades. Que Deus; o ajudasse, não era mais que um homem.
Estreitou-a com mais força entre seus braços e separou os lábios para introduzir a língua no calor interior de
sua boca. Da garganta de Judith brotou um profundo gemido de satisfação enquanto o rodeava com um de seus
braços e finalmente Rannulf se deu por vencido.
Deitou-a de costas, tirou os botões das calças, liberou-se sem tirá-la e lhe levantou a camisola até a cintura.
-
Judith - sussurrou quando se estendeu sobre ela, - está segura de que quer fazer isto? Se não for assim,
detenha-me. Detenha-me agora.
-Rannulf... - murmurou ela em resposta. - Deus, Rannulf...
O momento não deixava lugar a preliminares. Era evidente que ela estava tão preparada como ele.
Colocou-lhe as mãos sob o corpo para levantá-la um pouco do colchão e se introduziu até o fundo nela.
Foi como uma estranha volta ao lar. Rannulf a soltou para apoiar o peso sobre os antebraços e a olhou.
Devolveu-lhe o olhar com os lábios entreabertos, os olhos semicerrados por causa do sono e do desejo, e o
cabelo esparramado ao seu redor sobre o travesseiro e os lençóis.
-
Lutei com todas minhas forças para que isto não acontecesse - disse Rannulf.
-
Sei. - Ela esboçou um novo sorriso. - Jamais o culparia. De nada.
Pegou-lhe as mãos e as cruzou por cima da cabeça antes de entrelaçar os dedos com os seus e deixar cair
sobre ela. Deu-se conta de que Judith o rodeava com as pernas. Penetrou-a com investidas rítmicas e profundas,
deleitando-se com a suavidade e a cálida umidade que o rodeavam; agradecido pelo estado de relaxamento em
que ela se encontrava em princípio e muito mais agradecido pela maneira em que se adaptou a seu ritmo passado
um instante e começou a contrair os músculos internos ao seu redor para arrastá-lo ao que seria um poderoso e
satisfatório clímax.
Ele moveu a cabeça para beijá-la. – Deixe-se ir - disse-lhe.
-
Sim.
Rannulf se deu conta de que era a primeira vez em sua vida que chegava ao topo da paixão em uníssono com
uma mulher, a primeira vez que gritavam juntos e desciam, saciados e satisfeitos, pela mão. Sentiu-se bem além
do imaginável.
Separou-se dela, segurou-lhe as mãos e se deixou levar pelo sono durante uns minutos. Quando voltou a
abrir os olhos, descobriu que Judith tinha virado a cabeça para ele. Contemplava-o com um meio sorriso nos
lábios. Tinha um aspecto ruborizado, satisfeito e estava incrivelmente linda.
-
Bem, isto deixou claro uma coisa. - disse Rannulf enquanto lhe apertava a mão: - quando todo este
assunto estiver resolvido, nos casaremos.
-
Não - replicou ela. - Isto não foi uma armadilha, Rannulf. Ele franziu o cenho imediatamente.
-
E o que foi exatamente?
-
Não estou certa - admitiu ela. - Nos últimos dias houve uma espécie de... loucura entre nós. Não
pretendo conhecer o motivo pelo qual queria ver-me ontem pela manhã, mas acredito que faço uma ideia. Teria
sido um terrível engano. Eu poderia haver dito que sim, sabe?
Mas que demônios estava dizendo?
-
E por que dizer sim teria sido um engano?
-
Sim. - Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça – Nos olhe, Rannulf. Estamos tão longe na escala social
que até na melhor das circunstâncias nosso matrimônio seria considerado de uma estranheza. Mas estas não são
as melhores circunstâncias.
-
Mesmo que Branwell não tivesse roubado as joias, mesmo que pudesse ser exonerado de toda culpa, ele
continuaria em apuros e nós continuaríamos sendo pobres. Cresci em uma reitoria rural e você na mansão de um
duque. Jamais encaixaria em seu mundo e você jamais poderia se rebaixar ao meu.
-
Não acha que o amor iguala tudo? - perguntou ele. Não podia acreditar que ele, Rannulf Bedwyn, fizesse
semelhante pergunta.
-
Não. - Judith negou com a cabeça. - Além disso, não existe o verdadeiro amor. Somente a estima,
conforme acredito, e certo... certo desejo. - Olhou-o nos olhos.
-
É isso o que acaba de acontecer? - perguntou Rannulf. - Não foi mais que desejo?
O olhar de Judith titubeou durante um breve instante. -e estima - afirmou ela. - Nós gostamos um do outro,
não é certo?
Ele se sentou na beira da cama e abotoou as calças.
-
No geral não me deito com mulheres só porque me estimam - declarou.
-
Mas também há o desejo - disse ela. - O desejo mútuo. Não pode me negar que foi difícil deitar comigo
na cama sem me tocar, Rannulf. Também me custou muito. O desejo não é algo exclusivo dos homens.
Ele não soube se enfurecia-se ou se ria. Se alguma vez tivesse imaginado semelhante conversa, sem dúvida os
papéis estariam investidos. Teria sido ele que recusaria com delicadeza qualquer sugestão de que se tratou de um
encontro amoroso em lugar de um meramente sexual.
-
Suponho que isso dá por terminado o descanso - disse antes de ficar em pé. - Vista-se, Judith; enquanto
isso irei alugar uma carruagem para o resto do caminho. E desta vez nem lhe ocorra fugir.
-
Não o farei - prometeu ela.
Estava a ponto de anoitecer quando chegaram a Londres. Não tinham trocado mais que uma dúzia de frases
em todo o dia. Judith tinha uma desolação mais que acrescentar ao resto de suas preocupações.
Não podia casar-se com ele. Tinha estado a ponto de deixar-se seduzir pela loucura dois dias atrás. Tinha-lhe
parecido quase uma possibilidade. Mas isso acabou. Não, jamais poderia casar-se com ele. De qualquer modo,
alegrava-se de que o sucedido da semana passada a permitisse ao menos apreciá-lo e admirar suas nobres
qualidades... que eram muitas. Alegrava-se pelo acontecido essa manhã. Alegrava-se de amá-lo. Tinha recuperado
seu sono roubado, que provavelmente duraria toda a vida uma vez que se dissipasse a dor. Porque ia haver dor,
sem nenhuma dúvida.
Jamais esteve em Londres. Sabia que era grande, mas nunca teria imaginado que nenhuma cidade pudesse ser
tanto. Parecia estender-se até o infinito. As ruas estavam flanqueadas por edifícios e cheias de gente, de veículos e
do ruído das rodas, dos cavalos e dos gritos das pessoas. Entretanto, qualquer assombro se viu imediatamente
esmagado pelo pânico.
Como ia encontrar Branwell?
Esperou, ou isso acreditou, que não teria mais que deter-se em alguma estalagem ou em qualquer outro
edifício público, pedir que lhe dessem umas informações e depois seguiria sem mais problemas... e alguns
minutos depois de sua chegada a Londres.
-
Isso tem fim? - perguntou como uma estúpida.
-
Londres? - inquiriu ele. - Não é meu lugar favorito no mundo. Por desgraça, a primeira vista é a pior.
Achará Mayfair mais tranquilo, mais limpo e mais espaçoso que isto.
-
Ali é onde vive Branwell? - perguntou Judith. - Acha que o encontraremos em casa?
-
É provável que não - afirmou ele. - No geral, os cavalheiros não resistem passar muito tempo em suas
residências.
-
Espero que volte para casa em algum momento da noite - declarou ela quando toda a ansiedade do dia
anterior retornou com renovadas forças. - O que faremos se não o fizer? Acha que o caseiro nos permitirá
esperá-lo em seus aposentos?
-
O mais provável é que tenha uma apoplexia se mencionar essa hipótese - advertiu Rannulf. - Não é
habitual que as damas solteiras visitem os cavalheiros, acompanhadas unicamente por outro cavalheiro, se por
acaso não sabia.
-
Mas eu sou sua irmã. - Ela o contemplou com incredulidade.
-
Me atreveria a dizer - acrescentou ele - que os caseiros conheceram um grande número de irmãs.
Judith o olhou nos olhos, incapaz de falar durante um instante.
-
E o que acontecerá se não puder vê-lo hoje? – perguntou. - Não posso lhe pedir que espere fora toda a
noite sentado na carruagem; tenho que...
-
Não vou levá-la a seus aposentos - disse Rannulf. - Irei em outro momento, sozinho.
-
O que? - Judith o olhou sem compreender.
-
Vou levá-la para casa de meu irmão - disse - A Bedwyn House.
-
À casa do duque de Bewcastle!? - Contemplou-o com horror.
-
Pode ser que Bewcastle e Alleyne sejam os únicos que se encontrem em casa - aventurou ele, - neste caso
terei que pensar em outro lugar para levá-la... a casa de tia Rochester, mais provável; embora ela seja uma espécie
de dragão e arrancaria a cabeça para tomar o café da manhã se apenas a encarasse.
-Não penso ir à casa do duque de Bewcastle - disse ela, horrorizada. - Vim aqui para encontrar Branwell.
-
E o encontraremos - afirmou Rannulf, - se é que em efeito veio a Londres. Mas agora está em Londres,
Judith. É o cúmulo da indecência que tenhamos vindo até aqui sozinhos, sem criada nem acompanhante alguma.
Mas esta falta de decoro será a última enquanto estiver aqui. Tenho que pensar em minha reputação, como bem
sabe.
-
Que coisa mais absurda - disse ela. - Absurda por completo, encontrarei o caminho sozinha.
Rannulf era irritantemente a viva imagem da tranquilidade.
Estava ligeiramente reclinado sobre o encosto, com um pé apoiado sobre o assento em frente. E teve a
audácia de lhe sorrir. - Tem medo - disse Rannulf. - Medo de enfrentar Bewcastle.
-
Não é verdade. - Estava morta de medo.
-
Mentirosa.
A carruagem parou quando ela estava tomando fôlego para replicar como se merecia. Deu uma olhada pela
janela e percebeu que, em efeito, encontravam-se em uma parte mais tranquila e espaçosa de Londres. A um lado
da carruagem se elevava uma fileira de altos e majestosos edifícios, no outro lado havia um pequeno parque e
atrás dele outra fileira de edifícios. Devia ser uma das praças de Londres! A porta se abriu e o cocheiro se
apressou a desdobrar os degraus.
Isto é Bedwyn House? - perguntou Judith.
Rannulf se limitou a sorrir uma vez mais, desceu da carruagem e lhe ofereceu a mão para ajudá-la a descer.
Ia vestida com um folgado vestido de algodão que esteve dobrado no interior de sua bolsa de viagem durante
tudo o dia anterior e que tinha usado durante toda a jornada do caminho. Não tinha escovado nem arrumado o
cabelo desde essa manhã. E o tinha esmagado sob o chapéu todo o tempo. Devia ter um aspecto espantoso. Para
completar, ela não era outra que Judith Law, da reitoria de Beaconsfield, fugitiva e suspeita de roubo, que se
dirigia ao encontro de um duque.
A porta da casa já estava aberta quando ela desceu da carruagem. Um instante depois, um mordomo de
aspecto régio informou a lorde Rannulf de que em efeito Sua Excelência estava em casa e que se encontrava no
salão. Precedeu-os pela enorme escada para o segundo andar. Judith pensou que lhe teriam dobrado os joelhos se
não a tivesse chamado de mentirosa quando tinha afirmado que não tinha medo e se a mão de Rannulf não a
segurasse pelo cotovelo.
Um criado abriu uma enorme porta dupla assim que chegaram à parte superior da escada e o mordomo se
deteve entre as duas folhas.
-
Lorde Rannulf Bedwyn, Excelência - anunciou.
Rannulf a tinha olhando durante um segundo no térreo, mas não havia tornado a fazê-lo depois.
Para seu mais absoluto espanto, Judith comprovou ao passar através das portas que na sala havia mais de
uma pessoa. Quatro, para ser exatos: dois homens e duas mulheres.
-
Ralf, velha raposa - disse um dos homens, que se pusera em pé imediatamente, - já retornou? Escapou
ileso das garras da vovó uma vez mais? - calou-se de repente quando viu Judith.
Era um jovem alto, esbelto, moreno e incrivelmente charmoso; a única coisa que o identificava como irmão
de Rannulf era o proeminente nariz. Uma das damas, a mais jovem e bonita, parecia-se muito com ele. A outra
era loira, como Rannulf; tinha o cabelo comprido e encaracolado e o usava solto. Igual a ele, sua tez era morena e
possuía umas sobrancelhas escuras e um nariz grande.
Não foram mais que impressões fugazes. Judith manteve de forma deliberada os olhos separados do outro
homem, que nesse preciso momento estava se pondo de pé. Até sem olhá-lo, sabia que era o duque.
-
Rannulf? - disse o homem com leve arrogância, algo que a Judith provocou uma onda de desassossego e
um calafrio nas costas.
Ao olhá-lo descobriu que a observava fixamente com as sobrancelhas elevadas, enquanto essa mão de dedos
longos mantinha o monóculo a meio caminho do rosto. Era moreno e magro, igual ao irmão mais novo, com o
nariz da família e uns olhos de um cinza tão claro que teria sido mais preciso descrevê-los como prateados. Tinha
uns traços frios e arrogantes que pareciam carecer de humanidade. Para falar a verdade, tinha o aspecto que
Judith tinha esperado. Era, apesar de tudo, o duque de Bewcastle.
-
Tenho a honra de lhes apresentar à senhorita Judith Law manifestou Rannulf enquanto lhe apertava o
cotovelo com a mão - Senhorita Law, minhas irmãs, Freyja e Morgan. E meus irmãos, Bewcastle e Alleyne.
As damas a olhavam com altivo desdém, pensou Judith enquanto fazia a reverência. O irmão mais novo a
olhava de cima abaixo com os lábios franzidos e uma patente admiração nos olhos. - Senhorita Law - disse o
jovem. - É um prazer.
-
Senhora - disse o duque marcando mais as distâncias. Seus olhos se moveram até seu irmão. - Sem dúvida
deixou à donzela da senhorita Law lá em baixo, não é assim, Rannulf?
-
Não há tal donzela - replicou Rannulf antes de soltar o braço de Judith. - A senhorita Law fugiu de
Harewood Grange, perto de Grandmaison, depois de ser acusada de roubar a sua própria avó e eu saí a cavalo
em sua busca. Temos que encontrar seu irmão, que talvez tenha as joias, embora seja muito provável que não seja
assim. Enquanto isso deve ficar aqui. Alegra-me descobrir que Freyja e Morgan também vieram de Lindsey Hall,
porque desse modo não terei que levá-la até tia Rochester.
-
Ah, ah... - disse lorde Alleyne. - Então se lançou em uma aventura de capa e espada, Ralf? Esplêndido!
Senhorita Law - disse o duque de Bewcastle com uma voz suave e fria que, por surpreendente que parecesse,
não congelou o ar sobre sua cabeça, - bem-vinda a Bedwyn House.
CAPÍTULO 20
Não tenho dúvida - disse Wulfric, duque de Bewcastle, enquanto segurava com elegância uma taça de brandy
em uma mão e sustentava o monóculo na outra de forma relaxada- de que está a ponto de me explicar o motivo
de que albergue em minha casa à suspeita de um roubo de joias, que dá a casualidade de ser uma jovem que
carece de acompanhante, Rannulf.
-
E que além disso, no que se refere a beleza, supera em muito a média -acrescentou Alleyne com um
sorriso. - Suponho que isso deveria ser explicação suficiente, Wulf.
Bewcastle tinha convidado Rannulf que o seguisse à biblioteca depois de ordenar à governanta que
acompanhasse Judith a um quarto de hóspedes. Semelhante convite raras vezes tinha um motivo amistoso.
Alleyne os tinha acompanhado sem necessidade de que o convidassem. Seu irmão mais velho passou por cima do
comentário de Alleyne e fez de Rannulf o objeto de sua indiferente atenção; embora a possuísse de forma
enganosa. Seu olhar seguia sendo tão perspicaz como de costume.
-
É Judith Law, sobrinha de sir George Effingham, vizinho de vovó - explicou Rannulf. - Estava vivendo
em Harewood Grange como dama de companhia da mãe de lady Effingham que não é outra que sua própria avó.
Durante estes quinze dias se celebrou uma festa campestre na propriedade. O irmão da senhorita Law assistiu
como convidado; é um mequetrefe que desfruta de uma vida de luxuosa ociosidade, muito acima dos meios
econômicos que lhe proporciona seu pai, um clérigo rural. Segundo minhas hipóteses, a família está à beira da
ruína.
-
Então a senhorita Law - disse Wulfric depois de dar um gole em seu brandy. - é uma parenta pobre que
residia nem Harewood. Seu irmão está até o pescoço de dívidas. E a avó de ambos possui, ou melhor, possuía
joias muito valiosas.
-
Desapareceram durante um baile - prosseguiu Rannulf. - Igual a Branwell Law. Entretanto, uma das joias
foi descoberta no quarto da senhorita Law, junto com uma bolsa de veludo vazia onde se costumava guardar as
peças mais valiosas.
Não há dúvida de que é incriminador - comentou Wulfric em voz baixa enquanto arqueava as sobrancelhas.
-
Muito incriminador - conveio Rannulf. - Até o mais inexperiente dos principiantes o teria feito melhor.
-
Bom, bom! -exclamou Alleyne com júbilo. - Alguém armou uma armadilha. Algum vilão ruim. Tem
alguma ideia de quem pode ser, Ralf?
O duque se virou para seu irmão mais novo com o monóculo a meio caminho de seu olho.
-
Não convertamos isto em uma comédia, por favor, Alleyne - disse-lhe.
-
Pois não está muito errado - afirmou Rannulf. - Horace Effingham, o filho de sir George, tentou impor
suas atenções à senhorita Law durante uma festa ao ar livre que foi celebrada em Grandmaison faz coisa de uma
semana. Teria conseguido se eu não tivesse passado por ali bem a tempo para lhe dar uma boa surra. A noite do
baile tentou vingar-se de mim e esteve a ponto de me apanhar em um elaborado plano para encontrar a sua irmã
e a mim em uma situação comprometedora que teria me obrigado a pedir sua mão em matrimônio; a senhorita
Law me salvou de semelhante destino. Foi durante esse mesmo baile quando o jovem Law partiu de Harewood
de forma repentina e as joias da senhora Law desapareceram.
-
Uns acontecimentos incríveis - comentou Alleyne. - E enquanto todo esse folguedo tinha lugar em
Leicestershire, eu me vi obrigado a permanecer aqui, mostrando a Morgan todos os lugares interessantes.
Wulfric tinha soltado o monóculo. Com os olhos fechados, pressionava a ponte do nariz com o polegar e o
dedo do meio. - E por isso a senhorita Law fugiu e você a seguiu - disse - Quando foi isso, Rannulf?
-
Ontem - respondeu.
-
Já vejo. - Wulfric afastou a mão de seu rosto e abriu os olhos. - E seria um atrevimento perguntar onde
passou a noite?
-
Em uma hospedaria. - Rannulf semicerrou os olhos. - Olhe, Wulf, se isto for um interrogatório sobre
mi...
Seu irmão ergueu a mão e Rannulf guardou silêncio. As pessoas tendiam a fazer isso com Wulf, pensou,
irritado consigo mesmo num simples gesto -embora só arqueasse uma sobrancelha- e Bewcastle regia seu mundo.
-
Nem sequer considerou - perguntou o duque- na possibilidade de que lhe tenham armado outra
armadilha ainda mais arteira, Rannulf? Que possivelmente a dama seja pobre, avara e ambiciosa?
-Se tem pensado fazer qualquer outro comentário de semelhante natureza - replicou Rannulf enquanto
apoiava as mãos nos braços da poltrona e se erguia - será melhor que guarde isso, Wulf; a menos que a seguinte
coisa que queira fazer seja procurar seus dentes.
-
Bravo! - exclamou Alleyne com uma nota de admiração. Wulfric se limitou a apertar o cabo do monóculo
com os dedos enquanto erguia as sobrancelhas.
-
Presumo - continuou o duque - que se apaixonou pela dama, estou certo? A filha de um clérigo rural
pobre e a beira da ruína? Uma juba ruiva e certos atributos... digamos que generosos o têm feito perder a cabeça?
Os caprichos deste gênero tendem a nublar o pensamento racional Rannulf. Está seguro de que seu bom senso
não está nublado?
-
Horace Effingham se ofereceu como voluntário para perseguir os Law até Londres - explicou Rannulf. Minha hipótese é que não lhe bastará somente apanhá-los. Quererá encontrar provas que demonstrem acima de
qualquer dúvida que eles são os ladrões.
-
Se quer deixar provas falsas, frustraremos seus intentos - interveio Alleyne. - Conheço-o de vista, Ralf.
Um tipo lisonjeador de dentes grandes, não é? Alegro-me muito descobrir que é um canalha ruim. Sim senhor, a
vida se animou sobremaneira desde esta manhã.
Wulfric voltou a beliscar a ponte do nariz.
-
O que necessito - disse Rannulf - é encontrar Branwell Law. Duvido muito que esteja em seu alojamento
a estas horas. O mais provável é que esteja em algum lugar tentando fazer uma fortuna com as cartas. Mas de
qualquer modo darei uma volta para ver se o encontro.
-
Para isso existem os criados - replicou Wulfric. - É quase hora do jantar, Rannulf. Não há dúvida de que a
senhorita Law se sentirá muito mais incômoda que antes se você não se sentar à mesa. Enviarei um criado e se
estiver em casa, poderá ir pessoalmente mais tarde.
-
Ela está decidida a ir pessoalmente - informou Rannulf.
-
Nesse caso terá que dissuadi-la - asseverou o duque. - Como está vovó?
Rannulf voltou a reclinar-se na poltrona. - Morrendo - respondeu.
Semelhante resposta ganhou a completa atenção de seus irmãos.
-
Não dirá nada a respeito – disse. - Está tão elegante, independente e ativa como sempre. Mas não há
dúvida de que está muito doente. Morrendo, de fato.
-
Não falou com seu médico? - perguntou Wulfric. Rannulf negou com a cabeça.
-
Teria sido uma invasão de sua intimidade.
-
Pobre vovozinha - disse Alleyne. - Sempre pareceu imortal.
-
Assim, este assunto da senhorita Law - interveio Wulfric - deve esclarecer-se sem mais demora. Vovó o
necessitará em Grandmaison, Rannulf. E eu quero vê-la uma vez mais. A noiva que escolheu para você era por
acaso a senhorita Effingham que mencionou? A família provém de uma linhagem respeitável, embora não
brilhante.
-
Mudou de opinião - explicou Rannulf. - Vovó, quero dizer... Já sabia que eu ia à procura de Judith.
-
Judith!? - exclamou seu irmão em voz baixa, erguendo de novo as sobrancelhas. - Vovó a aceita? Por
regra geral tenho em alta estima suas opiniões.
Mas não as de seu próprio irmão, pensou Rannulf com pesar.
Ficou em pé.
-
Enviarei um criado disse.
Judith se levantou cedo na manhã seguinte, embora tenha dormido surpreendentemente bem durante toda a
noite. O quarto de hospedes que lhe tinham atribuído era de um esplendor opulento. Inclusive tinha um
espaçoso quarto de vestir contíguo. A enorme cama com dossel era suave e muito confortável e tinha um ligeiro
aroma de lavanda. Contudo, não acreditou que pudesse dormir.
Estar em Bedwyn House era sem dúvida a experiência mais embaraçosa de toda sua vida. Os irmãos de lorde
Rannulf se comportaram com absoluta correção durante o jantar e a hora que seguiu a este no salão. Entretanto,
havia se sentido muito deslocada. A ideia de sair de seu quarto essa manhã lhe era muito desalentadora.
Não tinham localizado Branwell. A noite anterior foi enviado um criado a seu alojamento, mas seu irmão não
estava ali. Depois de dizer que ela mesma iria pela manhã, o duque de Bewcastle levou o monóculo ao olho, lorde
Rannulf a proibiu de modo cortante e lorde Alleyne lhe havia dito com um sorriso que deixasse tudo nas mãos de
Rannulf. Mas isso não era o que tinha ido fazer em Londres. Embora a ideia de abandonar seu quarto fosse
desalentadora, a de deixar Bedwyn House era duas vezes mais.
Quinze minutos depois de sair da cama, Judith se encaminhava à sala de café da manhã no térreo usando um
vestido que uma das criadas devia ter engomado durante a noite. Preparou-se mentalmente para encontrar-se de
novo com a família completa, mas descobriu com grande alívio que a sala estava vazia salvo pelo mordomo, de
pé junto ao aparador, de onde lhe fez uma reverência e lhe sugeriu alguns dos pratos que talvez gostasse de
provar, ao tomar o café da manhã, de entre a desconcertante variedade disponível. O homem lhe serviu uma
xícara de café assim que se sentou.
Era um alívio estar sozinha, mas não restaria outro remédio que ir a procura de lorde Rannulf depois do café
da manhã. Necessitava-o para que lhe indicasse a direção de Branwell. E também esperava que a acompanhasse
até ali.
Entretanto, não permaneceu sozinha durante muito tempo. Antes que tivesse sido capaz de comer dois
bocados, a porta se abriu para dar passagem a lady Freyja e lady Morgan, ambas vestidas com seus trajes de
montar de elegante desenho. A presença das duas damas aterrorizou Judith, que se desprezou por deixar que essa
arrogância aristocrática tivesse semelhante efeito sobre ela.
-
Bom dia - saudou.
As mulheres lhe devolveram a saudação antes de começarem a encher seus pratos no aparador.
-
Saíram a dar um passeio a cavalo? - perguntou Judith com educação quando ambas se sentaram.
-
Em Hyde Park - respondeu lady Freyja. - É um exercício do mais insípido depois de ter tido até poucos
dias todo o terreno de Lindsey Hall e dos campos que se estendem a seu redor para galopar.
-
Foi você quem insistiu que eu deveria vir à cidade, Free - replicou lady Morgan, - apesar de meus
protestos.
-
Porque queria que visse alguns dos monumentos mais importantes - disse sua irmã, - além de resgatá-la
da sala de aula e das garras da senhorita Cowper durante uma semana ou duas.
-
Tolices! - negou lady Morgan. - Ambas sabemos que não foi essa a razão. Senhorita Law, oxalá tivesse sua
cor de cabelo. Deve ser a inveja de todas suas amizades.
-
Obrigada - respondeu Judith, surpreendida. Tinha-lhe envergonhado o fato de não ter nenhuma touca
consigo. - Lorde Rannulf saiu cavalgar com vocês? Estou esperando-o para que me acompanhe esta manhã ao
alojamento de meu irmão. Espero poder empreender a volta para casa esta tarde. - Embora não estivesse muito
segura de como ia chegar até lá. Teria que pedir a Rannulf o dinheiro para pagar a diligência, supunha.
-
Sim, e por certo - respondeu lady Freyja, - tinha que lhe dizer quando voltasse para casa que não se
preocupe com nada absolutamente, que Ralf se encarregará de tudo em seu nome.
Judith ficou em pé de um salto, arrastando a cadeira para trás com a parte traseira dos joelhos.
-
Mas Branwell é meu irmão – disse - Encontrá-lo deve ser minha preocupação, não de lorde Rannulf. Não
penso ficar aqui como uma boa garotinha, sem ter uma só preocupação em minha linda cabecinha, e deixar que
um homem se encarregue de meus assuntos em meu lugar. Vou encontrar Bran, tanto com ajuda de alguém ou
não para chegar a seu alojamento. E não me importa o fato de que em Londres uma dama não possa visitar um
cavalheiro a sós. Que coisa mais absurda quando o cavalheiro não é outro que o próprio irmão. Desculpem-me,
por favor.
Judith não era muito dada a demonstrar tais estalos de temperamento, mas a sensação de impotência que a
acossava desde que chegou a Harewood Grange quase três semanas atrás acabou por encher sua paciência.
-
Maravilhoso! - exclamou lady Freyja, contemplando-a com manifesta e surpreendida aprovação. Julguei-a injustamente, senhorita Law; ao menos espero de todo coração tê-lo feito. Tinha-a tomado por uma
desprezível aproveitadora. Entretanto, já vejo que é você uma mulher muito parecida comigo. Os homens podem
ser criaturas das mais ridículas, em especial os cavalheiros com seu arcaico sentido de galanteria para com as
damas. Irei com você.
-
E eu também - adicionou lady Morgan com entusiasmo. Sua irmã a olhou com o cenho franzido.
-
Será melhor que não, Morgan - disse a sua irmã. - Wulf pediria minha cabeça. Já foi bastante ruim que a
trouxesse para Londres sem lhe consultar primeiro. Quando me chamou à biblioteca falou em voz tão baixa que
era quase um sussurro. E me aborreço que faça isso, sobretudo quando sou incapaz de reprimir o impulso de lhe
gritar em resposta. Consegue pô-la em uma horrível desvantagem... como muito bem sabe. Não, deve ficar em
casa.
-
Não há necessidade de que nenhuma das duas me acompanhe - apressou-se a dizer Judith. - Não preciso
de acompanhante.
-
Ah! Mas eu sou incapaz de me privar da diversão de visitar os aposentos de um cavalheiro - assegurou
lady Freyja enquanto deixava seu guardanapo junto ao prato sem terminar e ficava em pé. - Sobretudo quando há
joias roubadas e vingadores em busca de justiça para acrescentar emoção.
-
Wulf pedirá sua cabeça de qualquer modo, Free - predisse lady Morgan.
Judith e lady Freyja abandonaram Bedwyn House pouco depois. Caminharam até que estiveram bem longe
da praça e depois lady Freyja deteve uma carruagem de aluguel a cujo condutor deu a direção de Branwell.
Judith descobriu que sua acompanhante despertava nela uma enorme curiosidade. Lady Freyja Bedwyn ia
vestida com um elegante vestido de passeio em cor verde e usava o cabelo penteado sob um elegante chapéu que
Judith supôs que seria a última moda. Era uma mulher de baixa estatura e deveria ser feia com essas sobrancelhas
escuras tão incongruentes, sua compleição bronzeada e o nariz proeminente. Entretanto, havia algo em seu rosto
que a livrava de ser pontuada de feia; uma arrogância inconsciente, algo que falava de um caráter decidido. Quase
podia dizer-se que era atraente.
O ânimo de Judith melhorou com a confiança de saber que por fim ia ver Bran, de saber que por fim poderia
escutar a história de seus próprios lábios. Esperava de todo coração que seu irmão pudesse negar implicação
alguma no roubo das joias da avó; mas mesmo que isso não fosse possível, talvez pudesse chegar a tempo de
salvar algo da situação. Talvez pudesse persuadir Bran que devolvesse as joias e pedisse perdão à avó, por muito
insuficiente que fosse o gesto. Sabia que o tempo era essencial. Agradecia enormemente a Rannulf que a tivesse
seguido e levado a Londres com tanta rapidez.
Por que decidiu Horace esperar todo um dia para sair em sua busca? - perguntava-se. Se tinha a esperança de
pegar Bran com a mão na massa antes que pudesse desfazer-se das joias, não teria sido mais lógico que se pusesse
em marcha naquele mesmo dia? Teria esperado possivelmente porque sabia que não havia pressa? Porque sabia
que Bran não tinha nenhuma joia da qual se desfazer?
Tantas conjeturas que não conduziam a nenhum lugar estavam conseguindo que voltasse a lhe dar voltas à
cabeça.
A viagem resultou ser uma perda de tempo. Branwell não estava em seus aposentos e o caseiro não sabia
quando voltaria.
-
Embora todo mundo estivesse perguntando por ele, ontem à noite e esta manhã –disse. - E agora duas
mulheres. O que nos faltava...
-
O senhor Law é meu irmão - explicou Judith. - Preciso vê-lo imediatamente por... por um assunto
familiar.
-
Ah! -exclamou o homem, as olhando com descaramento e deixando à vista uma fileira de dentes meio
podres. - Já me cheirava que alguma de vocês era sua irmã.
-
Sério, senhor? - perguntou lady Freyja, observando-o com expressão arrogante. - Acaso supôs também
que nos faria graça escutar seus insolentes comentários? Quem mais veio em busca do senhor Law?
O homem baniu a expressão lasciva e seu olhar se tornou mais respeitoso.
-
Isso é confidencial, senhora, vai me perdoar.
-
É óbvio que é - replicou lady Freyja com brutalidade enquanto abria sua bolsa. - E você, como não, é a
integridade personificada. Quem?
Judith arregalou os olhos ao ver que sua acompanhante tirava uma nota de cinco libras de sua bolsa e a
segurava entre o dedo indicador e o coração.
O caseiro umedeceu os lábios e fez gesto de estender uma mão.
- Veio alguém ontem à noite - respondeu, - o criado de um cavalheiro, que usava uma libré azul e prateada.
Esta manhã veio dois senhores e um comerciante pouco depois deles. O último o conhece; o senhor Cooke.
Suponho que o senhor Branwell deve grana a seu sapateiro. Os senhores não conheço nem de vista e não
perguntei, embora se via que os dois eram bem jovens. Depois há chegou outro, pouco antes que vocês. Não
perguntei. E não vou perguntar quem são vocês tampouco.
Lady Freyja lhe entregou o suborno, embora tenha obtido muito pouca informação útil em troca de
semelhante fortuna. Judith estava horrorizada. Ao que parece os credores de Bran ainda seguiam atrás dele.
Quem eram os três cavalheiros? Lorde Rannulf e outros dois homens mais? Ou lorde Rannulf junto com um de
seus irmãos e outra pessoa mais?
Horace? Onde diabo estava Bran? Teria saído tão cedo? A comprar ou empenhar alguma das joias,
possivelmente? Ou teria partido de Londres de novo?
Sentiu que lhe revolvia o estômago.
-
Vamos - disse lady Freyja. - Não conseguiremos mais informação aqui, está claro. -Deu outra direção ao
condutor da carruagem. - Nos leve ao Gunter’s.
-
Sinto muito - desculpou-se Judith. - Não posso lhe reembolsar as cinco libras. Eu... eu parti de
Leicestershire com tanta pressa que esqueci de apanhar dinheiro. Terei que lhe pagar em outra ocasião. – A
pergunta era quando.
-
Bah! - exclamou a mulher, fazendo um gesto depreciativo com a mão. - Isso não é nada. Embora gostasse
de encontrar um pouco mais de diversão. Você não acredita que seu irmão é o ladrão, não é? Eu prefiro mais a
ideia de que seja o senhor Effingham. Vi-o duas vezes. Põe-me arrepiada, embora o tipo tenha toda a pinta de se
acreditar um sedutor consumado.
-
Espero - replicou Judith com ardor - que ele seja o culpado. Embora como vá provar?
Gunter's, conforme comprovou Judith, era uma sorveteria. Pequeno luxo! E, além disso, vendiam gelados
pela manhã. Lady Freyja e ela se sentaram a uma das mesas e Judith comeu o sorvete em pequenas colheradas,
saboreando cada uma delas enquanto deixava que se derretesse na língua antes de tragá-las. Parecia estranho dar
gosto aos sentidos de semelhante modo quando o desastre a esperava depois da esquina.
O que ia fazer a seguir? Não podia continuar hospedando-se em Bedwyn House e tampouco podia continuar
permitindo que lorde Rannulf liderasse suas batalhas. Embora tampouco houvesse esperanças de que pudesse
transferir-se aos aposentos de Branwell e esperar sua volta ali.
O que ia fazer?
O duque de Bewcastle, quando retornou ao amanhecer depois de ter passado a noite com sua amante, tinha
saído a cavalgar com seus irmãos tal e como costumava fazer todas as manhãs. Depois tomou o café da manhã
no White's, mas não se dirigiu a seguir à Câmara dos Lordes posto que a sessão da primavera por fim tinha
finalizado dois dias atrás. Para falar a verdade, se suas irmãs não tivessem chegado de improviso quatro dias
antes, estaria nesse momento em Lindsey Park para passar ali o resto do verão.
Retornou a casa do White's e se retirou à biblioteca com a intenção de ocupar a manhã com a
correspondência. Não tinha passado nem meia hora quando ergueu a cabeça com o cenho franzido ao escutar
que seu mordomo batia na porta e a abria.
-
Um tal senhor Effingham o espera no saguão para vê-lo, Excelência - disse - Digo-lhe que não se
encontra em casa?
-
Effingham? - O cenho do duque se acentuou. O melodrama que tinha acompanhado a volta de Rannulf a
Londres no dia anterior era algo que teria preferido ignorar. Não obstante, era necessário esclarecer todo o
assunto. Devia ir a Grandmaison antes que fosse muito tarde para ver sua avó. - Não, faça-o entrar, Fleming.
Horace Effingham era um completo desconhecido para o duque de Bewcastle. Entretanto, o homem entrou
na biblioteca sorridente e com passo resoluto, como se fossem irmãos de sangue. O duque não ficou em pé.
Effingham cruzou a sala até chegar a mesa e se inclinou sobre esta com o braço direito estendido.
-
Fez bem em me receber, Bewcastle - disse.
Sua Excelência ergueu o monóculo, através do qual contemplou com brevidade a mão que lhe oferecia, antes
de soltar a lente e deixar que se pendurasse de novo na fita que a segurava ao peito.
-
Effingham? – disse. - O que posso fazer por você?
O sorriso do homem se alargou enquanto retirava a mão. Olhou ao seu redor como se procurasse uma
cadeira, mas ao não ver nenhuma perto ficou de pé.
-
Conforme tenho entendido, seu irmão se hospeda de novo aqui - disse-lhe.
-
Sim? - disse Sua Excelência. - Confio que meu mordomo tenha feito o favor de comunicar à cozinheira.
Claro que, é óbvio, tenho três irmãos.
Effingham soltou uma gargalhada.
-
Referia a lorde Rannulf Bedwyn - esclareceu.
-
É claro - disse o duque.
Ao comentário seguiu um breve silêncio durante o qual Effingham pareceu um tanto desconcertado.
-
Devo perguntar a Sua Excelência – começou - se veio acompanhado por uma dama. Uma tal Judith Law.
-
Deve perguntar? - O duque arqueou as sobrancelhas.
Effingham apoiou ambas as mãos na mesa e se inclinou ligeiramente para frente.
-
Possivelmente não saiba – disse - que se ela estiver aqui, está encobrindo uma delinquente fugitiva da
justiça. Isso em si é um delito, Excelência, embora esteja seguro de que não permitirá que siga sob seu teto assim
que conheça a verdade.
-
É um alívio - replicou Sua Excelência, que voltou a apanhar o monóculo. - saber que você me tem em tão
alta estima.
Effingham riu de boa vontade.
-
A senhorita Law está aqui, Bewcastle? - perguntou.
-
Conforme entendi - disse o duque, erguendo a lente, - a violação também é um delito. Embora é claro,
quando a acusação é de intenção de violação não está assegurada a condenação. Entretanto, a palavra de duas
pessoas contra a de uma pode ter certo peso em um tribunal e diante de um jurado, sobretudo quando uma
dessas duas pessoas é o irmão de um duque. Será capaz de encontrar a saída ou devo chamar meu mordomo?
Effingham se endireitou, esquecida toda pretensão de afabilidade.
-
Vou a caminho de contratar os serviços de um agente de Bow Street – disse - Planejo encontrá-los custe
o que custar; sabe, Judith e Branwell Law. E tenho a intenção de recuperar as joias de minha avó. É de supor que
o julgamento e a sentença se verão envoltos em um bonito escândalo. Se estivesse em seu lugar, Excelência, me
separaria de tudo isto e aconselharia a meu irmão que fizesse o mesmo.
-
Agradeço-lhe imensamente - replicou o duque de Bewcastle, elevando o monóculo até colocar-lhe frente
ao olho. - que me estime o suficiente para vir até Bedwyn House e me dar conselhos. Fechará você a porta sem
fazer ruído quando sair?
As comissuras dos lábios de Effingham estavam ligeiramente pálidas. Assentiu muito devagar com a cabeça
antes de dar meia volta e cruzar a sala. Fechou a porta com um sonoro golpe.
Sua Excelência observou tudo com expressão pensativa.
CAPÍTULO 21
Rannulf observou Judith com certa exasperação. Tinha um aspecto vivaz e maravilhoso com esse cabelo
ruivo descoberto; nada a ver com a sombra quase invisível que fora em Harewood. Também tinha saído pela
manhã para aventurar-se em uma área de Londres a qual as damas respeitáveis não se aproximavam e tinha
arrastado Freyja consigo. Não, esse ponto ao menos era injusto. Freyja não teria necessitado que a arrastassem.
Não havia necessidade alguma de que fosse a esse lugar. Judith sabia que ele se encarregaria de comprovar
pessoalmente se seu irmão estava em casa. É claro, Branwell Law não estava ali e todas as perguntas que Alleyne
e ele fizeram em outros lugares semelhantes não tinham encontrado nenhuma resposta. Havia muitos homens
que conheciam Law. Mas nenhum deles sabia onde poderia estar.
Entretanto, Bewcastle entrou na sala antes que pudesse dar uma boa reprimenda em Freyja... posto que não
tinha nenhum direito de tornar-lhe Judith. Talvez fosse melhor. Era muito provável que Judith tivesse
presenciado uma rixa familiar. Wulf chegou a sugerir, com esse tom de voz suave e enganosamente indiferente
que o caracterizava, que talvez fosse no interesse de todos os implicados que se redobrassem os esforços para
encontrar Branwell Law.
-
Acabo de ter a fascinante visita do senhor Effingham – informou. - Parecia ter chegado a desconcertante
hipótese de que dou proteção a delinquentes fugitivos em Bedwyn House. Posto que não recebeu nenhum tipo
de satisfação aqui, sem dúvida procurará em algum outro lugar o suposto fugitivo que possivelmente não tenha
encontrado um lugar seguro onde hospedar-se e que talvez não saiba que precisa encontrá-lo. Suponho, Rannulf,
que não achou o senhor Law em seus aposentos esta manhã, certo?
Rannulf negou com a cabeça.
-
Entretanto, alguém mais foi buscá-lo - interveio Freyja, que ganhou um longo e silencioso olhar dos
olhos prateados de Wulf.
Não obstante, Freyja não se intimidava com facilidade. Limitou-se a devolver o olhar a seu irmão e a lhe
relatar o que Judith e ela acabavam de contar a Rannulf e Alleyne. Acrescentou que tinha subornado o caseiro
para surrupiar a informação de outros visitantes.
Os olhos de Wulf se entrecerraram, ainda que não se separassem de sua irmã. Entretanto, em lugar do
furioso sermão que Rannulf tinha esperado, as seguintes palavras de Bewcastle foram dirigidas a ele.
-
Será melhor que retorne lá, Rannulf - disse. - Cheira a mato sem cachorro, como reza o ditado. Irei
contigo. - Eu também vou - disse Judith.
-
Judith...
-
Disse que eu também vou.
Judith o olhou nos olhos com férrea determinação e pela primeira vez Rannulf se perguntou se não haveria
algo de certo no batido clichê das ruivas e seu temperamento. A única coisa que desejava era ajudá-la a solucionar
todo esse embuste para que a moça se tranquilizasse e assim ele pudesse concentrar-se em seu cortejo. E nessa
ocasião o faria como Deus manda. A transformaria em sua esposa...
-
Nesse caso - disse Bewcastle com um suspiro, - será melhor que Freyja venha também. Será uma
excursão familiar em toda regra.
Partiram em uma das carruagens particulares de Bewcastle; uma muito singela que o duque utilizava quando
não desejava chamar a atenção. Não demoraram em chegar à pensão onde se alojava Law. Rannulf não entendia
do que serviria retornar ali, mas Wulf não se mostrava muito comunicativo.
O caseiro revirou os olhos quando abriu a porta depois de escutar a chamada do cocheiro e viu todos
reunidos em sua soleira.
-
Que o Senhor nos perdoe ao confessar - disse, - aqui vamos de novo.
-
Isso parece - replicou Bewcastle, acabando com a insolência do caseiro mediante um simples olhar
distante que obteve que o homem inclinasse a cabeça de modo respeitoso e desse um puxão no cabelo que lhe
caía sobre a testa. Como conseguia Wulf, até mesmo com desconhecidos? - Conforme tenho entendido, o senhor
Branwell Law é um jovem muito popular esta manhã.
-
Eu que o diga, senhor - disse o homem. - Primeiro um criado ontem à noite, depois esse cavalheiro daí
com outro esta manhã, depois outro senhor e depois as duas damas aí. Pequena manhã temo.
-
E não pôde lhes dar nenhuma informação sobre o senhor Law? - perguntou-lhe Bewcastle. - Os lugares
que frequentou nos últimos dias? A última vez que o viu?
-
Não, senhor. -O homem endireitou as costas tudo o que pôde. - Não dou informação pessoal de meus
inquilinos a ninguém.
-
Uma postura da mais elogiável - replicou Bewcastle. - Alguns homens em sua posição tentariam tirar
algum dinheiro extra por baixo do pano aceitando subornos em troca de informação.
Os olhos do caseiro se desviaram com desconforto para Freyja e retornaram ao duque.
-
Quando viu pela última vez Branwell Law? - perguntou-lhe Bewcastle.
O homem umedeceu os lábios.
-
Ontem à noite, senhor – respondeu - depois que veio o criado. E esta manhã.
-
O que!? - gritou Judith. - Esta manhã não nos disse nada disso.
-
Ah veio depois de que vocês se foram, Senhorita - explicou.
-
Mas poderia ter me dito que esteve aqui ontem à noite - disse Judith. - Disse-lhe que era meu irmão.
Disse-lhe que era um assunto familiar urgente.
Bewcastle ergueu uma mão em um breve gesto conciliador e Rannulf tomou a mão de Judith para colocá-la
sobre seu braço e cobri-la com a sua. A moça estava tremendo; de ira, parecia.
-
O cavalheiro que veio sozinho esta manhã... - seguiu indagando Bewcastle. - Descreva-o, se não for
incômodo.
-
Cabelo loiro, olhos azuis - disse o caseiro. Seus olhos adquiriram uma expressão matreira, observou
Rannulf. - Baixo.
Coxeava.
-
Ah! - exclamou Wulf. - Sim, é claro.
Então não se tratava de Effingham, pensou Rannulf com certa desilusão. Embora o tipo não demorasse em
aparecer. Estava em Londres e já tinha ido a Bedwyn House.
-
Isso é tudo o que posso lhe dizer, senhor - disse o homem, fazendo gesto de fechar a porta.
Bewcastle o impediu com a bengala.
-
Suponho – disse - que não deixaria passar aos aposentos do senhor Law esse cavalheiro coxo, de cabelo
loiro, olhos azuis e baixa estatura, não é?
O caseiro retrocedeu, espantado.
-
Deixá-lo entrar, senhor? – perguntou - Sem que o senhor Law estivesse? Não, é claro que não.
-
Pergunto-me - prosseguiu Bewcastle - quanto lhe pagou. Os olhos do homem se abriram muito.
-
Eu não aceito...
-
Sim, claro que o faz - contradisse-o Bewcastle com suavidade. - Eu não lhe darei nem um xelim. Não
ofereço subornos. Mas o advirto que esta manhã se cometeu um delito nos aposentos de Branwell Law e você
aceitou dinheiro do delinquente ao qual deixou passar aos ditos aposentos, será acusado de cúmplice do delito e
com certeza pagará o preço em um dos famosos cárceres de Londres.
O caseiro o olhou com a boca aberta, os olhos arregalados e uma repentina palidez no rosto.
-
O delinquente? – repetiu - Um delito? Era um amigo do senhor Law. Tinha-o visto com ele antes. Mais
tinha que entrar para apanhar algo que havia se esquecido a última vez que esteve aqui.
-
Nesse caso foi todo um detalhe por sua parte deixá-lo passar - replicou Bewcastle enquanto Judith se
aferrava ao braço de Rannulf com mais força. - Estava sozinho? O homem moreno, refiro-me.
O caseiro umedeceu os lábios e em seus olhos voltou a aparecer a mesma expressão matreira.
-
Me atreveria a dizer - aventurou Bewcastle - que teve que lhe pagar muito bem para que o descrevesse tal
e como o tem feito no caso de que o interrogassem, para lhe permitir passar sem ninguém que o acompanhasse e
para afirmar que o senhor Law esteve aqui ontem à noite e esta manhã, estou certo?
-
Não me pagou muito, não - murmurou o homem depois de uma breve pausa.
-
Pois mais estúpido é você - disse Bewcastle com voz enfastiada.
-
Canalha! - Rannulf soltou a mão de Judith e deu um passo à frente. - Deveria lhe dar uma boa surra. O
que levou dos aposentos? Mais importante ainda, o que deixou ali?
O caseiro retrocedeu acovardado e ergueu ambas as mãos. - Não sabia que ia fazer algo mau - defendeu-se. Juro que não.
-
Guarde essas patéticas súplicas para o juiz - disse Rannulf. - Nos leve aos aposentos de Law agora
mesmo.
-
Acredito que seria preferível - interveio Wulf, que não tinha abandonado essa irritante aparência
imperturbável. - proceder de um modo mais sereno, Rannulf. Estou seguro de que este bom homem tem um
aposento mais ou menos cômodo em que podemos esperar. E acredito também que de agora em diante vai
mostrar-se extrema sinceridade com todo aquele que lhe faça uma pergunta. Talvez assim consiga salvar a pele ou
ao menos evitar perder alguns anos de liberdade.
-
Esperar? - As sobrancelhas de Rannulf se ergueram para unir-se em um profundo cenho. Esperar?
Quando Effingham estava aí fora em algum lugar, igual a Branwell Law? Quando o bom nome de Judith e sua
liberdade continuavam em perigo? Quando era possível que no aposento de Law houvesse provas falsas?
-
Se não estou muito equivocado - explicou Bewcastle, - esta casa vai receber outra visita dentro de muito
pouco. - Olhou de novo o caseiro. - Acredito que também aceitou não mostrar sinais de reconhecimento quando
esse mesmo sujeito moreno retornasse acompanhado com um agente de Bow Street, não é assim?
O pomo de adão do homem subiu e baixou quando engoliu em seco e passeou o olhar entre Bewcastle e
Rannulf.
-
Nos leve a um aposento onde possamos escutar se chegar alguém - ordenou o duque.
Era um aposento pequeno e sujo, com móveis escuros e desmantelados. Fez passar os quatro, que
aguardaram no interior com a porta entreaberta.
Freyja deixou escapar uma suave gargalhada.
-
Às vezes, Wulf - disse, - não resta mais remédio que lhe admirar. Como adivinhou?
-
Acredito que foi nos joelhos de nossa mãe onde aprendi que dois mais dois, Freyja, sempre são quatro.
-
Mas e se não for agora? - perguntou Judith. - E se não tiver nada no quarto de Bran? Por que não nos
deixa dar uma olhada, Excelência?
-
O caseiro dirá a verdade – respondeu. - É melhor, senhorita Law, que possa afirmar com total
honestidade que ninguém entrou nos aposentos de seu irmão desde que Effingham saiu esta manhã.
-
Bran não esteve aqui ontem à noite nem esta manhã, não é? - perguntou ela. - Onde está?
Ambas eram perguntas retóricas. Não esperava resposta de nenhum dos que se encontravam ali. Rannulf
tomou as mãos de Judith entre as suas, apertou-as com força e as sustentou contra seu peito. Não importava o
que pudessem pensar seus irmãos. – Nós o encontraremos – disse - E se as hipóteses de Wulf são corretas, e
apostaria qualquer coisa que são, seu nome ficará limpo quando tudo acabar. Deixa de preocupar-se.
Embora, é claro, era muito provável que seu irmão estivesse metido em graves problemas que não tinham
nada a ver com todo aquele assunto das joias roubadas. Se esteve tão desesperado para abandonar Harewood em
plena noite porque um bom número de credores o pressionava, estaria bastante desesperado para apostar forte
com o fim de recuperar sua fortuna.
-
Não se preocupe - disse Rannulf de novo antes de levar uma das mãos de Judith aos lábios, onde a reteve
por um momento até que ela o olhou nos olhos e sorriu.
Freyja, comprovou Rannulf, sentara e os observava com uma expressão inescrutável. Bewcastle estava virado
ligeiramente para a janela, olhando a rua.
-
Ah! – disse - Bem a tempo.
Judith tinha muitíssimo medo. Medo pelo que estava a ponto de acontecer; medo pelo que poderiam
descobrir nos aposentos de Branwell; medo pelo que talvez não pudesse descobrir. Tinha medo por Bran,
inclusive à margem de todo esse assunto; medo por sua família e por ela mesma. E lhe dava medo essa família
orgulhosa, arrogante e poderosa que estava liderando as batalhas em seu lugar.
Embora possivelmente o que mais lhe dava medo fosse a expressão dos olhos de Rannulf, a constante
ternura de suas mãos e a cálida doçura do beijo que acabava de depositar em uma delas. Acaso não o entendia?
Escutou que o caseiro abria a porta de novo. Todos permaneceram imóveis, escutando. Reconheceu a voz
de Horace, acompanhada de outra muito mais rouca e desanimada.
-
Sou o agente de Bow Street - disse essa outra voz - encarregado de investigar o roubo de uma enorme
quantidade de joias. Devo insistir em que nos deixe entrar nos aposentos do senhor Branwell Law, onde espero
encontrar alguma prova.
-
Nesse caso suponho que devo fazê-lo - respondeu o caseiro.
-
Espero - interveio Horace com voz séria e petulante - que não encontremos nada, Witley, embora tema o
pior. Branwell Law é meu primo, antes de tudo. Mas não sei quem poderia ter roubado as joias de sua avó além
de sua irmã e ele. Ambos fugiram na mesma noite. Espero que esta busca seja em vão e que em Harewood
tenham descoberto que foi algum vagabundo quem entrou e roubou a casa durante o baile.
-
É pouco provável, senhor - disse o agente.
Escutou-se o som das botas ao subir a escada, o tinido das chaves e o chiado de uma porta no segundo
andar. - Wulf e eu subiremos - disse Rannulf. - Judith, você fica aqui com Freyja.
Sua irmã soprou.
-
Eu também vou - replicou Judith. - Isto me concerne tanto como a Bran.
Depois do primeiro lance de escada havia uma porta aberta que claramente conduzia aos aposentos de
Branwell. Judith espionou o caseiro no interior. Quando chegaram ao patamar da escada, o homem os olhou
com uma expressão preocupada. Horace estava no meio do aposento, de costas para porta e com os braços
cruzados sobre o peito. O agente de Bow Street, um homem calvo, baixo e robusto, saía de outra sala interior,
talvez o dormitório, aferrando em uma mão um brilhante monte do que deviam ser as joias de sua avó.
-
Nem sequer se incomodou de esconder a consciência - disse com certo desprezo.
-
Mas como, se não estou muito equivocado - disse Horace, assinalando em direção a uma cadeira que
estava à vista de Judith, - é uma das toucas de Judith Law. Minha pobre Judith! Que descuido por sua parte.
Como desejava que não tivesse nada a ver com isto.
-
Deve ser cúmplice de certa forma, não acha senhor? - perguntou o agente enquanto deixava as joias com
um tinido sobre uma mesinha, a fim de apanhar a touca que Judith tanto detestava.
Não sabia o que esperavam os outros para intervir.
-
É um mentiroso e um canalha, Horace! - gritou enquanto entrava no aposento, atraindo imediatamente a
atenção de ambos os homens. - Você deixou as provas em meu aposento em Harewood, igual às deixou aqui. É
uma vingança malévola e covarde, sobretudo para Branwell, que não fez nada para ofendê-lo.
-
Ah, minha querida prima em pessoa - disse Horace. - Já tem um ladrão que prender sem necessidade de
procurar mais, Witley. - E justo então seu olhar posou além de Judith e o sorriso zombador que esboçava ficou
congelado em seu rosto.
-
Tem suficientes motivos para perder esse ar arrogante. - disse Rannulf com voz serena.
-
Estes são os Bedwyn, Witley - explicou Horace ao agente sem afastar os olhos de Rannulf. - Com o
duque de Bewcastle à cabeça. Uma família poderosa, como já sabe. Mas espero que sua integridade esteja acima
do temor a esse poder. Lorde Rannulf Bedwyn está enamorado por Judith.
-
O jogo acabou, Effingham - disse Rannulf. - O caseiro que acaba de lhe deixar entrar nestes aposentos
jurará que Branwell Law ocupou estes aposentos somente duas semanas... antes que acontecesse o roubo, claro
está. Também jurará que esta manhã o subornou com uma importante soma de dinheiro para que o deixasse
passar sem ninguém que o acompanhasse e para contar certas mentiras no caso de que fosse interrogado,
incluindo uma segundo a qual Law teria estado aqui ontem e hoje. Eu jurarei que a última vez que vi essa touca
foi em Harewood a semana passada e que, não tornei a ver desde que escoltei a senhorita Law a Londres. Que
por certo esteve acompanhada em todos os momentos por um ou outro de meus familiares desde que chegou à
cidade ontem à tarde. Se essas forem todas as joias que se encontraram nestes aposentos, apostaria que há muitas
mais em algum outro lugar. Judith, você saberá melhor que eu. Deveria haver mais?
-
Muitas mais - respondeu.
-
Pergunto-me - prosseguiu Rannulf - se teria sido bastante arrogante para ocultá-las em seus aposentos,
Effingham, com o convencimento de que a ninguém ocorreria procurá-las ali.
O agente de Bow Street pigarreou.
-
As acusações que está fazendo são muito sérias, milorde - disse.
-
Em efeito - conveio Rannulf. - Talvez, posto que vamos à caça de um tesouro, devamos considerar
convidá-los aos aposentos de Effingham e dar uma olhada.
Foi então quando Judith, que não tinha tirado o olho de cima de Horace, soube que o homem estava
derrotado. Estava claro que fora bastante imbecil para deixar as joias em seus aposentos. E nesse momento o
rubor que se estendia por seu rosto e os gritos que proferia o incriminavam ainda mais. Agia com tanta covardia
como fez no mirante de Grandmaison.
Judith levou as mãos ao rosto uns instantes e deixou de escutar. Todo aquilo -tudo- tinha acontecido porque
no dia que Horace chegou a Harewood usava um de seus vestidos sem modificações e não pôs a touca. Ele a
tinha olhado com evidente lascívia, tal e como os homens estavam acostumados a olhá-la desde que abandonou a
infância, e a partir daí os acontecimentos se precipitaram. Tudo tinha acontecido por sua culpa.
Freyja, conforme pôde comprovar, estava sentada em uma das poltronas da sala, com as pernas cruzadas e
balançando um pé. Tinha todo o aspecto de estar divertindo-se muitíssimo. O duque ainda continuava no
patamar da escada, de costas ao aposento e com as mãos unidas atrás dele, sem tomar parte nos acontecimentos
que estavam se desenvolvendo.
-
Eu... eu estive aqui antes - estava confessando Horace quando Judith voltou a prestar atenção - e descobri
tudo... todas as joias roubadas. Levei quase todas para guardadas em um lugar seguro e deixei o resto para poder
trazê-lo comigo na qualidade de testemunha, Witley.
-
Acredito, senhor - disse o agente, - que será melhor irmos a seus aposentos e apanhemos os restantes das
joias. Suponho que depois terei que detê-lo.
Judith levou uma mão aos lábios e fechou os olhos. As detenções acabavam em julgamentos, em declarações
de testemunhas, em notoriedade e em terríveis dores de cabeça para a família implicada. Acabavam com uma
condenação que na maioria dos casos era bastante severa. Escutou seu próprio gemido justo antes que os braços
de Rannulf a rodeassem por trás para segurá-la pelos cotovelos.
-
Posto que foi contratado pelo senhor Effingham - interveio por fim o duque, que entrou no aposento e
cruzou a distância para observar as joias e a touca com evidente desagrado, - seria talvez um tanto injusto que o
prendesse... Witley, chama-se assim, não? Desejaria você que lorde Rannulf Bedwyn e eu nos encarregássemos de
todo este assunto?
O agente de Bow Street pareceu titubear e Horace o olhou com certo desanimo, perguntando se
possivelmente qual dos dois maus seria o pior.
-
Não estou muito seguro, Excelência - respondeu o homem. - Vai contra o estabelecido deixar que um
homem escape a seu justo e legal castigo somente porque pertence à nobreza.
-
Posso lhe assegurar - replicou o duque com uma voz tão serena e gélida que Judith se descobriu tiritando
- que haverá um castigo.
-
Senhorita Law - disse lady Freyja enquanto ficava em pé. - Acredito que este é o momento no que nos
ordenam que abandonemos o recinto. Que acha de irmos por vontade própria?
O dia já tinha adquirido um colorido irreal para Judith. Mas de repente essa sensação se incrementou. Lady
Freyja e ela se viraram para a porta quando alguém mais entrou no quarto.
-
Mas, bom... ! - disse uma voz familiar. - Que diabo está acontecendo aqui?
-
Bran! - Judith se jogou em seus braços.
-
Jude? -perguntou seu irmão. - Effingham? Bedwyn? Que demônios...?
-
Não roubou as joias, não é? - perguntou Judith, que ergueu a cabeça para olhar o rosto pálido e
carrancudo de Bran. - Sinto muito ter suspeitado de você, Bran. Foi algo horrível de minha parte e peço que me
perdoe.
-
Que joias? - perguntou ele, ainda mais perplexo. - Será que todo mundo ficou louco?
-
As da vovó - explicou Judith. - Desapareceram justo depois que partiu do baile e encontraram a bolsa de
veludo vazia e um brinco em meus aposentos. Horace deixou as joias nessa mesa esta manhã, junto com a touca
que tia Effingham me obrigou a usar em Harewood, e depois trouxe um agente de Bow Street para que as
encontrasse. Mas o duque de Bewcastle adivinhou tudo e chegamos a tempo de pegar Horace e agora lady Freyja
e eu temos que abandonar o aposento porque acredito que lorde Rannulf vá b... brigar com Horace.
Enterrou o rosto no ombro de Bran e começou a chorar. - Bom, isso explica tudo - escutou seu irmão dizer
enquanto tentava controlar-se; sentia-se terrivelmente mortificada - Esse é o motivo pelo qual se comportou de
um modo tão desagradável durante o baile, Effingham? Por isso sugeriu que passasse toda a semana na festa de
Darnley a fim de ganhar nas mesas de jogo o dinheiro suficiente para lhe pagar?
-
E quanto ganhou, Law? - Até na situação em que se encontrava, Horace teve a audácia de esboçar um
sorriso de desprezo.
-
Trinta libras, de fato - respondeu Branwell. - Bom, muito obrigado, Bedwyn.
Seu irmão apanhou algo da mão de Rannulf e lhe deu: um enorme lenço. Judith saiu ao patamar da escada,
secou os olhos e soou o nariz.
-
Estava a ponto de apostá-las quando recuperei o bom senso - disse Branwell. - As teria perdido com
certeza e certo que depois teria perdido alguma coisa mais. Mas com as trinta libras posso lhe pagar o custo da
viagem, acredito, e mais tarde o reembolsarei as demais dívidas que tenho pendentes. E o farei. Parti da festa um
dia antes de finalizada para retornar à cidade. Aqui tem! - Judith escutou as pisadas de seu irmão enquanto este
atravessava o quarto. - Trinta libras. E agora acredito ter motivos para brigar também.
Judith sentiu uma mão sobre o ombro.
-
Nós as damas sempre perdemos o mais divertido - disse Freyja com um suspiro. - Vamos, retornaremos
para casa na carruagem de Wulf.
-
Divertido? - Judith a olhou com certa indignação. Seu mundo acabava de fazer-se em pedaços e lady
Freyja achava divertido?
Entretanto, não opôs resistência à pressão da mão da mulher. Para falar a verdade, queria afastar-se dali o
mais rápido possível. Sentia-se profunda e tremendamente envergonhada, até sem ter em conta o resto das
angústias pessoais. Que a família de lorde Rannulf tivesse tido que presenciar uns assuntos tão sórdidos
relacionados com sua família. Que todos soubessem dos problemas de Bran e de seus estúpidos esbanjamentos e
da perda da fortuna de seu pai. Que soubessem que seu primo era um canalha. Que a tivessem visto
desmantelar-se e voltar a chorar como se fosse romper o coração... e pensar que só alguns dias atrás - somente
passaram três?- dançou com lorde Rannulf e acreditara possível que este pudesse lhe propor matrimônio e que
ela o aceitasse.
Devia sentir-se muito agradecida pelo fato de que tivesse acontecido algo que lhe devolvesse o bom senso.
Para estar em consonância com o resto do dia, fora estava chovendo. Caía uma ligeira garoa que as obrigou a
correr até a carruagem.
-
Uf! - exclamou lady Freyja enquanto sacudia o vestido uma vez que estiveram sentadas e o veículo
colocou-se em marcha. - Será um prazer chegar em casa, embora tivesse preferido ficar para ver o que
aconteceria.
A casa. Essa foi à única palavra que escutou Judith.
- Lady Freyja - disse, - poderia lhe solicitar um grandíssimo favor?
A dama a olhou com expressão curiosa.
-
Me emprestaria...? Não. - Judith se deteve. - Não posso lhe pedir um empréstimo. Duvido muito que
possa devolver-lhe algum dia, por muito que o prometesse. Me pagaria a passagem de uma diligência até minha
casa em Wiltshire, por favor? Sei que é… um atrevimento por minha parte.
-
Por quê? -perguntou lady Freyja.
-
Não tenho nenhuma razão para ficar aqui mais tempo - respondeu Judith - e não quero me aproveitar
mais da hospitalidade do duque de Bewcastle. Desejo ir para casa.
-
Sem dizer adeus a Ralf? - perguntou a dama. Judith fechou os olhos um instante.
Durante uns momentos reinou o silêncio na carruagem. - Há muitas pessoas - disse lady Freyja em voz baixa
- que dariam algo para que alguém as olhasse como Ralf a olhou no aposento enquanto esperávamos.
Judith engoliu em seco.
-
Não pretende que ache - replicou Judith - que não se deu conta de quão inadequada seria nossa união no
preciso momento em que pôs os olhos sobre mim ontem, igual ao resto de seus irmãos. E hoje deve ter ficado
mais claro ainda. Partirei logo que apanhe minha bolsa em Bedwyn House, com sua ajuda ou sem ela. Acreditei
que estaria disposta a desprender do dinheiro da passagem se com isso conseguisse me afastar da vida de
Rannulf.
-
Você sabe muito pouco sobre nós os Bedwyn - disse lady Freyja.
-
Isso quer dizer que não me ajudará?
-
É claro que o farei - respondeu.
Por ilógico que parecesse, o ânimo de Judith decaiu ainda mais, se isso era possível.
Saiu ao patamar para assoar o nariz e não se virou, pensou. Não tinha se virado para olhar uma última vez. A
única coisa que tinha para recordá-lo era o lenço que ainda seguia feito uma bola enrugada em seu punho... E seu
chapéu de palha.
-
Obrigada - disse-lhe.
CAPÍTULO 22
Tinham passado apenas umas horas quando Horace Effingham saiu dos aposentos de Branwell Law
escoltado por dois robustos homens que Bewcastle tinha chamado do nada sem ter abandonado sequer o
aposento. Effingham passaria a noite em seus próprios aposentos, sob custódia, depois seria escoltado de volta a
Harewood Grange para que lutasse com seu pai, presumivelmente depois de uma consulta prévia com a senhora
Law, já que era a parte ofendida.
Effingham partiu com o nariz vermelho e inchado e um olho que estaria fechado e negro pela manhã...
ambas as coisas por cortesia de Branwell Law, nos dois minutos depois das damas se retirarem. O agente de Bow
Street partiu pouco tempo depois disso.
Rannulf não pusera a mão em cima de Effingham salvo para agarrá-lo pelo cangote e pô-lo nas pontas dos
pés cada vez que se mostrava obstinado e insolente. Nada lhe teria agradado mais que moê-lo a golpes, mas a
distante e calada presença de Bewcastle teve um efeito calmante sobre ele. Apesar de tudo, o que demonstrava a
violência salvo que a pessoa era fisicamente superior ao adversário? Um desdobramento físico de força fora o
apropriado no mirante de sua avó. No aposento de Branwell Law não teria sido mais que um ato de
autossatisfação.
Law tirou papel, pluma e tinta quando pediram, e a Effingham ordenaram que se sentasse à mesa e
escrevesse várias cartas de confissão e desculpa: uma para a senhora Law, outra para sir George Effingham e
outra para o reverendo Jeremiah Law. A tarefa levou quase duas horas, sobretudo porque Rannulf não gostava
do que o homem escrevia. Antes que as três cartas recebessem sua aprovação e a de Branwell Law - Bewcastle se
manteve à margem, - ambos nadavam entre as bolas de papel que tinham jogado ao chão.
Enviaram-se as cartas, franqueadas por Bewcastle, antes que levassem Horace. Detalhadas, transbordantes de
culpa e servis, chegariam às mãos da senhora Law e de sir George antes que o próprio culpado aparecesse. Seria
um castigo bastante severo, pensou Rannulf, apesar de que em certos aspectos lhe parecia menos satisfatório que
uma boa surra. A humilhação pública era algo terrível para um homem. O rosto de Effingham ao partir, inchado
e decomposto pelo ódio e a frustração, era uma prova fidedigna desse fato. Não lhe seria fácil retornar a
Harewood e ter que enfrentar seu pai e sua avó.
As joias, junto com as que se encontraram no alojamento de Effingham, seriam devolvidas a Harewood
mediante um mensageiro especial, também por ordens de Bewcastle.
-
Assim está - disse Branwell Law, deixando-se cair em uma cadeira uma vez que Effingham e suas escoltas
partiram, depois do qual apoiou a cabeça contra o respaldo e tapou os olhos com o dorso da mão. - Que assunto
mais espantoso e pensar que uma vez o considerei meu amigo. Até cheguei a admirá-lo. - Pareceu recordar de
repente com quem estava e se endireitou na cadeira. - Não sei o que teria feito sem sua ajuda, Excelência; nem
sem a sua, Bedwyn. Nunca poderei agradecer-lhe o suficiente. De verdade. Também quero lhes agradecer em
nome de Jude. Ela não merecia isto.
-
Não - conveio Rannulf, - não merecia.
Law esboçou um hesitante sorriso e passeou o olhar entre ambos, claramente morto de calor por
encontrar-se a sós com um duque e o irmão deste.
-
Quero que me diga a quanto ascendem suas dívidas - ordenou Rannulf, que estava de pé com as mãos
enlaçadas às costas.
-
Bom, isto... - Law avermelhou. - São uma insignificância. Nada que não possa me encarregar.
Rannulf deu um passo em sua direção.
-
Quero que diga a quanto ascendem suas dívidas - disse, - até o último xelim. -Assinalou a mesa, onde
continuava havendo papel, tinta e uma pluma sem usar. - Anote tudo, até a mais minúscula insignificância.
-
Bom, isto... – repetiu Law. - Certamente que não vou fazê-lo, Bedwyn. Não é de sua incumbência.
Rannulf se agachou, agarrou ao jovenzinho pela gola do casaco e o pôs de pé com um puxão.
-
Acabo de fazê-la de minha incumbência - disse-lhe. - E quero saber tudo o que deve... Tudo.
Compreende? Vou pagar todas as suas dívidas.
-
Bom, isto... - disse Law pela terceira vez, embora indignado neste momento. - Não posso deixar que faça
isso por mim. Já me as apa...
-
Não vou fazer por você - interrompeu Rannulf. Law fez gesto de falar, mas logo fechou a boca e franziu
o cenho.
-
Por Jude?
-
Esteve a ponto de arruinar sua família -disse Rannulf- e é evidente que está a um passo de completar a
tarefa. Já tinham enviado a Senhorita Judith Law a viver com uns parentes ricos que a tratavam como uma criada,
de classe superior, mas como uma criada. Outra de suas irmãs está a ponto de sofrer o mesmo destino. E ficam
outras duas em casa com sua mãe. Um jovem tem direito de desfrutar de suas aventuras, por incomodo que isso
possa resultar a quem o conhece. Mas não tem nenhum direito de arruinar e despejar toda sua família. Você não
tem direito de causar desditas à senhorita Judith Law. Comece a escrever. Faça-o devagar e assegure-se de não
esquecer nada. Saldarei todas suas dívidas, proporcionarei o dinheiro suficiente para pagar o aluguel e os gastos
básicos para o próximo mês e depois ganhará a vida como facilmente possa ou morrerá de fome. E me dará sua
palavra de cavalheiro a este respeito: jamais voltará a dirigir-se a seu pai para lhe pedir um só xelim.
O rosto do Law perdeu toda a cor. - Faria tudo isto por Judith? - perguntou.
Rannulf se limitou a entrecerrar os olhos antes de voltar a assinalar a mesa. Law se sentou, apanhou a pluma
e a molhou no tinteiro.
Rannulf olhou Bewcastle, que estava sentado do outro lado da sala com uma perna elegantemente cruzada
sobre a outra, os cotovelos sobre os braços da poltrona e os dedos entrelaçados. Arqueou as sobrancelhas
quando encontrou o olhar de seu irmão, mas não fez comentário algum.
A única coisa que se escutou durante a seguinte meia hora foi o roçar da pluma de Law e um ou outro
sussurro enquanto o homem somava as colunas de cifras. Levantou-se duas vezes para desaparecer no
dormitório e sair de novo com uma fatura.
- Pronto - disse por fim, depois de secar a folha e estender a Rannulf. - Isso é tudo. Embora tema que seja
uma soma considerável. - Lhe avermelharam as faces pela vergonha.
A Rannulf não parecia uma soma muito alta, mas aos olhos de um homem que não possuía os recursos
necessários para pagar nenhuma libra da dívida, devia parecer exorbitante.
-
Permita que lhe dê um conselho - disse Rannulf: - o jogo pode ser uma atividade muito agradável quando
se tem dinheiro para perder e estabelecer um limite rígido quanto à quantidade que se pode apostar. Entretanto, é
um método infernal e miserável para tentar recuperar uma fortuna inexistente.
-
Como se não soubesse... - disse Law com ardor. - Jamais na vida voltarei a apostar.
Rannulf arqueou as sobrancelhas.
-
Agora, senhor Law - interveio Bewcastle para romper o longo silêncio, - me diga que profissão lhe parece
que se ajusta melhor a seu caráter.
Os outros dois homens se viraram para olhá-lo.
-
O serviço diplomático? – sugeriu Bewcastle. - A advocacia? O exército? A Igreja?
-
A Igreja não - respondeu Law. - Não posso imaginar nada mais aborrecido. E tampouco o exército. Nem
a advocacia. - Isso nos deixa o serviço diplomático, não?
-
Sempre acreditei que poderia desfrutar com o comércio ou a indústria - disse Law. - A Companhia das
Índias Orientais ou algo do estilo. Eu gostaria de ir a Índia ou a algum outro lugar de além mar. Mas meu pai
sempre disse que estava abaixo da dignidade de um cavalheiro.
-
Alguns postos não - afirmou Bewcastle, - embora seja evidente que um aprendiz não poderia ocupar
jamais um dos mais altos cargos de uma companhia sem antes trabalhar muito duro nos postos de menor
categoria e demonstrar seu valor.
-
Estou disposto a trabalhar com esforço - assegurou Law. - Se tiver que ser sincero, estou bastante farto
da vida que levei. Não se pode desfrutar quando não se tem o mesmo dinheiro que seus acompanhantes.
-
Bastante certo - conveio Bewcastle. - Venha para ver-me amanhã pela manhã, senhor Law, as dez em
ponto. Verei o que posso fazer por você, até então.
-
Ajudaria-me daria a começar uma carreira? - inquiriu Law. - Faria isso por mim, Excelência?
Bewcastle nem se dignou a responder à pergunta. Limitou-se a ficar em pé e a recolher o chapéu e a bengala.
Dirigiu uma breve inclinação de cabeça a Branwell Law por despedida. - Confio que Freyja nos tenha mandado
de volta a carruagem, Rannulf - disse.
Assim era. E em boa hora: estava chovendo. Rannulf deixou que Bewcastle se sentasse no sentido da marcha
e ele ocupou o assento oposto. Sentia-se exausto. A única coisa que desejava era voltar para casa para ver Judith,
estreitá-la entre seus braços e lhe assegurar que as penúrias acabaram, que tudo estava bem e que a única coisa
que restava fazer era começar seu particular felizes para sempre com uma valsa. E se importava o mínimo que
todos seus irmãos se alinhassem para ver como fazia.
-
Foi um gesto muito cortês, Wulf - disse-lhe quando se fechou a portinhola e a carruagem colocou-se em
marcha. - A única oportunidade que tem de mudar de vida é começar uma profissão. Embora sem sua influência,
suas possibilidades se veriam muito diminuídas.
-
Tem intenção de se casar com a senhorita Law? - perguntou seu irmão.
-
Sim. - Rannulf o observou com cautela.
-
É uma jovem extraordinariamente linda - afirmou Wulfric, - apesar da simplicidade de seus vestidos e do
estilo tão austero com o que se penteia. Sempre teve debilidade por esse tipo de mulheres.
-
Nenhuma se pode comparar com Judith Law - disse Rannulf. - Mas se equivoca se acha que não vejo
além de sua beleza, Wulf.
-
Era algo assim como uma rapariga em apuros - replicou Wulfric, - e em mais de um sentido. O afã
cavalheiresco de cavalgar na ajuda de alguém assim pode confundir-se com amor, ou isso acredito.
-
Jamais se comportou como uma vítima - assegurou Rannulf. - E não estou confuso. Se for me recitar a
lista completa dos motivos pelos quais não seria uma boa esposa para mim, Wulf, pode economizar o esforço.
Conheço todos e não mudam nem um ápice meus sentimentos. Tenho posição, dinheiro e propriedades de sobra
para não precisar de uma esposa rica - Seu irmão não fez comentário algum - Devo entender que não contarei
com sua bênção, Wulf? - perguntou Rannulf passado um momento de silêncio.
-
É importante para você? Rannulf meditou um instante.
-
Sim - respondeu por fim - É. Geralmente me deixa louco, Wulf e jamais permitirei que me controle; mas
o respeito, e muito mais que a qualquer outra pessoa que conheça. Sempre cumpriu com seu dever e não duvida
em ir em nossa ajuda, por desagradável ou aborrecido que possa ser. Como fez a dois de meses, quando acudiu a
Oxfordshire para ajudar Eve e Aidan a recuperar a custódia de seus filhos adotivos... os órfãos de um humilde
lojista. E como fez hoje por mim. Sim, sua bênção é importante para mim. Ainda que case com Judith com sua
bênção ou sem ela.
-
A tem - disse Wulf em voz baixa. - Embora não considerarei que estou cumprindo com meu dever se não
assinalar que semelhantes diferenças podem ser fonte de possíveis desditas em um futuro, quando o ardor do
primeiro momento tenha desaparecido. O matrimônio é um compromisso por vida e os Bedwyn sempre têm
sido fiéis as suas esposas. Mas é você quem deve escolher a sua esposa, Rannulf. É maior de idade e será você
quem viverá com ela o resto de sua vida.
Seria essa a razão pela qual Bewcastle jamais se casou? - perguntou-se Rannulf. Consideraria a sua fria e
calculada maneira todas as possíveis fontes de futuras desditas? Entretanto, até onde ele sabia, seu irmão mais
velho jamais tinha mostrado o menor interesse em uma dama, apesar de levar anos sendo um dos solteiros mais
cobiçados da Inglaterra. Tinha mantido à mesma amante durante anos, mas nenhum romance que pudesse
conduzir ao matrimônio.
-
Não espero que vivamos felizes para sempre, Wulf - respondeu. - Mas sim, espero ser feliz uma vez que o
ardor do primeiro momento tenha desaparecido. Como você disse, o matrimônio é um compromisso para toda
vida.
Não disseram nada mais, e assim que a carruagem se deteve diante das portas de Bedwyn House, Rannulf
desceu de um salto e se apressou a entrar na casa para subir a escada até o salão.
Alleyne, Freyja e Morgan estavam ali, mas não havia rastros de Judith.
-
Ah, por fim - disse Alleyne. - Anda, nos conte como acabou a história, Ralf. Conforme parece, Free e a
senhorita Law foram despachadas no momento mais interessante. Deixe-me ver seus nódulos.
-
Onde está Judith? - perguntou Rannulf.
-
Em seu quarto, suponho - respondeu Alleyne. - Afligida por tanta emoção, sem dúvida. Como foi a briga
com Effingham? Se o fez, não o acertou no rosto a pesar do fácil objetivo que supõe o nariz dos Bedwyn. Sorriu.
-
Não está ali - interveio Morgan. - E sabe muito bem, Alleyne. Não está em seu quarto. Foi-se.
Rannulf a atravessou com o olhar antes de cravar os olhos em Freyja, que estava sentada com uma
serenidade muito pouco habitual nela e que não tinha exigido um imediato relatório a respeito do acontecido
depois de sua saída dos aposentos de Law.
-
Foi para casa - disse - em uma diligência.
-
Para casa? - Rannulf a olhou sem compreender.
-
A Beaconsfield, em Wiltshire - explicou - À reitoria. Para casa, Ralf, onde acredita que é seu lugar.
Rannulf a olhou sem piscar, estupefato. - Por todos os infernos - resmungou.
Dizia muito dos Bedwyn o fato de que nenhuma das damas mostrasse o menor indício de assombro ante
semelhante comentário.
Choveu durante quase toda a noite, o que tornou mais lento o avanço da diligência e fez que Judith agarrasse
o estômago de medo em duas ocasiões, quando a carruagem escorregou por terrenos muito enlameados.
Entretanto, o amanhecer trouxe um céu espaçoso, um sol brilhante e rostos conhecidos que lhe sorriram e lhe
deram a boas-vindas uma vez que apeou na estalagem de Beaconsfield.
Embora não fossem muito reconfortantes. Enquanto abria caminho pela rua que conduzia à reitoria,
localizada do outro lado do povoado, tinha a impressão de que com cada passo lhe destroçava mais o coração.
Nem sequer o olhou uma última vez e temeu estupidamente durante a interminável viagem não poder recordar
seu rosto.
Sua história teve um final feliz. Não deixava de repetir. Tanto ela como Bran foram inocentados do roubo e
apanharam o verdadeiro culpado. Recuperaram as joias da avó, ou ao menos supunha que o fizeram, dado que
Horace não tinha negado que o resto estivesse em seus aposentos. Ela voltava para casa... Sem dúvida tia
Effingham não iria querer que retornasse a Harewood depois do acontecido. E era muito improvável que
quisesse alguma outra de suas irmãs, assim Hilary também estaria a salvo da miséria de viver naquele lugar.
Entretanto, não lhe parecia um final feliz. Tinha o coração destroçado e estava convencida de que demoraria
muito tempo em sarar.
Além disso, seguia sem ser um final feliz independente do estado de seu coração. Não havia resolvido nada a
favor de sua família. Muito ao contrário. Bran estava endividado até o pescoço e parecia convencido de que a
única maneira de sair do atoleiro era jogando e rogando a seu pai que o ajudasse. Não demoraria a recorrer ao
último, e logo todos se veriam consumidos na pobreza. Parecia bastante provável que o destino final de Bran
fosse à prisão de devedores. E talvez também o de seu pai.
Não, era uma manhã horrível em todos os aspectos. Não obstante, enquanto pensava, a porta da reitoria se
abriu e Pamela saiu ao exterior seguida por Hilary, que não deixava de gritar. - Jude! - exclamou. - Jude, voltou
para casa!
Judith deixou a bolsa no chão junto à porta do jardim e pôs-se a rir quando suas irmãs, primeiro uma e
depois a outra, jogaram-se em seus braços e a abraçaram até deixá-la sem fôlego. Cassandra as seguiu mais
devagar com um cálido sorriso e os braços estendidos.
-
Judith - disse antes de abraçá-la. - Ah, Jude, tínhamos tanto medo de que não retornasse a casa e jamais
voltássemos a vê-la... - Tinha os olhos marejados de lágrimas. - Tem que haver uma explicação. Eu sei. Onde está
Bran?
Entretanto, antes de responder, Judith viu a silenciosa e rígida figura de seu pai na porta. Os dedos invisíveis
de um funesto destino se abateram sobre ela.
-
Judith - disse sem levantar a voz... e com o mesmo tom que utilizava do púlpito, - venha a meu estúdio se
tiver a amabilidade.
Não havia a menor dúvida de que chegaram notícias de Harewood.
-
Acabo de chegar de Londres, papai - disse-lhe. - Recuperaram-se todas as joias da vovó. Foi Horace
Effingham quem as roubou com o único propósito de incriminar Bran e a mim. Mas o apanharam e confessou.
E podem testemunhá-lo várias pessoas além de Bran e de mim; o duque de Bewcastle entre elas. Me atreveria a
dizer que vovó e tio George serão informados de tudo nos próximos dias.
-
Ah, Jude. - Cassandra começara a chorar sem disfarces. - Sabia. De verdade que sabia. Não duvidei de
você nem um só instante.
Sua mãe golpeou seu pai em sua pressa para sair ao atalho do jardim e abraçar Judith com força.
-
Estava na cozinha - disse entre lágrimas. - Meninas, por que não me avisaram? Minha querida Judith.
Branwell também foi desculpado? Esse moço é uma fonte de dor de cabeça para seu pobre pai, mas seria tão
incapaz de roubar como você mesma. Veio na diligência? - Alisou uma mecha de cabelo que tinha escapado do
chapéu. - Não tem ciência do cansaço, carinho. Veem comer algo e logo a meteremos na cama.
Por uma vez, seu pai se viu superado por suas mulheres. Permaneceu em pé, com o cenho franzido e uma
expressão preocupada, mas não fez gesto de levar Judith para lhe dar um sermão a respeito das notícias que tinha
recebido de Harewood. E ninguém, conforme pôde comprovar Judith, fez comentário algum a respeito de sua
menção ao duque de Bewcastle. Depois que a levaram a cozinha, não voltou a ver seu pai até o meio-dia. Face à
insistência das demais, não tinha se deitado e passou a manhã com sua mãe e suas irmãs na sala de estar.
Enquanto as demais se entretinham com a costura, ela tinha escrito duas cartas: uma ao duque de Bewcastle e
outra para lorde Rannulf. Devia sua mais profunda gratidão a ambos, mesmo que tivesse fugido de Bedwyn
House sem despedir-se de nenhum dos dois. Acabava de terminar a árdua tarefa quando seu pai entrou na sala
com seu habitual cenho e uma carta aberta nas mãos.
-
Acabo de receber isto de Horace Effingham - disse - Apoia tudo o que me disse esta manhã, Judith. É
uma confissão completa, não só do roubo e de seu intento de incriminar Branwell e a você, mas também de seus
motivos. Tentou lhe impor suas atenções enquanto esteve em Harewood e você as recusou com toda
propriedade. Seu plano era vingar-se de você. Segundo esta carta, também escreveu a sua avó e a sir George.
Judith fechou os olhos. Sabia que todos acreditaram nela essa manhã... inclusive seu pai. Mas era um alívio
que a exonerassem por completo. Horace jamais teria escrito semelhante carta por vontade própria, é claro;
sobretudo essa parte tão humilhante em que dizia que ela tinha recusado suas atenções e que queria vingar-se.
Tinham-no obrigado a escrevê-la... Lorde Rannulf o obrigou. De verdade acontecera tudo no dia anterior?
Parecia-lhe que passou uma eternidade.
Rannulf fez tudo por ela.
-
Limpou seu nome, Judith - disse seu pai. - Mas por que acreditaria Horace Effingham que poderia
apreciar suas inapropriadas atenções? E onde está sua touca?
Era a história de sempre. Os homens a olhavam com lascívia e seu pai jogava a culpa nela. A única diferença
residia em que já sabia que não era feia.
E posso afirmar com total sinceridade que jamais vi uma mulher cuja beleza possa equiparar-se à sua.
Tentou rememorar o som de sua voz ao pronunciar essas palavras no pequeno lago que havia atrás de
Harewood.
-
Não quero usar touca nunca mais, papai - disse.
Por surpreendente que parecesse, seu pai não a repreendeu nem lhe ordenou que fosse ao seu quarto em
busca de uma. Em seu lugar, estendeu outra carta que seguia lacrada.
-
Isto chegou para você ontem – explicou. - É de sua avó.
Fez-se um nó no estômago de Judith. Não queria lê-la. Sua avó acreditou que ela era a ladra. E ainda
continuou acreditando no momento de escrever essa carta. Apesar de tudo, Judith ficou em pé e apanhou o papel
das mãos de seu pai. Entretanto, de repente não pôde suportar estar encerrada na casa, rodeada pela cômoda
normalidade de sua vida familiar. Nada era normal. Nada voltaria a ser.
-
Lerei no jardim - anunciou.
Não se deteve a apanhar o chapéu. Saiu pela porta traseira e viu que as plantas de estação de sua mãe
estavam em pleno esplendor, transbordantes de colorido. Embora ela não fosse capaz de desfrutar de sua beleza.
Bran não demoraria em apelar a seu pai para que o ajudasse a sair de seus apuros. E inclusive sua mente se
fechava a essa ideia, não lhe ocorria nada que pudesse lhe levantar o ânimo.
Nem sequer se virou para vê-lo uma última vez.
O jardim se encontrava a uma distância sufocante da casa, Olhou com saudade as colinas que havia além da
cerca posterior, seu refúgio quando queria estar sozinha. As colinas onde tinha vagado, e havia se sentado e leu
durante sua infância e onde atuou, interpretando diferentes personagens em voz alta para que as colinas a
escutassem. Abriu a porta da grade, começou a subir e não se deteve até que chegou à conhecida rocha plaina
que se encontrava a um terço do topo da colina mais próxima. Dali podia ver o vale, o povoado e as cercas que
rodeavam as granjas. Ficou sentada uma meia hora antes de atrever-se a tirar a carta de sua avó do bolso.
Era uma carta cheia de emoção, embora não havia rastros físicos de lágrimas. Durante uma hora de
debilidade, tinha-lhe escrito sua avó, acreditou nessas malditas provas. Chegara a amar sua neta durante essas
duas semanas mais do que amou a ninguém desde que seu marido morrera; e até a teria perdoado, mas acreditou
nessa mentira. Embora só durante uma hora. Passou uma terrível noite de remorsos e acudira logo que acreditou
adequado ao quarto de Judith para rogar que a perdoasse... de joelhos se fosse preciso. Mas Judith partiu. Não
estava certa que pudesse perdoar-se por duvidar de sua neta durante essa única hora. Poderia perdoá-la Judith?
Não podia fazê-lo. Enrugou a carta na mão e olhou em direção ao vale com os olhos cheios de lágrimas. Não
podia. Embora depois recordasse que ela suspeitou de Branwell e durante muito mais que uma hora. De fato,
não teve clara sua inocência até que se apresentaram provas. No que se diferenciava então de sua avó, que
inclusive lhe tinha escrito essa carta quando ainda não havia provas que sustentassem sua inocência?
Permitiria que Horace obtivesse o prazer da vitória final deixando que se prolongasse esse ressentimento
entre ela e essa anciã a quem chegou a amar em duas semanas tanto como aos membros de sua família que
estavam na reitoria?
- Vovó - sussurrou enquanto levava a carta aos lábios. - Ah, vovó...
Permaneceu sentada ali durante longo momento depois de alisar a carta, dobrá-la com supremo cuidado e
devolvê-la ao bolso de seu vestido. Rodeou os joelhos com os braços e contemplou as colinas em lugar do vale,
desfrutando da calidez do sol e da frescura da brisa, atirando a luz toda a infelicidade que sentia com o fim de
enfrentá-la.
Tinha uma família que a amava. A vida não demoraria em fazer-se mais difícil para eles. Mas continuavam
sendo uma família e seu pai seguiria tendo seu trabalho. E com certeza, não acabariam despojados de tudo. Que
egoísta de sua parte ter medo da pobreza. Milhares de pobres sobreviviam com dignidade e coragem. Tinha uma
avó que talvez a amaria mais que a ninguém no mudo. Que bênção era ser amada! Certo que não podia ter o
homem que amava, mas havia milhares de pessoas nas mesmas circunstâncias. Um coração quebrado não era
uma sentença de morte. Tinha vinte e dois anos. Ainda era jovem. Nunca se casaria; não poderia fazê-lo por
muito que algum homem decente a aceitasse sem dote. De qualquer forma, a vida de solteira não tinha por que
carecer de sentido nem de felicidade.
Lavraria sua própria felicidade. O faria. Não esperaria o impossível. Se permitiria um tempo para chorar sua
perda, mas não desfrutaria da miséria. Não deixaria que a autocompaixão a consumisse.
Faria muito mais que sobreviver durante os anos que ficariam por diante. Viveria!
- Já começava a pensar que teria que subir todo o trecho até o topo antes de encontrá-la - disse uma voz
familiar.
Ela se virou sobressaltada enquanto protegia os olhos do sol com uma mão.
Tinha esquecido quão atraente era, pensou em um arranque de completa estupidez.
CAPÍTULO 23
Estava sentada sobre uma enorme rocha plaina, rodeada de um halo de luz tão lindo que lhe contraiu os
músculos do peito e lhe espremeu o coração. Não usava nem chapéu nem touca. Tinha todo o aspecto de alguém
que tivesse escalado em busca de liberdade, longe de todos aqueles que lhe teriam imposto suas ideias a respeito
da beleza e o decoro.
-
O que está fazendo aqui? -perguntou ela.
-
Te olhando - disse ele. - Tenho a sensação de que faz ao menos uma semana da última vez que a vi, em
lugar de vinte e cinco ou vinte e seis horas. Tem o costume de fugir de mim.
-
Lorde Rannulf - disse ela enquanto tirava a mão dos olhos e abraçava os joelhos em um gesto tenso e
defensivo, - por que veio? Talvez porque parti sem dizer uma palavra ou sem deixar uma nota? Porque escrevi
uma carta, deve sabê-lo, e outra para o duque de Bewcastle. Estão prontas para serem enviadas.
-
Esta é a minha? - Sustentou no alto a folha selada no qual rezava seu nome escrito com a cuidadosa
caligrafia da moça.
-
Esteve em minha casa? - Judith tinha os olhos totalmente abertos.
-
É claro que estive na reitoria – respondeu. - Sua governanta me deixou passar a saleta, onde conheci sua
mãe e a suas três irmãs. São todas encantadoras. Não tive nenhum problema em identificar a que você descreveu
como a beleza da família. Mas devo lhe dizer que estava equivocada. Sua beleza não pode comparar-se com a sua.
Ela se limitou a abraçar os joelhos com mais força.
-
Sua mãe me deu isto - disse enquanto assinalava a carta.
Rompeu o selo com o polegar. Judith esteve a ponto de estender o braço para detê-lo, mas depois voltou
para sua postura original. Curvou a cabeça para apoiar a testa sobre os joelhos.
-Querido lorde Rannulf - leu ele em voz alta- Não sei como começar a lhe agradecer a amabilidade que me
demonstrou desde o dia em que parti de Harewood Grange até ontem. - Ergueu o olhar para contemplar a
cabeça encurvada da jovem - Amabilidade, Judith?
-
Foi amável - defendeu-se ela. - Muito amável.
Deu uma olhada ao resto da carta, que continuava com a mesma tônica das primeiras palavras.
-Atenciosamente - leu alto quando chegou ao final. - E isto é tudo o que tem a me dizer?
-
Sim. - Ela levantou a cabeça nesse momento e Rannulf dobrou a carta antes de metê-la no bolso do
casaco - Sinto não ter ficado para dizê-lo pessoalmente, mas já deveria saber a esta altura que sou uma covarde
no que se refere às despedidas.
-
E por que achou necessário se despedir? - perguntou ele.
Sentou-se na pedra a seu lado. Estava morna pelo calor do sol.
Ela suspirou. - Não é evidente?
Tão evidente como o proeminente nariz de seu rosto... e isso era dizer muito. Era uma mulher orgulhosa e
teimosa que uma vez, por paradoxal que parecesse, tinha muito pouca confiança em si mesma. Dita confiança
ficara sepultada por uns pais repressivos cujas intenções foram as melhores, mas que tinham provocado um dano
inexprimível à filha que não era senão o cisne entre o resto de seus patinhos.
-
O duque de Bewcastle é meu irmão - disse ele - e é um aristocrata arrogante, tão elevado na escala social
como qualquer monarca. Destila poder com o mínimo gesto do mindinho. Freyja, Morgan e Alleyne são meus
irmãos; vestem-se com elegância, caminham com orgulho e se comportam como se estivessem muito acima do
resto dos mortais. Bedwyn House é uma das propriedades de minha família e é opulenta e esplêndida. Somente
Bewcastle e Aidan se interpõem entre minha pessoa e o ducado, as fabulosas riquezas e as terras e propriedades
que se estendem por amplas áreas da Inglaterra e de Gales. Aproximei-me um pouco da metade do que é
evidente?
-
Sim. - Judith não olhava em sua direção; tinha os olhos cravados na inclinação da colina.
-
O reverendo Jeremiah Law é seu pai – continuou - É um cavalheiro de recursos modestos e reitor de uma
comunidade sem relevância. Tem quatro filhas às quais atender com meios que se viram seriamente diminuídos
pelos esbanjamentos de um filho que nem sequer decidiu ainda o que fazer para ganhar a vida. Além disso, tem a
enorme desgraça de ser o neto por parte de mãe de um mercador de tecidos e o filho de uma atriz. Descrevi a
outra metade que faltava do evidente?
-
Sim. - Mas já não olhava a colina. Olhava a ele, e Rannulf comprovou com certa satisfação que estava
zangada. Preferia muito mais seu aborrecimento a sua passividade
-
Sim, é exatamente isso, lorde Rannulf. Mas eu não me envergonho de minha avó. Absolutamente. A amo
muitíssimo.
-
Não tinha a menor dúvida - assegurou ele. - Ela a adora, Judith.
-
Não me transformarei em sua amante - advertiu-lhe.
-
Pelo amor de Deus! -Rannulf a olhou com estupefação. - Acreditava que era isso o que tinha vindo lhe
oferecer?
-
Jamais poderá haver outra coisa entre nós - disse ela - Não se dá conta? Será que não se dá conta? Até
mesmo os criados da residência Bedwyn tinham mais porte que eu. Todo mundo se comportou de maneira
educada comigo e lady Freyja e o duque de Bewcastle foram muito amáveis em seus esforços para me ajudar.
Mas devem ter ficados estupefatos quando apareci ali.
-
É preciso muito mais que isso para escandalizar um Bedwyn - afirmou ele. - Além disso, Judith, não tem
por que viver em Bedwyn House; nem com nenhum de meus irmãos. O que quero é que viva comigo,
certamente em Grandmaison, como minha esposa. Não acredito que minha avó me permita levá-la ali na
qualidade de amante. É um pouco suscetível com essas coisas.
Ela ficou em pé de um salto, embora não se afastasse imediatamente.
-
Não é possível que queira se casar comigo - disse Judith.
-
Não? - inquiriu ele - por que não?
-
Não funcionaria - sussurrou ela - Não poderia funcionar.
-
Por que não? - repetiu ele.
Ela se virou e se afastou, decidindo continuar a subir em lugar de descer. Rannulf ficou em pé e a seguiu
através da erva curta e ondulante, que estava muito verde depois das recentes chuvas.
-
É porque pode ser que esteja grávida? - quis saber Judith.
-
Quase espero que esteja - respondeu ele - Não porque queira a prender em um matrimônio contra sua
vontade, mas sim porque eu gostaria de cumprir o último sonho de minha avó enquanto ainda continua com
vida. Está morrendo, se por acaso não sabe. Seu último desejo é que me case antes que chegue a hora e seu
sonho é que minha esposa e eu apresentemos seu neto enquanto ainda vive.
Ela deixou de caminhar.
-
Essa é a razão de querer se casar comigo?
Levantou uma mão e colocou o dedo indicador sob o queixo de Judith.
-
Semelhante pergunta não merece uma resposta - disse-lhe - Não me conhece ainda, Judith?
-
Não, não o conheço. - Afastou sua mão e prosseguiu a subida.
O aclive estava cada vez mais pronunciado, mas ela não diminuiu o passo. Rannulf tirou o chapéu e o
colocou sob o braço.
-
Você mesmo me disse que o matrimônio só servia para adquirir riquezas e posição; que os verdadeiros
prazeres se encontram fora do matrimônio.
-
Santo Deus, eu disse isso? - Sabia que o havia dito.
Recordava havê-lo dito, ou alguma coisa muito similar. Nem sequer naquele momento tinha falado a sério;
só tinha querido escandalizá-la. - Não sabia que aos Bedwyn não é permitido ter atividades fora do leito conjugal?
Há alguma regra a respeito nos arquivos familiares, conforme acredito. Qualquer um que rompa essa norma será
banido às trevas pelo resto da eternidade.
Judith acelerou o passo, por impossível que parecesse.
-
Uma vez que me case, Judith - disse ele ao dar-se conta de que ela não estava de humor para brincadeiras
- minha esposa será a única que terá minha devoção incondicional, tão dentro como fora do leito conjugal. E isso
seria assim mesmo que por alguma razão me visse obrigado a me casar com uma mulher que não fosse de minha
escolha... como esteve a ponto de acontecer durante as semanas passadas. Você é a esposa de minha escolha, o
amor de meu coração durante o que me restar de vida.
Rannulf escutou suas próprias palavras como se tratasse de um espectador que nada tivesse a ver com suas
emoções, talvez por medo de que não houvesse forma de persuadi-la. O espectador era muito consciente de que
teria achado a exorbitância de suas palavras muito embaraçosa apenas umas semanas atrás... A esposa de minha
escolha, o amor de meu coração...
Judith tinha a cabeça encurvada. Compreendeu que estava chorando. Rannulf não fez comentário a respeito
nem pronunciou palavra alguma. Limitou-se a caminhar a seu lado. Estavam a ponto de chegar ao topo dessa
colina em particular.
-
Não pode se casar comigo - disse ela afinal - Logo ficaremos na ruína. Não houve final feliz nos
aposentos de Bran ontem. Continua endividado até o pescoço. Acabará na prisão de devedores ou arruinará meu
pai... ou ambas as coisas. Não pode se vincular a uma família semelhante.
Judith se deteve de repente. Não podia tomar nenhum caminho à parte que descia pelo outro lado da colina
e que conduzia a uma propriedade abandonada depois da qual se erguia a colina seguinte.
-
Seu irmão já não está endividado - disse-lhe Rannulf - e tenho a esperança de que não volte a estar nunca
mais.
Ela o olhou com os olhos arregalados.
-
O duque de Bewcastle não haverá... - Não chegou a completar o pensamento.
-
Não, Judith - assegurou ele. - Não foi Wulf.
-
Você? - levou uma mão à garganta - pagou suas dívidas? Como vamos lhe devolver tudo isso?
Rannulf apanhou-lhe a mão para afastá-la do pescoço. - Judith - disse, - é um assunto familiar. Branwell Law
vai formar parte de minha família, ou esse é meu mais fervente desejo. Não tem sentido falar de devoluções.
Sempre farei tudo o que estiver em minha mão para o manter afastado de qualquer dano ou desdita. - Tentou
esboçar um sorriso, mas não estava seguro de tê-lo conseguido. - Mesmo que isso signifique me afastar de sua
vida e não voltar a vê-la nunca mais.
-
Rannulf - disse ela, - pagou suas dívidas? Por mim? Meu pai jamais aceitará.
Não fora singelo. O reverendo Jeremiah Law era um homem orgulhoso e severo que não condescendia com
facilidade. Também era um homem rígido e honesto que amava seus filhos, até mesmo Judith, cujo caráter tinha
esmagado sem pretender ao longo dos anos.
-
Seu pai aceitou o fato de que não é nada estranho que seu futuro genro preste certa ajuda a um filho dele
- informou Rannulf. - Vim aqui com sua permissão, Judith.
Ela abriu muito os olhos.
-
Seu futuro cunhado também ajudou - continuou ele - Utilizou sua influência para encontrar para seu
irmão um posto inferior na Companhia das Índias Orientais. Se trabalhar com esforço poderá subir de forma
considerável. Pode-se dizer que seu único limite é o céu.
-
O duque de Bewcastle? Deus... - Judith mordeu o lábio. - Por que fez tanto por nós quando deve nos
desprezar de todo coração?
-
Também estou aqui com sua bênção, Judith - assinalou antes de levar sua mão aos lábios.
-
Deus... - repetiu Judith.
-
Parece que está na mais absoluta minoria ao considerar que um matrimônio comigo é impossível anunciou ele.
-
Rannulf. - As lágrimas brilhavam de novo em seus olhos, conseguindo que parecessem mais verdes que
nunca.
O espectador que morava no interior de Rannulf contemplou com horror como este se arriscava a estragar
uma das pernas de sua calça ao prostrar-se de joelhos sobre a erva diante dela, enquanto lhe agarrava a outra
mão.
-
Judith - disse sem afastar a vista de seu rosto surpreso e avermelhado, - me concederia a grande honra de
se casar comigo? Peço-lhe isso por uma só e única razão. Porque a adoro, meu amor, e não posso imaginar
felicidade maior que passar o resto de minha vida fazendo-a feliz e compartilhando contigo minha amizade, meu
amor e minha paixão. Se casará comigo?
Não havia se sentido tão indefeso e ansioso em toda a vida.
Aferrou-lhe com força as mãos, cravou o olhar na erva e tentou passar por cima do fato de que o resto de
sua vida dependia da resposta que ela desse.
Pareceu-lhe que demorava uma eternidade em responder. Quando Judith soltou as mãos, Rannulf sentiu que
sua alma caía a seus pés. Mas depois notou o ligeiro roçar de suas mãos no alto da cabeça, antes que começasse a
lhe acariciar as mechas com delicadeza. Deu-se conta de que se inclinava para ele e de que lhe dava um beijo na
cabeça, a qual sustentava entre suas mãos.
-
Rannulf - disse com suavidade. - Rannulf, meu amor...
Ele ficou imediatamente em pé, agarrou-a pela cintura para levantá-la do chão e começou a girar com ela até
que Judith jogou a cabeça para trás e pôs-se a rir.
-
Olhe o que fez - disse-lhe sem deixar de rir uma vez que a deixou no chão.
Tinha-lhe soltado o cabelo em um dos lados e a trança estava se desfazendo com rapidez. Ergueu os braços,
soltou o cabelo do outro lado e guardou os grampos no bolso. Sacudiu a cabeça, mas Rannulf cortou a distância
que os separava.
-
Deixe-me fazer isso - pediu.
Enterrou os dedos em seu cabelo para desfazer o que restava da trança até que o cabelo caiu solto em
brilhantes ondas sobre os ombros e as costas. Cravou o olhar nesses resplandecentes e felizes olhos verdes e
esboçou um sorriso antes de beijá-la. Judith lhe rodeou o pescoço com os braços e se recostou nele enquanto a
rodeava a cintura e a atraía para si como se pudessem unir-se em um só ser ali mesmo, sobre o topo da colina.
Sorriram um ao outro quando por fim levantou a cabeça, sem necessidade de palavras, sem querer romper o
abraço. Foi então quando se afastou para trás e estendeu os braços de Judith para contemplá-la... Sua
recompensa, seu amor, sua.
A brisa soprava com certa força no topo. Para que seu vestido se agitasse atrás dela e que se colasse na
frente. Transformava seu cabelo em uma nuvem de grão e ouro que flutuava a suas costas. Rannulf sabia que
somente umas semanas atrás haveria se sentido terrivelmente envergonhada de que a vissem assim, em todo seu
vibrante e voluptuoso esplendor. Mas nesse dia lhe devolveu o olhar com a cabeça bem alta, um suave sorriso
nos lábios e as faces rosadas.
Era toda uma beleza, uma deusa espetacular, toda uma mulher que ao fim se aceitou tal e qual era.
-
Devo presumir que sua resposta é sim? - perguntou Rannulf.
-
Sim, certamente - disse ela entre risadas. - Não disse isso? Sim, é claro que sim, Rannulf!
Puseram-se a rir antes que ele a segurasse nos braços e começasse a girar até que ambos se sentiram
enjoados.
CAPÍTULO 24
O pequeno quarto de vestir de Judith estava tão abarrotado que Tillie Mal podia dobrar os cotovelos para lhe
colocar o chapéu sobre a cabeça com muito cuidado de não desmanchar os delicados cachos do penteado.
-
Está linda, Jude - disse-lhe Pamela com os olhos brilhantes pelas lágrimas. - Sempre disse que foi a mais
bonita de todas.
-
Lorde Rannulf vai ficar boquiaberto - comentou Hilary enquanto unia as mãos sobre o peito.
-
Judith - começou Cassandra sem deixar de olhá-la. Sempre fora sua melhor amiga. As palavras lhe
falharam. - Ah, Judith...
Sua mãe fez algo mais que olhá-la. Levantou as mãos para a renda que descansava sobre a aba do chapéu e a
baixou para cobrir o rosto de sua filha.
-
Tenho a sensação de ter esperado uma eternidade para ver uma de minhas filhas felizmente casada disse-lhe. - Me prometa que será feliz, Judith. - Embora seus gestos fossem bruscos, era evidente que estava a
beira das lágrimas.
-
Prometo, mamãe - replicou Judith.
Sua avó, vestida de chifon violeta e adornada com o que parecia ser a totalidade das joias de sua bolsa de
veludo, não deixava de emitir brilhos e tinidos enquanto abria e fechava as mãos e sorria a sua neta preferida.
Não tinha se queixado de nenhuma doença nesse dia. E tampouco tomou o café da manhã a não ser sua
costumeira xícara de chocolate matutino. Segundo suas próprias palavras, estava muito nervosa.
-
Judith, carinho... - disse nesse momento, - desejaria... Senhor, como desejaria que seu avô estivesse
comigo para compartilhar meu orgulho e minha alegria. Mas como não está, terei que me sentir o dobro de
orgulhosa e feliz.
E nesse momento alguém bateu na porta e outra pessoa mais se apertou na estadia.
-
Bom, bom... ! - exclamou Branwell. - Está linda, Jude. O tio George me pediu que lhes dissessem que as
carruagens esperam na porta para levar a todos à igreja, salvo Jude e papai.
Elevou-se uma nova onda de murmúrios e emotivas felicitações, além de algumas palavras de conselho, antes
que o aposento se esvaziasse e Judith ficasse a sós com Tillie.
Tinham-lhe atribuído outros aposentos, uma muito maior que o anterior, em Harewood Grange. Era o dia
de suas bodas. Tinham discutido muito sobre o lugar mais apropriado para celebrar o enlace. Seu pai queria que
fosse em Beaconsfield e Rannulf esteve disposto a lhe fazer a vontade. Embora houvesse alguns obstáculos.
Onde se alojariam todos os membros da família do noivo? Poderiam as avós de ambos deslocar-se? Sobre tudo
lady Beamish, cuja saúde era delicada. Sugeriu-se Londres, mas a opção ficou descartada porque suporia uma
viagem de igual comprimento para as anciãs. Talvez Leicestershire fosse a melhor decisão, já que tanto Rannulf
como Judith tinham parentes com casas bastante grandes para albergar às duas famílias. Embora em princípio
tivesse parecido impossível. Como poderiam Judith e sua família convidar-se sem mais a Harewood Grange
depois dos últimos acontecimentos?
O problema tinha ficado resolvido depois da chegada à reitoria de uma missiva muito educada procedente de
sir George Effingham, que acabava de receber a notícia do compromisso dos lábios de sua sogra. Convidava
cordialmente seu cunhado a levar sua família a Harewood, escreveu sir George, se as núpcias se celebrassem nas
adjacências. Na mesma carta mencionava que seu filho partiu recentemente para a América e que tanto sua
esposa como sua filha estavam de visita na casa dos pais do senhor Peter Webster, o futuro marido de Julianne.
Rannulf tinha passado o último mês em Grandmaison enquanto corriam os proclamas. Seus irmãos e irmãs
também passaram ali a maior parte do tempo, atraídos tanto pela notícia da delicada saúde de lady Beamish como
pelas bodas. A mesma Judith não chegara até no dia anterior e vira Rannulf somente um instante, tinha se
deslocado de Grandmaison com lorde Alleyne depois do jantar. Toda a família de Judith esteve presente, e ficou
apenas meia hora.
Mas por fim, sim, por fim, seis semanas depois de sua milagrosa aparição na colina próxima à reitoria,
chegou o dia de suas bodas.
-
Está tão bonita como uma pintura, senhorita - disse Tillie.
-
Obrigada.
Judith se virou para olhar-se no espelho, que esteve oculto atrás dos corpos de seus familiares até um
minuto. Decidiu-se pela simplicidade face à insistência de seu pai que não reparasse nos gastos. Seu vestido de
seda cor marfim tinha um decote baixo e a cintura alta que estava tão na moda, as mangas curtas e a prega
estavam rematadas por um adorno e um bordado dourado. Seu maior atrativo era o modo em que se amoldava
às curvas de seu busto antes de cair em suaves pregas sobre os quadris e as longas pernas. O chapéu, igual às
luvas, era da mesma cor que o vestido, embora a pluma que o adornava fosse dourada. Igual aos sapatos. No
pescoço usava uma delicada corrente de ouro de duas voltas, um presente de bodas que Rannulf lhe deu na noite
anterior.
Sim, pensou Judith, tinha a aparência que desejava. Embora as mariposas que tinham revoado em seu
estômago do instante em que despertou até o emocionante momento em que colocou o vestido tinham
retornado com força. Não tinha conseguido acreditar que esse dia chegaria, até esse momento. E até mesmo
nesse instante...
-
Seu pai deve estar esperando-a, senhorita - disse Tillie.
-
Sim. - Judith se afastou com decisão do espelho e saiu do quarto de vestir enquanto uma sorridente Tillie
fazia uma reverência enquanto abria a porta.
Seu pai a esperava ao pé da escada, com uma aparência séria e formal, vestido com seu melhor traje negro.
Seus olhos a percorreram de cima abaixo enquanto descia e o cenho que lhe enrugava a testa era muito evidente.
Judith se preparou para escutar suas críticas, decidida que não a desanimasse.
-
Bom, Judith - disse-lhe, - passei anos temendo que toda essa beleza acabasse por atrair um homem que
não soubesse ver além das aparências. Mas acredito que evitou esse destino tão comum para as mulheres lindas.
Hoje está radiante.
Judith mal podia dar crédito ao que estava ouvindo. Sempre a tinha achado linda? Por que não disse
nenhuma só vez? Por que não explicou...? Embora supusesse que os pais não eram esses pináculos de perfeição
que os filhos acreditavam e esperavam que fosse. Eram seres humanos que faziam o melhor possível, embora se
equivocassem frequentemente.
-
Obrigada, papai. - Sorriu-lhe - Obrigada.
Ofereceu-lhe o braço para conduzi-la ao exterior, para a carruagem que os estava esperando.
A igreja local de Kennon, com seus antigos muros de pedra e suas vidraças, era pitoresca, mas também
pequena. Detalhe de pouca relevância, dado que a lista de convidados ao enlace da senhorita Judith Law e lorde
Rannulf Bedwyn se reduzia às famílias dos noivos.
Rannulf estava tão nervoso como se fosse uma grande boda em sociedade celebrada na tão em moda St
George em Haanover Square em Londres. Quase desejou ter feito o mesmo que Aidan, que levara Eve a Londres
para casar-se em particular com uma licença especial, tendo somente sua tia avó e seu assistente pessoal como
testemunhas, depois da qual a levara de volta a sua casa em Oxfordshire sem sequer informar a Bewcastle do
acontecimento.
Rannulf esperava junto ao altar com Alleyne, seu padrinho.
Bewcastle estava sentado no segundo banco junto a sua avó, Freyja e Morgan. Aidan se sentava no seguinte
com Eve e seus dois filhos adotivos, embora sempre se referissem a eles como seus próprios filhos. Atrás deles
estavam os marqueses de Rochesster, tios de Rannulf. A mãe de Judith se sentava no segundo banco do outro
lado do corredor, com seu filho e sua sogra. As três irmãs de Judith estavam atrás com sir George Effingham.
Alguns criados de Grandmaison e Harewood se acomodaram nos bancos ao fundo da nave.
O último mês foi interminável apesar de ter contado com a companhia de seus irmãos, salvo a de Aidan, que
chegou na semana anterior. Todos os dias temia que chegasse uma carta de Judith rompendo o compromisso
com a desculpa mais insignificante. Muito temia que a confiança que sua futura esposa tinha em si mesma fosse
ainda muito frágil. De qualquer forma, a carta não chegou e quando cavalgou até Harewood a noite passada, teve
a grata surpresa de descobrir que sim chegou segundo o previsto.
Embora não conseguia acreditar nem sequer essa manhã. Mas nesse momento e graças ao silêncio que
reinava na igreja, pôde perceber que as portas se abriam e se fechavam, e Alleyne lhe tocou o cotovelo para
recordar que chegou a hora de ficar em pé.
O vigário, vestido com a túnica e levando um grande sorriso, fez um gesto ao organista para que começasse a
música.
Rannulf virou primeiro a cabeça e depois o resto do corpo. Senhor, era tão linda que o deixava sem fôlego...
e não só por seu voluptuoso corpo, que ficava ressaltado pelo vestido de noiva; nem pelo glorioso cabelo, meio
oculto pelo chapéu; nem por seu encantador rosto, escurecido pelo véu. Não era somente por sua aparência e seu
físico, mas sim porque se tratava de Judith.
Sua Judith. Quase sua.
A noiva não sorria, percebeu quando se aproximou dele pelo braço de seu pai. Tinha os olhos verdes
totalmente abertos. Parecia aterrorizada. Entretanto, seu olhar posou imediatamente nele e de repente pareceu
transformar-se pela alegria.
Rannulf lhe sorriu e começou a acreditar.
-
Queridos irmãos... - disse o vigário momentos depois.
Era uma estranha sensação, como se o tempo passasse muito devagar... justamente o contrário ao que ela
acreditou que aconteceria. Judith escutou e saboreou cada palavra da cerimônia que a uniria em santo matrimônio
a Rannulf para o resto de suas vidas. Escutou como seu pai entregava sua mão ao noivo e se virou para lhe
oferecer um sorriso. Notou o incomum brilho de seus olhos e se deu conta de que o momento o emocionara.
Viu lorde Alleyne, atraente, elegante e sorridente. Escutou o murmúrio das pessoas que havia a suas costas, assim
como os soluços de sua avó e alguém que mandava calar a um menino que tinha perguntado muito alto se essa
era sua nova tia. Cheirava as rosas, que estavam dispostas em dois enormes vasos de cada lado do altar.
E sentiu a presença de Rannulf com cada fibra de seu ser, percebeu do quanto sentira sua falta durante o
último mês e de que depois desse dia permaneceriam juntos até que a morte os separasse. Cortou o cabelo,
embora ainda parecesse um guerreiro saxão. Estava incrivelmente atraente com um casaco marrom justo, colete
dourado, calças de cor nata, camisa, meias e renda de cor branca e sapatos negros. Sua mão parecia grande e
firme enquanto segurava a sua, e seus dedos não tremeram nem um ápice quando lhe deslizou o anel no anular.
Seus olhos azuis a contemplaram com expressão risonha no momento em que a viu até que o vigário pronunciou
as últimas palavras.
-
E eu lhes declaro marido e mulher em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Judith se perguntou como era possível que a felicidade fosse tão intensa que era quase dolorosa.
-
Minha esposa - sussurrou Rannulf a seu ouvido antes de afastar o véu do rosto e colocá-lo sobre a aba do
chapéu para contemplá-la com os olhos brilhantes e um olhar intenso. Por um desconcertante momento, Judith
acreditou que ia beijá-la a ali na igreja, diante do vigário e das famílias de ambos.
Assinaram o registro que faria oficial seu matrimônio e depois saíram juntos da igreja como marido e mulher.
Era setembro. O calor do verão tinha desaparecido, mas o outono ainda não fez ato de presença. O sol brilhava
no céu azul.
-
Meu amor - disse Rannulf assim que saíram da nave da igreja enquanto rodeava sua cintura com um
braço e baixava a cabeça para beijá-la.
Houve vivas e aplausos, e quando Judith levantou a vista viu uma multidão congregada junto à porta que
dava acesso ao caminho de pedra que rodeava o cemitério. Todos os aldeãos deviam ter ido para vê-los.
Pôs-se a rir e olhou a Rannulf, que também ria. - Corremos para a carruagem? -perguntou ele.
Judith se deu conta de que o cabriolé que tinha aparecido do outro lado da porta estava decorado com uns
enormes laços brancos.
-
Sim.
Deu-lhe a mão, levantou as saias com a outra e correu junto a ele em direção à carruagem. Ao longo dos
últimos metros caiu sobre eles uma chuva de pétalas de flores enquanto se elevava um coro de risadas e
felicitações.
Puseram-se em marcha depois que Rannulf apanhou uma bolsa repleta de moedas de um canto do assento e
as lançasse aos punhados para a multidão. Depois se sentou junto dela entre gargalhadas, embora o sorriso
desaparecesse de seu rosto, ficando relegado aos olhos, quando voltou a lhe segurar a mão entre as suas. - Judith,
meu amor. Está feliz?
-
Quase abundantemente feliz - respondeu - A felicidade quer sair aos borbotões de meu corpo, mas não
encontra um modo.
-
Encontraremos um modo - replicou Rannulf enquanto baixava a cabeça para beijá-la de novo. - Esta
noite. Prometo-lhe isso.
-
Sim - disse ela, - mas antes tem o almoço de bodas.
-
Antes o almoço de bodas - conveio ele.
-
Alegra-me tanto que nossas duas famílias estejam aqui para celebrar conosco... -disse - Acredito que até
hoje não tinha me dado conta de quão importante é a família.
Ele apertou sua mão entre as suas.
Certamente que as famílias eram um bem incalculável. E as duas famílias em questão, os Bedwyn e os Law,
deram-se melhor do que Rannulf acreditou possível. Bewcastle relaxou o bastante para ser agradável aos Law
quando foram apresentados; durante o almoço encetou uma conversa com o reverendo Jeremiah Law que
parecia ter como tema a teologia. O marquês de Rochester conversou longa e tediantemente com sir George
Effingham sobre política. Tia Rochester, a mais altiva das aristocratas, permitiu-se formar parte da conversação
que mantinham a mãe de Judith e as avós de ambos. Alleyne engenhou para acabar sentado entre Hilary e
Pamela. Morgan, que estava frente a eles, sentou-se junto a Branwell Law. Eve, sorridente e encantadora, falou
com todo mundo sem separar-se de seus filhos, salvo quando a pequena por fim deu sinais de cansaço por causa
de toda a agitação e Aidan a segurou nos braços.
Os tios de Rannulf se mostraram encantados com Judith durante as apresentações.
-
Deve ser algo fora do normal ter conseguido apanhar o coração de Rannulf - disse sua tia com seu
habitual desdobramento de sinceridade e o lornhão na mão dispostos para seu uso, - sem ter em conta a
aparência. Bewcastle já havia me dito que era uma beleza.
-
Obrigada, senhora. - Judith sorriu e fez uma reverência. Morgan e Freyja a beijaram na face quando
chegaram da igreja. Eve, a quem acabava de conhecer nesse instante, deu-lhe um forte abraço.
-
Rannulf veio a Grandmaison faz dois meses com a firme decisão de resistir a qualquer intento
casamenteiro - comentou com uma piscada depois de lançar a ele um breve e travesso olhar. - Me alegro muito
de que seu plano tenha frustrado.
Aidan, o alto, sério e austero Aidan, fez-lhe uma reverência, fazendo pensar com certeza que era inclusive
mais rígido e frio que Bewcastle. Entretanto, depois disso a agarrou pelos ombros, inclinou a cabeça para beijá-la
na face e lhe sorriu.
-
Bem-vinda à família, Judith - disse - Somos um grupo sem acerto algum. É necessária uma mulher muito
valente para casar-se com um de nós.
Eve se pôs a rir e baixou a mão para posá-la sobre a cabeça do menino.
-
Posso assegurar que Judith é tão intrépida como eu - disse. Freyja se movia de um grupo a outro,
comportando-se com total educação. Entretanto, parecia a pessoa mais fora de lugar em meio a semelhante
celebração, pensou Rannulf. Levou sua irmã para um canto enquanto Judith conversava com sua avó, a quem
acabava de escutar dizer que já tinha encharcado três lenços, mas que ainda restavam outros três de reserva na
bolsa.
-
Está muito emotiva, Free? - perguntou-lhe.
-
É claro que não - replicou Freyja com presteza. - Me alegro por ti, Ralf. Devo confessar que me senti um
pouco horrorizada quando chegou a Bedwyn House com Judith, mas não é nenhuma débil nem caça-fortunas,
não é? Atrevo-me a dizer que será feliz.
-
Sim, eu também acredito. - Inclinou a cabeça para um lado para estudá-la mais detalhadamente. - Irá
amanhã a Lindsey Hall com Wulf e os outros?
-
Não! - respondeu com brutalidade. - Não, parto para Bath. Charlotte Holt-Barron está ali com sua mãe e
me convidou para passar uma temporada com elas.
-
A Bath, Free? - Rannulf franziu o cenho. - Não é um lugar no qual possa encontrar jovens com os quais
se relacionar, nem tampouco muitas diversão, não lhe parece?
-
Me fará bem - disse ela.
-
Isto não tem nada a ver com Kit, não é? - inquiriu Rannulf. - Nem com o fato de que sua esposa esteja a
ponto de ter um filho.
Kit Butler, o visconde de Ravensberg, que fora antigo pretendente de Freyja e seu noivo no verão passado,
por desgraça vivia muito perto de Lindsey Hall. E lady Ravensberg estava a ponto de dar a luz.
-
É claro que não! - replicou ela com muita veemência. - Mas olhe como é estúpido, Ralf.
O iminente acontecimento e as bodas de um irmão deviam ser algo muito doloroso para Freyja.
-
Sinto muito, Free - disse - Mas logo encontrará alguém e então se alegrará de ter esperado.
-
Será melhor que se esqueça deste ridículo assunto - ordenou-lhe - se não quer que lhe dê um murro no
nariz, Ralf.
Ele sorriu e lhe deu um beijo na face, algo que raras vezes fazia.
-
Se divirta em Bath - disse.
-
Tenho toda a intenção de fazê-lo - respondeu. Olhou além de seu irmão. - Como se sente, vovó?
Rannulf se virou e rodeou à anciã com os braços. -Vovó - disse.
-
Tem-me feito muito, mas muito feliz hoje, Rannulf - assegurou a anciã.
Sorriu-lhe. Ver-se rodeada de seus netos durante o último mês parecia ter feito bem a sua saúde. Embora a
gente nunca pudesse estar seguro com essa mulher, é claro. Sua saúde era um assunto do qual nunca falava.
-
Eu também sou feliz - confessou.
-
Sei. - Deu-lhe um tapinha no braço. - Essa é a razão de que eu o seja.
Por fim chegou uma oportunidade de ficar a sós com Judith. Passaria a noite de bodas na residência da viúva,
que fora arejada, limpada e acondicionada para a ocasião. Embora a maior parte do que restava do dia passariam
em Granddmaison com ambas as famílias. Portanto só foi um momento roubado quando no meio da tarde
escaparam ao exterior e se encaminharam para o caramanchão. Não estava tão coalhado de flores como no
princípio do verão, mas até esse instante era um lugar íntimo e encantador, com os distintos terraços banhados
pelo sol da tarde e o arroio que borbulhava por seu pedregoso leito.
Sentaram-se juntos na beira do banco onde Judith se sentou a primeira vez que visitou Grandmaison, aquele
dia em que a pediu em matrimônio pela primeira vez. Rannulf enlaçou os dedos com os dela.
-
Correndo o risco de parecer insensível - disse, - me alegro de que chovesse aquele dia e de que nem o
cocheiro nem eu fizéssemos caso das advertências para não continuar a viagem. Alegro-me de que a diligência
tombasse. Que diferentes seriam hoje nossas vidas se essas coisas não tivessem acontecido.
-
E se houvesse dito que não quando se ofereceu me levar a cavalo - acrescentou ela. - Tinha a negativa na
ponta da língua. Jamais fez algo tão inapropriado. Mas decidi roubar um sonho e se transformou no sonho do
resto de minha vida. Rannulf, não sabe quanto o amo. Quem dera houvesse palavras para expressar o que sinto.
-
Não há - disse ele enquanto erguia suas mãos entrelaçadas e depositava um beijo sobre os nódulos de
Judith. - Nem sequer quando fizermos amor esta noite poderemos expressar de forma adequada o que é o amor,
não lhe parece? Essa foi a maior surpresa dos últimos dois meses: o amor não se limita somente a um plano, seja
físico, mental ou emocional. Transcende em muito a qualquer um deles. É a mesma essência da vida, não acha?
Um mistério indescritível que só chegamos a vislumbrar graças ao descobrimento do ser amado. Ajude-me um
pouco, Judith. Acha que estou dizendo tolices?
-
Não. - pôs-se a rir. - Compreendo-o perfeitamente. Ela inclinou a cabeça e começou a acariciar o dorso
da mão de Rannulf com os dedos da mão livre.
-
Rannulf, lembra-se quando estávamos na colina que há perto de minha casa faz seis semanas e disse que
quase desejava que fosse verdade?
-
Refere-se a... - Rannulf cravou o olhar nos brilhantes cachos da nuca de sua esposa com a boca
repentinamente seca.
-
Pois é verdade - disse ela em voz baixa antes de levantar a cabeça para olhá-lo nos olhos. - Estou grávida.
Ao menos, acho que estou.
Ele a contemplou, incapaz de mover-se. - O incomoda muito? - perguntou.
Inclinou-se sobre ela e lhe soltou a mão para poder lhe rodear os ombros com um braço enquanto deslizava
o outro por baixo dos joelhos e ficava em pé com ela. Deu duas voltas com ela nos braços.
-
Vou ser pai! - gritou ao céu azul que se abria sobre eles, com a cabeça arremessada para trás. - vamos ter
um filho.
Gritou entusiasmado antes de baixar a cabeça para ela. Sua esposa tinha os olhos brilhantes e não deixava de
rir.
-
Acredito que não se incomoda absolutamente - disse ela.
-
Judith - disse lhe roçando a boca com os lábios. - Minha esposa, meu amor, meu coração. Estou dizendo
tolices outra vez?
-
É provável - respondeu ela entre risadas antes de lhe rodear o pescoço com os braços. - Mas só eu estou
aqui para escutar.
Diga alguma mais.
Mas, como ia fazê-lo? Estava-o beijando apaixonadamente.
SOBRE A AUTORA
Mary Balogh nasceu e foi criada no País de Gales. Ainda jovem, se mudou para o Canadá, onde planejava
passar dois anos trabalhando como professora. Porém ela se apaixonou, casou e criou raízes definitivas do outro
lado do Atlântico.
Sempre sonhou ser escritora e tinha certeza de que, no dia em que escrevesse um livro, ele seria ambientado
na Inglaterra do Período da Regência. Quando sua filha mais nova tinha 6 anos, Mary finalmente encontrou
tempo para se dedicar ao antigo sonho. Depois de três meses escrevendo na mesa da cozinha, a primeira versão
de sua obra de estreia estava pronta. Publicada em 1985, deu a Mary o prêmio da Romantic Times de autora
revelação na categoria Período da Regência. Em 1988, depois de vinte anos de magistério, ela passou a se dedicar
apenas aos livros.
Hoje Mary Balogh é presença constante na lista de mais vendidos do The New York Times e vencedora de
diversos prêmios literários.
www.marybalogh.com
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