GESTRA - Gestão de Trabalhos para o Ensino de Linguagens e suas Tecnologias. Volume 2, 2012.
ISSN 2176-8994
Identidade e alteridade em Dois Irmãos - Jéssica do Nascimento Ferreira
Identidade e alteridade em Dois Irmãos1
Jéssica do Nascimento Ferreira2
Introdução
O desdobramento do eu é uma das principais características das obras literárias
da contemporaneidade. A possibilidade de enxergar-se no outro pode ser assustadora,
porém é a única maneira de construir a própria identidade. Os sentimentos, as ideias,
as preferências formulam-se, desenvolvem-se a partir do momento que as comparamos com outros pontos de vista dessas mesmas coisas.Essas relações de identidade e
alteridade serão analisadas na obra Dois Irmãos (2000), de Milton Hatoum.O autor nasceu em 1952, em Manaus (Amazonas), onde passou a infância e uma parte da juventude. Mesmo graduado arquiteto, nunca exerceu a profissão, pois não conseguiu largar a
paixão pela literatura. Hatoum uniu esse sentimento às lembranças de sua cidade natal
para dar vida aos personagens fascinantes das suas obras.
Em 1989, publica seu primeiro romance, Relato de um certo oriente. Em 2000,
Dois irmãos, seguido de Cinzas do Norte (2005), Órfãos do Eldorado (2008). Em 2009,
nos presenteia com seu primeiro livro de contos, A cidade ilhada.
O livro relata a história de uma família de origem libanesa que vive em Manaus.
Seu núcleo é composto por dois irmãos gêmeos - Yaqub e Omar (conhecido como o
Caçula). Toda a narrativa nos é mostrada sob a voz de Nael, filho da empregada da
casa, Domingas. Ao longo da história, descobre-se que esse narrador é fruto de um dos
gêmeos, gerando um clima de suspense até o final.
Todo o enredo é construído pela voz de terceiros. A narração é uma rememoração e Naelé o único ainda vivo dentre os personagens da trama.
Dois irmãos é uma obra contemporânea e de grande importância para os estudos de alteridade, identidade e duplo do cenário literário nacional.
Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Duplos na literatura brasileira contemporânea, que recebe
apoio financeiro do CNPq e é coordenado pela profª. Drª. Josalba Fabiana dos Santos.
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Graduanda em Letras (PICVOL) - Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Grupo de pesquisa em Linguagem, Enunciação e Discurso para o ensino da língua portuguesa (LED) - http://led-ufs.net
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Os gêmeos
O romance está, assim como as outras obras da atualidade, repleto de relações
de dualidade. A mais óbvia delas encontra-se nos irmãos gêmeos Yaqub e Omar. A
estudiosa Nicole Bravo afirma que as primeiras histórias de duplo aparecem nas expressões como almas irmãs, almas gêmeas, irmãos siameses. (BRAVO, 1997, p. 261)
A cultura popular tem um ditado que diz que pessoas que são gêmeas sempre
são opostas. Isso se aplica perfeitamente aos irmãos. Mostram-se bastante diferentes,
desde o nascimento. E quase toda a narrativa trabalha com essa questão das diferenças entre eles, exceto nos momentos onde algumas semelhanças aparecem e causam
certa confusão e mal-estar naqueles que os rodeiam. Nael, o narrador, fala sobre esse
estranhamento de semelhança e antagonismos dos gêmeos, num dos poucos momentos em que os dois se falam depois de adultos. "Pouco falaram, e isso era tanto mais
estranho porque, juntos, pareciam a mesma pessoa." (HATOUM, 2000, p. 25)
Apesar de toda a semelhança física, os irmãos seguem por destinos completamente opostos já que não conseguem permanecer em harmonia. Todos os conflitos entre os irmãos iniciam-se por meio da disputa pelas mulheres da narrativa: a mãe Zana,
a irmã Rânia, a empregada Domingas, ou a vizinha. Esta última, apesar da pequena
participação no enredo, é o estopim da grande separação entre os dois, pois Omar, o
mais impetuoso dos dois, desfere um golpe de caco de vidro no rosto do outro ao flagrá
-lo sendo beijado por ela. Esse acontecimento gera a grande separação entre os gêmeos, pois Halim, o pai dos adolescentes, resolve enviar Yaqub ao Líbano, para trabalhar
na Segunda Guerra Mundial e também para aliviar a situação de conflito causada por
Omar.
A relação dos gêmeos sempre se mostra explicitamente conflituosa e complicada. Antes da disputa pela vizinha, já havia na casa do clã libanês a disputa pelo amor
da mãe, Zana. Contudo, o afeto maternal é quase todo destinado ao filho mais novo,
Omar (anagrama de amor, do qual podemos relacionar à sua mãe e ao modo como lida
com as mulheres). Ao nascer fraco e enfermo, desperta na mãe toda a sua proteção e
zelo. Mesmo adulto, Zana ainda vê o filho como um bebê, necessitando de cuidados
especiais e, se a impedem de fazer isso, sente-se vazia, como se cuidar de Omar fosse
uma necessidade. Dessa forma, o comportamento do outro irmão, Yaqub, é perfeitamente justificado. Desde pequeno, mostra-se acuado, sempre tentando proteger-se das
enrascadas que o caçula lhe colocava, para evitar aborrecimentos da mãe, como se
quisesse evitar mais rejeição. Quando retorna ao Brasil depois de alguns anos no Líbano, nada havia mudado,Omar ainda é o centro das atenções da casa, pois ao chegar
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bêbado é cuidado por todas as mulheres, principalmente por sua mãe, que o esperava
todas as noites.
E lá estava Zana, impávida na rede vermelha, no rosto a serenidade
fingida, no fundo atormentada, entristecida por passar mais uma noite
sem o filho. Omar mal percebia o vulto arqueado sob o alpendre. Ia direto
ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da noite, cambaleava
ao tentar subir a escada [...]. Então ela saía da rede, arrastava o corpo
do filho até o alpendre e acordava Domingas: as duas o desnudavam,
passavam álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar dormia até
meio-dia. (HATOUM, 2000, p. 64)
Obcecada por Omar, Zana esquece um pouco de Yaqub. No entanto, mesmo
com dificuldades na pronúncia da língua portuguesa devido aos anos no Líbano, o mais
velho dedica-se fortemente aos estudos, demonstrando grande habilidade com a matemática, que o levará a São Paulo onde se casa e forma-se engenheiro. Ele constrói seu
próprio destino, para orgulho de seu pai. E essa é a principal diferença entre os irmãos,
a possibilidade de desgarrar-se do seio materno. Juntos, os irmãos tendem a brigar,
discutir, mas, quando separados, uma ligação forte os atrai um para o outro, como um
imã queos força a voltar a enfrentarem-se. Para explicar melhor essa relação, tomo a
citação de Nicole Bravo, baseada no estudo de Keppler:
Para ele o duplo é ao mesmo tempo original e diferente — até mesmo
o oposto — dele. É sempre uma figura fascinante para aquele que se
duplica, em virtude do paradoxo que representa (ele é ao mesmo tempo
interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e complementar) e provoca no
original reações emocionais extremas (atração/repulsa). (BRAVO apud
KEPPLER, 1997, p. 263).
O duplo é um fenômeno muito paradoxal, como diz a citação acima. É lidar com
duas coisas que são basicamente iguais, mas também muito diferentes. Constituem
uma dualidade porque partilham de pontos em comum como ideias, sentimentos, ações,
personalidades, tipos físicos. Em contrapartida, a ausência de tudo isso também pode
constituir um duplo, baseado no antagonismo. Como afirma Bravo, citando Jung, o
duplo tem um caráter de proximidade e antagonismo. São faces complementares do
mesmo ser. (BRAVO, 1997, pág. 263).
Yaqub e Omar constituem esse paradoxo proposto por Keppler, afinal, são absurdamente opostos e complementares ao mesmo tempo, [des]projetando um ao outro
em si mesmos, numa espécie de alter ego obscuro. Nicole Bravo afirma que o duplo da
atualidade é aquele que funciona como um tipo de alter ego. (BRAVO, 1997, p. 261)
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Em Dois irmãos, ambos os protagonistas desejam ser ou ter o que o outro tem,
e consequentemente, o que falta neles mesmos.
Não, fôlego ele não tinha para acompanhar o irmão. Nem coragem. Sentia raiva de si próprio e do outro, quando via o braço do Caçula enroscado no pescoço de um curumim do cortiço que havia nos fundos da
casa. Sentia raiva de sua impotência e tremia de medo, acovardado. (HATOUM, 2000, p. 17)
Enquanto Yaqub sente inveja da audácia do irmão caçula, este nutre o mesmo
sentimento do outro ao vê-lo tomar coragem e decidir sair de Manaus e viajar sozinho
para São Paulo. "Sofria com a decisão de Yaqub. Ele, o Caçula, ia permanecer ali, ia
reinar em casa, nas ruas, na cidade, mas o outro tivera a coragem de partir. O destemido, o indômito na infância, estava murcho, ferido." (HATOUM, 2000, p. 42)
Em determinados momentos, um projetará sua vida na do outro, afirmando assim, o duplo entre ambos. As identidades de Yaqub e Omar são construídas na alteridade, afinal, eles encontram-se um no outro e constroem seus eus na projeção do outro.
As relações de identidade e alteridade entre os gêmeos não se atém unicamente a eles mesmos, mas também o que representam na história. Na primeira parte da
narrativa, como já foi dito anteriormente, Yaqub é enviado ao Líbano, para trabalhar na
Segunda Guerra, conhecer suas origens e principalmente, afastar-se do seu irmão que
o havia agredido. O Brasil, em especial Manaus (cidade onde se passa a narrativa),
nessa época, abrigava os imigrantes e vive, por um bom tempo, um período de estabilidade econômica e cultural. Pode-se dizer que Omar representa a euforia da época,
considerado como o rei da noite manauense, ao contrário do Líbano, que durante a
Segunda Guerra, foi ocupado pelos franceses e sofreu imensa devastação. Dessa forma, Yaqub faz referência à decadência, ao abandono e traz consigo resquícios da terra
sombria de seus pais.
Zana temia que ele mijasse no pátio do colégio, comesse com as mãos
no refeitório ou matasse um cabrito e trouxesse pra casa. Nada disso
aconteceu. Era um tímido, e talvez por isso passasse por covarde. Tinha
vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai! Buxa vida!), e
era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinham como
rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado. (HATOUM, 2000, p. 63)
Ao mesmo tempo em que isso acontecia com o irmão mais velho, Omar era
aclamado pelas mulheres e amigos boêmios que o admiravam por enfrentar qualquer
um que tentasse impedi-lo. Contudo, mais tarde, os papéis se invertem. Em detrimento
da decadência do café no sudeste, o Brasil se vê obrigado a investir nas indústrias de
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base.
Assim, Brasília e São Paulo começam o desenvolvimento que se alarga até os
dias atuais, deixando o Norte e Nordeste de lado. Yaqub, formado engenheiro em São
Paulo, passa a representar a ascensão, o sucesso e o progresso, enquanto Omar faz
referência direta à decadência do comércio cultural da cidade Manauense, que se vê
obrigada a aceitar a imposição das dos estados mais economicamente dominantes,
como na citação a seguir sobre a irmã dos gêmeos: "Rânia, tutora da loja, a ara os
laços com São Paulo, de onde vinham as novidades que enchiam as vitrines. Além de
labiosa nos negócios, ela sabia controlar as despesas da casa, anotando cada níquel;"
(HATOUM, 2000, p. 114).
Halim, o chefe da família, possuía uma pequena loja onde reunia amigos. Com o
passar do tempo, o negócio é assumido pela filha Zana que investe em novos produtos.
Assim como velhas tradições eram deixadas para trás na família fictícia de Dois irmãos,
o Brasil também deixava de ser um país "colonial" para receber a modernidade ditada
pela construção de Brasília e pelo governo J.K. Dessa forma, os dois irmãos são metáforas da ascendência e decadência, sempre eternamente ligadas, afinal, o crescimento
projeta-se na falência para desenvolver-se, e vice-versa, assim como a eterna rivalidade de Yaqub e Omar.
A questão da decadência é reforçada pelo fato da ausência de herdeiros da família. Mesmo Nael sendo filho de Omar com Domingas, ele não é aceito como tal e ainda
que Halim e Yaqub nutrissem uma relação de afetividade por ele, o narrador ainda é
considerado um empregado e exerce esse papel até o fim da narrativa. Dessa forma, a
família protagonista da história acaba juntamente com o velho Brasil e a poeira da velha
cidade de Manaus.
Conclusão
O duplo é uma projeção de si mesmo em outro lugar, outra coisa, outra pessoa.
Ele está em toda parte e a todo o momento duplicamos algo em nossas vidas. Analisá-lo na literatura é também entender a nós mesmos como personagens da vida real.
Os duplos trabalhados servem de base para o estudo das questões de identidade e
alteridade que os personagens, na qualidade de representação de pessoas, podem
apresentar. Dessa forma, estudar o duplo nos leva ao conhecimento da essência de
nós mesmos.
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Referências
BRAVO, Nicole Fernandez. O duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos
literários. Trad. Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 261-287
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
KALINA, Eduardo; KOVADLOFF, Santiago. O dualismo: Estudo sobre O retrato de Dorian
Gray. Trad. Oswaldo Amaral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
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