ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 A QUESTÃO DO DUPLO EM A MENINA MORTA¹ Jéssica do Nascimento Ferreira (Graduanda/UFS) INTRODUÇÃO A menina morta é uma das obras mais importantes da literatura brasileira, se não mundial. Afinal, o romance nasce em pleno regionalismo brasileiro, mas trata de assuntos que se bifurcam por caminhos diferentes, a começar pelo tom gótico que apresenta e que o faz ser comparado a clássicos como Drácula (1897) de Bram Stoker. Essa correlação entre os romances se dá, segundo Josalba Fabiana dos Santos (SANTOS, 2007, p. 126), devido a elementos como “monstros, duplos, vampiros, lugares isolados e assombrados”. Além disso, o livro lida com a questão da escravidão de forma excepcionalmente diferente, já que na Menina Morta, os escravos não são exaltados cerimoniosamente como no romantismo, e tampouco expostos de forma humilhante como no realismo; estas pessoas são vistas como seres humanos, com suas virtudes, vícios e interesses. Como o próprio nome prenuncia, a narrativa gira em torno da morte da filha mais nova da família Albernaz, clã que vive na fazenda do Grotão, em Minas Gerais. A partir do falecimento dessa garota, o leitor passa a entrar num jogo de quebra-cabeça, onde as peças são jogadas, pouco a pouco ao longo do enredo, afim de que se entenda a grande complexidade dos personagens postos lá. O sistema patriarcal e escravocrata é exposto e lentamente desmascarado, pois Cornélio Penna faz um grande trabalho ao mostrar as podridões e laceramentos dessa grande rede avassaladora e opressora, principalmente em relação às mulheres – personagens alvo do romance. Dessas personagens femininas que são nada mais que o reflexo da opressão social e sexual, destaco as três principais mulheres da narrativa: a menina morta (que não é nomeada), Carlota (a filha mais velha) e Dona Mariana (mãe das duas e esposa do dono do Grotão – o Comendador). Essas personagens, constituem um elo muito forte, que vai além de laços familiares. Contudo, pode-se afirmar que o centro dessa ligação é 1 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 Carlota, que ao longo da narrativa, é equiparada tanto à sua irmã falecida, quanto à sua mãe, Dona Mariana. Assim, a filha mais velha constitui uma relação de duplicidade com as outras duas, e é exatamente nessa vertente, que este trabalho vai se debruçar. CARLOTA E A MENINA MORTA Quando a filha mais nova do clã Albernaz morre, Carlota é trazida do internato, antes do tempo, para sua casa. Isso mascara o desejo e tentativa, principalmente por parte de seu pai, o Comendador, de preencher o vazio deixado pelo falecimento precoce da garota. Dessa forma, desde a sua chegada ao Grotão, a vida de Carlota torna-se uma projeção do futuro que sua irmã teria, caso estivesse viva. A filha mais velha não é reconhecida por ser quem ela é, mas por ser o reflexo da menina, cuja lembrança ainda é muito forte na memória das tias que a cuidavam e dos escravos, como no caso da ama de ambas, Libânia: - Ah, nhanhã – disse Libânia por entre as lágrimas a lhe escorrerem agora dos olhos, mansamente, de forma tão passiva – eu...eu julguei...eu me lembrei da menina morta, pois me parecia ser ela a nhanhãzinha de volta, agora grande, moça e bonita... (PENNA, 1970, p. 224) A primeira relação de duplo entre ambas está no fato de elas serem irmãs, já que segundo Nicole Bravo, a ideia de duplicidade “encontra-se nas expressões como almas irmãs, almas gêmeas, irmãos siameses...” (BRAVO, 1997, p. 261). Dessa forma, a fraternidade por si só já constitui um duplo, pois em várias passagens da narrativa, as pessoas que residem a casa dos Albernaz confundem as duas irmãs, como é o caso de Dona Inacinha, que ao preparar doces para a filha mais velha que chegaria do internato, chega ao ponto de não saber mais para qual das duas garotas a sobremesa era destinada: Dona Inacinha estava tão absorvida que não distinguia mais para quem estava fazendo aquele trabalho e na verdade esperava a chegada 2 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 da criança e não da jovem que viria da Côrte... E a menina morta estava agora ao seu lado e sentiu suas mãos miúdas que puxavam suas vestes. (PENNA, 1970, p. 155) Apenas aproximar o nome Carlota à menina morta, já é constituir um duplo, afinal, uma está viva e outra está morta, porém, a linha que diferencia a garota falecida da sua irmã é muito tênue, pois como na citação acima e em outras passagens da narrativa é possível perceber que a pequena que se foi está mais viva e presente no imaginário das pessoas do que Carlota, e a todo momento alguém vê a menina sob os olhos desta, e como ambas se parecem quando equiparadas na mesma idade. As duas meninas, quando pequenas, demonstram grande afeição aos escravos e dessa forma, tentavam ajudá-los como era possível, como podemos ver na fala de Celestina: Recordava-se da menina, que vinha sentar-se na sua cadeirinha ao lado do senhor Justino ou então nos degraus da escada e, com habilidade, furtava algumas chapinhas para dar disfarçadamente às negras, quando vinham receber seu quinhão. Muitas delas ajoelhavam diante da criança, agradeciam com lágrimas o favor escondido e arriscavam assim fazer com que os encarregados da fiscalização percebessem a fraude. (PENNA, 1970, p. 137) A menina falada na citação é a que já está morta, e reforçando o que foi dito acima, está bastante viva nas lembranças das tias e parentas, porém, ao longo da narrativa, Carlota vai descobrindo que, na verdade, a “boa ação” da garotinha era motivo para mais castigos para os negros. As peças do quebra-cabeça unem-se quando se descobre que as atitudes aparentemente boas da menina eram mais um fator que alimentava o cruel sistema escravocrata, vigente na fazenda do Grotão. A princípio Carlota não compreende bem esse sistema, mas aos poucos, ela percebe o quão mal é aquele mundo que ela julgava tão bom, e seu pai, visto até então com respeito e admiração, pois para ela o pai “era ainda o mesmo homem belo e ágil sempre visto em seus sonhos” (PENNA, 1970, p. 231) é desmascarado. 3 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 Com essas descobertas, Carlota nota que não é o reflexo da sua irmã falecida, pois esta seria a continuação do patriarcalismo, como diz Dona Virgínia, parenta próxima dos Albernaz: “Ainda se vê ser a menina destinada a tornasse mulher robusta, capaz de ter muitos filhos e fundar outra fazenda maior que esta!” (PENNA, 1970, p. 15). O duplo entre as filhas do Comendador e de Dona Mariana reside também nas diferenças em que elas apresentam: Realizou então serem escravos no tronco, e lembrou-se a sorrir das histórias contadas de que a menina morta ia “pedir negro”...Mas, o sorriso gelou-se em seus lábios, porque agora via o que realmente se passava, quais as consequências das ordens dadas por seu pai e como aquêles homens velhos, os feitores de longas barbas e de modos paternais, que a tratavam com enternecido carinho, cumpriam e ultrapassavam as penas a serem aplicadas. Sabia agora o que representava o preço dos pedidos da menina morta, que a ela custavam apenas algumas palavras ditas com meiguice. E teve ódio da criança ligeira de andar dançante, a brincar de intervir vez por outra, em favor daqueles corpos que via agora contorcidos pela posição de seus braços e pernas, presos no tronco, e cujo odor de feras enjauladas lhe subia estonteante às narinas. (PENNA, 1970, p. 401) Mas, mesmo com as diferenças, há uma extrema força que atrai Carlota à imagem de sua irmã, que a faz buscar, talvez assim para compreender a si mesma, pois ela busca o retrato da irmã e questiona sua ama Libânia acerca das semelhanças entre as duas, na busca pelo seu reflexo, pelo espelho que a faça enxergar quem ela é, e assim, confirmar seu duplo, de acordo com Clément Rosset: a busca do eu, especialmente ligada nas perturbações de desdobramento, está sempre ligada a uma espécie de retorno obstinado ao espelho e a tudo o que pode apresentar uma analogia com o espelho (ROSSET, 1988, p. 65) Carlota busca sua identidade ao longo da narrativa, e percebendo as semelhanças e diferenças entre ela e a menina morta, percebe, ao final, o quanto são parecidas, como ela mesmo diz, no último parágrafo da obra: 4 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 Eu é que sou a verdadeira menina morta ... eu é que sou essa que pesa agora dentro de mim, com sua inocência perante Deus... Aquela que morreu e se afastou, arrancando do meu ser o seu sangue para desaparecer na noite não sei mais quem é ... e a mim me foi dada a liberdade, com a sua angústia, que será a minha força. (PENNA, 1970, p. 458) Carlota teve que matar a si própria para conseguir sua liberdade, afinal ela transgride a todas as leis do patriarcalismo: liberta os escravos da sua fazenda, não se casa e consequentemente não tem filhos. Nessa morte libertadora, mas angustiante, como ela mesma fala, ela concretiza o duplo com a sua irmã cujo corpo descansa, mas cuja lembrança é mais do que viva. CARLOTA E DONA MARIANA A retirada precoce de Carlota do internato não se deu somente para que esta viesse a substituir sua irmã falecida, mas para que fizesse o mesmo com sua mãe, que aparentava estar muito doente. Contudo, o retorno à fazenda não corresponde às suas expectativas, pois, ela não encontra seus pais à sua espera, o que gera um ambiente de aversão. Por isso, Carlota passa a sentir-se só, afinal, não há em quem ela possa se apoiar, e a forma como ela reage, dá os primeiros sinais de duplicidade entre ela e sua mãe, como podemos ver na citação do estudioso Luiz Costa Lima, ao explanar as obras de Cornélio Penna: Carlota então reage à discrepância que se cria entre a expectativa que a cerca e o rumo titubeante de sua vontade pela fuga, trancando-se em seu quarto, manifestando sinais de fadiga, em um afastamento voluntário semelhante ao de Mariana (LIMA, 1976, p. 135) Desde a sua chegada, Carlota, além de ser o reflexo da menina morta, também é o espelho de sua própria mãe. É interessante salientar que antes da chegada da filha 5 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 mais velha, Dona Mariana não era exatamente o exemplo de Senhora da casa, muito ao contrário, a Sinhá é vista com ares de rainha, mas tal soberania seria em desprezo e humilhação em relação às outras mulheres da casa. Essa visão acerca de Mariana foi construída a partir do seu retraimento, aparentemente inexplicável, assim, gerando nas outras um sentimento de exclusão. Não se tem, ao longo do enredo, o interior da mãe de Carlota, assim, a personagem Mariana é, como Costa Lima diz, construída pela “voz de terceiros” (LIMA, 1976, p. 131). Quando a menina morre, não há na narrativa nenhuma passagem em que a Sinhá demonstre sua dor, pois quem banha e veste a garota para o enterro são Celestina (prima da menina) e Frau Luiza. Esta última, acrescenta sobre Mariana: não dera até esse momento a menor demonstração de tristeza, e lá devia estar em seu quarto, a ler o livro de capa de couro que lhe vira nas mãos, ou então a rever suas joias realengas, e era sempre assim nos momentos de maior perturbação naquela casa, no paroxismo de seus problemas domésticos. (PENNA, 1970, p. 7) Contudo, o quebra-cabeça corneliano mostra que as aparências realmente enganam, pois capítulo a capítulo, os leitores percebem que Mariana se deu conta da crueldade do sistema patriarcal e escravocrata, e a única forma de lutar contra ele, é tornar-se passiva, morrer socialmente, para sobreviver, e assim tornar-se um tipo de fantasma, como ela mesma diz: – Estou realmente mal – disse ela com tôm seco e breve e parecia falar de outra pessoa, mas a sua voz era amarga e profunda, dominada apelas pela firmeza de sua vontade. – sinto-me perto do fim... (PENNA, 1970, p. 154) Nessa alusão ao fantasmagórico libertário, reside o duplo entre a mãe e sua filha mais velha. De acordo com costa Lima, existem alguns elementos que caracterizam o “modo fantasmal”, como ele diz. São eles: 6 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 /ter o presente como não presente (= não ver o visível, não estar onde se encontra)/, /maneira de sofrer a interdição/, /de acusada leveza/, /próprio do comportamento de personagens do alto/, /pertencentes ao caminho do feminino/ (LIMA, 1976, p. 141) De todas as características acima, ambas mãe e filha se encaixam, como “personagens do alto”, quer dizer, as reais dona da fazenda Albernaz, e mulheres, eram obrigadas a por exemplo, ter autonomia no governo da casa, mas dona Mariana se exclui dessa função e Carlota a recusa por um bom tempo. As semelhanças são visíveis não só na visão das parentas que ali vivem, mas também na visão das escravas, que enxergam em Carlota, a Dona Mariana de outrora, que era não só conhecida por sua extrema beleza, mas também pela admiração e respeito que impunha a todos a sua volta, como na passagem em que a filha mais velha questiona, de forma severa, a negra Joviana sobre a morte de um outro escravo, Florêncio: - Nhanhã – disse a negra por fim, a hesitar – não olhe assim não para mim, pois eu fico cheia de mêdo... Até me parece ver outra pessoa, quando também me perguntava coisas que eu não podia dizer... (PENNA, 1970, p. 372) A negra relembra os velhos tempos em que Mariana, provavelmente jovem, também a questionara sobre as maldades da fazenda e do sistema em que se encontrava, o que demonstra que a mãe de Carlota também lutara, contra o sistema vigiado por seu marido, o Comendador. E a negra, depois que Carlota a deixa, acrescenta: “Abrenúncio! A negra velha está para ficar doida! Agora me parece ter falado com Sinhá Dona Mariana!” (PENNA, 1970, p. 372) A esposa do Comendador escolheu ser um fantasma quando percebeu não ser capaz de lutar contra o sistema, e assim ela é “expulsa” da fazenda por ser marido. Já Carlota é um fantasma somente enquanto não percebe a dominação patriarcal que a cerca, no entanto, quando finalmente a filha mais velha vê que o mundo em que vivia 7 ANAIS ELETRÔNICOS ENILL Encontro Interdisciplinar de Língua e Literatura | 10 a 12 de novembro de 2011 Itabaiana/SE: Departamento de Letras, Vol.02, ISSN: 2237-9908 até então, era de ilusão, e talvez essa “queda” à realidade tenha se dado quando ela vê os negros no tronco e percebe que aquele castigo é fruto das “bondades” de sua irmã já falecida. Assim, o duplo entre a mãe e a filha mais velha se encontra enquanto são fantasmas. Carlota copia a mãe, mas, não do mesmo modo, como Josalba Fabiana diz, “ela [Carlota] se apropria de características da mãe e da irmã. Repete-as, mas de forma diferenciada.” (2007, p. 129). Afinal,ela liberta os escravos, não se casa e decide viver até o fim da sua vida, na fazenda do Grotão, assim, trangredindo o patriarcalismo e se libertanto dele, mesmo que tal liberdade custe a angústia de uma vida inteira. REFERÊNCIAS BRAVO, Nicole Fernandez. O duplo. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 261-287. LIMA, Luiz Costa. A perversão do trapezista: o romance em Cornélio Penna. Rio de Janeiro: Imago, 1976. PENNA, Cornélio. A menina morta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970. ROSSET, Clément. O real e seu duplo. São Paulo: LP&M, 1988. SANTOS, Josalba Fabiana dos. Monstros e Duplos em A Menina Morta. In: JEHA, Julio (Org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2007. P. 125-145. ¹ Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa A questão do mal em Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, que recebe apoio financeiro do CNPq e é coordenado pela profª Drª Josalba Fabiana dos Santos. 8