ESPAÇOS DA ESCOLA E DA CIDADE: PENSANDO COM AS CRIANÇAS. Juliana de Oliveira Borges Universidade Federal Fluminense – [email protected] RESUMO Este trabalho é parte de uma pesquisa desenvolvida com alunos do ensino fundamental I de uma escola pública municipal do Rio de Janeiro. Com o objetivo de ouvir o que as crianças pensam sobre os espaços em que vivem cotidianamente, foram promovidas na Sala de Leitura da escola rodas de conversas a fim de partilharmos nossas experiências em diversos espaços. Essas rodas de conversa geralmente eram iniciadas a partir de um livro ou de um vídeo, que funcionavam como dispositivos para estimular nossas conversas. As conversas foram o ponto de partida para produzirmos diversas propostas de mudanças na escola e na cidade, sempre acompanhadas de profundas reflexões sobre a viabilidade de nossos projetos. Palavras-chave: Cidade, Escola, Espaços INTRODUÇÃO Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu. Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor! Almada Negreiros – Poeta português A poesia de Almada Negreiros me leva a pensar sobre os caminhos das ideias das crianças. Esses caminhos são percorridos de diversos modos, repletos de significados que não vamos conhecer. O que passa na cabeça de uma criança ao desenhar uma flor? Para nós, adultos, e para algumas crianças, basta um caule, umas pétalas, cores, um chão e a flor está pronta. Trabalho mecanizado, sem (cor)ação. Para a criança da poesia e para tantas outras, há a ideia, o pensar, o querer, o fazer. Para outras tantas, há a mecanização do trabalho, seguir a ordem e pronto. Trabalho feito, objetivo alcançado. Este texto é parte de uma pesquisa realizada com crianças de uma escola pública municipal do Rio de Janeiro. A partir das conversas com crianças na Sala de Leitura, a proposta principal era que pensássemos sobre nossos espaços, desde onde vivemos até o espaço escolar, lugar onde desenvolvemos a pesquisa. Não me propus a fazer análises psicológicas ou sociológicas dos desenhos ou das falas das crianças. Também não trago um manual de trabalho, como um guia, muito menos soluções para a educação. Compreendo ser difícil – se não impossível – promover uma real aprendizagem com a utilização de materiais prontos diante de tantos saberes e valores presentes nas escolas. Trago o que vivemos. Ou melhor, o que vivi. Porque só as crianças podem contar o que viveram. Foi vendo, ouvindo, sentindo, observando e conversando com as crianças na escola que pude desenvolver essa pesquisa. A esse respeito, Inês Barbosa de Oliveira (2008) lembra que: No que diz respeito aos processos de ensino-aprendizagem, as formas criativas e particulares através das quais professoras e professores buscam o aprendizado de seus alunos avançam muito além daquilo que poderíamos captar ou compreender de modo genérico, pois cada forma nova de ensinar, cada conteúdo trabalhado, cada experiência particular só pode ser entendida junto ao conjunto de circunstâncias que a torna possível, o que envolve a história de vida dos sujeitos em interação, sua formação e a realidade local específica, com as experiências e saberes pregressos de todos, entre outros elementos da vida cotidiana. (p. 52) As temáticas, na pesquisa com as crianças, surgem das e são abordadas nas conversas sobre seus interesses, curiosidades e experiências cotidianas. A partir dos encontros na Sala de Leitura da escola, busquei refletir com elas sobre suas práticas cotidianas e seus espaços praticados na escola e no lugar em que vivem. Foi através das narrativas e dos diálogos que os itinerários da pesquisa foram se configurando, juntamente com nossas experiências na escola. As crianças, se criadoras, não representam, mas vivem suas criações. Trazem suas histórias, narrativas, saberes e conhecimentos sobre suas formas de (vi)ver e narrar seus espaços cotidianos. Nas ruas, na escola, nas salas de aulas, as crianças se encontram, se misturam e produzem um coletivo, que é central nesta pesquisa, pois são suas experiências diferenciadas que se configuram como processos de singularização. Ainda que as temáticas surjam a partir de nossas conversas, tínhamos como objetivo principal refletir sobre a cidade e a escola. Se a cidade é espaço de transitar, permanecer, conviver, porque ela não pode ser pensada a partir de seus usuários? Se a escola é o espaço/lugar para onde as crianças vão (ou deveriam ir) cinco vezes na semana, porque não discutimos as experiências de se viver na escola? Por que elas não fazem parte do processo de projeto ou de pensar sobre a manutenção das escolas e cidades? Tais questões me intrigam e desafiam a investigar como as crianças vivem, pensam e sobrevivem na cidade e na escola. Nada mais arrogante do que querer colocar-se no lugar de uma criança. Nada mais arrogante do que tentar compreendê-la desde o seu interior. Nada mais arrogante do que tentar dizer, com nossas palavras de adulto, o que é uma criança. Porém, não há nada mais difícil do que olhar uma criança. Nada mais difícil do que olhar com olhos de criança. Nada mais difícil do que sustentar o olhar de uma criança, nada mais difícil do que estar à altura desse olhar. Nada mais difícil do que encarar esse olhar. (TEIXEIRA, LARROSA e LOPES, 2006: p.17) Segundo Paulo Freire (1996), é necessário que o educador considere o “saber de experiência feito”, ou seja, como educadora, é necessário que eu seja capaz de compreender a leitura de mundo das crianças. Para ele, a tarefa maior do educador é habilitar o aluno a ler o mundo. Carmen Perez (2001) afirma que hoje, reaprender o mundo é uma tarefa e um desafio colocados para os educadores. Ler o mundo é ler o espaço, ler o lugar; é reconhecer no cotidiano os elementos sociais, culturais e naturais que formam o espaço geográfico: um espaço que contém múltiplos espaços e tempos em permanente transformação. (p. 116) METODOLOGIA Na Sala de Leitura, foi a partir de leituras e seus desdobramentos – conversas, pinturas, desenhos - que as experiências das crianças foram aparecendo. Em alguns momentos da pesquisa, é a literatura infantil que vem para fortalecer essas experiências – não só espaciais, mas de vida – que as crianças trazem. Tomei, então, os desenhos como narrativas, assim como suas falas e seus textos. Tive, assim, uma conjugação de linguagens: a oral, a escrita e os desenhos. Essa pesquisa é uma narrativa composta por diferentes linguagens. Ao trabalhar com olhares infantis, tive a intenção de trabalhar com as compreensões das crianças sobre seus lugares, que são espaços praticados (CERTEAU, 2011). As narrativas das crianças, mais que uma figuração, nos revelam as suas compreensões. RESULTADOS Algumas vezes, nosso cotidiano foi marcado por saídas da escola, como passeios pelo entorno da escola, localizada em um bairro onde nossas crianças são vistas como marginalizadas. Utilizo este termo no sentido de estarem à margem da sociedade. São crianças com direitos onde moram, mas não no bairro dos “outros”. Levá-las ao teatro no shopping e não subir pelas escadas rolantes utilizadas normalmente pelos usuários deste espaço, e sim utilizar escadas que passam pelo lado de fora não poderia ser normal. A justificativa dada pelos seguranças era de que se tratava de uma questão de segurança, já que o shopping ainda não estava aberto ao público (fomos antes das dez horas da manhã, horário em que o shopping abria). Como quase não frequentava o shopping, mal conhecia o lugar, “engoli” aquela justificativa. Ao me habituar àquele espaço, percebi quão discriminatória foi a atitude dos seguranças. Depois, já habituada ao bairro, em qualquer passeio que fazíamos e que tínhamos que passar em frente ao shopping, entrávamos. Para algumas crianças, era oportunidade única de entrar naquele lugar. Para “pegar uma fresca”, passear um pouco. Nunca entrei no shopping com as crianças sem perceber olhares “atravessados” e seguranças se comunicando através dos rádios. Seguranças que conhecem algumas daquelas crianças e que provavelmente moram no mesmo lugar que elas, mas que em nome da “segurança” e tranquilidade dos usuários do shopping praticavam tais atitudes discriminatórias. Seria uma discriminação em relação às crianças por serem da escola pública? Por serem pobres? Por não terem o poder de compra esperado? Pela quantidade de crianças que entravam? Acredito que tudo isso junto. Desde 2008, eu já estava organizando os “rolezinhos”, óbvio que em escala muitas vezes menor, tão falados atualmente. Os “rolezinhos” ficaram conhecidos a partir de dezembro de 2013, quando encontros marcados por jovens através das redes sociais lotavam alguns shoppings de São Paulo. Logo a ideia chegou a outros estados, inclusive o Rio de Janeiro, onde um juiz autorizou que jovens fossem “avaliados” antes de entrar no shopping. O shopping Leblon, localizado no bairro de classe média alta do Rio de Janeiro, de mesmo nome, a fim de evitar o evento, fechou as portas em um domingo, o que demonstra o “perigo” que esses jovens representam para os consumidores. Mesmo que não houvesse qualquer tipo de crime, jovens eram levados para as delegacias. Entendendo os shoppings como barreiras para esses jovens, podemos perceber que querer entrar nesses espaços seria uma afronta às classes média e alta, que ali se veem protegidas. Sobre o assunto, Eliana Brum, colunista do jornal eletrônico El País, escreveu no texto “Os novos “vândalos” do Brasil” (2013): Preferiram concluir que havia a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os mesmos objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas, como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil. (...) Os jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings? Shoppings, ilhas de compras, lugares sagrados, não poderiam ser invadidos por tais “delinquentes”. E nós, em nossos passeios com as crianças? Minha intenção era de refrescarme com as crianças, fazer um passeio em um lugar dito público, mas que mostra seu caráter privado quando os seguranças nos cerceiam com olhares. Leandro Konder (1984), em As Palavras e a Luta de Classes, buscou a origem de algumas palavras, relacionando às classes sociais: “Quando os pobres pediam (pedir, em latim, é rogare), os ricos podiam tolerá-los; quando, porém, reivindicavam (reivindicar é arrogare), passavam a ser considerados arrogantes”. Vemos, a partir das palavras, essa relação entre ricos e pobres. Pobres têm que pedir. Reivindicar, não. O que esses jovens que se encontram nos shoppings estão fazendo? Reivindicando. E isso os ricos não toleram. Leandro Konder continua: Pior do que a arrogância de reivindicar, entretanto, era a loucura de se revoltar. Segundo o dicionário etimológico de José Pedro Machado (de 1952), a palavra maluco deriva dos habitantes das ilhas Molucas: por volta de 1570, os nativos se rebelaram contra os portugueses que tinham vindo explorá-los e os liquidaram sumariamente. A notícia do morticínio chegou a Portugal e os portugueses acharam que os revoltosos das Molucas só podiam ser loucos (isto é, malucos). Como ousavam matar os representantes de uma cultura superior, que chegavam trazendo as ‘benesses’ do colonialismo? (p. 175) Roberto Da Matta (1997) fala sobre as complicações de se viver numa sociedade onde se tem “uma cidadania em casa, uma outra no centro religioso e outra ainda – essa tremendamente negativa – na rua” (p. 21). O pior é que o comportamento a ser seguido é o da dita classe dominante. As relações sociais são relações de poder. Assim como os rolezinhos, Carlos Walter Porto-Gonçalves (2006) diz que os diversos movimentos sociais reivindicam a ocupação de outros espaços: Todo movimento social é portador, em algum grau, de uma nova ordem que, como tal, pressupõe novas posições, novas relações, sempre socialmente instituídas, entre lugares. É por isso que o pensamento conservador, isto é, aquele que quer conservar a ordem social, chama aos movimentos sociais de desordeiros, procurando assimilar a contestação da ordem que querem ater (da sua ordem) à desordem. (p.20) DISCUSSÃO O cotidiano é o espaço da ação, da reflexão. Temos um compromisso com a ação, com o que acontece. O tempo do cotidiano é o tempo da urgência, do fazer, da realização. Penso que pesquisa e prática compõem uma singularidade. Meu trabalho é o cenário de minha pesquisa, onde há a necessidade de criar laços, compromisso, significado. É na relação com o outro que o trabalho vai se fazendo. As perguntas vêm do outro, das relações com outro. Portanto, o projeto em si só ganha sentido nesta relação. Quando pensamos sobre a cidade do nosso tempo de criança, nós, adultos, somos levados a pensar que o passado era melhor, a vida era outra. Verbalizamos esse pensamento com a famosa expressão “no meu tempo”. Questiono, então, que cidade era aquela? Deixou de existir? O que mudou? A partir do passado evoco, questiono o presente, num exercício de olhares meus e das crianças, a partir de nossas experiências singulares. As conversas com as crianças e os produtos desses momentos, como seus textos e desenhos, são uma forma de tentar entender como elas se apropriam e se envolvem com os espaços de suas casas e o entorno. Investigar como as crianças percebem a cidade é uma forma de compromisso político, uma vez que elas são colocadas como cidadãs, que pensam a cidade onde vivem. Walter Benjamin (2011a, p. 203) fala que “metade da arte narrativa está em evitar explicações”. Os desenhos e textos das crianças do 4º e 5º ano falam por si, não precisam que eu escreva sobre cada um, mas sobre o que aqueles desenhos proporcionaram de reflexão e conversas entre nós. Como participante ativa desta pesquisa, uma das perguntas que me guiam é: O que essas imagens me dizem? Sugiro a você, leitor, que também se faça essa pergunta. Não pretendo lhe informar sobre os desenhos. Minha intenção é que você converse com as crianças através dos desenhos e descubra, como eu, que temos muito a conhecer das/com as crianças. É Walter Benjamin (2011b) quem também fala sobre a pobreza na qual milhões “já nascem dentro, e em que são enredados centenas de milhares, que empobrecem. Sujeira e miséria crescem como muros, obra de mãos invisíveis, em torno deles.” (p. 20) Invisíveis são os muros que separam a cidade, as mãos que constroem sujeira e miséria, e acabam por invisibilizar nossas crianças e suas famílias. “Rocinha tem cultura, pinturas e muito mais. Rocinha é a favela maior da América Latina.” Maria Eduarda – 5º ano - 10 anos. Moradora da Rocinha. Figura 10 - “Eu gosto muito do meu prédio. Ele é muito bom. Ele é na Rua Artur Araripe n°18.” Bairro: Gávea. Armando - 5º ano - 10 anos. Morador da Gávea. Figura 32 - “Eu moro no Parque da Cidade. Lá é muito calmo, dá pra dormir tranquilo. A única coisa ruim de onde eu moro é que demora muito pra chegar em casa porque tem muitas escadas e cansa muito.” – Francisco – 6º ano – 11 anos. Quando incitadas a falarem sobre os lugares onde moram, as crianças mostram suas opiniões, cada uma atentando para o fato que lhes chama mais atenção no morar/conviver. Críticas que são, as crianças se mostram muito capazes de identificar e indicar o que lhes incomoda nos lugares onde vivem: lixo, barulho, agitação, chatice, falta de acessibilidade, falta de segurança, condições de moradia, trânsito, entre outros diversos aspectos mostrados a partir dos desenhos e conversas. “O lugar onde eu moro é muito divertido, mas eu queria que fosse mais calmo, seria muito melhor. Onde eu moro é muito legal, tenho muitos amigos e amigas para brincar comigo, mas às vezes eu não tenho ninguém. Tem uma biblioteca, eu vou lá e é muito legal.” – Figura 42 – Bruna – 6º ano - 11 anos Moradora da Rocinha. O essencial é saber ver. Mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender. Procuro despir-me do que aprendi, procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos... Alberto Caeiro Uma das perguntas que me guiou no percurso da pesquisa foi: o que essas imagens me dizem? Devo dizer que tive muita dificuldade de enxergar além. A professora Maria Tereza Goudard me ajudou a ver o que ainda não tinha percebido, me perguntando: “Onde estão as crianças nesses desenhos?” Confesso que fiquei sem resposta, pois já estava certa de que eles não se desenhariam devido a dificuldade de desenhar figuras humanas. Estava vendo, então, a falta de crianças nos desenhos como uma dificuldade técnica. Poderia ser. Mas não era só. Na pesquisa com o cotidiano, venho aprendendo que só vejo o que compreendo. Olhando os desenhos, não compreendi que as crianças não se colocam porque simplesmente elas se sentem alijadas da cidade na qual estão. Voltando aos desenhos, tive a certeza de que a falta das crianças não era uma questão de dificuldade técnica depois que Maria Tereza Goudard falou sobre “matricular as crianças na cidade”. Elas estão matriculadas nas escolas, mas há a necessidade de que isso aconteça também nas cidades. Esta seria uma forma de garantir esse espaço para elas. Assim, as crianças encontrariam na escola e na cidade seus lugares, havendo a possibilidade de criação de novo espaçotempo, onde/quando poderiam (com)viver de um modo em que se sentissem pertencentes. Desta forma, teriam a possibilidade de viver mais experiências, numa tentativa, de acordo com Paulo Freire, de devolver as ruas às crianças e as crianças às ruas: Ah, a rua! Só falam de tirar as crianças da rua. Para sempre? Eu sonho com as ruas cheias delas. É perigosa, dizem: violência, drogas… E nós adultos, quem nos livrará do perigo urbano? De quem eram as ruas? Da polícia e dos bandidos? Vejo por outro ângulo: um dia devolver a rua às crianças ou devolver as crianças às ruas; ficariam, ambas, muito alegres. Para Walter Benjamin (1994), a pobreza de experiência aparece como um fator positivo, visto que pode trazer mudanças. Boaventura de Souza Santos (2007) fala sobre o desafio de enfrentar o desperdício de experiências sociais. Para tanto, critica a razão indolente, preguiçosa: O que estou tentando fazer aqui hoje é uma crítica à razão indolente, preguiçosa, que se considera única, exclusiva, e que não se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo. Penso que o mundo tem uma diversidade epistemológica inesgotável, e nossas categorias são muito reducionistas. (p. 25) O que esse desperdício da experiência pode fazer é diminuir, subtrair o presente, acabando por tornar invisíveis algumas experiências, ou seja, desperdiçando-as. Uma proposta de Boaventura de Souza Santos é expandir o presente e contrair o futuro. Desta maneira, deixamos de pensar o futuro como um constante vir a ser, fazendo planos e mais planos e deixando de viver o presente. Na escola, muitas vezes isso acontece quando deixamos de viver o presente com as crianças e olhamos somente para o futuro, pensando nas avaliações, nas notas, em um salário a mais para os professores se atingirmos as metas estabelecidas pela secretaria de educação 1, nas festas que estão por vir, nos projetos e mais projetos. Concordo com Boaventura de Souza 1 A Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro paga um salário a mais aos professores – o que chama de décimo quarto salário – às escolas que atingirem os índices estabelecidos por ela. Esses índices são pautados de acordo com as notas que as crianças recebem nas avaliações formuladas pela Secretaria Municipal de Educação, muitas vezes fora do contexto de vida das crianças. Santos, quando fala sobre o modo de visarmos o futuro: “visarmos o futuro de nossas sociedades quase como se fosse nosso futuro pessoal”. (p. 27). Para tanto, não há uma fórmula dada, mas o autor sugere vermos juntos como fazer essa expansão do presente e contração do futuro. Considero a escola um bom lugar de pensarmos sobre a questão do desperdício da experiência, justamente pelo fato de estarmos sempre focados no futuro, envolvidos em projetos e mais projetos. Pensemos na palavra projetar. De acordo com o minidicionário Luft (1999), projetar traz três significados: 1. Fazer o projeto ou plano de, delinear. 2. Fazer a projeção de. 3. Arremessar-se, atirar-se. Notemos que há sempre algo a acontecer, tanto nos significados da palavra quanto no que acontece nas escolas. Não seria mais importante pensarmos no que acontece agora nas escolas? No que nossas crianças estão falando, pensando, vivendo? No que nós, professores, estamos vivendo com elas? São os sujeitos e suas histórias que tantas vezes deixam de ser ouvidos e, assim, deixam de ser autores de suas histórias, não interagem com a língua e não produzem conhecimento. Boaventura de Souza Santos (2007) sugere, já que não há nem deveria ter uma teoria geral, uma nova maneira de relacionar conhecimentos. O autor propõe um procedimento de tradução, no entanto uma tradução ao revés da tradução linguística. Por essa proposta, Boaventura de Souza Santos sugere que se traduza saberes em outros saberes, que se traduza práticas e sujeitos de uns aos outros e assim caminhar na busca de inteligibilidade sem canibalização e sem homogeneização, sem destruir a diversidade. Na escola, aliás, precisamos ficar atentos para que não se trabalhe com essa lógica de homogeneização, se deixando levar pela falsa premissa de que a diversidade retira a harmonia de um lugar. Quanto mais próximo da vida real, maior a possibilidade de fazer sentido. O desafio é trabalhar com esses diferentes saberes e viveres que aparecem todos os dias nas salas de aula e entender isso como processo de aprendizagem. CONCLUSÕES Falamos às nossas crianças sobre diversos assuntos que consideramos importantes, que estão no currículo, mas acredito que primeiramente precisamos perguntar: quem são essas crianças? Nós conhecemos muito pouco de suas vidas, suas histórias, condições de moradia. Estabelecemos um diálogo frágil, as invisibilizamos e talvez, até a nós mesmos. É importante ter bem claro a função da escola, do trabalho que se quer desenvolver. É necessário fazer um esforço para ter/ver o outro como sujeito e para que eu, professora, também seja vista como sujeito. É a constante tensão entre o individual e o coletivo. É pensar no outro, mas não pensar o que o outro deve pensar, de forma autoritária. É, segundo Paulo Freire (1996), “a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu.” Para este autor, assumir-se como “ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar” é uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica, pois propicia condições em que as relações entre os educandos e os professores ensaiem a experiência de assumir-se. “Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos” De quem é a rua, a cidade e a escola, afinal? De todos. De ninguém. De todos e de ninguém ao mesmo tempo. Desta maneira, acaba por não ser assumida por ninguém. Porque vou cuidar do que não é meu? Se é nosso e o outro não cuida? Porque vou me preocupar se tenho em minha casa meu refúgio, onde entro, fecho a porta e, ali sim, eu cuido do meu espaço? Acredito que essa seja a mentalidade individualista que precisamos repensar. Começando pelo espaço da escola: é de quem? Meu? Das crianças? Da direção? Na escola posso fazer tudo o que quero? Voltando a uma questão inicial, sobre a expressão “no meu tempo era diferente”, posso concluir que as formas de viver foram/estão sendo diversificadas. A mudança é inevitável. Desta forma, as experiências podem acontecer ou não, transformando espaços em lugares ou não. Tudo vai depender de como é a vida vivida. O que nos importa, então, nas escolas, é promover experiências de apropriação de espaços como “territórios conquistados”, como fala Dimenstein (2006). É importante que as crianças entendam que os territórios da cidade e da escola não são delas, elas precisam conquistar. O território da escola, por exemplo, é para ela, mas não é dela. Mesmo que a criança esteja, efetivamente, matriculada na escola, ela está matriculada num espaço que ela sabe que não é dela, então tem que conquistar, afinal, a escola é pensada para as crianças, não com elas. Portanto, as experiências que elas têm ali são experiências de lugar que não têm a ver com elas, por isso o melhor da escola passa, para alguns, a ser o lado de fora. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2011a. ______, Walter. Obras escolhidas II: Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2011b. BRUM, Eliane. Os novos “vândalos” do Brasil. El País. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2013/12/23/opinion/1387799473_348730.html. Acesso em: 05 jan. 2014. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. DIMENSTEIN, Gilberto. O mistério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis. Campinas, SP: Papirus, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MATTA, Roberto da. A casa & a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 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