cias. Na prática, o córtex funciona como uma espécie de fil‑ tro ou gerente‑contador, adepto do cálculo de custos e da prudência. É ele o vigia severo que, quando o primata lím‑ bico diz num repente — “Eu quero!”, responde — “Não!”; ou ao menos, dependendo do caso e da pessoa, é claro, balança a cabeça e propõe — “Calma lá, agora não!”. 30 “Não existe almoço grátis”, repetia com irritante insistência o meu pai, economista formado pela usp nos anos 50, auge da euforia juscelinista, citando Milton Friedman. O bordão era um mantra no cotidiano da família e me persegue, na inconfundível voz paterna, desde os verdes anos. Eu era jovem, com aspirações à poesia, queimava o meu fuminho nas madrugadas boêmias com amigos da faculdade — vivíamos àquela altura o começo do fim da ditadura militar — e, na época, mal entendia o que meu pai poderia querer dizer martelando aquela fórmula nos meus ouvidos. E hoje, no entanto, ao pensar nos conflitos e negociações travados no subsolo da mente, compreendo‑a bastante bem; melhor talvez que o meu finado pai, se me for permitido um deslize de imodéstia filial. Por trivial que seja, tudo nesta vida se paga. 139 12898_a_ilusao_da_alma_final.indd 139 12.07.10 19:04:07 O temor de que eu não desse em nada, de que desperdiçasse ridiculamente a minha vida e o meu talento, sem ocupação definida e sem reconhecimento, foi um fantasma que meu pai sempre alimentou sobre mim. Quando soube que eu prestaria o vestibular para letras — quanta coragem não precisei juntar para lhe dizer isso, minha mãe e minha irmã devidamente cooptadas a fim de suavizar o choque —, não escondeu a decepção que eu lhe causava. Não ficou bravo ou raivoso, não ergueu um decibel a voz, não me recriminou acerbamente; mas sua atitude mudou. Passou a me cobrar a definição de um “plano de vida”, a alertar‑me sobre a temeridade de não ter uma “real profissão” e um emprego seguro, algo que me permitisse constituir família, conquistar uma posição na sociedade. “Você é livre para fazer o que deseja”, dizia, “mas tem de assumir as consequências.” O contrato implícito era claro: uma vez que eu estivesse formado, o dever paterno cessava. Que eu não contasse, a partir de então, com nenhum tipo de ajuda material. Era assim que meu pai via a vida: como uma sucessão de deveres e obrigações; como uma espécie de pista ou arena moral em que os obstáculos e desafios, devidamente enfrentados e vencidos, forjam a fibra de um caráter. E como cheguei a detestar tudo isso! As eternas cobranças, a mania de pontualidade, os olhos de lince para as fraquezas e fragilidades humanas, as dívidas irresgatáveis, o senso de dever opressivo, sem trégua. Tudo nele, o tom de voz, os gestos, a expressão de um olhar, um simples bom‑dia, exalava qualquer coisa de censura ou apreensão sobre o meu futuro. Durante anos, mesmo sem 140 12898_a_ilusao_da_alma_final.indd 140 12.07.10 19:04:07 ter plena ciência do que fazia, passei a calculadamente evitar sua presença. Mas o tempo corre, e com ele as nossas impressões se modificam. Quando meu pai faleceu em meados dos anos 80, na véspera do grande comício pelas eleições diretas, eu já havia saído de casa — “quebrado a casca do ovo”, como ele costumava dizer — e vivia fazia algum tempo por minha conta e risco, com a bolsa do doutorado e a renda de aulas particulares. Só então pude avaliar com a devida distância e compreender melhor o papel que a sua preocupação com o meu futuro exercera em minha vida. Percebi que a pressão paterna, embora detestada e ocasionalmente rude na época, fora decisiva no compromisso com que me dediquei à faculdade e na seriedade com que encarei o desafio de me viabilizar profissionalmente. Era nada menos que o meu autorrespeito e senso de valor pessoal em jogo: era aprender a nadar ou morrer. Pus na cabeça que, fosse como fosse, não importava o sacrifício exigido, precisava provar a ele e a mim mesmo, sem margem a dúvidas, que podia me tornar alguém respeitável, com mérito reconhecido, um filho que não o decepcionara. Dediquei a meu pai in memoriam a tese sobre Machado. A perspectiva dos anos trouxe‑me ainda a percepção de que, apesar de morto, meu pai permanecia estranhamente vivo em mim, como se aspectos essenciais da sua alma e do seu modo peculiar de encarar as coisas tivessem fincado raízes e colonizado bolsões do meu cérebro. Acontece que herdei dele, por motivos que me são inteiramente alheios à vontade e insondáveis, o fantasma do desperdício — 141 12898_a_ilusao_da_alma_final.indd 141 12.07.10 19:04:07 o obstinado e exasperante receio de estar esbanjando o meu tempo, dissipando minhas aptidões, vivendo vergonhosamente aquém de um futuro que sempre esteve ao meu alcance. A violência desse sentimento, é inegável, já foi maior do que é hoje. Depois do tumor, sobretudo, aprendi a tomar distância e usufruir de uma condição menos opressiva de culpa por tudo aquilo que, aos olhos do meu pai em mim (ou seja lá de quem for), deixei de ser. Aprendi a desfrutar da liberdade da minha insignificância. Vez por outra, entretanto, o velho fantasma ainda me visita. Enquanto me dedicava à desconstrução neurocientífica da morte voluntária de Sócrates, por exemplo, vislumbre que acabou adquirindo inesperada força na minha imaginação, quantas vezes não voltei a me questionar, sempre que interrompia o trabalho: quanto tempo já não esbanjei nisso?! Quantas semanas e meses, eu me perguntava, pretendo investir ainda nesse extravagante desmanche do Fédon, peça por peça, a fim de mostrar que a morte de Sócrates pode ter sido tão natural como o seu nascimento, não obstante a dupla ficção de que se reveste — a platônica e a do mártir sobre si mesmo? A capacidade do cérebro de qualquer pessoa é limitada e torna‑se cada vez mais risível perto da massa de saber existente. A internet só fez acelerar vertiginosamente o descompasso: o hiato é exponencial. Sentia‑me humilhado e intimidado pela vastidão da minha ignorância diante da explosão da pesquisa a respeito da relação mente‑cérebro; todo dia alguma novidade, a cada fôlego do trabalho a descoberta de algum resultado, antigo ou recente, cobrando 142 12898_a_ilusao_da_alma_final.indd 142 12.07.10 19:04:07 que eu lhe desse a atenção devida se pretendesse me levar a sério como investigador. Poderia facilmente passar o resto da vida como a Rainha Vermelha, da Alice, correndo cada vez mais rápido para ficar no mesmo lugar — ou ainda mais atrás. Onde vai dar tudo isso? Porém, assim que voltava ao trabalho e mergulhava no pequeno e absorvente mundo dos meus cadernos; assim que tomava assento no meu canto da biblioteca ou em minha escrivaninha, sem outra preocupação a não ser a de tomar notas cuidadosas de tudo que vinha lendo e desfiar por escrito os meus próprios pensamentos, o fantasma se dissipava. Todo o tormento do desperdício, toda a irritação da culpa pela sensação de que estava num lugar quando poderia e deveria estar em outro, como que por encanto sumia do meu espírito. Era como se a pressão do tempo — e com ele o fantasma da alma paterna sempre à espreita de uma fissura no meu cérebro, estranha modalidade de vida após a morte — simplesmente deixasse de existir. Aproveitar o tempo? A natureza ignora o que seja o desperdício. “Melhor vida é a vida que dura sem medir‑se.” 31 A alma que olha de fora para dentro interroga e desnuda a alma que olha de dentro para fora. Há mais coisas entre a 143 12898_a_ilusao_da_alma_final.indd 143 12.07.10 19:04:07