A sua revista eletrônica ________________________________________________________ DOIS MOMENTOS HISTÓRICOS (NO ÂMBITO DA LITERATURA) E O MESMO TRATAMENTO IRÔNICO: ESTUDO DE CASO NA ÓTICA DA ANÁLISE DO DISCURSO Ida Lucia Machado1 FALE/UFMG INTRODUÇÃO Este artigo será dividido em duas partes: na primeira faremos algumas observações sobre dois modelos de Análise do Discurso, enfatizando seus respectivos enfoques face ao problema do sujeito-histórico-social, das vozes que habitam este sujeito e que são por ele utilizadas, forçosamente, em sua vida em sociedade. Vamos então começar pela exposição de alguns conceitos da chamada ADF (Analyse du Discours Française) passando, em seguida, à Teoria Semiolingüística, de Patrick Charaudeau, teoria com a qual trabalhamos já há algum tempo. Como temos um certo receio de trabalhar aspectos teóricos sem ilustrá-los, iremos, na segunda parte desta exposição, tomar como ponto de apoio dois textos de cunho literário, que abordam o mesmo assunto, ou seja: a representação da prostituta na sua ambigüidade de pecadora e santa. Estes textos têm por pano de fundo dois diferentes momentos da história sempre conturbada da humanidade: na França, na ocasião de um dos muitos conflitos franco-prussianos ocorridos no século XIX; no Brasil, na época da ditadura, no século XX, ainda que, neste último caso, o país e seu regime militar não sejam desvelados e surjam através de nebulosa fábula, por uma razão precisa: a censura vigente no regime militar... 1. A Análise do Discurso: algumas considerações... 1 Pós-Doutora em Análise Lingüística e também em Análise do Discurso pela Universidade de Paris XIII. Doutora em Análise Lingüística pela Universidade de Toulose. Mestre em Letras pela Universidade de São Paulo. Graduada em Letras pela UFMG. É coordenadora do Núcleo de Análise do Discurso da UFMG e possui diversos artigos publicados, sendo uma das precursoras da AD no Brasil. PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com A Análise do Discurso adquire seu status de disciplina no final dos anos 60, na França, sobretudo graças aos trabalhos de Michel Pêcheux e sua equipe2. Pêcheux estabeleceu um instigante método de pesquisa que evoluiu bastante, ao longo de quase três décadas. Tal método, grosso modo, associava aquisições do materialismo histórico, da psicanálise e da lingüística. O corpus, objeto de estudos, era formado por documentos de cunho políticohistórico; os trabalhos oriundos de tais abordagens ilustravam, pois, uma tentativa visando à construção de uma “Teoria do Discurso” articulada à lingüística e às proposições marxistas sobre a ideologia. Assim, para Pêcheux, a Análise do Discurso tinha por obrigação assimilar os documentos estudados às condições sócio-históricas de em determinada sociedade. Em outros termos, a idéia de um sistema social e histórico completamente neutro, do qual poderiam surgir formações linguageiras destituídas de toda e qualquer ideologia era algo inconcebível para essa análise, que dava um lugar privilegiado para a observação das formações ideológicas. E o que seria uma formação ideológica? Nada mais nada menos que um conjunto de atitudes e representações suscetíveis de ilustrar as posições de conflito entre classes. É lógico, em uma formação ideológica, poder-se-ia perceber várias formações discursivas interligadas. A partir de 1975, Pêcheux tomou emprestado o sintagma e o conceito de “Formações discursivas”, criado por Foucault, explicando-o em termos mais lingüísticos. Segundo Pêcheux, as formações discursivas determinavam o que podia e devia ser dito, numa dada conjuntura. Assim, se as palavras mudassem de sentido é porque tinham mudado de formação discursiva. Como vêem, a ADF não considerava o sujeito em sua individualidade: ela só se interessava pelo “sujeito assujeitado”, aquele que é capaz de veicular as chamadas “palavras de ordem” de um determinado partido ou voz política. Nessa ótica, e transpondo o problema para o 2 Normalmente, quando se fala da “primeira” AD francesa há uma tendência geral a atribuir seu desenvolvimento unicamente a Michel Pêcheux e a sua equipe. Sem retirar o valor deste empreendimento, é preciso lembrar que a AD foi também praticada, quando de sua aparição no cenário francês, por outras equipes: enquanto Pêcheux divulgava sua teoria em Paris VII, no Centre de Psychologie Sociale, outros grupos, de outras Faculdades francesas também se interessavam pelo assunto, mas, adotando, óticas de abordagem diferentes daquelas de Pêcheux: assim são os trabalhos que foram efetuados no Departément de Lingüístique de Nanterre e no Laboratoire de Lexicometrie et textes politiques de Saint-Cloud. Evidentemente, todos esses pesquisadores deviam se encontrar e debater o assunto “Teoria do Discurso” e seus já diversos instrumentais teóricos... 2 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com campo literário, seria então cabível estudar a obra de Balzac para nela procurar a voz de um narrador construído por um sujeito-autor-comunicante ou por um locutor, cuja voz transmitiria para este narrador “palavras de ordem” da monarquia, já que o sujeito-empírico Balzac era monarquista. Enfim, nessa sua primeira fase, chamada por Maingueneau (1989) “análise do discurso da 1ª geração”, a Análise do Discurso buscou evidenciar a posição de certas palavras, expressões ou frases passíveis de marcar ou de definir um determinado tipo de discurso, fruto de uma determinada ideologia política: desse modo, um texto que mostrasse uma grande incidência de palavras tais como “povo”, “cidadania”, “liberdade”, “direitos humanos”, “igualdade”, teria muito mais chances de ser considerado como um texto construído por um locutor-assujeitado a uma formação discursiva de esquerda, que um texto onde houvesse, em vez das palavras citadas, a predominância de outras tais como “religião”, “valores morais”, “família”... Os anos 80, do último século, assistiram à dispersão da ADF: com a morte de Pêcheux (e mesmo antes dela, como já mencionamos na nota 1), outras correntes vigoraram no horizonte discursivo. Entretanto, nesse campo, nada se faz de modo brusco. Se vários pontos de uma teoria, digamos, “fundadora” como a de Pêcheux foram deixados de lado, outros conceitos que a ela pertenciam, passaram de uma corrente para outra, sendo reavaliados, refeitos...Nesse sentido, acreditamos que parte das novas abordagens que vão constituir a Análise do Discurso de 2ª geração3 são originárias de reflexões obtidas pela ADF. Gostamos, em particular, de uma questão que Pêcheux formulou, pouco antes de sua morte e que ficou em aberto:“O sujeito seria aquele que surge momentaneamente, lá onde o ego-eu vacila?” Assim, algumas das análises do discurso “contemporâneas” 4 vão tentar encontrar um lugar para esse sujeito que emerge, vão trabalhar sua singularidade e sua razão de ser, não mais enquanto sujeito oriundo de uma determinada formação discursiva, mas enquanto sujeitofalante de uma determinada comunidade social. Tal é o caso da Semiolingüística, teoria criada por Patrick Charaudeau, em 1983. Para este teórico, a atuação de um sujeito-comunicante desdobrado em outros sujeitos, vivendo em 3 4 Sintagma este também criado por Maingueneau (1989). “Contemporâneas” no sentido: pós-ADF ou pós-Pêcheux 3 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com uma determinada sociedade, em meio aos contratos e rituais por ela estabelecidos, merece ser vista de perto. Um novo enfoque surge então sobre o sujeito: é reconhecido que, enquanto ser empírico, ele detém um estilo próprio, uma individualidade que é só sua e isso transparece em seus gestos, ditos e escritos... Porém, esse sujeito é um ser que vive em determinada sociedade. Ora, a sociedade é geradora de certas regras de conduta, de certos rituais e de vários contratos linguageiros. Em outros termos, há um sujeito que cria seus atos de linguagem a partir de dados extraídos do ethos que quer construir e do pathos que lhe é peculiar, dados estes recolhidos no universo discursivo que lhe é próprio, enquanto sujeito-comunicanteúnico, singular. Mas essas convicções vão encontrar um eco no universo coletivo e social que o rodeia. Nem completamente livre, pois, agindo em um mundo de representações e códigos, nem completamente submisso, pois, singular, individual: é assim que vemos o sujeito discursivo. Acreditamos também, que, se a Teoria Semiolingüística busca apoio nos conceitos da Teoria da Enunciação, segundo Benveniste, ela parece também fazer uma leitura “dialógica” (no sentido “bakhtiniano”) dessa teoria. A noção de polifonia de Bakhtin nos permite compreender a imbricação de diferentes sujeitos no discurso, acabando com o “mito” de um sujeito falante único. Assim, amalgamando Bakhtin e Charaudeau, vemos que o texto ou o ato de linguagem, enfim, o produto concreto da enunciação, pode tornar-se palco de encontro de diferentes vozes ou de diferentes sujeitos-comunicantes que, ao se dirigir aos sujeitos-interpretantes de seus atos de linguagem, vão acionar sujeitos-enunciadores e sujeitos-destinatários ideais. Expliquemos melhor: na perspectiva semiolingüística, segundo Charaudeau (1984, 1992) o ato de linguagem deve ser considerado através da atuação de 04 (quatro) sujeitos: dois deles, exteriores ao enunciado propriamente dito, seriam os actantes da comunicação: um sujeito-emissor ou comunicante e um sujeito-receptor ou interpretante. O sujeitocomunicante “cria” mais dois sujeitos, internos ao ato de linguagem, verdadeiros seres de palavra, ou seres de papel, que seriam os protagonistas da enunciação: um sujeitoenunciador que se dirige a um sujeito-destinatário (ideal). Para que o ato comunicativo tenha sucesso, espera-se que a interpretação dada a ele pelo sujeito-receptor ou interpretante coincida com a do sujeito-destinatário-ideal. 4 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com Pensando em uma situação de comunicação realizada através do documento escrito, gostaríamos, livremente, de acrescentar mais dois sujeitos a esses quatro, sujeitos estes que nomearemos sujeito-scriptor-locutor (situado entre o sujeito-comunicante e o sujeitoenunciador) e sujeito-interlocutor (situado entre o sujeito-destinatário e o interpretante). Os sujeitos-scriptor e interlocutor se mantém na junção dos dois mundos (o mundo factual e o mundo de ficção ou seja, no processo de reprodução do mundo pelas signos), criando uma ponte entre os mesmos. Um dos pontos fortes da Semiolingüística como AD, em nossa opinião, é considerar o ato de linguagem como resultante de uma espécie de “jogo”, ou seja: o ato de linguagem se mantém numa constante manobra de equilíbrio e de ajustamento entre as normas de um dado discurso e a margem de manobra permitida por esse mesmo discurso. Tais manobras discursivas vão dar lugar à produção de estratégias, por parte dos sujeitos actantes da comunicação. Por outro lado, a Semiolingüística, com a concepção de “sujeito dividido”, permite uma abordagem interessante de certos fenômenos linguageiros que nos seduzem, particularmente, tais como a ironia e um gênero que a utiliza bastante: a paródia. Passaremos então à segunda parte deste artigo, onde buscaremos ilustrar o que foi dito através de um mini-corpus constituído por dois textos literários: um conto de um escritor francês, do século XIX, Guy de Maupassant (cuja maneira de escrever, muito irônica, lembra muito a de nosso Machado de Assis) e a letra de uma canção-poema de Chico Buarque de Hollanda. O conto francês chama-se, no original, Boule de Suif, na tradução para o português Bola de Sebo. O poema-canção de Chico Buarque chama-se Geni e o zepelim. 2. Uma tentativa de ilustração da teoria supracitada Resumiremos para o leitor a história de Bola de Sebo, de Maupassant. Seu personagemtítulo é uma prostituta francesa, chamada Elizabeth Rousset, que tinha o apelido “Bola de Sebo” por causa de sua gordura, que, diga-se de passagem, bem ao contrário do que acontece hoje, era na época em que se desenvolve a ação do conto, considerada como um atributo de beleza. Em suma, no século XIX, as formas “avantajadas” de Elizabeth Rousset garantiam seu charme e atraiam os homens que dela se aproximavam: seu apelido “Bola de Sebo” por mais estranho que isso possa hoje nos parecer, era, na época, de certa forma, um apelido carinhoso e...valorisante. 5 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com A ação do conto se passa durante uma das invasões prussianas na França, mais especificamente na Normandia, durante o inverno de 1870, quando a cidade de Rouen se vê sitiada pelo inimigo. Parte da população local, logicamente com medo, procura fugir do invasor. Nossa Elizabeth também: é por isso que embarca em uma diligência, veículo puxado por cavalos, meio de transporte comum na época, em companhia de diferentes pessoas: ricos burgueses, freiras...No âmbito da narrativa, o huis-clos do veículo é um quadro ideal para a reunião e para olhares que se cruzam e se avaliam, trocados entre a classe rica e a classe marginal, representada por Elizabeth, a jovem, atraente e generosa prostituta: é ela que não hesita em doar seu almoço para colegas de viagem que, no entanto, a olhavam com desdém... Em uma das etapas obrigatórias de parada, que aconteciam nesse tipo de viagem, os passageiros devem pernoitar em um albergue. Eis que aí surge um feroz comandante prussiano que se encanta com a charmosa Bola de Sebo e diz que não vai deixar a diligência partir se ela não passar a noite com ele. O “hic” é que Elizabeth ama demais seu país, a França, e acha a proposição do alemão indigna para uma patriota como ela. Pouco importa sua profissão: antes de tudo, ela é uma francesa e francesas que se prezam não dormem com o inimigo! Mas, seus companheiros de viagem, quando vêem o perigo que estão correndo, mudam radicalmente de atitude com Bola de Sebo: em vez de desprezá-la como vinham fazendo até então, começam a agradá-la, a conversar amavelmente com ela, manipulando-a vergonhosamente, a fim de que ela “conceda seus favores” ao prussiano. Os leitores podem imaginar como a pobre moça era carente no que diz respeito a palavras doces, carinhosas, atenções que não visassem só ao ato sexual, enfim, carente de tratamento humano e decente, sem preconceitos, vindo da chamada “classe nobre” da sociedade. Um ser marginalizado como uma prostituta sendo solicitada a fazer seu trabalho - até então considerado vergonhoso por todos - como um favor à pátria! É natural que ela sucumba ao apelo vindo de seus concidadãos e durma com o comandante inimigo. No dia seguinte, para os viajantes, o problema desapareceu:o militar deixa a diligência continuar a viagem. Mas, Elizabeth, que pensava que as relações com seus colegas de viagem seriam cada vez mais “democráticas” depois do ocorrido, depois de seu sacrifício, tem a desagradável surpresa de ver que ela é ainda mais desprezada que antes... O final do conto mostra a pobre personagem chorando, encolhida, no fundo de seu assento no veículo de transporte. Há apenas um viajante, Cornudet, que ironiza o comportamento da sociedade (da qual ele faz parte) assobiando La Marseillaise. O conto é embasado por dois pontos de vista contrastantes: a vergonhosa atitude da poderosa burguesia francesa e o comportamento corajoso da prostituta face ao inimigo. De 6 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com pecadora ela passa a santa, para depois voltar a ocupar seu lugar de pecadora. E a vida social pode então prosseguir, de modo “harmonioso”. Um fato interessante nessa história é que Maupassant se baseou em acontecimentos e pessoas reais. A invasão prussiana foi real, Bola de Sebo teria sido inspirada por uma jovem mundana chamada Adrienne Legay e vários outros personagens representariam pessoas conhecidas de Maupassant: entre elas estava um de seus tios (que teria contado tal história para seu sobrinho escritor). A intenção de Maupassant, com este conto, queremos crer, foi a de fazer um jogo de contrastes entre uma mulher dita “imoral” e os “bons” representantes da moral burguesa e mesmo republicana, para condenar estes últimos. Assim, essa narrativa irônica tem um lado satírico evidente. Surpreendentemente, muitos anos depois, em outro país, durante um outro estado de sítio (a ditadura dos anos 70, no Brasil) esta mesma história é retomada, por Chico Buarque, na canção Geni e o Zepelim (vide letra no “Anexo”, no final do texto). Nossa hipótese é a de que a história contida e cantada através da letra da música Geni e o zepelim pode ser lida como uma paródia do conto Boule de Suif, de Maupassant5. Paródia, porque a ironia é mostrada de forma latente e também porque há a presença do elemento cômico, da vis comica, que embasa tal gênero discursivo. Nesse caso, o texto paródico expõe uma sobreposição de textos: houve uma apropriação/reconstrução do primeiro texto, enquanto sub-gênero “conto” com fins satíricos, para que se operasse a construção do novo texto, um sub-gênero que podemos chamar de “letra de música” ou “poema musicado”. Em outras palavras: a canção de Chico Buarque resume a eterna história da prostituta-santa X burguesia odiosa e propõe ainda um desvio dentro do gênero literário: do conto passa-se à canção-poema, considerando-se que conto e canção-poema seriam sub-gêneros dentro de um gênero maior: o literário. No texto paródico, a maldade da classe dominante é bastante enfatizada a fim de receber um ar caricatural. O trecho que transcrevemos a seguir é um bom exemplo: 5 Hipótese apenas, já que nunca pudemos conversar com o autor de Geni e o Zepelim e saber se ele quis, realmente, parodiar Boule de Suif ou se neste conto se inspirou para escrever a letra da canção citada. 7 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com /.../Ao ouvir tal heresia/ A cidade em romaria/ Foi beijar a sua mão/ O prefeito de joelhos/O bispo de olhos vermelhos/ E o banqueiro com um milhão/.../ assim como este outro: /.../Ele [o comandante do zepelim] fez tanta sujeira/ Lambuzou-se a noite inteira/ Até ficar saciado/.../ Lembremos também que o poema-canção mistura enunciados vulgares, oriundos de um registro de fala oral a enunciados “nobres”, pertencentes a um estilo que poderíamos chamar mesmo de “romântico”. Confrontemos estes versos: /.../Mas de fato logo ela/ Tão coitada tão singela/ Cativara o forasteiro/ O guerreiro tão vistoso/ tão temido e poderoso/ era dela prisioneiro/.../ a estes: /.../Joga pedra na Geni/ joga bosta na Geni/ ela é feita prá apanhar/ ela é boa de cuspir/ ela dá prá qualquer um/ maldita Geni/.../ As palavras da canção brasileira parecem tomar emprestado, do conto francês, a crítica à sociedade burguesa e à opressão militar, para formar um novo texto que poderíamos inserir em um gênero “transgressivo”6, tal como o da de paródia satírica. Não há uma condenação explícita na canção: o sujeito-comunicante se limita a colocar os falsos valores da burguesia (dinheiro, religião, moral) face a outros valores (a bondade da prostituta Geni) para que a crítica amarga dirigida aos falsos valores sociais se estabeleça por si só. 3. A Semiolingüística como instrumental de análise 6 Temos usado, em nossas pesquisas a expressão “gêneros transgressivos”, para designar produções (escritas ou orais) em que há um amálgama de efeitos de gêneros e boas doses de ironia e humor (mesmo que este seja do tipo “humor negro”). 8 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com Como a Semiolingüística poderia contribuir para o estudo desse mini-corpus? De várias formas. Escolhemos, no entanto, aqui, aquela que desvenda o lugar dos diferentes sujeitos que compõem o que chamaremos “texto alvo da paródia” (Boule de Suif) e o texto dela resultante (Geni e o Zepelim). Estamos nos referindo, em outras palavras ao interessante esquema enunciativo composto por Charaudeau (1984), que reproduzimos e adaptamos a seguir, através de dois esquemas, aplicados aos dois textos de nosso mini-corpus. O primeiro toma por base o texto Boule de Suif . Vejamos: Scriptor Suj.com. (Maupassant) Interlocutor Suj.en.<--------------> Suj.dest. (Narrador do conto) (Leitor ideal Suj.Int. (Leitor real) capaz de captar a ironia latente no conto, a crítica à classe opressora e a valorização da classe oprimida) Expliquemos: um sujeito-comunicante (Maupassant) escreve para um sujeito-interpretante (o leitor real). Para tanto, este sujeito transforma-se, no momento do ato de escritura, num sujeito-scriptor, capaz de construir, no mundo das palavras, um sujeito-enunciador (no caso, a voz narradora do conto Boule de Suif, com as diversas vozes dos seus personagens) que destina seu texto ou seus atos de linguagem, numa primeira etapa, a um sujeitodestinatário-ideal; ideal, porque alter-ego do sujeito-comunicante, ou seja, uma entidade capaz de captar, no conto, a crítica feita à classe opressora e a valorização da classe oprimida. Para que a mensagem em questão circule, é necessário que o sujeito-leitor-real entre em interlocução com o texto e tenha a mesma opinião do sujeito-destinatário-ideal. 9 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com Já no segundo texto, ou seja, na letra de Chico Buarque, podemos enxergar, como se fosse um palimpsesto, este mesmo esquema; em outros termos, o esquema acima estaria subentendido/dissimulado ao esquema ora proposto para Geni e o Zepelim: Scriptor Interlocutor Sujeito com. Suj.en.<---------------> Suj.dest. (Leitor real) Suj.Interpretante (C. Buarque) (A “voz” que está na base de “Geni”) (Leitor ideal, capaz de captar não só a paródia satírica da canção, como tb. a crítica à burguesia X o elogio à marginalidade) Temos aí um sujeito-comunicante (Chico Buarque), que também se dirige a um sujeitointerpretante (o leitor ou ouvinte real). Para tanto, o sujeito-comunicante, no ato da escritura, assume a atitude de um sujeito-scriptor (que é, mas, não é o sujeito-comunicante). Este sujeito-scriptor colocará em cena, no mundo de papel, um sujeito-enunciador (a “voz” que sustenta Geni e o Zepelim) que se dirige, como em todo ato de linguagem, a um sujeitodestinatário-ideal: um leitor (ou ouvinte) capaz de perceber, nas palavras da canção a paródia satírica. A mensagem da paródia será assimilada, atingirá seu alvo, se o sujeitointerpretante-real (leitor ou ouvinte) interagir com o sujeito-destinatário-ideal. Isso nos leva a ver que, na paródia, não existem apenas os 06 (seis) sujeitos propostos, mas ainda mais outros 06 (seis), presentes no palimpsesto ou texto objeto da paródia: no caso, são todas as “vozes” externas (psicossociais e situacionais) e internas (enunciativas) do conto Boule de Suif. 10 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com Por quê tantos sujeitos? Ou, nos termos de Bakhtin, por quê tantas “vozes”? Segundo este autor, nada do que dissermos ou escrevermos, será inédito: tudo já foi dito ou escrito. Nós apenas nos apropriamos da “palavra de outrem” e a fazemos nossa. Seguindo o que diz Charaudeau (1984,1992,2002), a comunicação humana seria uma espécie de “mise en scène”: todos nossos atos de linguagem, não somente os escritos, como também os falados, em nossa vida cotidiana, conteriam esta espécie de encenação, de jogo de máscaras, em suma, tomadas de posição bem teatrais...Quem sabe? Talvez seja esse o único modo de se viver em sociedade: colocando e tirando máscaras, utilizando a voz de outrem como se fosse a nossa, obedecendo e transgredindo, alegremente, e na medida do possível, os rituais histórico-sociais... Algumas palavras à guisa de conclusão... O que eu quisemos aqui mostrar foi que a linguagem paródica, com seu trabalho de destruição/construção, de substituição do novo pelo velho (ainda mais se for associada à sátira dos costumes sociais) é uma forma de ação política que vem se repetindo ao longo da história da humanidade. A Análise do Discurso, nesse caso, pode nos ajudar a desvendar parte dos “mistérios” desse curioso gênero: a paródia. E de muitas outros... REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours. Paris, Hachette, 1984. ___________________. Grammaire du sens et de l’expression. Paris, Hachette, 1992. CHARAUDEAU, Patrick et MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’Analyse du Discours. Paris, Seuil, 1992. MACHADO, Ida Lucia. A paródia vista sob a luz da análise do discurso. In : MARI, H. et al.(orgs.) Fundamentos e dimensões da análise discursiva. B.Hte., NAD/FALE/UFMG, Ed. Carol Borges, 1999, p.327-334. 11 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com MACHADO, Ida Lucia. A análise do discurso e seus múltiplos sujeitos. In : MACHADO, I.L. et al. (orgs.).Teorias e práticas discursivas. Estudos em AD. B.Hte., NAD/FALE/UFMG, Ed. Carol Borges, 1998, p.111-122. MACHADO, Ida Lucia. Uma teoria de análise do disurso : a Semiolingüística. In : MACHADO, I.L. et al. (orgs.). Análise do Discurso : fundamentos e práticas. B.Hte., NAD/FALE/UFMG, Ed. Segrac, 2001, p.39-62. ANEXO GENI E O ZEPELIM Chico Buarque de Hollanda De tudo que é nêgo torto/ Do mangue do cais do porto/ Ela já foi namorada/ O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos dos retirantes/ É de quem não tem mais nada/ Dá-se assim desde menina/ Na garagem na cantina/ Atrás do tanque do mato/ É a rainha dos detentos/ Das loucas dos lazarentos/ Dos moleques do internato/ .../ Ela é um poço de bondade/ E é por isso que a cidade/ Vive sempre a repetir/ Joga pedra na Geni/ Joga pedra na Geni/ Ela é feita prá apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá prá qualquer um/ Maldita Geni/ Um dia surgiu brilhante/ Entre as nuvens flutuante/ Um enorme zepelim/ Pairou sobre os edifícios/ Abriu dois mil orifícios/ Com dois mil canhões assim/ A cidade apavorada/ se quedou paralisada/ Pronta prá virar geléia/ Mas do zepelim gigante/ Desceu seu comandante/ Dizendo mudei de idéia/ Quando vi nesta cidade/ Tanto horror e iniqüidade/ Resolvi tudo explodir/ Mas posso evitar o drama; Se aquela formosa dama/ Esta noite me servir/ Essa dama é a Geni/ Mas não pode ser Geni/ Ela é feita prá apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá prá qualquer um/ Maldita Geni/ Mas de fato logo ela/ Tão coitada tão singela/ Cativara o forasteiro/ O guerreiro tão vistoso/ Tão temido e poderoso/ Era dela prisioneiro/ Acontece que a donzela/ Isso era segredo dela/ Também tinha seus caprichos/ E a deitar com homem tão nobre/ Tão cheirando a ouro e cobre/ Preferia amar com os bichos/ Ao ouvir tal heresia/ A cidade em romaria/ Foi beijar a sua mão/ O prefeito de joelhos/ O bispo de olhos vermelhos/ E o banqueiro com um milhão/Vai com ele vai Geni/ Vai com ele vai Geni/ Você pode nos salvar/ Você vai nos redimir/ Você dá prá qualquer um/ Bendita Geni/Foram tantos os pedidos/../ Que ela dominou seu asco/ Entregou-se a tal amante/ Como quem dá-se ao carrasco/ Ele fez tanta sujeira/ Lambuzou-se a noite inteira/ Até ficar saciado/E nem bem amanhecia / 12 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com Partiu numa nuvem fria/ No seu zepelim prateado/.../ Mas logo raio o dia/ E a cidade em cantoria/ Não deixou ela dormir/ Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni/ Ela é feita prá apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Ela dá prá qualquer um/ Maldita Geni/.../ 13 PDF created with pdfFactory Pro trial version www.pdffactory.com