JOSÉ SARAMAGO CLARABOIA Romance Claraboia 3A PROVA.indd 3 10/13/11 3:09 PM Copyright © 2011 by Fundação José Saramago A editora manteve a grafia vigente em Portugal, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Claraboia, cuja redação José Saramago terminou a 5 de janeiro de 1953, consiste num datiloscrito de 319 páginas, assinado com o pseudónimo de “Honorato”. A presente edição reproduz fielmente o original. Capa: Hélio de Almeida sobre gravura em metal de Arthur Luiz Piza Revisão: Carmen S. da Costa Thaís Totino Richter 2011 Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz ltda. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 — São Paulo — sp Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br Claraboia 3A PROVA.indd 4 10/13/11 3:09 PM I Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer‑se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar‑se devagar. Com um movimento rápido, sentou‑se na cama. Espreguiçou‑se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha‑as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar‑se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada. 9 Claraboia 3A PROVA.indd 9 10/13/11 3:09 PM Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava‑se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer‑lhe. Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou‑se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados de sal‑e‑pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam. Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou: – Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças? (Voz de dentro:) – Já lá vai! Pelo modo de andar, adivinhava‑se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve que esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta: – Estão aqui. Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou: 10 Claraboia 3A PROVA.indd 10 10/13/11 3:09 PM – Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho que passar a pregá‑los com arame... A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona. E era tão franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de pensar que dissera um gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e os poucos dentes que lhe restavam. Recebeu as calças, vestiu‑as sob o olhar complacente da mulher e ficou satisfeito, agora que o vestuário lhe tornava o corpo mais proporcionado e regular. Silvestre era tão vaidoso do seu corpo como Mariana desprendida do que a Natureza lhe dera. Nenhum deles se iludia a respeito do outro e bem sabiam que o fogo da juventude se apagara para nunca mais, mas amavam‑se ternamente, hoje como há trinta anos, quando do casamento. Talvez agora o seu amor fosse maior, porque já não se alimentava de perfeições reais ou imaginadas. Silvestre foi atrás da mulher até à cozinha. Enfiou na casa de banho e voltou daí a dez minutos, já lavado. Não vinha penteado porque era impossível domar a grenha que lhe dominava (dominava é o termo) a cabeça – o “lambaz do barco”, como lhe chamava Mariana. As duas tigelas de café fumegavam sobre a mesa, e havia na cozinha um cheiro bom e fresco de limpeza. As faces redondas de Mariana resplandeciam, e todo o seu corpo obeso estremecia e se agitava movendo‑se na cozinha. – Cada vez estás mais gorda, mulher!... 11 Claraboia 3A PROVA.indd 11 10/13/11 3:09 PM E Silvestre riu. Mariana riu com ele. Duas crianças, sem tirar nem pôr. Sentaram‑se à mesa. Beberam o café quente em longos sorvos assobiados, por brincadeira. Cada um queria vencer o outro no assobio. – Então, que resolvemos? Agora, Silvestre já não ria. Mariana também estava sisuda. Até as faces pareciam menos coradas. – Eu não sei. Tu é que resolves. – Já ontem te disse. A sola está cada vez mais cara. A freguesia queixa‑se de que levo caro. É a sola... Não posso é fazer milagres. Sempre queria que me dissessem quem é que trabalha mais barato que eu. E ainda se queixam... Mariana deteve‑o no desabafo. Por este caminho não resolviam nada. O que era preciso era ver essa questão do hóspede. – Pois é, fazia jeito. Ajudava‑nos a pagar a renda e, se fosse um homem sozinho e tu quisesses encarregar‑te da roupa, a gente equilibrava‑se. Mariana escorripichou o café adocicado do fundo da tigela e respondeu: – Cá por mim, não me importo. Sempre é uma ajuda... – Pois é. Mas estarmos outra vez a meter hóspedes, depois de nos vermos livres dessa cavalheira que se foi embora... – Que remédio! Seja ele boa pessoa... Eu dou‑me bem com toda a gente, se se derem bem comigo. – Experimenta‑se uma vez mais... Um homem só, que só venha dormir, é o que convém. Logo, à 12 Claraboia 3A PROVA.indd 12 10/13/11 3:09 PM tarde, vou pôr o anúncio. – Mastigando ainda o último bocado de pão, Silvestre levantou‑se e declarou: – Bom, vou trabalhar. Regressou ao quarto e caminhou para a janela. Afastou a cortina que formava um pequeno biombo que o isolava do quarto. Havia um estrado alto e sobre ele a banca de trabalho. Sovelas, formas, bocados de fio, latas de prego miúdo, retalhos de sela e pele. A um canto, a onça de tabaco francês e os fósforos. Silvestre abriu a janela e deitou uma vista de olhos para fora. Nada de novo. Pouca gente passava na rua. Não muito longe, uma mulher apregoava fava‑rica. Silvestre não chegava a perceber como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus conhecidos comia fava‑rica, ele próprio não a comia há mais de vinte anos. Outros tempos, outros costumes, outras comidas. Resumida a questão nestas palavras, sentou‑se. Abriu a onça, pescou as mortalhas na barafunda de objetos que pejavam a banca, e fez um cigarro. Acendeu‑o, saboreou uma fumaça e deitou mãos ao trabalho. Tinha umas gáspeas a pôr, e aí estava uma obra em que sempre aplicava todo o seu saber. De vez em quando, relanceava os olhos para a rua. A manhã ia aclarando pouco a pouco, embora o céu estivesse coberto e houvesse na atmosfera um ligeiro véu de névoa que esbatia os contornos das coisas e das pessoas. Na multidão de ruídos que já enchia o prédio, Silvestre começou a distinguir um bater de saltos 13 Claraboia 3A PROVA.indd 13 10/13/11 3:09 PM nos degraus da escada. Identificou‑os imediatamente. Ouviu abrir a porta que dava para a rua e debruçou‑se: – Bom dia, menina Adriana! – Bom dia, senhor Silvestre. A rapariga parou debaixo da janela. Era baixinha e usava óculos de lentes grossas que lhe transformavam os olhos em duas bolinhas minúsculas e inquietas. Estava a meio do caminho dos trinta aos quarenta anos, e já um que outro cabelo branco lhe riscava o penteado simples. – Então, ao seu trabalho, heim? – É verdade. Até logo, senhor Silvestre. Era assim todas as manhãs. Quando Adriana saía de casa já o sapateiro estava à janela do rés do chão. Impossível escapar sem ver aquela gaforina desgrenhada e sem ouvir e retribuir os inevitáveis cumprimentos. Silvestre seguiu‑a com os olhos. Assim, de longe, parecia, na comparação pitoresca do sapateiro, “um saco mal atado”. Chegada à esquina da rua, Adriana voltou‑se e acenou um adeus para o segundo andar. Depois, desapareceu. Silvestre largou o sapato e torceu a cabeça para fora da janela. Não era bisbilhoteiro, mas gostava das vizinhas do segundo, boas freguesas e boas pessoas. Com a voz alterada pela torção do pescoço, saudou: – Viva, menina Isaura! Que tal o dia, hoje? Do segundo andar, atenuada pela distância, veio a resposta: – Não está mau, não. O nevoeiro... 14 Claraboia 3A PROVA.indd 14 10/13/11 3:09 PM Não se chegou a saber se o nevoeiro prejudicava, ou não, a beleza da manhã. Isaura deixou morrer o diálogo e fechou a janela devagar. Não desgostava do sapateiro, do seu ar a um tempo refletido e risonho, mas nessa manhã não sentia ânimo para conversar. Tinha um monte de camisas para acabar até ao fim da semana. Sábado tinha que entregá‑las, desse lá por onde desse. Por sua vontade, acabaria de ler o romance. Só lhe faltavam umas cinquenta páginas e estava na passagem mais interessante. Aqueles amores clandestinos, sustentados através de mil peripécias e contrariedades, prendiam‑na. Além disso, o romance estava bem escrito. Isaura tinha experiência bastante de leitora para assim julgar. Hesitou. Mas bem via que nem sequer tinha o direito de hesitar. As camisas esperavam‑na. Ouvia lá dentro um ruído de vozes: a mãe e a tia falavam. Muito falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a dizer todo o santo dia, que não estivesse já dito mil vezes? Atravessou o quarto onde dormia com a irmã. O romance estava à cabeceira. Lançou‑lhe os olhos vorazes, mas seguiu. Parou diante do espelho do guarda‑vestidos que a refletia da cabeça aos pés. Trazia uma bata caseira que lhe modelava o corpo esguio e magro, mas flexível e elegante. Com as pontas dos dedos percorreu as faces pálidas onde as primeiras rugas abriam sulcos finos, mais adivinhados que visíveis. Suspirou para a imagem que o espelho lhe mostrava e fugiu dela. 15 Claraboia 3A PROVA.indd 15 10/13/11 3:09 PM Na cozinha, as duas velhas continuavam a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos, os mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e rápidas, sem pausas e sem modulação: – Já te disse. O carvão é só terra. É preciso ir reclamar à carvoaria – dizia uma. – Está bem – respondia a outra. – Que estão a dizer? – perguntou Isaura, entrando. Uma das velhas, a de olhar mais vivo e de cabeça mais ereta, respondeu: – É o carvão que é uma lástima. Tem que se reclamar. – Está bem, tia. Tia Amélia era, por assim dizer, a ecónoma da casa. Era ela quem cozinhava, fazia contas e dividia as rações pelos pratos. Cândida, a mãe de Isaura e Adriana, tratava dos arranjos domésticos, das roupas, dos pequenos bordados que ornamentavam profusamente os móveis e dos solitários com flores de papel que só eram substituídas por autênticas flores nos dias festivos. Cândida era a mais velha, e, tal como Amélia, viúva. Viúvas a que a velhice já tranquilizara. Isaura sentou‑se à máquina de costura. Antes de começar o trabalho, olhou o rio que se estendia muito largo, com a outra margem oculta pelo nevoeiro. Parecia o oceano. Os telhados e as chaminés estragavam a ilusão mas, mesmo assim, fazendo força para os não ver, o oceano surgia nos poucos quilómetros 16 Claraboia 3A PROVA.indd 16 10/13/11 3:09 PM de água. Uma alta chaminé de fábrica, à esquerda, esborratava o céu branco com golfadas de fumo. Isaura sempre gostava daqueles momentos em que, antes de curvar a cabeça sobre a máquina, deixava correr os olhos e o pensamento. A paisagem era sempre igual, mas só a achava monótona nos dias de verão teimosamente azuis e luminosos em que tudo é evidente e definitivo. Uma manhã de nevoeiro como esta, de nevoeiro delgado que não impedia de todo a visão, cobria a cidade de imprecisões e de sonho. Isaura saboreava tudo isto. Prolongava o prazer. No rio ia passando uma fragata, tão maciamente como se flutuasse numa nuvem. A vela vermelha tornava‑se rosada através das gazes do nevoeiro. Súbito, mergulhou numa nuvem mais espessa que lambia a água e, quando ia surdir de novo nos olhos de Isaura, desapareceu atrás da empena de um prédio. Isaura suspirou. Era o segundo suspiro nessa manhã. Sacudiu a cabeça como quem sai de um mergulho prolongado, e a máquina matraqueou com fúria. O tecido corria debaixo da patilha e os dedos guiavam‑no mecanicamente como se fizessem parte da engrenagem. Aturdida pelo barulho, pareceu a Isaura que alguém lhe falava. Deteve a roda bruscamente e o silêncio refluiu. Voltou‑se para trás: – O quê? A mãe repetiu: – Não achas que é um bocadinho cedo? – Cedo? Porquê? – Bem sabes... O vizinho... 17 Claraboia 3A PROVA.indd 17 10/13/11 3:09 PM