Jorge M. Bergoglio Papa Francisco Mente aberta, CORAÇÃO QUE CRÊ Prefácio O Papa Francisco nesta obra trata primordialmente sobre a fé. Podemos considerar, dentre os livros publicados pela Editora Ave-Maria do Santo Pontífice, como sendo o mais teológico. Bem sabemos da preocupação pastoral do nosso Papa, visível em seus gestos e aproximação com o povo de Deus. Neste livro, vemos claramente o equilíbrio pastoral com a reflexão embasada, sobretudo, na Sagrada Escritura. Mente aberta, coração que crê como o próprio título sugere é uma aproximação da razão com o sentimento. Não se pode, simplesmente, racionalizar a fé, nem tão pouco crer de forma ingênua e imatura. Mente aberta: para aceitar os indícios de que nossa vida vai muito além da biologia. Coração que crê: adesão de forma irrestrita àquilo que dizemos professar. Ou seja, a fé deve ser abraçada na totalidade do que somos como seres humanos. O Santo Padre no final de cada tema refletido propõe uma oração ou reflexão, e nos convida a viver espiritualmente cada uma das verdades que a nossa fé cristã nos leva a assumir – e como consequência, transforma nossas vidas, em gesto concreto o nosso Credo. “Jesus nos pede que a luz da nossa verdade, quer dizer nosso testemunho dela, ilumine aos homens a fim de que – vendo nossas boas obras – glorifiquem ao Pai do Céu (Mt 5,16ss)” 7 Mente aberta, coração que crê Ao ler esse livro vamos ser iluminados com interpretações muito próprias do Papa Francisco com respeito aos grandes temas, tanto do Antigo, como do Novo Testamento. Embora a centralidade de toda reflexão seja a Pessoa de Cristo – Deus encarnado, símbolo máximo do amor incondicional. “A carne é chave de leitura de cada vida e a carne de Cristo é a chave de leitura de toda história de salvação. Simeão vê a glória de Deus na carne do Menino e já não necessita ver mais neste mundo, pode ir em paz. É um ‘condutor-conduzido’. Assim o apresenta a liturgia, Senex puerum portabat, puer autem senem regebat. O ancião levava o menino, mas era o menino quem guiava o ancião” (p. 258). Pe. Luís Erlin, CMF Editor 8 Apresentação Quando o editor me propôs a fazer o prólogo desta obra do Cardeal Jorge Bergoglio, eu lhe agradeci diante do que essa oportunidade significava. Em primeiro lugar, pela proximidade e reconhecimento do Cardeal, segundo, pelo seu gesto em relação a mim. Contudo, tratei de explicar-lhe que estava muito ocupado naquele momento e que demoraria para escrevê-lo. Ele insistiu, terminei aceitando e não me arrependo. Ao iniciar a leitura, percebi que se tratava de uma obra que, percorrendo um longo caminho de reflexão, pregações e retiros espirituais agora se apresentava como o fruto dessas experiências, a fim de propô-las como um serviço no seguimento de Jesus Cristo. Destaco o aspecto testemunhal do livro. Ele nos fala da transmissão de uma experiência vivida de vários anos, que alvorecem da vida e da tarefa de um sacerdote, formador e pastor. É possível notar no contexto o retiro espiritual, ou melhor, vários deles, nos quais se foram tecendo e dos quais nasceram os textos que formam esta obra. A diversidade de tempos e circunstâncias não remove a unidade; ela não provém somente do autor, mas também, e, sobretudo, da pessoa de Jesus Cristo, que é o centro em quem se contempla a fonte da vida e da espiritualidade cristã. É para ser sublinhada na obra a preocupação que manifesta ao se apresentar a vida cristã como uma realidade orientada para melhorar a vida em suas relações com Deus, o mundo e os homens. Valorizo essa 9 Mente aberta, coração que crê aterrissagem na objetividade, que tanto nos serve para orientar condutas e caminhos da espiritualidade, como de base para um sincero exame de consciência. Outra característica que considero importante nesta obra é assinalar a familiaridade com os textos bíblicos, o que denota uma sólida teologia bíblica vista sob a ótica, diria “sapiencial”, que a enriquece na devida ordem da sua aplicação na vida. Não estamos diante de um estudo exegético, embora seja possível perceber o conhecimento e rigor teológico no manejo dos textos. Os textos bíblicos, em especial os ensinamentos de Jesus, aparecem como algo bem próximo ao humano, como algo, diria eu, que pertence ao homem e que talvez o estivesse esperando, o que confere a este texto atualidade e um alcance maior e de maior respeito ao possível leitor que o descubra. Estamos diante de uma obra que nos apresenta a figura e as palavras de Jesus como um caminho que é humano e divino, quer dizer, um divino que não se distancia do ser humano, e sim o implica, o libera e lhe dá plenitude, e mais ainda, poderíamos dizer que o humano se mostra necessitado do divino para sua plena realização. Em sua leitura, se percebe, além do mais, o conhecimento que o autor tem do uso da sua capacidade linguística e do poder cativante e revelador da palavra. Eu acredito que isso se deva, pelo menos em parte, ao fato de que, em sua juventude, o autor tenha sido professor de literatura. Eu me recordo, e isso é testemunhal, de que uma vez eu lhe perguntei sobre suas férias, o que fazia no mês de janeiro em Buenos Aires, onde costumava ir. Lembro-me de que ele respondeu que ficava na cúria episcopal e que descansava rezando e lendo (e relendo) os clássicos. Sua resposta me surpreendeu, mas me serviu como sinalizador, e tratei de colocar em prática essa indicação. Quanto temos perdido culturalmente em romper com os clássicos. Essa pequena confidência, que me permito 10 Apresentação recordar, explica seu bom manejo do idioma, bem como a beleza de sua prosa. A estética faz parte da fé cristã, que tem sua fonte e inspiração em Deus. Levando-se em consideração de que se trata de um livro para ser trabalhado como da leitura meditativa e orientado ao crescimento espiritual, é de se valorizar que, junto à abundância dos textos bíblicos e citações do magistério, se incluam cânticos e poesias tomadas, tanto da liturgia como da tradição religiosa da Igreja. Isso lhe agrega uma nota de beleza e um colorido especial, que ajuda a criar um clima singular de oração. Considero pedagógico e muito útil, além disso, que ao concluir cada tema há uma proposta de um momento de reflexão, “Para orar e aprofundar”. Como podemos ver, estamos diante de uma obra com um conteúdo profundo e sempre atual, contudo de simples e agradável leitura, que procura envolver o leitor em um caminho de reflexão espiritual orientado a elevar sua vida. A obra se divide em quatro partes que guardam, por si mesmas, uma unidade afim, como já foi assinalado anteriormente, mas que cada uma delas tem uma autonomia que nos permite nos aproximar de sua própria identidade e riqueza. Na divisão da obra se deixa transparecer, embora o autor talvez não tenha buscado intencionalmente, o esquema, não tomado como em absoluto materialmente, do Catecismo da Igreja Católica. Começa com o encontro com Jesus Cristo para concluir, em sua última parte, com a oração vista desde a experiência de vários testemunhos retirados das Sagradas Escrituras. A fé e a oração são os dois eixos que dão a unidade e consistência para esta obra. Como veremos, por outro lado, este caminho de renovação espiritual não nos encerra em uma atividade que poderia fazer com que nos isolássemos, mas, a partir da mesma fé em Deus que temos conhecida em Jesus Cristo, nos abre para uma vida de 11 Mente aberta, coração que crê caridade em nossas relações e de dinamismo missionário na vida da Igreja. A primeira parte nos apresenta o encontro com Jesus através de diversos diálogos que nos são oferecidos nos Evangelhos. Nela podemos apreciar a rica tradição “inaciana” do autor para recriar as circunstâncias e o lugar em que Jesus se encontra com as diferentes pessoas, bem como a sua capacidade para mostrar o valor e o significado das palavras que Ele utiliza. Desde o encontro com Jesus, começam a iluminar-se as diversas situações da vida do cristão, que vão desde o desfrute do encontro com Ele – que define uma vocação – até a cruz, incluindo a dor e a experiência do pecado. Isso marca um profundo e agradável sentido da esperança cristã que tem, em Cristo morto e ressuscitado, a vida de todo homem. Nada resta fora da presença e da palavra de Jesus. A vida e a palavra de Jesus nos revelam em toda sua plenitude a história da salvação, como o marco atual em que se desenvolve nossa vida. Essa temática ocupará a segunda e a terceira partes, que nos introduzem na epifania da revelação como história de amor, de vida e de missão o caminho providencial até a manifestação final. Jesus Cristo nos apresenta neste ponto fundamental a presença da Igreja como a “epifania da Esposa”. Neste tempo, a Igreja irá cobrar um particular relevo sobre o tema da missão, expressada pela revelação do amor estruturado na salvação do Pai. Eu considero a segunda parte como uma grande força de estímulo e mobilização para a vida da Igreja. Recuperar o significado evangelizador da fé, no marco da comunhão da Igreja, é um chamado ao desafio eclesiástico para definir com urgência um compromisso apostólico. A terceira parte nos fala da Igreja em sua vida concreta, com suas grandezas, debilidades e pequenezes. Creio 12 Apresentação que foi muito oportuno e sábio fazê-lo desde a própria palavra de Deus, tomando o Apocalipse, nas cartas dirigidas às sete Igrejas (Ap 1-3). Ao valer-se de textos para estudo e meditação, fáceis de interpretar, de figuras como Romano Guardini e Hans Urs Von Baltasar, vemos que são mostras exemplificadas da seriedade tomada na reflexão. Pouco há para adicionar neste breve prólogo sobre a terceira parte; somente me resta, neste momento, convidá-los a uma leitura pausada que nos permita descobrir e amar esta Igreja, em sua roupagem por tantas vezes delicada que nos desconcerta. Contudo, é a única e maravilhosa Esposa do Cordeiro. A única coisa que eu poderia dizer é que, para mim, tem me feito muito bem. A última parte está dedicada à oração, vista, como podemos dizer, da nossa realidade concreta. Não é de se estranhar, por exemplo, que o primeiro tema seja, “Nossa carne em oração”. Os diversos momentos pelos quais passa nossa oração, aproximação, distanciamento, abandono..., serão considerados sob o ponto de vista de diversos testemunhos bíblicos. Assim sendo, iremos nos encontrar com Abraão, Moisés, Davi, Jó, Judite..., que nos acompanharão com sua experiência religiosa. Um tema que volta a aparecer nesta parte é sobre a oração e que nos faz recordar aqueles primeiros encontros com Jesus Cristo: o “deixar-se conduzir”. Há ali como que uma necessária passividade ativa, o sinal da Presença do Espírito. Conclui finalmente, com uma referência a Jesus Cristo Sacerdote em sua oração ao Pai, que Ele é fonte e modelo de toda oração cristã. Creio que a obra que tem em suas mãos, e que tive o agradável prazer de fazer o prólogo, é fruto de um longo caminho de reflexão e oração que necessita, por isso mesmo, de uma leitura pausada; dar-nos tempo ao tempo, que é o primeiro requisito para avançar em algo bem importante. Estamos 13 Mente aberta, coração que crê acostumados a ler rapidamente para nos informar, porém este livro tem outra pretensão. Agradeço ao autor que tenha decidido recolher estes diversos escritos para apresentá-los, na unidade de uma obra, como um caminho sempre atual que nos ajuda e enriquece. Monsenhor José Maria Arancedo Arcebispo de Santa Fé de Vera Cruz 14 PRIMEIRA PARTE Os diálogos de Jesus Os diálogos de Jesus 1. O gozo apostólico se alimenta na contemplação de Jesus Cristo: como andava, como pregava, como curava, como olhava... O coração do sacerdote deve beber dessa contemplação e ali resolver o principal problema de sua vida; o de sua amizade com Jesus Cristo. Proponho agora contemplar alguns dos diálogos de Jesus: quando Ele fala com quem quer lhe impor condições, com aqueles que pretendem lhe armar alguma armadilha e com aqueles que têm o coração aberto para a esperança da salvação. 2. Os diálogos condicionados. Tanto os três casos de Lucas 9,57-62, como o de Nicodemos (Jo 3,1-21) e o da Samaritana (Jo 4,1-41) condicionam sua aproximação a Jesus. Os três primeiros buscam colocar um limite à sua entrega, à riqueza, aos amigos, ao pai. A Samaritana procura desviar o diálogo porque não quer tocar no essencial, prefere falar de teologia em vez de responsabilizar-se por seus maridos. Nicodemos condiciona sua aproximação a Jesus à segurança, ele vai à noite. E Jesus, como não o vê disposto, deixa-o enredado em suas próprias cismas e dúvidas, porque para Ele a ruminação era o refúgio egoísta para não ser leal. 3. Os diálogos ardilosos. Aqui se busca “tentar” ao Senhor para encontrar uma fissura, em sua coerência, que possibilite conceber a piedade como um truque e então se 17 Mente aberta, coração que crê trapaceia a fé pela segurança, a esperança pela posse, o amor pelo egoísmo. 4. Na cena da mulher adúltera (Jo 8,1-11), se Jesus diz “sim”, apaga-se sua misericórdia, se diz “não”, vai contra a lei. Nesses diálogos enganosos, Jesus costuma fazer duas coisas, dizer uma palavra, que é da doutrina, à pessoa que quer enganá-lo e outra palavra à outra vítima (neste caso a adúltera) ou à situação usada para enganar. Aqui, aos dois enganadores, Ele lhes devolve a condenação, indicando-lhes que devem aplicar aquilo a si mesmos; e à mulher Ele lhe devolve sua vida, assinalando-lhe que se responsabilize por ela. 5. Neste mesmo sentido é possível meditar sobre o aspecto ardiloso do tributo a César, que entranha em si a tentação saduceia de colaboracionismo (Mt 22,15-22) e a da declaração sobre a própria autoridade (Lc 20,1-8), a qual Jesus responde exortando-os a assumir a “autoridade” que Deus mandou e que eles não aceitaram. 6. Há um aspecto enganoso, também saduceu, em cuja resposta o Senhor levanta o olhar em direção aos horizontes escatológicos. Quando a dureza do coração ardiloso é irreversível, então há um pecado de morte (1Jo 5,16), peca-se contra o Espírito Santo (Mt 12,32), confundem-se os espíritos. A armadilha é tão sórdida que o Senhor não entra na dialética de uma resposta, simplesmente volta à pureza de sua glória e, deste ponto, responde (Lucas 20,27-40). 7. A raiz de toda armadilha entranha sempre a vaidade, posse, sensualidade, orgulho. E o mesmo Senhor nos ensinou a responder a essas citações ardilosas com a história em regozijo do nosso povo fiel: Mateus 4,11-11. 8. Os diálogos leais. Finalmente, há um terceiro grupo de diálogos de Jesus que poderíamos chamar de diálogos leais. Acontecem naqueles que chegam sem dualidade, que 18 Os diálogos de Jesus são inteiros, com o coração aberto à manifestação de Deus. Tudo é posto sobre a mesa. Quando alguém se aproxima dessa maneira, o coração de Cristo se enche de gozo (Lc 10,21). Para orar e aprofundar Com o coração disposto e com o olhar fixo no encontro com o Senhor, meditemos sobre o diálogo do cego de nascença com o Senhor (João 9,1-41). 19 O encontro com Jesus 1. Entre o sacerdote e o funcionário religioso há um abismo, são qualitativamente distintos. O doloroso é que um sacerdote pode ir se metamorfoseando, pouco a pouco, em um funcionário religioso. Então o sacerdócio deixa de ser a ponte, “o pontífice”, para terminar sendo aquilo que é a função de cumprir. Deixa de ser mediador para converter-se em intermediário. Ninguém escolhe ser sacerdote, Jesus Cristo é quem elege quem será o sacerdote. Buscar o Senhor, deixar-se buscar pelo Senhor; encontrar ao Senhor, deixar-se encontrar pelo Senhor... Tudo isso está junto, é inseparável. João Paulo II, em seu livro Dom e Mistério, página 97, fala do sacerdote como o homem em contato com Deus e o apresenta neste movimento duplo de busca do encontro com Deus (ascenso) e recepção da santidade de Deus (descenso). “É a santidade do mistério pascal”. Quando o sacerdote se afasta desse movimento duplo, perde o rumo. A santidade não é uma coleção de virtudes, essa concepção da santidade nos prejudica muito e afoga nosso coração – em última instância, nos plasma em fariseus. A santidade é “caminhar na presença de Deus e ser perfeito”, a santidade é viver encontrando-se com Jesus Cristo. 2. Eu proponho como início desta oração o evento da apresentação de Jesus no Templo. A liturgia diz que neste Mistério “o Senhor sai ao encontro de seu povo”. Ali encontramos as promessas e a realidade, os anciãos e os jovens, a Lei e o Espírito, o 21 Mente aberta, coração que crê profeta e o fiel povo de Deus. É o dia de “candeia”, a pequena luz que irá crescendo até fazer-se círio na vigília pascal. 3. O evangelho narra muitas cenas de busca e encontro com Jesus, e em cada uma delas vemos um traço que pode nos ajudar na oração. O encontro com Jesus sempre leva a um chamado, grande ou pequeno, mas a um chamado (Mt 4; 19; 9,9; 10,1-4); esse encontro se dá a qualquer hora e é pura gratuidade (Mt 20,5-6); um encontro que precisa sair à busca dele (Mt 8,2-3; 9,9) e às vezes com uma constância heroica (Mt 15,21) ou com gritos (Mt 8,25) e nessa busca pode-se viver a dor da perplexidade e a dúvida (Lc 7,18-24; Mt 11,2-7). O encontro com Jesus Cristo nos conduz mais e mais em direção à humildade (Lc 5,9), ou às vezes pode ser rejeitado ou mais ou menos aceito (Mt 13,1-23), e, se é rejeitado, produz dor no coração de Cristo (Mt 23,37-39; Mt 11,20-30). Não é uma busca e um encontro cético, pelagiano, senão que supõe o pecado e o arrependimento (Mt 21,28-32). O encontro com Jesus Cristo acontece na vida diária, na procura direta com a oração, na sábia leitura dos sinais dos tempos (Mt 24,32; Lc 21,29) e no irmão (Mt 25,31-46; Lc 10,25-37). 4. O mesmo Senhor nos recomenda a vigilância para este encontro. Ele me procura. Não procura à deriva e sim a cada um e segundo o coração de cada um. A vigilância é o esforço para poder receber a sabedoria de saber discerni-lo e encontrá-lo. Às vezes o Senhor passa ao nosso lado e não o vemos, ou de tanto conhecê-lo, não o reconhecemos. Nossa vigilância é oração que nos faça retê-lo quando ele passar como se quisesse seguir caminho (Mc 6,48; Lc 24,28). Para orar e aprofundar Podemos terminar a oração com um gesto, o gesto desses homens que – depois de procurá-lo durante muito tempo e discernindo os sinais –, quando o viram, lhe renderam homenagem (Mt 2,11). 22 O gozo I “Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa” (1Jo 1,4). “Disse-vos essas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11). “Dirijo-te esta oração enquanto estou no mundo para que eles tenham a plenitude da minha alegria” (Jo 17,13). 1. Trata-se do gozo provocado pelo dom de Deus (Lc 1,14; Rm 15,13), pela visita do próprio Deus em si (Lc 1,4144). O gozo que nos envolve quando somos capazes de compreender toda a história da Salvação (Lc 1,47) ou de prevê-la na fé (Jo 8,56; 1Pd 4,13). O gozo, fruto da presença do Espírito Santo (Lc 10,21). Esse gozo que nos fortalece nos momentos de provação (Lc 6,23; Hb 10,34; Rm 12,12; 1Pd 1,6; 2Cor 6,12) e nos acompanha, como aos apóstolos, em nosso trabalho evangelizador (Lc 24,52; At 13,52) porque é sinal da presença cotidiana do Senhor (Mt 28,20). Um gozo essencialmente apostólico até o ponto de consolidar a paternidade e a filiação apostólicas (Fl 1,25; 4,1; Fl 7; 1Jó 1,4; 2Jo 12). E que nos convida para que o nosso gozo seja pleno. 2. Nosso gozo em Deus é missionário, é fervor, “‘Achamos o Messias’... levou-o a Jesus... ‘vem e vê’” (Jo 1,4146). “... vai aos meus irmãos” (Jo 20,17). 3. Este gozo é consolação. É o sinal da harmonia e unidade que se realiza no amor, é o sinal de unidade do corpo da 23 Mente aberta, coração que crê Igreja, sinal de edificação. Temos que ser fiéis ao gozo e não “gozá-lo” como um bem próprio. O gozo é para maravilhar-se e comunicá-lo. O gozo nos abre para a liberdade dos filhos de Deus, porque – ao nos colocarmos em Deus – nos separa das coisas e situações que estão muito próximas de nós e nos aprisionam, tiram-nos a liberdade. Por ele o coração gozoso sempre vai crescendo em liberdade. 4. O gozo, sinal da presença de Cristo, configura o estado habitual de um homem ou mulher consagrados. Daí nasce a preocupação em buscar a consolação, não por ela mesma, e sim pelo sinal da presença do Senhor. Buscá-la em qualquer de seus modos, cito aqui Santo Inácio: “chamo consolação quando na alma é causada alguma moção interior com a qual a alma vem e se inflama em amor ao seu Criador e Senhor e, consequentemente, quando nenhuma coisa criada sobre a face da terra pode amar em si mesma, senão no Criador de todas elas. Igualmente, quando lança lágrimas motivadas pelo amor de seu Senhor, quer seja pela dor de seus pecados, quer pela paixão de Cristo Nosso Senhor ou de outras coisas diretamente ordenadas em seu serviço e louvor; finalmente chamo consolação a todo aumento de esperança, fé e caridade, bem como toda alegria interna que chama e atrai para as coisas celestes e para a salvação da sua própria pessoa, aquietando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor” (Exercícios Espirituais, 316). O grau fundamental do gozo é, portanto, a profunda paz, o movimento imperturbável no Espírito que permanece ainda nos momentos mais dolorosos da cruz. Um autor espiritual do século IV disse mais ou menos o mesmo ao descrever como somos guiados por Cristo de diversas maneiras: “Às vezes choram e se lamentam pelo gênero humano e rogam por ele com lágrimas e pranto, acesos de amor espiritual. Outras vezes o Espírito Santo os inflama com uma alegria e um amor 24 Os diálogos de Jesus tão grandes que, se pudessem, abraçariam em seu coração todos os homens, sem distinção de bons ou maus. Outras vezes experimentam um sentimento de humildade que os faz encolher por debaixo de todos os demais homens, tornando-se mais hediondos e desprezíveis. Outras vezes o Espírito lhes comunica um gozo inefável. Outras vezes são como um homem corajoso que, equipado com toda régia armadura e lançando-se ao combate, luta com valentia contra seus inimigos e os vence. Outras vezes a alma descansa em um grande silêncio, tranquilidade e paz e com um sossego indescritível. Outras vezes o Espírito lhe outorga inteligência, uma sabedoria e um conhecimento inefáveis, superiores a tudo o que possa falar ou expressar-se. Outras vezes não experimenta nada em especial. Deste modo, a alma é conduzida pela graça através de vários e diversos estados, segundo a vontade de Deus que assim a favorece” (Patrologia, séries gregas, 34). Como se pode ver, é a mesma Unção do Espírito Santo que permanece, nessa unção feita nas suas raízes do gozo, e por ele se expressa em tão diversos estados..., mas o afinco nessa unção permanece imperturbável, é o que chamaríamos de paz de fundo. 5. Somos convidados a pedir ao Espírito Santo o dom da alegria e do gozo. O contrário é a tristeza. Paulo VI nos diz que “o frio e as trevas estão em primeiro lugar no coração do homem que sente a tristeza” [Gaudet in Domino (GD), I]. A tristeza é a magia de Satanás, que endurece nosso coração e nos amarga. Quando a amargura entra no coração de um homem ou mulher consagrados, é bom recordar o que o mesmo Paulo VI advertia: “Que nossos filhos de certos grupos recusem os excessos de uma crítica sistemática e aniquiladora. Sem necessidade de sair de uma visão realista, que as comunidades cristãs se convertam em lugares de alegria onde todos os seus membros se exercitem resolutamente no discernimento dos aspectos positivos das pessoas e dos acontecimentos. 25 Mente aberta, coração que crê A caridade não se goza na injustiça, e sim se alegra com a verdade. Desculpa tudo. Crê sempre. Espera sempre, suporta tudo” (GD, Conclusão). Contudo, o mais grave do espírito em tristeza é que leva em si o pecado contra a esperança. Que belas palavras disse Bernanos em seu Diário de um padre rural: “O pecado contra a esperança... O mais mortal de todos e, sem dúvida, o melhor acolhido, o mais lisonjeado. É preciso muito tempo para reconhecê-lo e é tão doce a tristeza que o anuncia e o precede! É o mais apreciado dos elixires do demônio, sua ambrosia”. 6. “A alegria propriamente espiritual, que é fruto do Espírito Santo” – diz em contrapartida Paulo VI – “consiste em que o espírito humano encontre repouso e uma satisfação íntima na posse do Deus Trino, conhecido pela fé e amado com a caridade que provém dele. Essa alegria se caracteriza, portanto, em todas as virtudes cristãs.” As pequenas alegrias humanas que se constituem em nossa vida como semente de uma realidade mais alta, tornam-se transfiguradas. Essa alegria espiritual, aqui abaixo, incluirá sempre, em alguma medida, a dolorosa prova da mulher em transe ao dar à luz e certo abandono aparente, parecido ao do órfão, lágrimas e gemidos, enquanto que o mundo fará alarde de satisfação, falsa, na verdade. Mas a tristeza dos discípulos, que é segundo Deus e não segundo o mundo, “se trocará em breve por uma alegria espiritual que ninguém poderá arrebatar-lhes” (GD, III). 7. Ele nos convida a pedir ao Espírito Santo o dom do gozo e a alegria: ela “é o fruto do Espírito Santo. Este Espírito que habita em plenitude na pessoa de Jesus, Ele o faz durante a sua vida terrestre tão atento às alegrias da vida cotidiana, tão delicado e persuasivo para direcionar os pecadores pelo caminho de uma nova juventude de coração e de espírito! É o mesmo Espírito que animava a Virgem Maria e cada um 26 Os diálogos de Jesus dos santos. É este mesmo Espírito o que segue dando ainda a tantos cristãos a alegria de viver cada dia a sua vocação particular na paz e na esperança que ultrapassa os fracassos e os sofrimentos” (GD, Conclusão). 8. O gozo é o fervor. Paulo VI concluía seu Evangelii Nuntiandi falando-nos sobre esse fervor: “De tais obstáculos, que são também dos nossos tempos, limitar-nos-emos a assinalar a falta de fervor, tanto mais grave por isso mesmo que provém de dentro, do interior de quem a experimenta. Essa falta de fervor manifesta-se no cansaço e na desilusão, no acomodamento e no desinteresse e, sobretudo, na falta de alegria e de esperança em numerosos evangelizadores. E assim, nós exortamos todos aqueles que, por qualquer título e em alguma escala, têm a tarefa de evangelizar, de alimentarem sempre o fervor espiritual. [...] Conservemos o fervor do espírito, portanto; conservemos a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! [...] Que isto constitua, ainda, a grande alegria das nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo que procura, ora na angústia, ora com esperança, possa receber a boa-nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e desanimados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradia o fervor de quem recebeu... a alegria de Cristo...” (n. 80). Para orar e aprofundar O gozo se alimenta da contemplação de Jesus Cristo, como andava, como pregava, como curava, como olhava... O sacerdote, o homem e a mulher consagrados têm que resolver – em sua vida – o problema fundamental de sua amizade com Jesus Cristo e resolver sua vida nessa amizade com Ele. A amizade nasce, cresce, se fortalece na convivência, 27 Mente aberta, coração que crê daí a necessidade, finalmente, da contemplação dele. Eu me refiro, neste caso, à necessidade existencial da própria vida consagrada. Eu proponho que dediquem o tempo de oração para contemplar o Senhor. Escolham as passagens de sua vida apostólica que mais lhe agradem e fiquem observando, olhando, escutando, caminhando com Ele. 28 O gozo II 1. Gostaria de seguir refletindo sobre o nosso gozo ministerial. O verdadeiro gozo se forja no trabalho, na cruz. O gozo que não foi “provado” não passa de um simples entusiasmo, muitas vezes indiscreto, que não tem como comprometer-se com a fecundidade. Jesus nos prepara para essa prova e nos adverte, a fim de que estejamos prontos para resistir: “Assim também vós, sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16,22). Santo Inácio também exorta a vencer a provação, a tentação e a desolação com o trabalho constante e a esperança da futura consolação, do futuro gozo: “O que está em desolação trabalhe para estar em paciência, que é contrária as vexações que vêm, e pense que será brevemente consolado, colocando diligências contra a tal desolação...” (Exercícios Espirituais, 321). Na desolação e na provação, parece que o Senhor se distancia, que dorme (tal como o leme da embarcação durante a tempestade). Outras vezes tem sido a nossa atitude mundana ou pecaminosa que o distancia de nosso coração. Ele está ali, mas não o vemos ou não queremos vê-lo. 2. Uma situação que pode acontecer no ministério é o cansaço pastoral. Costuma ser um efeito (e sintoma) de inconstância, da indolência espiritual. Fazer justiça ao povo fiel de Deus supõe ser muito constante no pastoreio, na resposta 29 Mente aberta, coração que crê por sua vez cansativa dos pedidos para serem ungidos (tocados) por Deus em qualquer momento: sacramentos, bênçãos, palavra... É curioso, mas os fiéis cansam porque pedem coisas concretas. Em contrapartida, podem nos seduzir os trabalhos que nos permitem um refúgio na fantasia. Dentro de nossa mente, somos reis e senhores a quem se dedica exclusivamente o cultivo da fantasia e nunca se chegará a sentir a urgência do concreto. Contudo, o trabalho pastoral em nossas paróquias é outra coisa. Supõe-se que tenha que ter reflexão, trabalho intelectual e oração, mas fundamentalmente a maior parte do tempo estará se fazendo “obras de caridade”. Caridade para atender com ânimo compartilhador às pessoas que se aproximam para pedir as mais diversas coisas: um irá perguntar se pode mudar uma promessa, outro pedirá um certificado para batizar em Luján1; outro uma ajuda de Cáritas; outro uma missa para algum falecido em um determinado dia e não em outro. As pessoas são implacáveis com as coisas que se referem à religião. Assim como geralmente é fiel no cumprimento de suas promessas, também exige fidelidade na atenção pastoral aos encargos naturais que dispensa. O sacerdote não pertence a si mesmo. Poderá, às vezes, refugiar-se em outras coisas, contudo, todas essas “outras coisas” se “chocam” diante de uma mãe de família que lhe faz caminhar várias quadras para abençoar, benzer a sua casa. A constância apostólica é criadora de instituições. Penso que as mãos de um sacerdote, mais do que expressar gestos rotineiros, devem tremer de emoção ao administrar o batismo, porque estão fazendo gestos contundentes que fazem instituição. 3. Gostaria de deter-me um pouco mais na descrição desse vício antiapostólico, a apatia, que rói como uma traça a constância em nossa missão de pastores do povo fiel. O típico de toda apatia é algo assim como uma utopia; não nos 1 Cidade argentina, localizada na província de Buenos Aires. 30 Os diálogos de Jesus responsabilizarmos em relação ao tempo, lugares e pessoas em que estão molduradas nossa ação pastoral. Algum filósofo diria que pretende ser atemporal, espacial. Aparece sob diversas manifestações em nossa vida de pastores e é preciso estar alerta para poder discerni-la sob as roupagens com que se disfarça. Às vezes é a paralisia, em que não se consegue aceitar e administrar o ritmo da vida. Outras vezes é o padre saltimbanco que, em seu vai e vem, mostra sua incapacidade de estar em si fundamentado em Deus e na história concreta com a qual está irmanado. Em algumas ocasiões se apresenta na elaboração de grandes planos sem atender às mediações concretas que irão realizar; ou – ao contrário – enredada na pequenez de cada momento sem transcendê-las para o plano de Deus. É bom recordar o epitáfio de Santo Inácio: Non coerceri a máximo, contineri tamen a mínimo, divinum est2. Temos visto muitos tentados pela preguiça, vimos os que sonham com projetos irrealizáveis acabando não realizando o que muito bem poderiam fazer. Os que não aceitam a evolução dos processos e querem a geração espontânea. Os que acreditam que tudo já foi dito e que não se deve andar mais além. Os que fecharam seus corações, como os de Emaús, aos novos “passos do Senhor”. Os que não sabem esperar e por isso são agentes de desintegração por estarem fechados à esperança. A preguiça é desintegração porque o que congrega é a vida... e estes não aceitam a vida. 4. É bom reconhecer que a preguiça é uma realidade que muito nos visita, uma ameaça à nossa vida cotidiana como pastores. Humildemente saber que existe em nós e que devemos nos alimentar com a palavra de Deus, que nos dá força para seguir adiante, aguardando o gozo este, somente vem através do Senhor, que nos encontra vigilantes 2 Não abater-se em relação ao maior e, por sua vez, prestar atenção ao pequeno é divino. 31 Mente aberta, coração que crê esperando-o no momento, nos tantos que “a cada momento” chegam à vida ministerial. Somente o operário que soube renunciar à vontade imperfeita, à preguiça e à inconstância para poder dedicar-se todo dia e todos os dias ao serviço pastoral, somente ele entenderá com o coração o preço do resgate de Cristo, e – talvez sem explicitá-lo – suas mãos laboriosas farão crescer a unidade da Igreja, a consonância com o bispo, essa participação com Deus nascida do pertencer à santa madre Igreja, que nos configura como filhos do Pai, irmãos entre nós e pais do fiel povo de Deus. Somente o trabalhador incansável, o que tem a paciência, a constância e a resistência (la hypomoné) sabe como conservar a “imaculada unidade” da Igreja (como denominava Santo Inácio de Antioquia em sua carta aos Efésios 2,2). E isso se faz “com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se lhe oferecera, ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12,1-2). Para orar e aprofundar Devemos nos deter por um momento e revisarmos em nossa vida sob que roupagens se veste nossa preguiça. Em que situações da minha vida aparece a tentação desse cansaço e falta de constância que acaba nos paralisando? 32 Nossa fé “Porque tudo o que nasceu de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1Jo 5,4). Hoje, mais do que nunca, as perguntas que nos fazemos sobre nossa eficácia apostólica se tornam difíceis e contêm o perigo de nos enredarmos nos mesmos enfoques que nos levam a buscar nossa fidelidade. Esse assunto é tão importante que não podemos permitir qualquer tipo de improviso. E o mesmo acontece com as diversas opções apostólicas que teremos que tomar em nossa ação pastoral. Quando Paulo VI nos falava do esforço orientado para anunciar o evangelho aos homens do nosso tempo, nos assinalava uma das nossas realidades mais notórias: “animados pela esperança mas ao mesmo tempo torturados muitas vezes pelo medo e pela angústia” [Evangelii Nuntiandi (EN), 1]. Esperanças e temores se entrelaçam, inclusive em nossa vida apostólica, nos momentos em que temos que decidir por modalidades de nosso trabalho. Não podemos nos arriscar em decidir sem discernimento sobre esses temores e esperanças, porque o que nos é pedido é nada menos que “nestes tempos de incerteza e de desorientação, eles a desempenhem cada vez com mais amor, zelo e alegria” (EN, 1), e isso não se improvisa. Para nós, homens da Igreja, esse esclarecimento transcende qualitativamente toda visão das ciências positivistas, apelando para uma visão original, a mesma originalidade do 33 Mente aberta, coração que crê Evangelho. Ao nos encontrarmos com essa força, reencontraremos e consolaremos naquela vossa e minha fé que nos é comum (Rm 1,12), para regar nosso coração de apóstolo nela, precisamente para recuperar a coerência de nossa missão, a coesão como corpo apostólico, a consonância de nosso sentir e nosso fazer. 1. Encontrarmo-nos com nossa fé, com a fé de nossos pais, que é em si mesma libertadora sem necessidade de acrescentar-lhe nenhum complemento, nenhum qualificativo. Essa fé que nos faz justos ante o Pai que nos criou, ante o Filho que nos redimiu e invocou para ser seguido, ante o Espírito que atua diretamente em nossos corações. Essa fé que – na hora de optar por decisões concretas – nos levará, sob a unção do Espírito, a um conhecimento claro dos limites da nossa contribuição, a sermos inteligentes e sagazes nos meios nos quais utilizamos, enfim, nos conduzirá à eficácia evangélica tão distante da inoperância intimista que nos desconecta facilmente. Nossa fé é revolucionária, é fundamental em si mesma. É uma fé combativa, mas não com a combatividade de qualquer contenda e sim com a de um projeto discernido sob a guia do Espírito para um maior serviço da Igreja. E, por outro lado, o potencial libertador que vem do contato com o santo é hierofânica. Pensemos na Virgem “intercessora”, nos santos etc. 2. Por esse mesmo motivo, que a fé é tão revolucionária, será continuadamente tentada pelo inimigo, aparentemente não para destruí-la senão para debilitá-la, torná-la inoperante, afastá-la do contato com o santo, com o Senhor de toda fé e toda vida. E, então, vêm as posturas que em teoria nos parecem tão distantes, mas que, se examinarmos nossa prática apostólica, nós as veremos escondidas em nosso coração pecador. Essas posturas simplistas que nos eximem da carga pastoral dura e constante. Revisemos algumas tentações. 34 Os diálogos de Jesus Uma das tentações mais sérias que nos afasta de nosso contato com o Senhor é a consciência de derrota. Diante de uma fé combativa por definição, o inimigo, sob o anjo de luz, semeará as sementes do pessimismo. Ninguém pode empreender nenhuma luta se, de antemão, não confia plenamente no triunfo. Aquele que começa sem confiar perdeu, de antemão, a metade da batalha. O triunfo cristão é sempre uma cruz, contudo uma cruz bandeira de vitória. Essa fé combativa a iremos aprender e alimentar entre os humildes. Durante os exercícios virão à nossa memória muitas faces, as faces das pessoas que conhecemos em nossos primeiros trabalhos pastorais. A face do humilde, a face daquele de uma piedade simples, é sempre a face de triunfo e quase sempre vem acompanhada da cruz. Ao invés da face do soberbo que é sempre uma face de derrota. Não aceita a cruz e quer uma ressurreição fácil. Separa o que Deus uniu. Quer ser como Deus. O espírito de derrota nos tenta a embarcarmos em causas perdedoras. Está ausente dele a ternura combativa que tem a seriedade de uma criança ao fazer o sinal da cruz ou a profundidade de uma anciã ao rezar suas orações. Isso é fé e essa é a vacina contra o espírito de derrota (1Jo 4,4; 5,4-5). Outra tentação é querer separar antes do tempo o joio do trigo. Há uma experiência privilegiada do sacerdote, é a confissão. Ali vemos muitas misérias, mas ali está também o melhor do coração humano, que é o homem arrependido. Isso é o ser humano e não outra coisa, o penitente. Um sacerdote poderá ser, por vezes, duro com os fiéis na pregação, mas custar-lhe-á mais sê-lo no confessionário. Ali não se pode separar o trigo do joio e ali está Deus. A confissão também nos dá o sentido do tempo, porque não se pode forçar nenhum processo humano. E a vida é assim, o puro não está somente em Deus, mas 35 Mente aberta, coração que crê também há pureza entre os homens. E Deus não é um Deus distante que não se imiscui no mundo; “se fez pecado” é o que São Paulo nos diz. As estruturas deste mundo não são unicamente pecadoras. Isso é maniqueísmo. O trigo e o joio cresceram juntos e nossa humilde missão talvez seja mais proteger, como pais, ao trigo, deixando aos anjos a colheita do joio. Outra tentação é privilegiar os valores do cérebro sobre os valores do coração. Não é assim. Somente o coração une e integra. O entendimento sem o sentir piedoso tende a dividir. O coração une a ideia com a realidade, o tempo com o espaço, a vida com a morte e com a eternidade. A tentação está em deslocar o entendimento do lugar onde pôs Deus Nosso Senhor. Colocou-o para aclarar a fé. Deus não criou o entendimento humano para constituir-se em juiz de todas as coisas. É uma luz emprestada, um reflexo. Nosso entendimento não é a luz do mundo, é simplesmente uma fagulha para iluminar a nossa fé. O pior que pode acontecer para um ser humano é deixar-se arrastar pelas “luzes” da razão. Converter-se-á em um intelectual ignorante ou em um “sábio” desatrelado. O melhor da missão da nossa mente é descobrir as sementes do Verbo dentro da humildade, os logoi spermatikoí . E a fé, há que pedi-la. Deus nos livre e guarde de não sermos pedintes com Ele e com seus santos. Negar que a oração de petição seja superior às outras orações é a soberba mais refinada. Somente quando somos pedintes nos reconhecemos como criaturas. Mas quando não nos ajoelhamos ante a fé do humilde e quando não sabemos pedir, então acreditamos que o que salva é a pura fé, uma fé vazia, contudo uma fé seca de toda religião, de toda piedade. Então não interpretamos o religioso, e o intelecto caminha à deriva de suas poucas luzes. Ali é onde caímos 36 Os diálogos de Jesus no tocante a querer explicar a verdadeira fé com slogans nascidos de ideologias culturais. Transformamo-nos em uma espécie de quackers modernos. É algo assim como reeditar que só a fé salva em formulações mais ou menos da moda: “só a justiça salva” (mas com essa ideia de justiça que não parece ter história, que é toda novidade a se inventar... etc.); “só o risco salva” (esse não parece se apoiar em nenhuma conceituação histórica, em nenhuma memória do caminho andado); “a fé é compromisso” e “só a fé comprometida salva” (em que o compromisso é visualizado através do risco, da novidade, e a fé como que necessitando de adjetivos que a tornem mais forte, porque é vivida como se fosse débil) etc. Bem, mas esses são apenas exemplos, algo caricaturado... O importante é perceber que dentro, das formulações concretas em que a fé se reduz (cf. EN, 35), há uma confissão de debilidade, a debilidade do que não crê que sua fé pode “mover montanhas”, a debilidade da ineficácia. O “forte na fé” sabe onde é eficaz, onde vence o Maligno (1Jo 2,14). 3. Talvez, nesta meditação, procurando recuperar a fé em nossos pais para dá-la incólume e fecunda aos nossos filhos, convém lembrar-se da imagem católica de nosso Deus. Não é que Ele esteja ausente. É o Pai que acompanha o crescimento, o pão de cada dia que alimenta, o misericordioso que acompanha nos momentos em que o inimigo usa a estes filhos. O Pai que dá a seu filho o que pede, se for conveniente, mas sempre o acaricia. Isso é aceitar que nosso Deus se expressa limitadamente; e consequentemente, é aceitar os limites da nossa expressão pastoral (tão distantes da concepção de quem tem a chave do mundo, que não sabe nada sobre espera nem trabalho, que vive a reboque de histerias e expectativas). Jesus, que proclama que Deus se expressa limitadamente em sua encarnação, 37 Mente aberta, coração que crê quis compartilhar a vida com os homens, e isto é redenção. O que nos salvou não foi somente “a morte e ressurreição de Cristo”, e sim Cristo encarnado, nascido, jejuando, pregando, curando, morrendo e ressuscitando. Os milagres, os consolos, as palavras de Jesus são salvadores (EN, 6). Porque quis nos ensinar que as sínteses se fazem, não vêm feitas; que servir ao santo povo fiel de Deus é acompanhá-lo anunciando a salvação dia a dia, e não andar nos perdendo, olhando para cumes inalcançáveis para os quais nem temos força de atingir. Por fim, resumindo, há dois projetos: o da nossa fé, que reconhece a Deus como Pai, e há justiça e há irmãos. E o outro projeto, o que sub angelo lucis3 nos coloca o inimigo, que é o de Deus ausente, a lei do mais forte, o homo homini lúpus4. Para qual lado eu jogo? Sou capaz de discernir? Sou capaz de discutir com o projeto que não é de Deus? E se eu me der conta de que não sou capaz, então... tenho a sagacidade suficiente para me defender? 4. E por isso a nossa identidade como homens de fé está dada pela pertença a um corpo e não pela afirmação de nossa consciência isolada. O batismo significa pertencer à Igreja institucional. Se é na medida em que se pertence. E, portanto, o comportamento religioso de pertencer, mais do que buscar a satisfação de um momento individual da minha consciência, buscará símbolos unificadores, a Virgem, os santos. E aqui, dando um passo a mais, nossa fé será combativa com uma combatividade consciente do inimigo a fim de defender a todo o corpo (não somente a mim mesmo). Tudo isto nos dá uma nota de realismo, se se conhece 3 Sub angelo lucis: “como um anjo de luz” refere-se às coisas do maligno com aparência de boas, iluminadoras (N.E.). 4 Homo homini lúpus: “o homem é o lobo do homem”. Do poeta latino Plauto, tomada por sua vez pelo filósofo Thomas Hobbes, faz referência ao egoísmo do homem e a um suposto estado de guerra de todos contra todos para defender cada um o seu. (N.E.). 38 Os diálogos de Jesus pelo o que se luta e, na medida em que não se sabe por que se luta, se desloca diretamente para a perda. Os primeiros evangelizadores deram ao índio na América o saber por que lutar. Nosso trabalho como pastores não deve descuidar deste aspecto de nossa fé, ajudá-los na sagacidade de saber por que lutar. Junto deste sentido do combativo dizemos que nossa fé tem sua dimensão hierofânica, o contato com o santo. Distingue-se do sacramentalismo mágico. É a confiança profunda no poder de Deus que se faz história através do sinal sacramental. É atualizar a graça específica da encarnação, esse contato físico com o Senhor que “passa fazendo o bem e curando a todos”. A tática do inimigo consistirá em afogar o combatente e afogar o hierofânico, a fim de que nossa fé se torne indisciplinada e desrespeitosa. Porque disciplina e respeito são consequências diretas da nossa fé; e por disciplina e respeito devemos ver qual é o melhor território que temos para nossa pregação, para nosso serviço da fé, para nossa promoção de justiça. Para orar e aprofundar A título de conclusão, como guia para refletir e orar, poderíamos nos perguntar pelo estado da fé de nossos pais na minha vida de pastor: a) Confirmo o meu povo na fé em Deus Pai Todo Poderoso, sendo consciente de que confirmo desta maneira o projeto de Deus justo? b) Creio no revolucionário da ternura e do carinho, cada vez que vejo a Virgem ou falo sobre ela? Estou convencido de que o calor do lar tem sentido em nosso projeto de justiça? 39 Mente aberta, coração que crê c) Eu sou um pastor pedinte diante de Deus Pai, reconhecendo-o como Pai, Todo Poderoso, amoroso no cuidado de seu povo fiel? d) Tenho consciência de pertença a um corpo mediante a afirmação de todo símbolo de unificação que por ser religioso é eficaz ou quase eficaz: doutrina, imagens, sacramentos (EN, 3)? e) Tenho consciência do pecado, que me leva à penitência e à pregação dos mandamentos? Ou eu as troquei pelo ceticismo, que me conduz a um homem autossuficiente? f) Sou fiel ao mandato da Igreja que me envia a pregar, “não a mim mesmo ou a minhas ideias pessoais, mas sim um Evangelho do qual não somos senhores e proprietários absolutos, para dele dispormos a nosso bel-prazer, mas de que somos os ministros para o transmitir com a máxima fidelidade” (EN, 15)? E assim poderíamos continuar nos perguntando sobre a nossa fé de pastores do povo... ou – ao contrário – sobre nossas atitudes como clérigos do Estado. E procuremos sentir honradamente nossa pertença ao corpo da Santa Madre Igreja, a Esposa do Senhor, a quem devemos amar e manter unida. Em nossas reflexões como pastores do povo fiel de Deus, devemos pensar que não basta a verdade, senão em caridade, edificando a unidade da Igreja. Que não seja porque aderimos aos melhores programas, iremos nos esquecer do corpo: e se bem que em todo cisma celebra-se validamente a Eucaristia, não podemos esquecer que se potencializa seu valor na mesa comum. Uma atitude inevitável, de justiça, como pastores, é salvar aos homens do cisma, ajudá-los a estabelecer 40 Os diálogos de Jesus uma maior comunhão e unidade com a Madre Igreja, recordando sempre que a unidade é superior ao conflito5. Nas vésperas do nosso ministério, devemos pedir a graça de ser homens ou mulheres de fé, evangelizadores da fé que temos recebido. E oxalá que, nestes exercícios, o Senhor nos faça entender e sentir que a evangelização “não é para a Igreja uma contribuição facultativa, é um dever que se lhe incumbe, por mandato do Senhor Jesus, a fim de que os homens possam acreditar e serem salvos. Sim, essa mensagem é necessária; ela é única e não poderia ser substituída. Assim, ela não admite indiferença nem sincretismo, nem acomodação. É a salvação dos homens que está em causa; é a beleza da Revelação que ela representa; depois, ela comporta uma sabedoria que não é deste mundo. Ela é capaz, por si mesma, de suscitar a fé, uma fé que se apoia na potência de Deus”. Que entendamos valer que nós, apóstolos, “lhe consagremos todo o nosso tempo, todas as nossas energias e lhe sacrifiquemos, se for necessário, a nossa própria vida” (EN, 5). 5 Santo Inácio e os primeiros companheiros tiveram bem presentes estes dois projetos de fé. E nos ensinaram que o projeto do mau espírito divide porque valida o progresso do individualismo e termina com as mediações institucionais; e inclusive afoga a religiosidade no horizonte do Estado. Diante disto, a opção da Companhia foi singela, mas contundente, 1) a consolidação da instituição eclesiástica (cujo princípio e fundamento é o quarto voto do Papa); 2) a consolidação na formação de pastores (os Seminários, os Colégios, o Romano, o Germânico); 3) inicia uma evangelização de real aculturação na Ásia e América, que diante do particularismo absolutista político ou do abstracionismo protestante, opõe o real sentido de universalidade; esse versus in unum nascido da realidade do universal concreto entre os povos. Isso quer dizer que a resposta da Igreja e da Companhia diante do projeto do mau espírito, em sua raiz, em si mesma, é combativa. Nossa fé é combate. 41 Nossa vocação 1. Vocês foram chamados e agora estão se preparando para receber o Ministério. Pode existir a sensação de que “por fim chegamos!” e viver essa preparação de uma ótica do “momento”. Isso poderia nos prejudicar, pois – sem nos dar conta – poderia nos levar a conjecturar o ministério que vamos receber. Em vez disso, seria melhor avaliar que o ponto de vista deve ser o do “tempo”, e do “tempo de Deus” que transcende todos os “momentos” de nossa existência. E aqui, então, cabe a pergunta, onde estou? Em que está fundamentada minha vocação? Podemos recordar a palavra de Jesus: “Muitos me dirão naquele dia, ‘Senhor, Senhor, não pregamos nós em vosso nome, e não foi em vosso nome que expulsamos os demônios e fizemos muitos milagres?’ E, no entanto, eu lhes direi, ‘Nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!’ Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as põe em prática é semelhante a um homem prudente, que edificou sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela, porém, não caiu, porque estava edificada na rocha. Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua ruína” (Mt 7,22-27). 43 Mente aberta, coração que crê E grande foi a sua ruína. Faz-me lembrar da admoestação do Senhor sobre o demônio que, ao ser rejeitado, tenta voltar, e “o fim daquele homem é pior do que o princípio”. Novamente a pergunta: sobre o que estou fundamentado? 2. Eu lhes proponho, como meditação inicial, olhar a missão ministerial que receberam – enxergando-se de tal forma que, constituídos por ela se reencontrem com o fato de serem criados e salvos pelo mesmo Jesus que lhes chama agora para o ministério – e buscar a discreta generosidade do maior serviço nesta missão específica. 3. A revelação nos conservou e, para nosso consolo, essa peculiar relação se estabelece entre o Senhor e aquele a quem guia: Moisés, Isaías, Jeremias, José, João Batista... Todos eles sentiram a indigência de suas possibilidades ante o pedido do Senhor: “Quem sou eu para ir ter com o faraó e tirar do Egito os israelitas?” (Ex 3,11); “Pobre de mim, estou perdido! Porque sou um homem de lábios impuros; Ah, Senhor JAVÉ, eu nem sei falar, pois que sou apenas uma criança” (Jr 1,6); “Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim!” (Mt 3,14); José, que resolve abandonar Maria secretamente (Mt 1,19-20). É a resistência inicial, o não poder compreender a magnitude do chamado, o medo da missão. Esse sinal é de bom espírito, sobretudo se não fica ali e permite que a força do Senhor se expresse sobre essa debilidade e lhe dê consistência, a ser fundida: “Eu estarei contigo – respondeu Deus – e eis aqui um sinal de que sou eu que te envio: quando tiveres tirado o povo do Egito, servireis a Deus sobre esta montanha” (Ex 3,12). “Aplicou-a na minha boca e disse: Tendo esta brasa tocado teus lábios, teu pecado foi tirado, e tua falta, apagada” (Is 6,7). “Não digas, ‘Sou apenas uma criança’; porquanto irás procurar todos aqueles aos quais te enviar, e a eles dirás o que eu te ordenar. Não deverás temê-los porque estarei contigo para livrar-te” (Jr 1,7-8). “Deixa por agora, pois convém cumpramos 44 Os diálogos de Jesus a justiça completa” (Mt 3,15). “José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo” (Mt 1,20). O Senhor, ao nos dar a missão, fundamenta-nos; e o faz não com a consistência funcional de quem dá uma tarefa ou emprego qualquer mas, com a fortaleza de seu Espírito, o qual de todas as formas nos faz pertencer a essa missão, à qual nossa identidade ficará selada por ela. Identificar-se é pertencer... pertencer é participar no que Jesus fundamenta... e Jesus nos fundamenta em sua Igreja, em seu santo povo fiel para a Glória do Pai. Nossos medos e inseguranças nascem talvez do mesmo sentimento que inspirava as rejeições à missão de Moisés, Isaías, João... só nos resta permitir que o Senhor nos fale e nos situe, em sua real dimensão, o nosso medo, nossa pusilanimidade, nosso egoísmo. 4. Jesus instaurou o reino de Deus. Com sua palavra e sua vida, fundou-o de uma maneira irreversível: para nós, pertencermos a ele é um valor indeclinável. E para nós, Ele nos fundamenta como pastores de seu povo, e é assim que nos ama. Não podemos prescindir, ao falar de nosso fundamento, da dimensão pastoral de nossa vida. Penso que o processo da meditação é que nos pode ajudar a ir percorrendo um documento pastoral, que é uma verdadeira convocatória a nos deixar fundamentarmos novamente, como pastores, por Cristo Nosso Senhor. Por isso, proponho algumas passagens do Evangelii Nuntiandi. À luz dessa doutrina, reflitamos sobre nós mesmos para tirar algum proveito. 5. O próprio Jesus tem uma missão: “Andar de cidade em cidade a proclamar, sobretudo aos mais pobres, e muitas vezes os mais bem dispostos para o acolher, o alegre anúncio da realização das promessas e da Aliança feitas por Deus, tal é a missão para a qual Jesus declara ter sido enviado pelo Pai. E todos os aspectos do seu mistério, a começar da 45 Mente aberta, coração que crê própria Encarnação, passando pelos milagres, pela doutrina, pela convocação dos discípulos e pela escolha e envio dos doze, pela cruz, até a ressurreição e à permanência da sua presença no meio dos seus, fazem parte da sua atividade evangelizadora” (EN, 6). E com sua atividade evangelizadora, Cristo “anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser ‘o resto’, que é ‘dado por acréscimo’. Só o reino, por conseguinte, é absoluto, e faz com que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com ele” (EN, 8). O Senhor funda o reino; poderemos seguir essa meditação contemplando as diversas formas com que Jesus descreve “a felicidade de fazer parte deste reino, felicidade paradoxal, feita de coisas que o mundo despreza; as exigências do reino e a sua carta magna; os arautos do reino; os seus mistérios; os seus filhos; e a vigilância e a fidelidade que se exigem daqueles que esperam o seu advento definitivo” (EN, 8). O Senhor nos fundamenta em seu reino, seu Espírito nos faz sentir a fortuna da pertença, que encerra o mistério da nossa identidade. 6. Jesus funda uma comunidade evangelizada e, por sua vez, evangelizadora, então “aqueles que acolhem com sinceridade a boa-nova, por virtude desse acolhimento e da fé compartilhada, reúnem-se, portanto, em nome de Jesus para conjuntamente buscarem o reino, para o edificarem e para o viverem. Eles constituem uma comunidade também ela evangelizadora. A ordem dada aos doze, ‘Ide, pregai a boa-nova’, continua a ser válida, se bem que de maneira diferente também para todos os cristãos. É precisamente por isso que São Pedro chama a estes últimos ‘povo de sua particular propriedade a fim de que proclameis as excelências daquele que vos chamou’; aquelas mesmas maravilhas que cada um pode alguma vez escutar na sua própria língua. 46 Os diálogos de Jesus A boa-nova do reino que vem e que já começou, de resto, é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que a receberam, aqueles que ela congrega na comunidade da salvação, podem e devem comunicá-la e difundi-la ulteriormente” (EN, 13). É que a tarefa de evangelização de todos os homens constitui a missão essencial da Igreja; uma tarefa e missão que as amplas e profundas mudanças da sociedade atual tornam cada vez mais urgentes. Evangelizar constitui, de fato, a fortuna e a vocação própria da Igreja, sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar, isso quer dizer que é para pregar e ensinar, ser o canal do dom e da graça, reconciliar os pecadores com Deus, perpetuar o sacrifício de Cristo na Santa Missa, memorial da sua Morte e Ressurreição gloriosa (EN, 14). Em nosso caso, a fortuna da nossa vocação, nossa identidade como comunidade evangelizadora, consiste em nos deixar convocar “para proclamar com autoridade a Palavra de Deus, para reunir o povo de Deus que andava disperso, para alimentar esse mesmo povo com os sinais da ação de Cristo, que são os sacramentos, para o encaminhar para a via da salvação, para o manter naquela unidade de que nós somos, em diferentes planos, instrumentos ativos e vivos, para animar constantemente esta comunidade congregada em torno de Cristo na linha da sua vocação mais íntima” (EN, 68). Isso quer dizer que a nossa missão, a que nos dá medo e nos leva a pronunciar desculpas como as dos escolhidos nas Escrituras, é evangelizar, pastorear o fiel povo de Deus. E essa missão fundamenta nossa vocação... Jesus, ao nos chamar a ela, nos fundamenta no mais fundo do nosso coração, fundamenta-nos como pastores, que é a nossa identidade. Em nossa visita aos enfermos, na administração dos sacramentos, em nosso ensinamento do catecismo, em toda a nossa atividade sacerdotal, estamos também colaborando com Cristo, 47 Mente aberta, coração que crê fundamentando corações cristãos e, por esse caminho, o Senhor conecta o nosso coração ao dele. 7. A comunidade que Jesus funda “situa o homem objetivamente em relação ao plano de Deus, à sua presença viva, à sua ação, faz achar de novo o mistério da paternidade divina, que sai ao encontro da humanidade. Em outras palavras, nossa religião instaura efetivamente uma relação autêntica e vívida com Deus”. Não se pode estar ausente desta nossa tarefa de fundamentar corações cristãos, a unção nascida do contato direto com a fidelidade do Senhor da história. Nossa Teologia deve ser piedosa se quer ser fundadora, se pretende se deixar fundamentar pelo Senhor. Piedade que não é resultado de um verniz de atitudes de reflexão ou investigação prévia. Não, a piedade a que eu me refiro é – por assim dizer – a hermenêutica fundamental da nossa teologia, do nosso ensinamento. É vida. Quando – em nossa vida cotidiana – sentimos a presença de Deus, não nos resta senão dizer “Deus está aqui”, e quando Deus está, a primeira coisa a ser feita é colocar-se de joelhos. Em seguida vem o intelecto humano para aprofundar e explicar como Deus está ali. Aquilo da fides quaerens intellectum6, ou das histórias que nos relatavam os santos estudando teologia de joelhos. Para nós vale também o juízo do Papa quando indica que “a evangelização compreende a pregação do mistério do mal e da busca ativa do bem. Pregação, igualmente, e esta se torna cada vez mais urgente, da busca em si de Deus através da oração, sobretudo da oração e da ação de graças, bem como através desse sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de Jesus Cristo; comunhão que por sua vez se expressa mediante a participação nesses outros sinais de Cristo vivente e operante na Igreja que são os sacramentos...”. Enfim, não esquecer que é aquilo ao que estamos sendo chamados a 6 Fides quaerens intellectum: “A fé que busca entender”. 48 Os diálogos de Jesus fundar e sobre o qual nos permitir ser fundamentados pelo Senhor: “a totalidade da evangelização que, à parte da pregação da mensagem, consiste em implantar a Igreja a qual não existe sem este respiro da vida sacramental culminante da Eucaristia” (EN, 28). Paulo VI, a propósito das denominadas comunidades de base, nos dá os critérios de fundação que Jesus quis para a sua Igreja. Esses critérios podem ser uma luz para nossa reflexão de hoje e o examinar da nossa consciência. A atitude fundacional básica é formar-se na Igreja. Homens radicados e fundados na Igreja, assim é que Jesus nos quer. Homens que: Ÿ buscam seu alimento na palavra de Deus e não se deixam aprisionar pela polarização política ou pelas ideologias da moda, prontas para explorar seu imenso potencial humano; Ÿ evitam a tentação sempre ameaçadora da contestação sistemática e do espírito hipercrítico, sob o pretexto de autenticidade e de espírito de colaboração; Ÿ permanecem firmemente unidos à Igreja local na qual se inserem e na Igreja universal, evitando assim o perigo – muito real – de isolarem-se em si mesmos, crer-se, depois, a única autêntica Igreja de Cristo e finalmente de condenar as outras comunidades (e homens) eclesiais; Ÿ guardam uma sincera comunhão com os pastores que o Senhor deu à Igreja e ao Magistério que o Espírito de Cristo lhes confiou; Ÿ não se creem jamais o único destinatário ou o único agente de evangelização, quer dizer, o único depositário do Evangelho; ou seja, conscientes de que a Igreja é muito mais ampla e diversificada, 49 Mente aberta, coração que crê aceitam que a Igreja se encarna em formas que não são as deles; Ÿ crescem cada dia em responsabilidade, zelo, compromisso e irradiação missionária; Ÿ se mostram universalistas e não sectários (cf. EN, 58). O Senhor que nos fundamenta nos evoca a imagem do Senhor sempre maior, do Deus semper maior. Meditemos e oremos hoje sobre esse tema de nos deixar fundar pelo Senhor e – por sua vez –, como pastores que seremos, nos ajudar a fundamentar a missão encomendada, fundar corações cristãos. Recuperemos a memória de tantos zelosos presbíteros que conhecemos e que viram o rosto de Cristo. Essa memória vai nos fortalecer o coração e irá nos defender de não nos deixarmos desviar pela diversidade de doutrinas estranhas (Hb 13,9), doutrinas estas que nada fundam, senão que são bem mais dissolventes do sólido fundamento de um coração sacerdotal; doutrinas que não alimentam o fiel povo de Deus, e com as quais adquirem contemporaneidade as reflexões do Dante: “Não disse Cristo a seu primeiro convento, vá e preguem patranhas ao mundo, senão que lhes deu a verdade da fundação, esta ressoou em suas bocas, de tal modo que ao lutar para acender a fé, do Evangelho fizeram escudo e lança”7. Por outro lado, em vez do escudo e lança, as doutrinas sedutoras e que desintegram debilitam o coração do santo fiel povo de Deus, porque “as ovelhas ignorantes vêm a pastar cheias de vento”8. 7 Non disse Cristo al primo suo convento, - Andate e predicate al mondo cience - ma diede il verace fondamento; e quel tanto sono nelle sue guance si ch’a pugnar, per acceder la fede, de l’Evangelio fero scuto e lance. (Paradiso, canto 29, 97-117). 8 Si que le pecorelle, che non sanno, toman del pasco pasciute di vento e non le scusa non veder lo danno (ibid). 50 Os diálogos de Jesus Para orar e aprofundar Devemos repetir a nós mesmos, como que cobrando forças em memória de tantos pastores que nos precederam, a exortação da carta aos Hebreus: “Desse modo, cercados como estamos de uma tal nuvem de testemunhas, desvencilhemo-nos das cadeias do pecado. Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se lhe oferecera, ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente aquele que sofreu tantas contrariedades dos pecadores, e não vos deixeis abater pelo desânimo. Ainda não tendes resistido até o sangue, na luta contra o pecado” (Hb 12,1-4). 51 A esposa do Senhor 1. Jesus funda a Igreja e a nós nos funde na Igreja. O mistério da Igreja caminha muito unido ao mistério de Maria, a mãe de Deus e a madre Igreja. Maria nos engendra e cuida de nós. A Igreja também. Maria nos faz nascer, a Igreja também. E na hora da morte o sacerdote se despede de nós em nome da Igreja para nos deixar nos braços de Maria. “Uma mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e em sua cabeça uma coroa de estrelas.” Essa é a Igreja e essa é a Virgem que nosso povo fiel venera. Por isso, ao nos referir à Igreja temos que sentir a mesma devoção que sentimos pela Virgem Maria. Santa Madre Igreja hierarchica (Exercícios Espirituais, 353) era a expressão característica a Santo Inácio. A expressão evoca três conceitos muito ligados entre si: o da santidade, o da fecundidade e o da disciplina. 2. Fomos engendrados para a santidade em um corpo santo, o de nossa santa madre Igreja. E ao nos mantermos disciplinadamente inseridos nesse corpo entra em jogo nossa vocação para “ser santos e imaculados em sua presença” e nossa fecundidade apostólica. A Igreja é santa, permanece no mundo “como um sinal, opaco e luminoso ao mesmo tempo de uma nova presença de Jesus, sacramento da sua partida e da sua permanência. Ela o prolonga e o continua” (EN, 15). Sua santidade, “a vida íntima, vida de oração, ouvir a Palavra e o ensino dos apóstolos, caridade fraterna vivida e 53 Mente aberta, coração que crê fração do pão, não adquire todo o seu sentido senão quando ela se torna testemunho, a provocar a admiração e a conversão e se desenvolve na pregação e no anúncio da boa-nova” (ibid). Sua santidade não é ingênua porque se sabe o “Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos, ela precisa ouvir, incessantemente, proclamar as grandes obras de Deus, que a converteram para o Senhor; precisa sempre ser convocada e reunida de novo por Ele” (ibid). Os santos padres expressavam esse mistério da santidade da Igreja denominando-a casta meretriz. Reflete-se sua santidade no rosto de Maria, a sem pecado, a limpa e pura; mas não esquece que congrega em seu seio os filhos de Eva, mãe dos homens pecadores. Há uma rica literatura teológica sobre a santidade, e em suas canonizações a Igreja – assistida infalivelmente pelo Espírito – coloca em jogo uma criteriologia que todos conhecemos. Em nosso jargão clerical, nós brincamos muitas vezes, reagindo diante do uso meticuloso do termo “santo”; e assim dizemos, um pouco sorridentes, “esta santa casa”, “os santos costumes”. Mas é certo também que, quando queremos dar – satisfeitos – um juízo definitivo sobre alguém, dizemos “este homem é um santo” e o fazemos como claudicando de muitos ídolos nossos e nos ajoelhando ante o mistério de Deus e de sua infinita bondade investida a um homem. Amor e devoção à Madre Igreja é amor e devoção a estes seus filhos qualificados, e temos muitos destes santos em nossa Igreja com quem cotidianamente lidamos, em nossa vida de paróquia, no confessionário, na direção espiritual. Eu me pergunto se muitas vezes a crítica amarga à Igreja, a inquietação diante de seus muitos pecados, a desesperança que se cria em nós perante ela, não será porque não nos alimentamos suficientemente desta complacência com a santidade que nos reconcilia, porque é a visita de Deus em seu corpo. 54 Os diálogos de Jesus A santidade se manifesta, em nós, através de nosso zelo evangelizador: “É preciso que o nosso zelo evangelizador brote de uma verdadeira santidade de vida, alimentada pela oração e sobretudo pelo amor à Eucaristia, e que, conforme o Concílio no-lo sugere, a pregação, por sua vez, leve o pregador a crescer em santidade” (EN, 76). É o nexo entre a santidade e a maternidade da Igreja, entre nossa santidade de homens consagrados e a fecundidade na formação de corações cristãos... E podemos aqui refletir sobre essas perguntas que Paulo VI nos propõe e de cujas respostas nós somos todos responsáveis: “O que é feito da Igreja passados (dez) anos após o final do Concílio? Acha-se ela radicada no meio do mundo e, não obstante, livre e independente para interpelar o mesmo mundo? Testemunha solidariedade para com os homens e, ao mesmo tempo, o absoluto de Deus? É ela hoje mais ardorosa quanto à contemplação e à adoração, e mais zelosa quanto à ação missionária, caritativa e libertadora? Acha-se ela cada vez mais aplicada nos esforços por procurar a recomposição da unidade plena entre os cristãos, que torna mais eficaz o testemunho comum, a fim de que o mundo creia?” (ibid). 3. Falar da santa madre Igreja evoca a fecundidade. Muitas vezes nos tornamos céticos diante da esperança de fecundidade como, em sua época, Sara sorriu diante da promessa de um filho. Outras vezes, entretanto, nos tornamos eufóricos e nos dá vontade de quantificar e planejar de tal forma essa fecundidade que reeditamos o pecado de Davi quando sua vaidade o levou a efetuar o censo do seu povo. A fecundidade do Evangelho tem outros caminhos. É como uma consciência de que o Senhor não nos abandona e cumpre sua Palavra de estar conosco até o fim do mundo. É uma fecundidade paradoxal. É ser fecundo e por sua vez, não conseguir se dar conta do feito... e isto sem 55 Mente aberta, coração que crê ser inconsciente. Recordo aqui aquela frase do Pe. Matías Crespí, infatigável missionário da Patagônia, que já em idade bem avançada dizia: “A vida passou voando”, como que dando a entender que, para ele, parecia não ter feito nada pelo Senhor. É a fecundidade apoiada em uma fé que pede constatações, mas que aceita essas constatações como não definitivas. Trata-se da constatação do “passo do Senhor” que nos consola, nos fortalece na fé e nos deixa em nossa missão de administradores para que nossa fidelidade o espere “até que ele volte”. A Igreja é mãe; engendra filhos com a força do depósito da fé. Ela “é depositária da boa-nova que deve ser anunciada. As promessas de uma nova aliança em Cristo, os ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, a palavra de vida, as fontes da graça e da benignidade divina, o caminho da salvação. “Enviada e evangelizadora, a Igreja envia também ela própria evangelizadores. É ela que coloca em seus lábios a Palavra que salva, que lhes explica a mensagem de que ela mesma é depositária, que lhes confere o mandato que ela própria recebeu e que, enfim, os envia a pregar” (EN, 15), isto é, para engendrar, para dar vida. E engendra a seus filhos na contínua fidelidade a seu Esposo, porque lhes envia “a pregar, não a si mesmos ou as suas ideias pessoais, mas sim um Evangelho do qual nem eles nem ela são senhores e proprietários absolutos, para dele disporem a seu bel-prazer, mas de que são os ministros para o transmitir com a máxima fidelidade” (ibid). Sua fidelidade ao Esposo fiel por antonomásia nos educa em nossa fecundidade fiel. Querer ser fecundos é um desejo legítimo, mas o evangelho tem suas próprias leis de legitimação para nossa atividade. É como se nos dissesse, será fecundo se... se guardar com zelo sua condição de operário, se harmonizar sua diligência com a consciência de inutilidade, se – no fundo – admitir que 56 Os diálogos de Jesus deve arar a terra, plantar a semente e se convencer de que o processo de regar e a colheita são graça e pertença do Senhor. Amar o mistério de fecundidade da Igreja como se ama o mistério de Maria virgem e mãe e à luz desse amor, amar o mistério do nosso modo serviçal inútil com a esperança de que nos dá a palavra que o Senhor pronunciará sobre nós, “servo bom e fiel”. 4. Nosso amor à Igreja é um amor de inserção em um corpo e isto exige disciplina. Poderíamos expressar isto mesmo dizendo que, de alguma maneira, responde à fórmula “caritas discreta” ou seja, “discrição”. Para um sacerdote, não ser disciplinado é ser indiscreto e a indiscrição é sempre falta de amor. O amor discreto irá nos ajudar a crescer na “consciência plena de fazer parte de uma grande comunidade que nem o espaço nem o tempo poderiam delimitar” (EN, 61). Consciência de pertença a qual nos fará compreender que a missão a que fomos enviados, a missão de evangelizar, “não é para quem quer que seja um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial. Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos catequistas ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o Evangelho, reúne a sua pequena comunidade, ou administra um sacramento, mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja e o seu gesto está certamente conexo, por relações institucionais, como também por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da graça, à atividade evangelizadora de toda a Igreja. Isso pressupõe, porém, que ele age, não por uma missão pessoal que se atribuísse a si próprio, ou por uma inspiração pessoal, mas em união com a missão da Igreja e em seu nome” (EN, 60). E vem daí a raiz da nossa disciplina, o fato de que “nenhum evangelizador é o senhor absoluto da sua ação evangelizadora, dotado de um poder discricionário para realizar segundo critérios e perspectivas individualistas tal obra, mas em comunhão com a Igreja e com os seus Pastores” (ibid). 57 Mente aberta, coração que crê Nossa adesão ao reino “não pode permanecer abstrata e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada visível numa comunidade de fiéis. Assim, aqueles cuja vida se transformou ingressam, portanto, numa comunidade que também ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de vida, é a Igreja, sacramento visível da salvação” (EN, 23); “sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de Jesus Cristo. Uma tal comunhão exprime-se, por sua vez, mediante a realização dos outros sinais de Cristo vivo e operante na Igreja, que são os sacramentos.” (EN, 28). Nossa adesão ao reino, então, há de adentrar-se ao lado de Cristo pregado na cruz, de onde nasce a sua esposa, a mãe fecunda de um corpo disciplinado ao qual se alimenta com os sacramentos. “Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização. Durante este ‘tempo da Igreja’ é ela que tem a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se realiza sem ela e, menos ainda, contra ela” (EN, 16). É uma “dicotomia absurda” pretender “amar a Cristo mas sem a Igreja, ouvir a Cristo mas não à Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja” (ibid). A disciplina não é algo decorativo nem um exercício de bons modos. Um coração indisciplinado pode chegar a configurar o “homem conturbado” de quem fala Santo Inácio, e “conturbado” são aqueles homens que não têm domínio sobre suas paixões; por isso podem semear a desunião, dividir mediante a traição para ganhar uns poucos adeptos, instaurar um estado de injustiça por uma contínua atitude farisaica no seio de uma comunidade ou de uma diocese. Com esse modo de apresentar a questão da indisciplina, não se quis exortar a um exame obsessivo e privar da presença do Senhor os nossos defeitos como pastores. Seria uma estéril introspecção. Creio que a atitude correta seria nos colocarmos em oração diante do Senhor e pedir-lhe incessantemente que ele queira pronunciar para nós a palavra eficaz que nos corrija e leve a ele: “filho, dê-me seu coração”. 58 Os diálogos de Jesus Quis falar nesta meditação do amor à santa madre Igreja hierarchica e acabamos desembocando em nossa própria responsabilidade de sermos filhos da Igreja e – por sua vez – fazer a Igreja. Nosso amor a ela deve nos levar a expressá-la diante do mundo em sua santidade, em sua cálida fecundidade e em sua disciplina, que é ser toda de Cristo e como diz o Concílio, a Dei Verbum religiose audiens et fidente proclamans9. Que Nossa Senhora, a Virgem Mãe, obtenha do Senhor para nós a graça de um amor santo, fecundo e disciplinado à Igreja. Para orar e aprofundar Para terminar, a partir do número 60 do Evangelii Nuntiandi, meditemos nosso amor e nossa pertença a nossa mãe, a Igreja, O fato de a Igreja ser enviada e mandada para a evangelização do mundo é uma observação que deveria despertar em nós uma dupla convicção. A primeira é a seguinte: evangelizar não é para quem quer que seja um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial. Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos catequistas ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o Evangelho, reúne a sua pequena comunidade, ou administra um sacramento, mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja e o seu gesto está certamente conexo por relações institucionais, como também por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da graça, à atividade evangelizadora de toda a Igreja. Isso pressupõe, porém, que ele age, não por uma missão pessoal que se atribuísse a si próprio, ou por uma inspiração pessoal, mas em união com a missão da Igreja e em nome dela. 9 Do latin: Escutar a Palavra de Deus com reverência e proclamá-la com fé. (N.T.). 59 Mente aberta, coração que crê Donde, a segunda convicção: se cada um evangeliza em nome da Igreja, que por sua vez o faz em virtude de um mandato do Senhor, nenhum evangelizador é o senhor absoluto da sua ação evangelizadora, dotado de um poder discricionário para realizar segundo critérios e perspectivas individualistas tal obra, mas em comunhão com a Igreja e com os seus Pastores. A Igreja é ela toda inteiramente evangelizadora, como frisamos acima. Ora, isso quer dizer que, para com o conjunto do mundo e para com cada parcela do mundo onde ela se encontra, a Igreja se sente responsável pela missão de difundir o Evangelho. 60