Jorge M. Bergoglio
Papa Francisco
Mente aberta,
CORAÇÃO QUE CRÊ
Prefácio
O Papa Francisco nesta obra trata primordialmente sobre a fé. Podemos considerar, dentre os livros publicados pela
Editora Ave-Maria do Santo Pontífice, como sendo o mais teológico. Bem sabemos da preocupação pastoral do nosso Papa,
visível em seus gestos e aproximação com o povo de Deus.
Neste livro, vemos claramente o equilíbrio pastoral com a reflexão embasada, sobretudo, na Sagrada Escritura.
Mente aberta, coração que crê como o próprio título
sugere é uma aproximação da razão com o sentimento. Não
se pode, simplesmente, racionalizar a fé, nem tão pouco crer
de forma ingênua e imatura. Mente aberta: para aceitar os indícios de que nossa vida vai muito além da biologia. Coração
que crê: adesão de forma irrestrita àquilo que dizemos professar. Ou seja, a fé deve ser abraçada na totalidade do que
somos como seres humanos.
O Santo Padre no final de cada tema refletido propõe
uma oração ou reflexão, e nos convida a viver espiritualmente
cada uma das verdades que a nossa fé cristã nos leva a assumir – e como consequência, transforma nossas vidas, em
gesto concreto o nosso Credo.
“Jesus nos pede que a luz da nossa verdade, quer dizer
nosso testemunho dela, ilumine aos homens a fim de que
– vendo nossas boas obras – glorifiquem ao Pai do Céu
(Mt 5,16ss)”
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Mente aberta, coração que crê
Ao ler esse livro vamos ser iluminados com interpretações muito próprias do Papa Francisco com respeito aos
grandes temas, tanto do Antigo, como do Novo Testamento.
Embora a centralidade de toda reflexão seja a Pessoa de Cristo
– Deus encarnado, símbolo máximo do amor incondicional.
“A carne é chave de leitura de cada vida e a carne de
Cristo é a chave de leitura de toda história de salvação. Simeão
vê a glória de Deus na carne do Menino e já não necessita ver
mais neste mundo, pode ir em paz. É um ‘condutor-conduzido’. Assim o apresenta a liturgia, Senex puerum portabat, puer
autem senem regebat. O ancião levava o menino, mas era o
menino quem guiava o ancião” (p. 258).
Pe. Luís Erlin, CMF
Editor
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Apresentação
Quando o editor me propôs a fazer o prólogo desta obra
do Cardeal Jorge Bergoglio, eu lhe agradeci diante do que essa
oportunidade significava. Em primeiro lugar, pela proximidade
e reconhecimento do Cardeal, segundo, pelo seu gesto em relação a mim. Contudo, tratei de explicar-lhe que estava muito
ocupado naquele momento e que demoraria para escrevê-lo.
Ele insistiu, terminei aceitando e não me arrependo.
Ao iniciar a leitura, percebi que se tratava de uma obra
que, percorrendo um longo caminho de reflexão, pregações e
retiros espirituais agora se apresentava como o fruto dessas experiências, a fim de propô-las como um serviço no seguimento de Jesus Cristo. Destaco o aspecto testemunhal do livro. Ele
nos fala da transmissão de uma experiência vivida de vários
anos, que alvorecem da vida e da tarefa de um sacerdote, formador e pastor. É possível notar no contexto o retiro espiritual,
ou melhor, vários deles, nos quais se foram tecendo e dos
quais nasceram os textos que formam esta obra. A diversidade
de tempos e circunstâncias não remove a unidade; ela não
provém somente do autor, mas também, e, sobretudo, da pessoa de Jesus Cristo, que é o centro em quem se contempla a
fonte da vida e da espiritualidade cristã. É para ser sublinhada
na obra a preocupação que manifesta ao se apresentar a vida
cristã como uma realidade orientada para melhorar a vida em
suas relações com Deus, o mundo e os homens. Valorizo essa
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Mente aberta, coração que crê
aterrissagem na objetividade, que tanto nos serve para orientar
condutas e caminhos da espiritualidade, como de base para
um sincero exame de consciência.
Outra característica que considero importante nesta
obra é assinalar a familiaridade com os textos bíblicos, o que
denota uma sólida teologia bíblica vista sob a ótica, diria “sapiencial”, que a enriquece na devida ordem da sua aplicação
na vida. Não estamos diante de um estudo exegético, embora
seja possível perceber o conhecimento e rigor teológico no
manejo dos textos. Os textos bíblicos, em especial os ensinamentos de Jesus, aparecem como algo bem próximo ao humano, como algo, diria eu, que pertence ao homem e que talvez
o estivesse esperando, o que confere a este texto atualidade e
um alcance maior e de maior respeito ao possível leitor que
o descubra. Estamos diante de uma obra que nos apresenta a
figura e as palavras de Jesus como um caminho que é humano e divino, quer dizer, um divino que não se distancia do ser
humano, e sim o implica, o libera e lhe dá plenitude, e mais
ainda, poderíamos dizer que o humano se mostra necessitado
do divino para sua plena realização.
Em sua leitura, se percebe, além do mais, o conhecimento que o autor tem do uso da sua capacidade linguística e
do poder cativante e revelador da palavra. Eu acredito que isso
se deva, pelo menos em parte, ao fato de que, em sua juventude, o autor tenha sido professor de literatura. Eu me recordo,
e isso é testemunhal, de que uma vez eu lhe perguntei sobre
suas férias, o que fazia no mês de janeiro em Buenos Aires,
onde costumava ir. Lembro-me de que ele respondeu que ficava na cúria episcopal e que descansava rezando e lendo (e
relendo) os clássicos. Sua resposta me surpreendeu, mas me
serviu como sinalizador, e tratei de colocar em prática essa
indicação. Quanto temos perdido culturalmente em romper
com os clássicos. Essa pequena confidência, que me permito
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Apresentação
recordar, explica seu bom manejo do idioma, bem como a
beleza de sua prosa. A estética faz parte da fé cristã, que tem
sua fonte e inspiração em Deus.
Levando-se em consideração de que se trata de um livro para ser trabalhado como da leitura meditativa e orientado
ao crescimento espiritual, é de se valorizar que, junto à abundância dos textos bíblicos e citações do magistério, se incluam
cânticos e poesias tomadas, tanto da liturgia como da tradição
religiosa da Igreja. Isso lhe agrega uma nota de beleza e um
colorido especial, que ajuda a criar um clima singular de oração. Considero pedagógico e muito útil, além disso, que ao
concluir cada tema há uma proposta de um momento de reflexão, “Para orar e aprofundar”. Como podemos ver, estamos
diante de uma obra com um conteúdo profundo e sempre
atual, contudo de simples e agradável leitura, que procura envolver o leitor em um caminho de reflexão espiritual orientado
a elevar sua vida.
A obra se divide em quatro partes que guardam, por
si mesmas, uma unidade afim, como já foi assinalado anteriormente, mas que cada uma delas tem uma autonomia
que nos permite nos aproximar de sua própria identidade e
riqueza. Na divisão da obra se deixa transparecer, embora
o autor talvez não tenha buscado intencionalmente, o esquema, não tomado como em absoluto materialmente, do
Catecismo da Igreja Católica. Começa com o encontro com
Jesus Cristo para concluir, em sua última parte, com a oração
vista desde a experiência de vários testemunhos retirados das
Sagradas Escrituras. A fé e a oração são os dois eixos que
dão a unidade e consistência para esta obra. Como veremos,
por outro lado, este caminho de renovação espiritual não
nos encerra em uma atividade que poderia fazer com que
nos isolássemos, mas, a partir da mesma fé em Deus que
temos conhecida em Jesus Cristo, nos abre para uma vida de
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Mente aberta, coração que crê
caridade em nossas relações e de dinamismo missionário na
vida da Igreja.
A primeira parte nos apresenta o encontro com Jesus
através de diversos diálogos que nos são oferecidos nos
Evangelhos. Nela podemos apreciar a rica tradição “inaciana” do autor para recriar as circunstâncias e o lugar em que
Jesus se encontra com as diferentes pessoas, bem como a
sua capacidade para mostrar o valor e o significado das palavras que Ele utiliza. Desde o encontro com Jesus, começam a iluminar-se as diversas situações da vida do cristão,
que vão desde o desfrute do encontro com Ele – que define
uma vocação – até a cruz, incluindo a dor e a experiência
do pecado. Isso marca um profundo e agradável sentido da
esperança cristã que tem, em Cristo morto e ressuscitado, a
vida de todo homem. Nada resta fora da presença e da palavra de Jesus.
A vida e a palavra de Jesus nos revelam em toda sua
plenitude a história da salvação, como o marco atual em que
se desenvolve nossa vida. Essa temática ocupará a segunda e
a terceira partes, que nos introduzem na epifania da revelação
como história de amor, de vida e de missão o caminho providencial até a manifestação final. Jesus Cristo nos apresenta
neste ponto fundamental a presença da Igreja como a “epifania da Esposa”. Neste tempo, a Igreja irá cobrar um particular
relevo sobre o tema da missão, expressada pela revelação do
amor estruturado na salvação do Pai. Eu considero a segunda
parte como uma grande força de estímulo e mobilização para
a vida da Igreja. Recuperar o significado evangelizador da fé,
no marco da comunhão da Igreja, é um chamado ao desafio eclesiástico para definir com urgência um compromisso
apostólico.
A terceira parte nos fala da Igreja em sua vida concreta, com suas grandezas, debilidades e pequenezes. Creio
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Apresentação
que foi muito oportuno e sábio fazê-lo desde a própria palavra de Deus, tomando o Apocalipse, nas cartas dirigidas
às sete Igrejas (Ap 1-3). Ao valer-se de textos para estudo e
meditação, fáceis de interpretar, de figuras como Romano
Guardini e Hans Urs Von Baltasar, vemos que são mostras
exemplificadas da seriedade tomada na reflexão. Pouco há
para adicionar neste breve prólogo sobre a terceira parte; somente me resta, neste momento, convidá-los a uma leitura
pausada que nos permita descobrir e amar esta Igreja, em
sua roupagem por tantas vezes delicada que nos desconcerta. Contudo, é a única e maravilhosa Esposa do Cordeiro. A
única coisa que eu poderia dizer é que, para mim, tem me
feito muito bem.
A última parte está dedicada à oração, vista, como podemos dizer, da nossa realidade concreta. Não é de se estranhar, por exemplo, que o primeiro tema seja, “Nossa carne
em oração”. Os diversos momentos pelos quais passa nossa
oração, aproximação, distanciamento, abandono..., serão considerados sob o ponto de vista de diversos testemunhos bíblicos. Assim sendo, iremos nos encontrar com Abraão, Moisés,
Davi, Jó, Judite..., que nos acompanharão com sua experiência religiosa. Um tema que volta a aparecer nesta parte é sobre a oração e que nos faz recordar aqueles primeiros encontros com Jesus Cristo: o “deixar-se conduzir”. Há ali como
que uma necessária passividade ativa, o sinal da Presença do
Espírito. Conclui finalmente, com uma referência a Jesus Cristo
Sacerdote em sua oração ao Pai, que Ele é fonte e modelo de
toda oração cristã.
Creio que a obra que tem em suas mãos, e que tive o
agradável prazer de fazer o prólogo, é fruto de um longo caminho de reflexão e oração que necessita, por isso mesmo, de
uma leitura pausada; dar-nos tempo ao tempo, que é o primeiro requisito para avançar em algo bem importante. Estamos
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Mente aberta, coração que crê
acostumados a ler rapidamente para nos informar, porém este
livro tem outra pretensão. Agradeço ao autor que tenha decidido recolher estes diversos escritos para apresentá-los, na
unidade de uma obra, como um caminho sempre atual que
nos ajuda e enriquece.
Monsenhor José Maria Arancedo
Arcebispo de Santa Fé de Vera Cruz
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PRIMEIRA PARTE
Os diálogos de Jesus
Os diálogos de Jesus
1. O gozo apostólico se alimenta na contemplação de
Jesus Cristo: como andava, como pregava, como curava, como
olhava... O coração do sacerdote deve beber dessa contemplação e ali resolver o principal problema de sua vida; o de
sua amizade com Jesus Cristo. Proponho agora contemplar
alguns dos diálogos de Jesus: quando Ele fala com quem quer
lhe impor condições, com aqueles que pretendem lhe armar
alguma armadilha e com aqueles que têm o coração aberto
para a esperança da salvação.
2. Os diálogos condicionados. Tanto os três casos
de Lucas 9,57-62, como o de Nicodemos (Jo 3,1-21) e o
da Samaritana (Jo 4,1-41) condicionam sua aproximação a
Jesus. Os três primeiros buscam colocar um limite à sua
entrega, à riqueza, aos amigos, ao pai. A Samaritana procura desviar o diálogo porque não quer tocar no essencial,
prefere falar de teologia em vez de responsabilizar-se por
seus maridos. Nicodemos condiciona sua aproximação a
Jesus à segurança, ele vai à noite. E Jesus, como não o vê
disposto, deixa-o enredado em suas próprias cismas e dúvidas, porque para Ele a ruminação era o refúgio egoísta para
não ser leal.
3. Os diálogos ardilosos. Aqui se busca “tentar” ao
Senhor para encontrar uma fissura, em sua coerência, que
possibilite conceber a piedade como um truque e então se
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Mente aberta, coração que crê
trapaceia a fé pela segurança, a esperança pela posse, o amor
pelo egoísmo.
4. Na cena da mulher adúltera (Jo 8,1-11), se Jesus diz
“sim”, apaga-se sua misericórdia, se diz “não”, vai contra a
lei. Nesses diálogos enganosos, Jesus costuma fazer duas
coisas, dizer uma palavra, que é da doutrina, à pessoa que
quer enganá-lo e outra palavra à outra vítima (neste caso a
adúltera) ou à situação usada para enganar. Aqui, aos dois
enganadores, Ele lhes devolve a condenação, indicando-lhes que devem aplicar aquilo a si mesmos; e à mulher Ele
lhe devolve sua vida, assinalando-lhe que se responsabilize
por ela.
5. Neste mesmo sentido é possível meditar sobre o aspecto ardiloso do tributo a César, que entranha em si a tentação saduceia de colaboracionismo (Mt 22,15-22) e a da declaração sobre a própria autoridade (Lc 20,1-8), a qual Jesus
responde exortando-os a assumir a “autoridade” que Deus
mandou e que eles não aceitaram.
6. Há um aspecto enganoso, também saduceu, em cuja
resposta o Senhor levanta o olhar em direção aos horizontes
escatológicos. Quando a dureza do coração ardiloso é irreversível, então há um pecado de morte (1Jo 5,16), peca-se contra
o Espírito Santo (Mt 12,32), confundem-se os espíritos. A armadilha é tão sórdida que o Senhor não entra na dialética de
uma resposta, simplesmente volta à pureza de sua glória e,
deste ponto, responde (Lucas 20,27-40).
7. A raiz de toda armadilha entranha sempre a vaidade,
posse, sensualidade, orgulho. E o mesmo Senhor nos ensinou
a responder a essas citações ardilosas com a história em regozijo do nosso povo fiel: Mateus 4,11-11.
8. Os diálogos leais. Finalmente, há um terceiro grupo de diálogos de Jesus que poderíamos chamar de diálogos
leais. Acontecem naqueles que chegam sem dualidade, que
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Os diálogos de Jesus
são inteiros, com o coração aberto à manifestação de Deus.
Tudo é posto sobre a mesa. Quando alguém se aproxima dessa maneira, o coração de Cristo se enche de gozo (Lc 10,21).
Para orar e aprofundar
Com o coração disposto e com o olhar fixo no encontro com o Senhor, meditemos sobre o diálogo do cego de
nascença com o Senhor (João 9,1-41).
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O encontro com Jesus
1. Entre o sacerdote e o funcionário religioso há um
abismo, são qualitativamente distintos. O doloroso é que um
sacerdote pode ir se metamorfoseando, pouco a pouco, em
um funcionário religioso. Então o sacerdócio deixa de ser a
ponte, “o pontífice”, para terminar sendo aquilo que é a função de cumprir. Deixa de ser mediador para converter-se em
intermediário. Ninguém escolhe ser sacerdote, Jesus Cristo é
quem elege quem será o sacerdote. Buscar o Senhor, deixar-se
buscar pelo Senhor; encontrar ao Senhor, deixar-se encontrar
pelo Senhor... Tudo isso está junto, é inseparável. João Paulo
II, em seu livro Dom e Mistério, página 97, fala do sacerdote
como o homem em contato com Deus e o apresenta neste
movimento duplo de busca do encontro com Deus (ascenso)
e recepção da santidade de Deus (descenso). “É a santidade
do mistério pascal”. Quando o sacerdote se afasta desse movimento duplo, perde o rumo. A santidade não é uma coleção
de virtudes, essa concepção da santidade nos prejudica muito
e afoga nosso coração – em última instância, nos plasma em
fariseus. A santidade é “caminhar na presença de Deus e ser
perfeito”, a santidade é viver encontrando-se com Jesus Cristo.
2. Eu proponho como início desta oração o evento da
apresentação de Jesus no Templo. A liturgia diz que neste Mistério
“o Senhor sai ao encontro de seu povo”. Ali encontramos as promessas e a realidade, os anciãos e os jovens, a Lei e o Espírito, o
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Mente aberta, coração que crê
profeta e o fiel povo de Deus. É o dia de “candeia”, a pequena luz
que irá crescendo até fazer-se círio na vigília pascal.
3. O evangelho narra muitas cenas de busca e encontro
com Jesus, e em cada uma delas vemos um traço que pode nos
ajudar na oração. O encontro com Jesus sempre leva a um chamado, grande ou pequeno, mas a um chamado (Mt 4; 19; 9,9;
10,1-4); esse encontro se dá a qualquer hora e é pura gratuidade
(Mt 20,5-6); um encontro que precisa sair à busca dele (Mt 8,2-3;
9,9) e às vezes com uma constância heroica (Mt 15,21) ou com
gritos (Mt 8,25) e nessa busca pode-se viver a dor da perplexidade e a dúvida (Lc 7,18-24; Mt 11,2-7). O encontro com Jesus Cristo
nos conduz mais e mais em direção à humildade (Lc 5,9), ou às
vezes pode ser rejeitado ou mais ou menos aceito (Mt 13,1-23),
e, se é rejeitado, produz dor no coração de Cristo (Mt 23,37-39;
Mt 11,20-30). Não é uma busca e um encontro cético, pelagiano,
senão que supõe o pecado e o arrependimento (Mt 21,28-32).
O encontro com Jesus Cristo acontece na vida diária, na procura
direta com a oração, na sábia leitura dos sinais dos tempos (Mt
24,32; Lc 21,29) e no irmão (Mt 25,31-46; Lc 10,25-37).
4. O mesmo Senhor nos recomenda a vigilância para
este encontro. Ele me procura. Não procura à deriva e sim a
cada um e segundo o coração de cada um. A vigilância é o
esforço para poder receber a sabedoria de saber discerni-lo e
encontrá-lo. Às vezes o Senhor passa ao nosso lado e não o
vemos, ou de tanto conhecê-lo, não o reconhecemos. Nossa
vigilância é oração que nos faça retê-lo quando ele passar
como se quisesse seguir caminho (Mc 6,48; Lc 24,28).
Para orar e aprofundar
Podemos terminar a oração com um gesto, o gesto desses homens que – depois de procurá-lo durante muito tempo e
discernindo os sinais –, quando o viram, lhe renderam homenagem (Mt 2,11).
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O gozo I
“Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria
seja completa” (1Jo 1,4). “Disse-vos essas coisas para que
a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15,11). “Dirijo-te esta oração enquanto estou no
mundo para que eles tenham a plenitude da minha alegria”
(Jo 17,13).
1. Trata-se do gozo provocado pelo dom de Deus (Lc
1,14; Rm 15,13), pela visita do próprio Deus em si (Lc 1,4144). O gozo que nos envolve quando somos capazes de compreender toda a história da Salvação (Lc 1,47) ou de prevê-la
na fé (Jo 8,56; 1Pd 4,13). O gozo, fruto da presença do Espírito
Santo (Lc 10,21). Esse gozo que nos fortalece nos momentos
de provação (Lc 6,23; Hb 10,34; Rm 12,12; 1Pd 1,6; 2Cor 6,12)
e nos acompanha, como aos apóstolos, em nosso trabalho
evangelizador (Lc 24,52; At 13,52) porque é sinal da presença cotidiana do Senhor (Mt 28,20). Um gozo essencialmente
apostólico até o ponto de consolidar a paternidade e a filiação
apostólicas (Fl 1,25; 4,1; Fl 7; 1Jó 1,4; 2Jo 12). E que nos convida para que o nosso gozo seja pleno.
2. Nosso gozo em Deus é missionário, é fervor,
“‘Achamos o Messias’... levou-o a Jesus... ‘vem e vê’” (Jo 1,4146). “... vai aos meus irmãos” (Jo 20,17).
3. Este gozo é consolação. É o sinal da harmonia e unidade que se realiza no amor, é o sinal de unidade do corpo da
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Mente aberta, coração que crê
Igreja, sinal de edificação. Temos que ser fiéis ao gozo e não
“gozá-lo” como um bem próprio. O gozo é para maravilhar-se
e comunicá-lo. O gozo nos abre para a liberdade dos filhos
de Deus, porque – ao nos colocarmos em Deus – nos separa
das coisas e situações que estão muito próximas de nós e nos
aprisionam, tiram-nos a liberdade. Por ele o coração gozoso
sempre vai crescendo em liberdade.
4. O gozo, sinal da presença de Cristo, configura o
estado habitual de um homem ou mulher consagrados. Daí
nasce a preocupação em buscar a consolação, não por ela
mesma, e sim pelo sinal da presença do Senhor. Buscá-la
em qualquer de seus modos, cito aqui Santo Inácio: “chamo
consolação quando na alma é causada alguma moção interior com a qual a alma vem e se inflama em amor ao seu
Criador e Senhor e, consequentemente, quando nenhuma
coisa criada sobre a face da terra pode amar em si mesma,
senão no Criador de todas elas. Igualmente, quando lança lágrimas motivadas pelo amor de seu Senhor, quer seja
pela dor de seus pecados, quer pela paixão de Cristo Nosso
Senhor ou de outras coisas diretamente ordenadas em seu
serviço e louvor; finalmente chamo consolação a todo aumento de esperança, fé e caridade, bem como toda alegria
interna que chama e atrai para as coisas celestes e para a salvação da sua própria pessoa, aquietando-a e pacificando-a
em seu Criador e Senhor” (Exercícios Espirituais, 316).
O grau fundamental do gozo é, portanto, a profunda
paz, o movimento imperturbável no Espírito que permanece
ainda nos momentos mais dolorosos da cruz. Um autor espiritual do século IV disse mais ou menos o mesmo ao descrever
como somos guiados por Cristo de diversas maneiras: “Às vezes choram e se lamentam pelo gênero humano e rogam por
ele com lágrimas e pranto, acesos de amor espiritual. Outras
vezes o Espírito Santo os inflama com uma alegria e um amor
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Os diálogos de Jesus
tão grandes que, se pudessem, abraçariam em seu coração
todos os homens, sem distinção de bons ou maus. Outras vezes experimentam um sentimento de humildade que os faz
encolher por debaixo de todos os demais homens, tornando-se mais hediondos e desprezíveis. Outras vezes o Espírito
lhes comunica um gozo inefável. Outras vezes são como um
homem corajoso que, equipado com toda régia armadura e
lançando-se ao combate, luta com valentia contra seus inimigos e os vence. Outras vezes a alma descansa em um grande
silêncio, tranquilidade e paz e com um sossego indescritível.
Outras vezes o Espírito lhe outorga inteligência, uma sabedoria
e um conhecimento inefáveis, superiores a tudo o que possa
falar ou expressar-se. Outras vezes não experimenta nada em
especial. Deste modo, a alma é conduzida pela graça através
de vários e diversos estados, segundo a vontade de Deus que
assim a favorece” (Patrologia, séries gregas, 34). Como se pode
ver, é a mesma Unção do Espírito Santo que permanece, nessa
unção feita nas suas raízes do gozo, e por ele se expressa em
tão diversos estados..., mas o afinco nessa unção permanece
imperturbável, é o que chamaríamos de paz de fundo.
5. Somos convidados a pedir ao Espírito Santo o dom
da alegria e do gozo. O contrário é a tristeza. Paulo VI nos
diz que “o frio e as trevas estão em primeiro lugar no coração
do homem que sente a tristeza” [Gaudet in Domino (GD), I].
A tristeza é a magia de Satanás, que endurece nosso coração
e nos amarga. Quando a amargura entra no coração de um
homem ou mulher consagrados, é bom recordar o que o mesmo Paulo VI advertia: “Que nossos filhos de certos grupos
recusem os excessos de uma crítica sistemática e aniquiladora.
Sem necessidade de sair de uma visão realista, que as comunidades cristãs se convertam em lugares de alegria onde todos
os seus membros se exercitem resolutamente no discernimento dos aspectos positivos das pessoas e dos acontecimentos.
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Mente aberta, coração que crê
A caridade não se goza na injustiça, e sim se alegra com a
verdade. Desculpa tudo. Crê sempre. Espera sempre, suporta
tudo” (GD, Conclusão).
Contudo, o mais grave do espírito em tristeza é que leva
em si o pecado contra a esperança. Que belas palavras disse
Bernanos em seu Diário de um padre rural: “O pecado contra
a esperança... O mais mortal de todos e, sem dúvida, o melhor
acolhido, o mais lisonjeado. É preciso muito tempo para reconhecê-lo e é tão doce a tristeza que o anuncia e o precede! É o
mais apreciado dos elixires do demônio, sua ambrosia”.
6. “A alegria propriamente espiritual, que é fruto do
Espírito Santo” – diz em contrapartida Paulo VI – “consiste
em que o espírito humano encontre repouso e uma satisfação
íntima na posse do Deus Trino, conhecido pela fé e amado
com a caridade que provém dele. Essa alegria se caracteriza,
portanto, em todas as virtudes cristãs.”
As pequenas alegrias humanas que se constituem em
nossa vida como semente de uma realidade mais alta, tornam-se transfiguradas. Essa alegria espiritual, aqui abaixo, incluirá
sempre, em alguma medida, a dolorosa prova da mulher em
transe ao dar à luz e certo abandono aparente, parecido ao do
órfão, lágrimas e gemidos, enquanto que o mundo fará alarde
de satisfação, falsa, na verdade. Mas a tristeza dos discípulos,
que é segundo Deus e não segundo o mundo, “se trocará em
breve por uma alegria espiritual que ninguém poderá arrebatar-lhes” (GD, III).
7. Ele nos convida a pedir ao Espírito Santo o dom do
gozo e a alegria: ela “é o fruto do Espírito Santo. Este Espírito
que habita em plenitude na pessoa de Jesus, Ele o faz durante
a sua vida terrestre tão atento às alegrias da vida cotidiana,
tão delicado e persuasivo para direcionar os pecadores pelo
caminho de uma nova juventude de coração e de espírito!
É o mesmo Espírito que animava a Virgem Maria e cada um
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Os diálogos de Jesus
dos santos. É este mesmo Espírito o que segue dando ainda a
tantos cristãos a alegria de viver cada dia a sua vocação particular na paz e na esperança que ultrapassa os fracassos e os
sofrimentos” (GD, Conclusão).
8. O gozo é o fervor. Paulo VI concluía seu Evangelii
Nuntiandi falando-nos sobre esse fervor: “De tais obstáculos, que são também dos nossos tempos, limitar-nos-emos a
assinalar a falta de fervor, tanto mais grave por isso mesmo
que provém de dentro, do interior de quem a experimenta.
Essa falta de fervor manifesta-se no cansaço e na desilusão,
no acomodamento e no desinteresse e, sobretudo, na falta
de alegria e de esperança em numerosos evangelizadores. E
assim, nós exortamos todos aqueles que, por qualquer título
e em alguma escala, têm a tarefa de evangelizar, de alimentarem sempre o fervor espiritual. [...] Conservemos o fervor do
espírito, portanto; conservemos a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com
lágrimas! [...] Que isto constitua, ainda, a grande alegria das
nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo
que procura, ora na angústia, ora com esperança, possa receber a boa-nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e
desanimados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros
do Evangelho cuja vida irradia o fervor de quem recebeu... a
alegria de Cristo...” (n. 80).
Para orar e aprofundar
O gozo se alimenta da contemplação de Jesus Cristo,
como andava, como pregava, como curava, como olhava...
O sacerdote, o homem e a mulher consagrados têm que resolver – em sua vida – o problema fundamental de sua amizade com Jesus Cristo e resolver sua vida nessa amizade com
Ele. A amizade nasce, cresce, se fortalece na convivência,
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Mente aberta, coração que crê
daí a necessidade, finalmente, da contemplação dele. Eu me
refiro, neste caso, à necessidade existencial da própria vida
consagrada.
Eu proponho que dediquem o tempo de oração para
contemplar o Senhor. Escolham as passagens de sua vida
apostólica que mais lhe agradem e fiquem observando, olhando, escutando, caminhando com Ele.
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O gozo II
1. Gostaria de seguir refletindo sobre o nosso gozo ministerial. O verdadeiro gozo se forja no trabalho, na cruz. O
gozo que não foi “provado” não passa de um simples entusiasmo, muitas vezes indiscreto, que não tem como comprometer-se com a fecundidade. Jesus nos prepara para essa prova
e nos adverte, a fim de que estejamos prontos para resistir:
“Assim também vós, sem dúvida, agora estais tristes, mas hei
de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém
vos tirará a vossa alegria” (Jo 16,22). Santo Inácio também
exorta a vencer a provação, a tentação e a desolação com
o trabalho constante e a esperança da futura consolação, do
futuro gozo: “O que está em desolação trabalhe para estar em
paciência, que é contrária as vexações que vêm, e pense que
será brevemente consolado, colocando diligências contra a tal
desolação...” (Exercícios Espirituais, 321). Na desolação e na
provação, parece que o Senhor se distancia, que dorme (tal
como o leme da embarcação durante a tempestade). Outras
vezes tem sido a nossa atitude mundana ou pecaminosa que
o distancia de nosso coração. Ele está ali, mas não o vemos ou
não queremos vê-lo.
2. Uma situação que pode acontecer no ministério é
o cansaço pastoral. Costuma ser um efeito (e sintoma) de inconstância, da indolência espiritual. Fazer justiça ao povo fiel
de Deus supõe ser muito constante no pastoreio, na resposta
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Mente aberta, coração que crê
por sua vez cansativa dos pedidos para serem ungidos (tocados) por Deus em qualquer momento: sacramentos, bênçãos,
palavra... É curioso, mas os fiéis cansam porque pedem coisas
concretas. Em contrapartida, podem nos seduzir os trabalhos
que nos permitem um refúgio na fantasia. Dentro de nossa
mente, somos reis e senhores a quem se dedica exclusivamente
o cultivo da fantasia e nunca se chegará a sentir a urgência do
concreto. Contudo, o trabalho pastoral em nossas paróquias
é outra coisa. Supõe-se que tenha que ter reflexão, trabalho
intelectual e oração, mas fundamentalmente a maior parte do
tempo estará se fazendo “obras de caridade”.
Caridade para atender com ânimo compartilhador às
pessoas que se aproximam para pedir as mais diversas coisas: um
irá perguntar se pode mudar uma promessa, outro pedirá um certificado para batizar em Luján1; outro uma ajuda de Cáritas;
outro uma missa para algum falecido em um determinado dia
e não em outro. As pessoas são implacáveis com as coisas
que se referem à religião. Assim como geralmente é fiel no
cumprimento de suas promessas, também exige fidelidade na
atenção pastoral aos encargos naturais que dispensa. O sacerdote não pertence a si mesmo. Poderá, às vezes, refugiar-se em outras coisas, contudo, todas essas “outras coisas” se
“chocam” diante de uma mãe de família que lhe faz caminhar
várias quadras para abençoar, benzer a sua casa. A constância
apostólica é criadora de instituições. Penso que as mãos de
um sacerdote, mais do que expressar gestos rotineiros, devem
tremer de emoção ao administrar o batismo, porque estão fazendo gestos contundentes que fazem instituição.
3. Gostaria de deter-me um pouco mais na descrição
desse vício antiapostólico, a apatia, que rói como uma traça
a constância em nossa missão de pastores do povo fiel. O
típico de toda apatia é algo assim como uma utopia; não nos
1 Cidade argentina, localizada na província de Buenos Aires.
30
Os diálogos de Jesus
responsabilizarmos em relação ao tempo, lugares e pessoas
em que estão molduradas nossa ação pastoral. Algum filósofo diria que pretende ser atemporal, espacial. Aparece sob
diversas manifestações em nossa vida de pastores e é preciso
estar alerta para poder discerni-la sob as roupagens com que
se disfarça.
Às vezes é a paralisia, em que não se consegue aceitar
e administrar o ritmo da vida. Outras vezes é o padre saltimbanco que, em seu vai e vem, mostra sua incapacidade
de estar em si fundamentado em Deus e na história concreta
com a qual está irmanado. Em algumas ocasiões se apresenta
na elaboração de grandes planos sem atender às mediações
concretas que irão realizar; ou – ao contrário – enredada na
pequenez de cada momento sem transcendê-las para o plano
de Deus. É bom recordar o epitáfio de Santo Inácio: Non coerceri a máximo, contineri tamen a mínimo, divinum est2.
Temos visto muitos tentados pela preguiça, vimos os
que sonham com projetos irrealizáveis acabando não realizando o que muito bem poderiam fazer. Os que não aceitam
a evolução dos processos e querem a geração espontânea.
Os que acreditam que tudo já foi dito e que não se deve andar mais além. Os que fecharam seus corações, como os de
Emaús, aos novos “passos do Senhor”. Os que não sabem esperar e por isso são agentes de desintegração por estarem fechados à esperança. A preguiça é desintegração porque o que
congrega é a vida... e estes não aceitam a vida.
4. É bom reconhecer que a preguiça é uma realidade que muito nos visita, uma ameaça à nossa vida cotidiana como pastores. Humildemente saber que existe em nós
e que devemos nos alimentar com a palavra de Deus, que
nos dá força para seguir adiante, aguardando o gozo este,
somente vem através do Senhor, que nos encontra vigilantes
2 Não abater-se em relação ao maior e, por sua vez, prestar atenção ao pequeno é divino.
31
Mente aberta, coração que crê
esperando-o no momento, nos tantos que “a cada momento”
chegam à vida ministerial. Somente o operário que soube renunciar à vontade imperfeita, à preguiça e à inconstância para
poder dedicar-se todo dia e todos os dias ao serviço pastoral,
somente ele entenderá com o coração o preço do resgate de
Cristo, e – talvez sem explicitá-lo – suas mãos laboriosas farão
crescer a unidade da Igreja, a consonância com o bispo, essa
participação com Deus nascida do pertencer à santa madre
Igreja, que nos configura como filhos do Pai, irmãos entre nós
e pais do fiel povo de Deus. Somente o trabalhador incansável, o que tem a paciência, a constância e a resistência (la
hypomoné) sabe como conservar a “imaculada unidade” da
Igreja (como denominava Santo Inácio de Antioquia em sua
carta aos Efésios 2,2). E isso se faz “com o olhar fixo no autor
e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se lhe
oferecera, ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono
de Deus” (Hb 12,1-2).
Para orar e aprofundar
Devemos nos deter por um momento e revisarmos em
nossa vida sob que roupagens se veste nossa preguiça. Em
que situações da minha vida aparece a tentação desse cansaço e falta de constância que acaba nos paralisando?
32
Nossa fé
“Porque tudo o que nasceu de Deus vence o mundo.
E esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1Jo 5,4).
Hoje, mais do que nunca, as perguntas que nos fazemos
sobre nossa eficácia apostólica se tornam difíceis e contêm
o perigo de nos enredarmos nos mesmos enfoques que nos
levam a buscar nossa fidelidade. Esse assunto é tão importante que não podemos permitir qualquer tipo de improviso.
E o mesmo acontece com as diversas opções apostólicas que
teremos que tomar em nossa ação pastoral. Quando Paulo
VI nos falava do esforço orientado para anunciar o evangelho aos homens do nosso tempo, nos assinalava uma das
nossas realidades mais notórias: “animados pela esperança
mas ao mesmo tempo torturados muitas vezes pelo medo e
pela angústia” [Evangelii Nuntiandi (EN), 1]. Esperanças e temores se entrelaçam, inclusive em nossa vida apostólica, nos
momentos em que temos que decidir por modalidades de
nosso trabalho. Não podemos nos arriscar em decidir sem
discernimento sobre esses temores e esperanças, porque o
que nos é pedido é nada menos que “nestes tempos de incerteza e de desorientação, eles a desempenhem cada vez
com mais amor, zelo e alegria” (EN, 1), e isso não se improvisa. Para nós, homens da Igreja, esse esclarecimento transcende qualitativamente toda visão das ciências positivistas,
apelando para uma visão original, a mesma originalidade do
33
Mente aberta, coração que crê
Evangelho. Ao nos encontrarmos com essa força, reencontraremos e consolaremos naquela vossa e minha fé que nos
é comum (Rm 1,12), para regar nosso coração de apóstolo nela, precisamente para recuperar a coerência de nossa
missão, a coesão como corpo apostólico, a consonância de
nosso sentir e nosso fazer.
1. Encontrarmo-nos com nossa fé, com a fé de nossos
pais, que é em si mesma libertadora sem necessidade de acrescentar-lhe nenhum complemento, nenhum qualificativo. Essa
fé que nos faz justos ante o Pai que nos criou, ante o Filho que
nos redimiu e invocou para ser seguido, ante o Espírito que atua
diretamente em nossos corações. Essa fé que – na hora de optar
por decisões concretas – nos levará, sob a unção do Espírito,
a um conhecimento claro dos limites da nossa contribuição, a
sermos inteligentes e sagazes nos meios nos quais utilizamos,
enfim, nos conduzirá à eficácia evangélica tão distante da inoperância intimista que nos desconecta facilmente. Nossa fé é
revolucionária, é fundamental em si mesma. É uma fé combativa, mas não com a combatividade de qualquer contenda e sim
com a de um projeto discernido sob a guia do Espírito para um
maior serviço da Igreja. E, por outro lado, o potencial libertador
que vem do contato com o santo é hierofânica. Pensemos na
Virgem “intercessora”, nos santos etc.
2. Por esse mesmo motivo, que a fé é tão revolucionária, será continuadamente tentada pelo inimigo, aparentemente não para destruí-la senão para debilitá-la, torná-la
inoperante, afastá-la do contato com o santo, com o Senhor
de toda fé e toda vida. E, então, vêm as posturas que em
teoria nos parecem tão distantes, mas que, se examinarmos nossa prática apostólica, nós as veremos escondidas
em nosso coração pecador. Essas posturas simplistas que
nos eximem da carga pastoral dura e constante. Revisemos
algumas tentações.
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Os diálogos de Jesus
Uma das tentações mais sérias que nos afasta de
nosso contato com o Senhor é a consciência de derrota.
Diante de uma fé combativa por definição, o inimigo, sob o
anjo de luz, semeará as sementes do pessimismo. Ninguém
pode empreender nenhuma luta se, de antemão, não confia plenamente no triunfo. Aquele que começa sem confiar
perdeu, de antemão, a metade da batalha. O triunfo cristão
é sempre uma cruz, contudo uma cruz bandeira de vitória. Essa fé combativa a iremos aprender e alimentar entre
os humildes. Durante os exercícios virão à nossa memória muitas faces, as faces das pessoas que conhecemos em
nossos primeiros trabalhos pastorais. A face do humilde, a
face daquele de uma piedade simples, é sempre a face de
triunfo e quase sempre vem acompanhada da cruz. Ao invés da face do soberbo que é sempre uma face de derrota.
Não aceita a cruz e quer uma ressurreição fácil. Separa o
que Deus uniu. Quer ser como Deus. O espírito de derrota nos tenta a embarcarmos em causas perdedoras. Está
ausente dele a ternura combativa que tem a seriedade de
uma criança ao fazer o sinal da cruz ou a profundidade de
uma anciã ao rezar suas orações. Isso é fé e essa é a vacina
contra o espírito de derrota (1Jo 4,4; 5,4-5).
Outra tentação é querer separar antes do tempo o
joio do trigo. Há uma experiência privilegiada do sacerdote, é a confissão. Ali vemos muitas misérias, mas ali está
também o melhor do coração humano, que é o homem
arrependido. Isso é o ser humano e não outra coisa, o penitente. Um sacerdote poderá ser, por vezes, duro com os
fiéis na pregação, mas custar-lhe-á mais sê-lo no confessionário. Ali não se pode separar o trigo do joio e ali está
Deus. A confissão também nos dá o sentido do tempo,
porque não se pode forçar nenhum processo humano. E
a vida é assim, o puro não está somente em Deus, mas
35
Mente aberta, coração que crê
também há pureza entre os homens. E Deus não é um
Deus distante que não se imiscui no mundo; “se fez pecado” é o que São Paulo nos diz. As estruturas deste mundo
não são unicamente pecadoras. Isso é maniqueísmo. O
trigo e o joio cresceram juntos e nossa humilde missão talvez seja mais proteger, como pais, ao trigo, deixando aos
anjos a colheita do joio.
Outra tentação é privilegiar os valores do cérebro sobre os valores do coração. Não é assim. Somente o coração
une e integra. O entendimento sem o sentir piedoso tende
a dividir. O coração une a ideia com a realidade, o tempo
com o espaço, a vida com a morte e com a eternidade. A
tentação está em deslocar o entendimento do lugar onde pôs
Deus Nosso Senhor. Colocou-o para aclarar a fé. Deus não
criou o entendimento humano para constituir-se em juiz de
todas as coisas. É uma luz emprestada, um reflexo. Nosso
entendimento não é a luz do mundo, é simplesmente uma
fagulha para iluminar a nossa fé. O pior que pode acontecer
para um ser humano é deixar-se arrastar pelas “luzes” da razão. Converter-se-á em um intelectual ignorante ou em um
“sábio” desatrelado. O melhor da missão da nossa mente
é descobrir as sementes do Verbo dentro da humildade, os
logoi spermatikoí .
E a fé, há que pedi-la. Deus nos livre e guarde de
não sermos pedintes com Ele e com seus santos. Negar
que a oração de petição seja superior às outras orações é
a soberba mais refinada. Somente quando somos pedintes
nos reconhecemos como criaturas. Mas quando não nos
ajoelhamos ante a fé do humilde e quando não sabemos
pedir, então acreditamos que o que salva é a pura fé, uma
fé vazia, contudo uma fé seca de toda religião, de toda
piedade. Então não interpretamos o religioso, e o intelecto
caminha à deriva de suas poucas luzes. Ali é onde caímos
36
Os diálogos de Jesus
no tocante a querer explicar a verdadeira fé com slogans
nascidos de ideologias culturais. Transformamo-nos em
uma espécie de quackers modernos. É algo assim como
reeditar que só a fé salva em formulações mais ou menos da moda: “só a justiça salva” (mas com essa ideia de
justiça que não parece ter história, que é toda novidade a
se inventar... etc.); “só o risco salva” (esse não parece se
apoiar em nenhuma conceituação histórica, em nenhuma memória do caminho andado); “a fé é compromisso”
e “só a fé comprometida salva” (em que o compromisso
é visualizado através do risco, da novidade, e a fé como
que necessitando de adjetivos que a tornem mais forte,
porque é vivida como se fosse débil) etc. Bem, mas esses
são apenas exemplos, algo caricaturado... O importante é
perceber que dentro, das formulações concretas em que a
fé se reduz (cf. EN, 35), há uma confissão de debilidade, a
debilidade do que não crê que sua fé pode “mover montanhas”, a debilidade da ineficácia. O “forte na fé” sabe
onde é eficaz, onde vence o Maligno (1Jo 2,14).
3. Talvez, nesta meditação, procurando recuperar a
fé em nossos pais para dá-la incólume e fecunda aos nossos filhos, convém lembrar-se da imagem católica de nosso
Deus. Não é que Ele esteja ausente. É o Pai que acompanha
o crescimento, o pão de cada dia que alimenta, o misericordioso que acompanha nos momentos em que o inimigo
usa a estes filhos. O Pai que dá a seu filho o que pede,
se for conveniente, mas sempre o acaricia. Isso é aceitar
que nosso Deus se expressa limitadamente; e consequentemente, é aceitar os limites da nossa expressão pastoral (tão
distantes da concepção de quem tem a chave do mundo,
que não sabe nada sobre espera nem trabalho, que vive a
reboque de histerias e expectativas). Jesus, que proclama
que Deus se expressa limitadamente em sua encarnação,
37
Mente aberta, coração que crê
quis compartilhar a vida com os homens, e isto é redenção.
O que nos salvou não foi somente “a morte e ressurreição de Cristo”, e sim Cristo encarnado, nascido, jejuando,
pregando, curando, morrendo e ressuscitando. Os milagres,
os consolos, as palavras de Jesus são salvadores (EN, 6).
Porque quis nos ensinar que as sínteses se fazem, não vêm
feitas; que servir ao santo povo fiel de Deus é acompanhá-lo anunciando a salvação dia a dia, e não andar nos
perdendo, olhando para cumes inalcançáveis para os quais
nem temos força de atingir.
Por fim, resumindo, há dois projetos: o da nossa fé, que
reconhece a Deus como Pai, e há justiça e há irmãos. E o outro projeto, o que sub angelo lucis3 nos coloca o inimigo, que é
o de Deus ausente, a lei do mais forte, o homo homini lúpus4.
Para qual lado eu jogo? Sou capaz de discernir? Sou capaz
de discutir com o projeto que não é de Deus? E se eu me der
conta de que não sou capaz, então... tenho a sagacidade suficiente para me defender?
4. E por isso a nossa identidade como homens de fé
está dada pela pertença a um corpo e não pela afirmação
de nossa consciência isolada. O batismo significa pertencer
à Igreja institucional. Se é na medida em que se pertence. E,
portanto, o comportamento religioso de pertencer, mais do
que buscar a satisfação de um momento individual da minha consciência, buscará símbolos unificadores, a Virgem,
os santos. E aqui, dando um passo a mais, nossa fé será
combativa com uma combatividade consciente do inimigo
a fim de defender a todo o corpo (não somente a mim mesmo). Tudo isto nos dá uma nota de realismo, se se conhece
3 Sub angelo lucis: “como um anjo de luz” refere-se às coisas do maligno com aparência de boas,
iluminadoras (N.E.).
4 Homo homini lúpus: “o homem é o lobo do homem”. Do poeta latino Plauto, tomada por sua
vez pelo filósofo Thomas Hobbes, faz referência ao egoísmo do homem e a um suposto estado de
guerra de todos contra todos para defender cada um o seu. (N.E.).
38
Os diálogos de Jesus
pelo o que se luta e, na medida em que não se sabe por
que se luta, se desloca diretamente para a perda. Os primeiros evangelizadores deram ao índio na América o saber
por que lutar. Nosso trabalho como pastores não deve descuidar deste aspecto de nossa fé, ajudá-los na sagacidade
de saber por que lutar.
Junto deste sentido do combativo dizemos que nossa
fé tem sua dimensão hierofânica, o contato com o santo.
Distingue-se do sacramentalismo mágico. É a confiança
profunda no poder de Deus que se faz história através do
sinal sacramental. É atualizar a graça específica da encarnação, esse contato físico com o Senhor que “passa fazendo
o bem e curando a todos”. A tática do inimigo consistirá
em afogar o combatente e afogar o hierofânico, a fim de
que nossa fé se torne indisciplinada e desrespeitosa. Porque
disciplina e respeito são consequências diretas da nossa fé;
e por disciplina e respeito devemos ver qual é o melhor território que temos para nossa pregação, para nosso serviço
da fé, para nossa promoção de justiça.
Para orar e aprofundar
A título de conclusão, como guia para refletir e orar,
poderíamos nos perguntar pelo estado da fé de nossos pais na
minha vida de pastor:
a) Confirmo o meu povo na fé em Deus Pai Todo
Poderoso, sendo consciente de que confirmo desta
maneira o projeto de Deus justo?
b) Creio no revolucionário da ternura e do carinho,
cada vez que vejo a Virgem ou falo sobre ela? Estou
convencido de que o calor do lar tem sentido em
nosso projeto de justiça?
39
Mente aberta, coração que crê
c) Eu sou um pastor pedinte diante de Deus Pai, reconhecendo-o como Pai, Todo Poderoso, amoroso
no cuidado de seu povo fiel?
d) Tenho consciência de pertença a um corpo mediante a afirmação de todo símbolo de unificação
que por ser religioso é eficaz ou quase eficaz: doutrina, imagens, sacramentos (EN, 3)?
e) Tenho consciência do pecado, que me leva à penitência e à pregação dos mandamentos? Ou eu as
troquei pelo ceticismo, que me conduz a um homem autossuficiente?
f) Sou fiel ao mandato da Igreja que me envia a pregar, “não a mim mesmo ou a minhas ideias pessoais,
mas sim um Evangelho do qual não somos senhores
e proprietários absolutos, para dele dispormos a nosso bel-prazer, mas de que somos os ministros para o
transmitir com a máxima fidelidade” (EN, 15)?
E assim poderíamos continuar nos perguntando sobre
a nossa fé de pastores do povo... ou – ao contrário – sobre
nossas atitudes como clérigos do Estado. E procuremos sentir honradamente nossa pertença ao corpo da Santa Madre
Igreja, a Esposa do Senhor, a quem devemos amar e manter
unida.
Em nossas reflexões como pastores do povo fiel de
Deus, devemos pensar que não basta a verdade, senão em
caridade, edificando a unidade da Igreja. Que não seja porque
aderimos aos melhores programas, iremos nos esquecer do
corpo: e se bem que em todo cisma celebra-se validamente a
Eucaristia, não podemos esquecer que se potencializa seu valor na mesa comum. Uma atitude inevitável, de justiça, como
pastores, é salvar aos homens do cisma, ajudá-los a estabelecer
40
Os diálogos de Jesus
uma maior comunhão e unidade com a Madre Igreja, recordando sempre que a unidade é superior ao conflito5.
Nas vésperas do nosso ministério, devemos pedir a graça de ser homens ou mulheres de fé, evangelizadores da fé
que temos recebido. E oxalá que, nestes exercícios, o Senhor
nos faça entender e sentir que a evangelização “não é para
a Igreja uma contribuição facultativa, é um dever que se lhe
incumbe, por mandato do Senhor Jesus, a fim de que os homens possam acreditar e serem salvos. Sim, essa mensagem
é necessária; ela é única e não poderia ser substituída. Assim,
ela não admite indiferença nem sincretismo, nem acomodação. É a salvação dos homens que está em causa; é a beleza
da Revelação que ela representa; depois, ela comporta uma
sabedoria que não é deste mundo. Ela é capaz, por si mesma,
de suscitar a fé, uma fé que se apoia na potência de Deus”.
Que entendamos valer que nós, apóstolos, “lhe consagremos
todo o nosso tempo, todas as nossas energias e lhe sacrifiquemos, se for necessário, a nossa própria vida” (EN, 5).
5 Santo Inácio e os primeiros companheiros tiveram bem presentes estes dois projetos de fé. E nos
ensinaram que o projeto do mau espírito divide porque valida o progresso do individualismo e
termina com as mediações institucionais; e inclusive afoga a religiosidade no horizonte do Estado.
Diante disto, a opção da Companhia foi singela, mas contundente, 1) a consolidação da instituição
eclesiástica (cujo princípio e fundamento é o quarto voto do Papa); 2) a consolidação na formação
de pastores (os Seminários, os Colégios, o Romano, o Germânico); 3) inicia uma evangelização de
real aculturação na Ásia e América, que diante do particularismo absolutista político ou do abstracionismo protestante, opõe o real sentido de universalidade; esse versus in unum nascido da realidade do universal concreto entre os povos. Isso quer dizer que a resposta da Igreja e da Companhia
diante do projeto do mau espírito, em sua raiz, em si mesma, é combativa. Nossa fé é combate.
41
Nossa vocação
1. Vocês foram chamados e agora estão se preparando para receber o Ministério. Pode existir a sensação de que
“por fim chegamos!” e viver essa preparação de uma ótica
do “momento”. Isso poderia nos prejudicar, pois – sem nos
dar conta – poderia nos levar a conjecturar o ministério que
vamos receber. Em vez disso, seria melhor avaliar que o ponto
de vista deve ser o do “tempo”, e do “tempo de Deus” que
transcende todos os “momentos” de nossa existência. E aqui,
então, cabe a pergunta, onde estou? Em que está fundamentada minha vocação? Podemos recordar a palavra de Jesus:
“Muitos me dirão naquele dia, ‘Senhor, Senhor, não pregamos
nós em vosso nome, e não foi em vosso nome que expulsamos os demônios e fizemos muitos milagres?’ E, no entanto,
eu lhes direi, ‘Nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!’ Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e
as põe em prática é semelhante a um homem prudente, que
edificou sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos e investiram contra aquela casa;
ela, porém, não caiu, porque estava edificada na rocha. Mas
aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é
semelhante a um homem insensato, que construiu sua casa na
areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram os ventos
e investiram contra aquela casa; ela caiu e grande foi a sua
ruína” (Mt 7,22-27).
43
Mente aberta, coração que crê
E grande foi a sua ruína. Faz-me lembrar da admoestação do Senhor sobre o demônio que, ao ser rejeitado, tenta
voltar, e “o fim daquele homem é pior do que o princípio”.
Novamente a pergunta: sobre o que estou fundamentado?
2. Eu lhes proponho, como meditação inicial, olhar a
missão ministerial que receberam – enxergando-se de tal forma que, constituídos por ela se reencontrem com o fato de serem criados e salvos pelo mesmo Jesus que lhes chama agora
para o ministério – e buscar a discreta generosidade do maior
serviço nesta missão específica.
3. A revelação nos conservou e, para nosso consolo,
essa peculiar relação se estabelece entre o Senhor e aquele a
quem guia: Moisés, Isaías, Jeremias, José, João Batista... Todos
eles sentiram a indigência de suas possibilidades ante o pedido do Senhor: “Quem sou eu para ir ter com o faraó e tirar do
Egito os israelitas?” (Ex 3,11); “Pobre de mim, estou perdido!
Porque sou um homem de lábios impuros; Ah, Senhor JAVÉ,
eu nem sei falar, pois que sou apenas uma criança” (Jr 1,6);
“Eu devo ser batizado por ti e tu vens a mim!” (Mt 3,14); José,
que resolve abandonar Maria secretamente (Mt 1,19-20). É a
resistência inicial, o não poder compreender a magnitude do
chamado, o medo da missão. Esse sinal é de bom espírito,
sobretudo se não fica ali e permite que a força do Senhor se
expresse sobre essa debilidade e lhe dê consistência, a ser
fundida: “Eu estarei contigo – respondeu Deus – e eis aqui
um sinal de que sou eu que te envio: quando tiveres tirado o
povo do Egito, servireis a Deus sobre esta montanha” (Ex 3,12).
“Aplicou-a na minha boca e disse: Tendo esta brasa tocado
teus lábios, teu pecado foi tirado, e tua falta, apagada” (Is 6,7).
“Não digas, ‘Sou apenas uma criança’; porquanto irás procurar todos aqueles aos quais te enviar, e a eles dirás o que eu
te ordenar. Não deverás temê-los porque estarei contigo para
livrar-te” (Jr 1,7-8). “Deixa por agora, pois convém cumpramos
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Os diálogos de Jesus
a justiça completa” (Mt 3,15). “José, filho de Davi, não temas
receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem
do Espírito Santo” (Mt 1,20).
O Senhor, ao nos dar a missão, fundamenta-nos; e o
faz não com a consistência funcional de quem dá uma tarefa
ou emprego qualquer mas, com a fortaleza de seu Espírito, o
qual de todas as formas nos faz pertencer a essa missão, à qual
nossa identidade ficará selada por ela. Identificar-se é pertencer... pertencer é participar no que Jesus fundamenta... e Jesus
nos fundamenta em sua Igreja, em seu santo povo fiel para a
Glória do Pai. Nossos medos e inseguranças nascem talvez
do mesmo sentimento que inspirava as rejeições à missão de
Moisés, Isaías, João... só nos resta permitir que o Senhor nos
fale e nos situe, em sua real dimensão, o nosso medo, nossa
pusilanimidade, nosso egoísmo.
4. Jesus instaurou o reino de Deus. Com sua palavra
e sua vida, fundou-o de uma maneira irreversível: para nós,
pertencermos a ele é um valor indeclinável. E para nós, Ele
nos fundamenta como pastores de seu povo, e é assim que
nos ama. Não podemos prescindir, ao falar de nosso fundamento, da dimensão pastoral de nossa vida. Penso que o processo da meditação é que nos pode ajudar a ir percorrendo
um documento pastoral, que é uma verdadeira convocatória
a nos deixar fundamentarmos novamente, como pastores, por
Cristo Nosso Senhor. Por isso, proponho algumas passagens
do Evangelii Nuntiandi. À luz dessa doutrina, reflitamos sobre
nós mesmos para tirar algum proveito.
5. O próprio Jesus tem uma missão: “Andar de cidade
em cidade a proclamar, sobretudo aos mais pobres, e muitas
vezes os mais bem dispostos para o acolher, o alegre anúncio
da realização das promessas e da Aliança feitas por Deus,
tal é a missão para a qual Jesus declara ter sido enviado
pelo Pai. E todos os aspectos do seu mistério, a começar da
45
Mente aberta, coração que crê
própria Encarnação, passando pelos milagres, pela doutrina,
pela convocação dos discípulos e pela escolha e envio dos
doze, pela cruz, até a ressurreição e à permanência da sua
presença no meio dos seus, fazem parte da sua atividade
evangelizadora” (EN, 6). E com sua atividade evangelizadora, Cristo “anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de
Deus, de tal maneira importante que, em comparação com
ele, tudo o mais passa a ser ‘o resto’, que é ‘dado por acréscimo’. Só o reino, por conseguinte, é absoluto, e faz com
que se torne relativo tudo o mais que não se identifica com
ele” (EN, 8). O Senhor funda o reino; poderemos seguir essa
meditação contemplando as diversas formas com que Jesus
descreve “a felicidade de fazer parte deste reino, felicidade
paradoxal, feita de coisas que o mundo despreza; as exigências do reino e a sua carta magna; os arautos do reino; os
seus mistérios; os seus filhos; e a vigilância e a fidelidade que
se exigem daqueles que esperam o seu advento definitivo”
(EN, 8). O Senhor nos fundamenta em seu reino, seu Espírito
nos faz sentir a fortuna da pertença, que encerra o mistério
da nossa identidade.
6. Jesus funda uma comunidade evangelizada e, por
sua vez, evangelizadora, então “aqueles que acolhem com
sinceridade a boa-nova, por virtude desse acolhimento e da
fé compartilhada, reúnem-se, portanto, em nome de Jesus
para conjuntamente buscarem o reino, para o edificarem e
para o viverem. Eles constituem uma comunidade também
ela evangelizadora. A ordem dada aos doze, ‘Ide, pregai a
boa-nova’, continua a ser válida, se bem que de maneira diferente também para todos os cristãos. É precisamente por
isso que São Pedro chama a estes últimos ‘povo de sua particular propriedade a fim de que proclameis as excelências
daquele que vos chamou’; aquelas mesmas maravilhas que
cada um pode alguma vez escutar na sua própria língua.
46
Os diálogos de Jesus
A boa-nova do reino que vem e que já começou, de resto,
é para todos os homens de todos os tempos. Aqueles que
a receberam, aqueles que ela congrega na comunidade da
salvação, podem e devem comunicá-la e difundi-la ulteriormente” (EN, 13). É que a tarefa de evangelização de todos os
homens constitui a missão essencial da Igreja; uma tarefa e
missão que as amplas e profundas mudanças da sociedade
atual tornam cada vez mais urgentes. Evangelizar constitui,
de fato, a fortuna e a vocação própria da Igreja, sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar, isso quer dizer
que é para pregar e ensinar, ser o canal do dom e da graça,
reconciliar os pecadores com Deus, perpetuar o sacrifício de
Cristo na Santa Missa, memorial da sua Morte e Ressurreição
gloriosa (EN, 14).
Em nosso caso, a fortuna da nossa vocação, nossa identidade como comunidade evangelizadora, consiste em nos
deixar convocar “para proclamar com autoridade a Palavra de
Deus, para reunir o povo de Deus que andava disperso, para
alimentar esse mesmo povo com os sinais da ação de Cristo, que são os sacramentos, para o encaminhar para a via da
salvação, para o manter naquela unidade de que nós somos,
em diferentes planos, instrumentos ativos e vivos, para animar
constantemente esta comunidade congregada em torno de
Cristo na linha da sua vocação mais íntima” (EN, 68).
Isso quer dizer que a nossa missão, a que nos dá medo
e nos leva a pronunciar desculpas como as dos escolhidos
nas Escrituras, é evangelizar, pastorear o fiel povo de Deus. E
essa missão fundamenta nossa vocação... Jesus, ao nos chamar a ela, nos fundamenta no mais fundo do nosso coração,
fundamenta-nos como pastores, que é a nossa identidade. Em
nossa visita aos enfermos, na administração dos sacramentos,
em nosso ensinamento do catecismo, em toda a nossa atividade sacerdotal, estamos também colaborando com Cristo,
47
Mente aberta, coração que crê
fundamentando corações cristãos e, por esse caminho, o
Senhor conecta o nosso coração ao dele.
7. A comunidade que Jesus funda “situa o homem objetivamente em relação ao plano de Deus, à sua presença
viva, à sua ação, faz achar de novo o mistério da paternidade divina, que sai ao encontro da humanidade. Em outras
palavras, nossa religião instaura efetivamente uma relação
autêntica e vívida com Deus”. Não se pode estar ausente
desta nossa tarefa de fundamentar corações cristãos, a unção
nascida do contato direto com a fidelidade do Senhor da história. Nossa Teologia deve ser piedosa se quer ser fundadora,
se pretende se deixar fundamentar pelo Senhor. Piedade que
não é resultado de um verniz de atitudes de reflexão ou investigação prévia. Não, a piedade a que eu me refiro é – por
assim dizer – a hermenêutica fundamental da nossa teologia,
do nosso ensinamento. É vida. Quando – em nossa vida cotidiana – sentimos a presença de Deus, não nos resta senão
dizer “Deus está aqui”, e quando Deus está, a primeira coisa
a ser feita é colocar-se de joelhos. Em seguida vem o intelecto humano para aprofundar e explicar como Deus está
ali. Aquilo da fides quaerens intellectum6, ou das histórias
que nos relatavam os santos estudando teologia de joelhos.
Para nós vale também o juízo do Papa quando indica que “a
evangelização compreende a pregação do mistério do mal e
da busca ativa do bem. Pregação, igualmente, e esta se torna
cada vez mais urgente, da busca em si de Deus através da
oração, sobretudo da oração e da ação de graças, bem como
através desse sinal visível do encontro com Deus que é a
Igreja de Jesus Cristo; comunhão que por sua vez se expressa
mediante a participação nesses outros sinais de Cristo vivente e operante na Igreja que são os sacramentos...”. Enfim, não
esquecer que é aquilo ao que estamos sendo chamados a
6 Fides quaerens intellectum: “A fé que busca entender”.
48
Os diálogos de Jesus
fundar e sobre o qual nos permitir ser fundamentados pelo
Senhor: “a totalidade da evangelização que, à parte da pregação da mensagem, consiste em implantar a Igreja a qual não
existe sem este respiro da vida sacramental culminante da
Eucaristia” (EN, 28).
Paulo VI, a propósito das denominadas comunidades de base, nos dá os critérios de fundação que Jesus quis
para a sua Igreja. Esses critérios podem ser uma luz para
nossa reflexão de hoje e o examinar da nossa consciência.
A atitude fundacional básica é formar-se na Igreja. Homens
radicados e fundados na Igreja, assim é que Jesus nos quer.
Homens que:
Ÿ buscam seu alimento na palavra de Deus e não se
deixam aprisionar pela polarização política ou pelas
ideologias da moda, prontas para explorar seu imenso potencial humano;
Ÿ evitam a tentação sempre ameaçadora da contestação sistemática e do espírito hipercrítico, sob o pretexto de autenticidade e de espírito de colaboração;
Ÿ permanecem firmemente unidos à Igreja local na
qual se inserem e na Igreja universal, evitando assim
o perigo – muito real – de isolarem-se em si mesmos,
crer-se, depois, a única autêntica Igreja de Cristo e
finalmente de condenar as outras comunidades (e
homens) eclesiais;
Ÿ guardam uma sincera comunhão com os pastores
que o Senhor deu à Igreja e ao Magistério que o
Espírito de Cristo lhes confiou;
Ÿ não se creem jamais o único destinatário ou o único agente de evangelização, quer dizer, o único
depositário do Evangelho; ou seja, conscientes de
que a Igreja é muito mais ampla e diversificada,
49
Mente aberta, coração que crê
aceitam que a Igreja se encarna em formas que
não são as deles;
Ÿ crescem cada dia em responsabilidade, zelo, compromisso e irradiação missionária;
Ÿ se mostram universalistas e não sectários (cf. EN, 58).
O Senhor que nos fundamenta nos evoca a imagem
do Senhor sempre maior, do Deus semper maior. Meditemos e oremos hoje sobre esse tema de nos deixar fundar
pelo Senhor e – por sua vez –, como pastores que seremos,
nos ajudar a fundamentar a missão encomendada, fundar
corações cristãos. Recuperemos a memória de tantos zelosos presbíteros que conhecemos e que viram o rosto de
Cristo. Essa memória vai nos fortalecer o coração e irá nos
defender de não nos deixarmos desviar pela diversidade
de doutrinas estranhas (Hb 13,9), doutrinas estas que nada
fundam, senão que são bem mais dissolventes do sólido
fundamento de um coração sacerdotal; doutrinas que não
alimentam o fiel povo de Deus, e com as quais adquirem
contemporaneidade as reflexões do Dante: “Não disse
Cristo a seu primeiro convento, vá e preguem patranhas
ao mundo, senão que lhes deu a verdade da fundação,
esta ressoou em suas bocas, de tal modo que ao lutar para
acender a fé, do Evangelho fizeram escudo e lança”7. Por
outro lado, em vez do escudo e lança, as doutrinas sedutoras e que desintegram debilitam o coração do santo fiel
povo de Deus, porque “as ovelhas ignorantes vêm a pastar
cheias de vento”8.
7 Non disse Cristo al primo suo convento, - Andate e predicate al mondo cience - ma diede il
verace fondamento; e quel tanto sono nelle sue guance si ch’a pugnar, per acceder la fede, de
l’Evangelio fero scuto e lance. (Paradiso, canto 29, 97-117).
8 Si que le pecorelle, che non sanno, toman del pasco pasciute di vento e non le scusa non veder
lo danno (ibid).
50
Os diálogos de Jesus
Para orar e aprofundar
Devemos repetir a nós mesmos, como que cobrando
forças em memória de tantos pastores que nos precederam,
a exortação da carta aos Hebreus: “Desse modo, cercados
como estamos de uma tal nuvem de testemunhas, desvencilhemo-nos das cadeias do pecado. Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e
consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se lhe
oferecera, ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente aquele que sofreu
tantas contrariedades dos pecadores, e não vos deixeis abater
pelo desânimo. Ainda não tendes resistido até o sangue, na
luta contra o pecado” (Hb 12,1-4).
51
A esposa do Senhor
1. Jesus funda a Igreja e a nós nos funde na Igreja. O
mistério da Igreja caminha muito unido ao mistério de Maria,
a mãe de Deus e a madre Igreja. Maria nos engendra e cuida
de nós. A Igreja também. Maria nos faz nascer, a Igreja também. E na hora da morte o sacerdote se despede de nós em
nome da Igreja para nos deixar nos braços de Maria. “Uma
mulher vestida de sol, com a lua sob seus pés e em sua cabeça uma coroa de estrelas.” Essa é a Igreja e essa é a Virgem
que nosso povo fiel venera. Por isso, ao nos referir à Igreja
temos que sentir a mesma devoção que sentimos pela Virgem
Maria. Santa Madre Igreja hierarchica (Exercícios Espirituais,
353) era a expressão característica a Santo Inácio. A expressão
evoca três conceitos muito ligados entre si: o da santidade, o
da fecundidade e o da disciplina.
2. Fomos engendrados para a santidade em um corpo
santo, o de nossa santa madre Igreja. E ao nos mantermos
disciplinadamente inseridos nesse corpo entra em jogo nossa
vocação para “ser santos e imaculados em sua presença” e
nossa fecundidade apostólica. A Igreja é santa, permanece
no mundo “como um sinal, opaco e luminoso ao mesmo
tempo de uma nova presença de Jesus, sacramento da sua
partida e da sua permanência. Ela o prolonga e o continua”
(EN, 15). Sua santidade, “a vida íntima, vida de oração, ouvir
a Palavra e o ensino dos apóstolos, caridade fraterna vivida e
53
Mente aberta, coração que crê
fração do pão, não adquire todo o seu sentido senão quando
ela se torna testemunho, a provocar a admiração e a conversão e se desenvolve na pregação e no anúncio da boa-nova” (ibid). Sua santidade não é ingênua porque se sabe
o “Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos, ela precisa ouvir, incessantemente, proclamar as
grandes obras de Deus, que a converteram para o Senhor;
precisa sempre ser convocada e reunida de novo por Ele”
(ibid). Os santos padres expressavam esse mistério da santidade da Igreja denominando-a casta meretriz. Reflete-se sua
santidade no rosto de Maria, a sem pecado, a limpa e pura;
mas não esquece que congrega em seu seio os filhos de Eva,
mãe dos homens pecadores.
Há uma rica literatura teológica sobre a santidade, e
em suas canonizações a Igreja – assistida infalivelmente pelo
Espírito – coloca em jogo uma criteriologia que todos conhecemos. Em nosso jargão clerical, nós brincamos muitas vezes,
reagindo diante do uso meticuloso do termo “santo”; e assim
dizemos, um pouco sorridentes, “esta santa casa”, “os santos
costumes”. Mas é certo também que, quando queremos dar
– satisfeitos – um juízo definitivo sobre alguém, dizemos “este
homem é um santo” e o fazemos como claudicando de muitos ídolos nossos e nos ajoelhando ante o mistério de Deus e
de sua infinita bondade investida a um homem. Amor e devoção à Madre Igreja é amor e devoção a estes seus filhos qualificados, e temos muitos destes santos em nossa Igreja com
quem cotidianamente lidamos, em nossa vida de paróquia,
no confessionário, na direção espiritual. Eu me pergunto se
muitas vezes a crítica amarga à Igreja, a inquietação diante
de seus muitos pecados, a desesperança que se cria em nós
perante ela, não será porque não nos alimentamos suficientemente desta complacência com a santidade que nos reconcilia, porque é a visita de Deus em seu corpo.
54
Os diálogos de Jesus
A santidade se manifesta, em nós, através de nosso
zelo evangelizador: “É preciso que o nosso zelo evangelizador brote de uma verdadeira santidade de vida, alimentada
pela oração e sobretudo pelo amor à Eucaristia, e que, conforme o Concílio no-lo sugere, a pregação, por sua vez, leve
o pregador a crescer em santidade” (EN, 76). É o nexo entre
a santidade e a maternidade da Igreja, entre nossa santidade de homens consagrados e a fecundidade na formação
de corações cristãos... E podemos aqui refletir sobre essas
perguntas que Paulo VI nos propõe e de cujas respostas nós
somos todos responsáveis: “O que é feito da Igreja passados
(dez) anos após o final do Concílio? Acha-se ela radicada no
meio do mundo e, não obstante, livre e independente para
interpelar o mesmo mundo? Testemunha solidariedade para
com os homens e, ao mesmo tempo, o absoluto de Deus? É
ela hoje mais ardorosa quanto à contemplação e à adoração,
e mais zelosa quanto à ação missionária, caritativa e libertadora? Acha-se ela cada vez mais aplicada nos esforços por
procurar a recomposição da unidade plena entre os cristãos,
que torna mais eficaz o testemunho comum, a fim de que o
mundo creia?” (ibid).
3. Falar da santa madre Igreja evoca a fecundidade.
Muitas vezes nos tornamos céticos diante da esperança de
fecundidade como, em sua época, Sara sorriu diante da
promessa de um filho. Outras vezes, entretanto, nos tornamos eufóricos e nos dá vontade de quantificar e planejar
de tal forma essa fecundidade que reeditamos o pecado de
Davi quando sua vaidade o levou a efetuar o censo do seu
povo. A fecundidade do Evangelho tem outros caminhos.
É como uma consciência de que o Senhor não nos abandona e cumpre sua Palavra de estar conosco até o fim do
mundo. É uma fecundidade paradoxal. É ser fecundo e por
sua vez, não conseguir se dar conta do feito... e isto sem
55
Mente aberta, coração que crê
ser inconsciente. Recordo aqui aquela frase do Pe. Matías
Crespí, infatigável missionário da Patagônia, que já em idade bem avançada dizia: “A vida passou voando”, como que
dando a entender que, para ele, parecia não ter feito nada
pelo Senhor. É a fecundidade apoiada em uma fé que pede
constatações, mas que aceita essas constatações como não
definitivas. Trata-se da constatação do “passo do Senhor”
que nos consola, nos fortalece na fé e nos deixa em nossa
missão de administradores para que nossa fidelidade o espere “até que ele volte”.
A Igreja é mãe; engendra filhos com a força do depósito
da fé. Ela “é depositária da boa-nova que deve ser anunciada.
As promessas de uma nova aliança em Cristo, os ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, a palavra de vida, as fontes
da graça e da benignidade divina, o caminho da salvação.
“Enviada e evangelizadora, a Igreja envia também ela própria
evangelizadores. É ela que coloca em seus lábios a Palavra
que salva, que lhes explica a mensagem de que ela mesma
é depositária, que lhes confere o mandato que ela própria recebeu e que, enfim, os envia a pregar” (EN, 15), isto é, para
engendrar, para dar vida. E engendra a seus filhos na contínua
fidelidade a seu Esposo, porque lhes envia “a pregar, não a si
mesmos ou as suas ideias pessoais, mas sim um Evangelho do
qual nem eles nem ela são senhores e proprietários absolutos, para dele disporem a seu bel-prazer, mas de que são os
ministros para o transmitir com a máxima fidelidade” (ibid).
Sua fidelidade ao Esposo fiel por antonomásia nos educa em
nossa fecundidade fiel.
Querer ser fecundos é um desejo legítimo, mas o evangelho tem suas próprias leis de legitimação para nossa atividade. É como se nos dissesse, será fecundo se... se guardar com
zelo sua condição de operário, se harmonizar sua diligência
com a consciência de inutilidade, se – no fundo – admitir que
56
Os diálogos de Jesus
deve arar a terra, plantar a semente e se convencer de que o
processo de regar e a colheita são graça e pertença do Senhor.
Amar o mistério de fecundidade da Igreja como se ama
o mistério de Maria virgem e mãe e à luz desse amor, amar
o mistério do nosso modo serviçal inútil com a esperança de
que nos dá a palavra que o Senhor pronunciará sobre nós,
“servo bom e fiel”.
4. Nosso amor à Igreja é um amor de inserção em um
corpo e isto exige disciplina. Poderíamos expressar isto mesmo
dizendo que, de alguma maneira, responde à fórmula “caritas
discreta” ou seja, “discrição”. Para um sacerdote, não ser disciplinado é ser indiscreto e a indiscrição é sempre falta de amor.
O amor discreto irá nos ajudar a crescer na “consciência plena
de fazer parte de uma grande comunidade que nem o espaço
nem o tempo poderiam delimitar” (EN, 61). Consciência de pertença a qual nos fará compreender que a missão a que fomos
enviados, a missão de evangelizar, “não é para quem quer que
seja um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial.
Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos catequistas
ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o Evangelho, reúne a sua pequena comunidade, ou administra um sacramento,
mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja e o seu gesto está
certamente conexo, por relações institucionais, como também
por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da
graça, à atividade evangelizadora de toda a Igreja. Isso pressupõe, porém, que ele age, não por uma missão pessoal que se
atribuísse a si próprio, ou por uma inspiração pessoal, mas em
união com a missão da Igreja e em seu nome” (EN, 60). E vem
daí a raiz da nossa disciplina, o fato de que “nenhum evangelizador é o senhor absoluto da sua ação evangelizadora, dotado de um poder discricionário para realizar segundo critérios e
perspectivas individualistas tal obra, mas em comunhão com a
Igreja e com os seus Pastores” (ibid).
57
Mente aberta, coração que crê
Nossa adesão ao reino “não pode permanecer abstrata
e desencarnada, manifesta-se concretamente por uma entrada
visível numa comunidade de fiéis. Assim, aqueles cuja vida
se transformou ingressam, portanto, numa comunidade que
também ela própria é sinal da transformação e sinal da novidade de vida, é a Igreja, sacramento visível da salvação” (EN,
23); “sinal visível do encontro com Deus que é a Igreja de
Jesus Cristo. Uma tal comunhão exprime-se, por sua vez, mediante a realização dos outros sinais de Cristo vivo e operante
na Igreja, que são os sacramentos.” (EN, 28). Nossa adesão
ao reino, então, há de adentrar-se ao lado de Cristo pregado
na cruz, de onde nasce a sua esposa, a mãe fecunda de um
corpo disciplinado ao qual se alimenta com os sacramentos.
“Existe, portanto, uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e
a evangelização. Durante este ‘tempo da Igreja’ é ela que tem
a tarefa de evangelizar. E essa tarefa não se realiza sem ela e,
menos ainda, contra ela” (EN, 16). É uma “dicotomia absurda”
pretender “amar a Cristo mas sem a Igreja, ouvir a Cristo mas
não à Igreja, ser de Cristo mas fora da Igreja” (ibid).
A disciplina não é algo decorativo nem um exercício de
bons modos. Um coração indisciplinado pode chegar a configurar o “homem conturbado” de quem fala Santo Inácio, e “conturbado” são aqueles homens que não têm domínio sobre suas
paixões; por isso podem semear a desunião, dividir mediante a
traição para ganhar uns poucos adeptos, instaurar um estado de
injustiça por uma contínua atitude farisaica no seio de uma comunidade ou de uma diocese. Com esse modo de apresentar a
questão da indisciplina, não se quis exortar a um exame obsessivo e privar da presença do Senhor os nossos defeitos como pastores. Seria uma estéril introspecção. Creio que a atitude correta
seria nos colocarmos em oração diante do Senhor e pedir-lhe
incessantemente que ele queira pronunciar para nós a palavra
eficaz que nos corrija e leve a ele: “filho, dê-me seu coração”.
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Os diálogos de Jesus
Quis falar nesta meditação do amor à santa madre Igreja
hierarchica e acabamos desembocando em nossa própria responsabilidade de sermos filhos da Igreja e – por sua vez – fazer
a Igreja. Nosso amor a ela deve nos levar a expressá-la diante
do mundo em sua santidade, em sua cálida fecundidade e em
sua disciplina, que é ser toda de Cristo e como diz o Concílio,
a Dei Verbum religiose audiens et fidente proclamans9. Que
Nossa Senhora, a Virgem Mãe, obtenha do Senhor para nós a
graça de um amor santo, fecundo e disciplinado à Igreja.
Para orar e aprofundar
Para terminar, a partir do número 60 do Evangelii
Nuntiandi, meditemos nosso amor e nossa pertença a nossa
mãe, a Igreja,
O fato de a Igreja ser enviada e mandada para a evangelização do mundo é uma observação que deveria despertar
em nós uma dupla convicção.
A primeira é a seguinte: evangelizar não é para quem
quer que seja um ato individual e isolado, mas profundamente
eclesial. Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos
catequistas ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o
Evangelho, reúne a sua pequena comunidade, ou administra
um sacramento, mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja
e o seu gesto está certamente conexo por relações institucionais, como também por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da graça, à atividade evangelizadora de toda
a Igreja. Isso pressupõe, porém, que ele age, não por uma
missão pessoal que se atribuísse a si próprio, ou por uma inspiração pessoal, mas em união com a missão da Igreja e em
nome dela.
9 Do latin: Escutar a Palavra de Deus com reverência e proclamá-la com fé. (N.T.).
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Mente aberta, coração que crê
Donde, a segunda convicção: se cada um evangeliza
em nome da Igreja, que por sua vez o faz em virtude de um
mandato do Senhor, nenhum evangelizador é o senhor absoluto da sua ação evangelizadora, dotado de um poder discricionário para realizar segundo critérios e perspectivas individualistas tal obra, mas em comunhão com a Igreja e com os
seus Pastores.
A Igreja é ela toda inteiramente evangelizadora, como
frisamos acima. Ora, isso quer dizer que, para com o conjunto
do mundo e para com cada parcela do mundo onde ela se
encontra, a Igreja se sente responsável pela missão de difundir
o Evangelho.
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