Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 A EDUCAÇÃO PELAS IMAGENS RELIGIOSAS OU A NECESSIDADE DE EDUCAR OS SENTIDOS E A SENSIBILIDADE NO PERÍODO MEDIEVAL DIAS, Ivone Aparecida (UEM) OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora/UEM) O objetivo desta comunicação é refletir sobre a relação entre a arte religiosa e a educação na Idade Média, considerando-se que por meio da educação dos sentidos tornava-se possível educar a sensibilidade, o modo de pensar, de sentir e de agir dos homens. Partimos do pressuposto de que no período medieval a arte religiosa ou sacra, concorreu de forma marcante para a formação dos homens. Naquele período, as imagens, em especial, as pinturas, eram concebidas como instrumentos fundamentais no processo educativo. Ou seja, a arte como expressão do sagrado era pensada para ensinar princípios religiosos, virtudes e formas de comportamento. Quando falamos de arte, o conceito é amplo, envolve uma variedade de formas de expressão. Assim, para a estruturação deste texto, optamos pela arte religiosa materializada nas imagens, sejam elas as esculturas ou as pinturas nas paredes ou nos vitrais. De acordo como Schmitt (2007), ao lado da escrita, as imagens tiveram um papel de extrema relevância no cristianismo medieval. Fundamentando-se no termo latino “imago”, ele afirma que “[...] a imagem é, antes de tudo, um fundamento da antropologia judaico-cristã, pois o homem foi criado à ‘imagem e semelhança de Deus’” (SCHMITT, 2007, p. 91). No primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, o autor diz que Deus, no sexto dia, criou o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gên 1, 26-27). Ou seja, na perspectiva cristã, o homem olhava para si como a imagem do seu Criador. E talvez por isso é que ele se sentia autorizado a representar Aquele que o criou. Schmitt (2007, p. 91) diz, ainda, que a imagem também é “[...] o conjunto dos modos de figuração do invisível, da crença e da história sacra [...] cujos modos de 1 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 representação e usos públicos e privados variaram no decurso dos séculos”. Isto é, ao longo dos tempos, a forma de conceber e representar a divindade, de expressar a fé nos poderes invisíveis diretamente (embora visíveis na arte), não permaneceu sempre a mesma. Para este autor, foi nos séculos XI e XII, devido às polêmicas com grupos considerados heréticos e com os judeus – por quem os cristãos eram acusados de serem idólatras – que “[...] uma teoria cristã ocidental das imagens religiosas [...]” (SCHMITT, 2007, p. 91) foi elaborada. Para ele, as imagens religiosas, bem como as práticas cultuais a elas dirigidas, foram reabilitadas a partir desse período. Sim, foram reabilitadas porque desde bem antes desses séculos essa forma de expressão religiosa, bem como as práticas de culto que as tinham como referências não eram estranhas aos homens. O próprio Schmitt (2007) evidencia, com as indicações positivas de Gregório Magno, entre o final do século VI e início do VII, em favor das imagens – mais precisamente das pinturas – que as mesmas já eram largamente empregadas como objeto para o culto, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Rops (1991, p. 360) também diz que para os homens orientais e ocidentais a arte visava, “[...] figurar, contar e evocar concretamente as santas realidades e os mais altos modelos”. Nesse sentido é que se pode compreender que, para Gregório Magno, as imagens deviam expressar ou figurar a história da vida e morte de Cristo, bem como a dos santos mártires (SCHMITT, 2007). Essa defesa do uso da imagem para ensinar nos leva a pensar que o papa Gregório se preocupava com a educação tanto dos letrados quanto com a daqueles que não tinham a propriedade das letras. Para estes, especialmente, as imagens deviam ser como livros pintados, capazes de educar o olhar e, pelo olhar, alcançar o homem em sua totalidade. É a partir desse entendimento que podemos mergulhar no mar das seguintes palavras do papa educador: “[...] o que a escrita é para os que lêem, a pintura deve oferecer aos homens incultos que a olham [...] É nela que lêem aqueles que ignoram as letras” (apud SCHMITT, 2007, p. 96). Gombrich (1995) também não deixou de considerar, em sua História da Arte, essa sábia leitura da função das imagens por Gregório. Entretanto, certamente Gregório não estava sozinho nessa defesa pedagógico-educativa da arte sacra, pois entendemos que, mais do que apenas um posicionamento de cunho pessoal, ele era porta-voz de seu 2 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 tempo. Muitos pensavam como ele, porém, Gregório – até pela função que exercia – foi capaz de assinar e assinalar com seus escritos sua responsabilidade frente aos homens da época na qual viveu. O que se verifica na explicação de Gregório Magno a respeito da utilização de imagens como instrumento educacional é que, para ele, elas eram meio de aprendizado das “coisas divinas”. Desse modo, as contribuições gregorianas nos ajudam a pensar como o cristianismo estruturou-se, ao longo da Idade Média, como uma religião apoiada na imagem religiosa como educadora dos sentidos e da “alma”, da sensibilidade. Ou seja, contando as histórias de Cristo e dos santos por meio desses livros destituídos de letras – as imagens –, os homens medievais eram inseridos em um processo de educação completa, integral, capaz de tocá-los em sua interioridade a partir dos seus sentidos. Essa educação da interioridade, por sua vez, deveria reverberar nas atitudes e nos comportamentos cristãos em relação aos demais homens. Questão importante a ser ressaltada no interior dessa discussão é que o uso de imagens pelos cristãos – uso referendado pelos eclesiásticos – contribuiu para a estruturação do cristianismo de modo diferente do judaísmo e do islamismo, como afirma Le Goff (2010, p. 10): “Diferentemente de Javé e de Alá, que o judaísmo e o islam protegeram de qualquer figuração, o Deus dos cristãos pode ser representado”. E foi sustentando-se nessa possibilidade de representar a divindade que na Idade Média os homens decoravam as Igrejas não apenas com mosaicos “[...] mas com pinturas murais, painéis coloridos e vitrais” (ROPS, 1991, p. 472). Para Rops (1991, p. 582), teria sido a partir do século X que a pintura experimentou um grande desenvolvimento no Ocidente: “[...] Temos a pintura em vidro, os vitrais, a propósito dos quais Adalberão diz sugestivamente que na catedral de Reims, reconstruída em 980, “as janelas contavam toda a espécie de histórias”. O autor acima também diz que os vitrais nas janelas das catedrais evidenciavam que a generalidade dos cristãos conhecia a Bíblia, ainda que não fosse de forma aprofundada. A prova de que os cristãos da Idade Média conheciam as Sagradas Escrituras está nas esculturas e nos vitrais das catedrais. Por que motivo os mestres-de-obras teriam multiplicado as páginas dessas 3 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 “bíblias de pedras” e desses evangelhos transparentes, se os que freqüentavam esses edifícios só podiam ver nelas um enigma? Já se disse que a catedral “falava aos iletrados”, o que é o mesmo que admitir que estes eram capazes de compreender a sua linguagem (ROPS, 1993, p. 58). Ainda com referência à arte dos vitrais nas igrejas e catedrais consideramos fundamental destacar a fala de Teófilo, um monge alemão do século XII. No excerto abaixo, a sua concepção da função educacional da arte é evidente: [...] Tudo ali deve deslumbrar a vista humana; os tectos devem assemelhar-se a brocados; as paredes lembrarem o Paraíso; a profusão da luz das janelas maravilhar, graças à infinda beleza dos vitrais, a variedade e riqueza da composição. Tratando-se da Paixão do Senhor na arte, é preciso que as almas piedosas dos observadores se sintam, na Sua presença, aguilhoadas pela dor. Se contemplarem os tormentos que os santos sofreram nos corpos e as recompensas de vida eterna que receberam, hão-de resolver-se facilmente a ter melhor vida. Se virem como são grandes as alegrias do Céu e tormentosas as chamas do Inferno, hão-de ser animadas pela esperança das suas boas acções, tomadas pelo medo, ao pensar nos seus pecados (apud BROOKE, 1972, p. 112-113). Desse modo, as esculturas, as pinturas e as artes dos vitrais eram inspiradas na narração de acontecimentos bíblicos, como a Paixão de Cristo e em outros ensinamentos cristãos, como a cultura hagiográfica, as quais formavam a base para o processo educacional naquele período. Nesse contexto artístico-religioso, na primeira metade do século XII, a Igreja da abadia real de Saint-Denis, “[...] criação intelectual de um extraordinário monge chamado Suger (1081-1151) [...]” (SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 31) foi construída com base na ideia da [...] combinação de paredes mínimas e áreas máximas de vidro brilhante, pois uma das idéias prediletas de Suger era a de que a contemplação do brilho terreno, na forma de metais preciosos, objetos de joalheria, trabalho de esmalte e vidro colorido, era um importante meio de conduzir o fiel cristão ao caminho da iluminação divina (SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 35). 4 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 Tal como Gregório Magno e tantos outros nos séculos anteriores, Suger considerava que “a mente apática ascende à verdade através daquilo que é material. E, ao ver essa luz, renasce de sua anterior submersão” (apud SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 35). É evidente que da mesma maneira que Gregório Magno e Teófilo, Suger estruturou argumentos em prol da educação pelas imagens, como podemos verificar abaixo: [...] Suger deixou-nos descrições segundo as quais fica claro que os vitrais pretendiam comunicar aos fiéis elaboradas mensagens iconográficas. A contemplação das imagens brilhantemente coloridas guiava-os para o conhecimento das verdades pictoricamente descritas. Suger não poderia ter encontrado um meio mais apropriado do que o vitral – um meio dependente da luz para seus efeitos decorativos – para transmitir a idéia de que a contemplação da beleza material leva à compreensão do divino (SHAVER-CRANDELL, 1988, p. 37). Portanto, a função pedagógica das imagens não era tomada como um fim em si; o fim último era a adoração de Deus: “[...] Olhando a imagem os iletrados aprendem1 a adorar somente a Deus [...]”(SCHMITT, 2007, p. 97). Isso era fundamental para Gregório, pois, “[...] ‘uma coisa é adorar a pintura, outra é aprender graças à história que está pintada o que é preciso adorar” (GREGÓRIO apud SCHMITT, 2007, 97). Para a História da Educação, as contribuições de Gregório Magno, de Teófilo e Suger a respeito da relação entre imagem e educação têm valor incomensurável. Por elas, compreendemos que, para os medievais, a educação dos homens devia começar pela educação dos sentidos – principalmente pela visão. Entendia-se que era com base nesse elemento corpóreo, material – os sentidos –, que mais facilmente se podia despertar o sentimento, alcançar a alma e polir os hábitos e os comportamentos dos homens, objetivando ensiná-los a ser cristãos e pessoas capazes de conviver com seus pares. Nesse universo de discussões, quando pensamos nas imagens e nas pinturas de santos, podemos dizer que pelas suas representações, esses “mortos privilegiados” 1 Não concordamos que apenas os iletrados deviam passar por essa aprendizagem. Para nós, os letrados também não deixavam de ser educados pelas imagens. Para estes, contudo, havia dois caminhos para a aproximação de Deus e sua adoração: a leitura das letras e a leitura das imagens. 5 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 (apud LE GOFF, 2010, p. 30), como Peter Brown se refere aos santos (LE GOFF, 2010), entravam 2 no mundo dos vivos. Essa entrada, de alguma maneira, informava-lhes os comportamentos e as atitudes cristãs tidas como aceitáveis e que os homens deviam aprender. Assim, as Vitae dos santos contadas pela arte – não da escrita, mas da representação iconográfica – sugeriam àqueles que as olhavam (“liam”) com os olhos carnais, que deixassem que os próprios olhos dos “modelos” os tocassem. Desse modo, os olhos dos homens, fixos no olhar dos santos, estabelecia entre eles uma cumplicidade tal que o coração, isto é, os sentimentos, eram tocados. Podia estabelecer-se um processo de conversão e de esforço voltado para o seguimento daquele “modelo”. O santo devia ser um comunicador da vida cristã e, assim, despertar o desejo de ser “melhor”, entenda-se, de ser cristão, com as suas consequências. Eis a sua função comunicativo-educativa. Portanto, perpassava na cultura do medievo a concepção de arte como comunicação. Como lembra Trevisan (2002, p. 75) “qualquer tipo de arte [...] supõe um mínimo de comunicação”. Tendemos a pensar que os medievais não se descuidaram dessa relação. Tudo na imagem se prestava à comunicação: a representação dos gestos corporais, as cores, os olhos. Em relação a estes (os olhos), um grande nome no conjunto dos estudiosos do assunto (da imagem, do ícone3) é Leloup. Em uma de suas obras, referindo-se aos semblantes de Maria, o autor dá destaque aos seus olhos. Assinala que, apesar da variedade de semblantes de Maria, [...] o mesmo olhar nos encontra. Esse olhar nos segue onde quer que estejamos: mesmo se o ícone estiver no “contrário”, continuamos a ser “olhados”. Qualquer que seja o número de pessoas reunidas, em lugares diferentes, em torno do ícone, cada uma se sente pessoal e intimamente olhada, como se o ícone só existisse para ela (LELOUP, 2006, p. 112). 2 Certamente que essa entrada se realizava pelas ações dos próprios vivos. “[...] A palavra ícone vem do grego EIKÓN, que significa imagem, palavra com amplas aplicações e que no Ocidente é extensiva às figuras com volume ou estátuas que representam o Cristo ou os santos. O Oriente Cristão não produz estátuas por considerar o volume como um passo para antropomorfizar a representação e deslizar para a idolatria. Um Ícone, portanto, é simplesmente uma imagem pintada sobre a madeira, com técnica muito especial e de acordo com cânones bem definidos quanto ao tema, composição, cor, harmonia que se pretende pintar” (http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/a_arte_sacra_na_igreja_ortodoxa.html). 3 6 Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 No período medieval, portanto, o homem que olhava a arte e por ela era olhado (LELOUP, 2006), encontrava-se com o divino e, por essa via, encontrava-se consigo mesmo e com os outros homens. Para a História de Educação, importa considerar esse triplo encontro: com Deus, consigo e com os outros homens, afinal, a reflexão aqui apresentada só tem sentido para nós quando não retiramos dela o homem e seu processo histórico de fazer humano, o qual não exclui a educação dos sentidos e da sensibilidade. Nesse processo, no medievo, a arte desempenhou função essencial ao educar os olhos, a vontade, o coração (os sentimentos) e os comportamentos. REFERÊNCIAS: GÊNESIS. In: Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. São Paulo: Edições Paulinas, 1990. GROMBRICH, Ernst. A história da arte. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Guanabara, 1995. LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. Tradução de Marcos de Castro. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. LELOUP, Jean-Yves. O ícone: uma escola do olhar. Tradução: Martha Gouveia da Cruz. São Paulo: Editora UNESP, 2006. ROPS, Daniel. A Igreja das catedrais e das cruzadas. Tradução: Américo da Gama São Paulo: Quadrante, 1993. ______. A Igreja dos tempos bárbaros. Tradução: Américo da Gama. São Paulo: Quadrante, 1991. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução: José Rivair Macedo. Bauru: EDUSC, 2007. SHAVER-CRANDELL, Anne. História da Arte da Universidade de Cambridge: a Idade Média. 10 ed. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte: do saber ao sabor, uma síntese possível. 3 ed. Porto Alegre: Age, 2002. Site consultado: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/iconografia/a_arte_sacra_na_igreja_ortodoxa.htm l. Acesso em 27/03/2011. 7