Mito e Religião. Interpretação Psicanalítica dos Fundamentalismos. Mario Alberto Smulever A.P.A e S.P.R Vivemos submersos nos mitos. Este século nos encontra decepcionados com uma civilização que não realizou os progressos que esperávamos, onde os valores humanos: solidariedade, honestidade, gozo pelo criativo, veem-se continuamente desmentidos por ações delitivas, adições de diversas naturezas e o surgimento de seitas messiânicas e movimentos fundamentalistas. Isto exige de nós, como psicanalistas, procurar entender a estrutura mítica que sustenta ditos fenômenos. No desenvolvimento da cultura, podemos considerar que se foram dando quatro formas de pensamento: mítico-animista, totêmico, religioso, e, por último, lógico-racional. E, como Sigmund Freud nos ensinou, estas formas não desapareceram com o desenvolvimento da humanidade, e, ao contrário, acham-se presentes e ativas em cada homem. Desde o começo, o criador da psicanálise interessou-se pelo estudo de uma das formas de produção do inconsciente mais significativa: os mitos. Em vez de tratar, como seus antecessores do século XIX, o mito como “fábula”, “invenção”, “ficção”, considera o mito como uma “história verdadeira” e, o que é mais importante, uma história de inapreciável valor porque é vivida como sagrada, exemplar e significativa. Sigmund Freud diferencia a “Verdade histórica” aqui tratada, da “Verdade material” realmente acontecida. (4) A primitiva criação intelectual do homem é encontrar sentido para suas angústias primordiais: aquelas que têm relação com sua finitude e seu desamparo ante a natureza. A psicanálise tenta, sem pretensão de ser considerada uma cosmovisão, dar sentido a toda a produção mítico-religiosa do homem, considerando-a produto de seu inconsciente na tentativa de encontrar alívio para os sofrimentos da sua limitada condição humana. Para os primitivos o mito é seu mundo, vivem-no em constante repetição; através de rituais, toda a vida está incluída no mundo mítico. Para o homem civilizado, ao lado do desenvolvimento intelectual que surge quando o sujeito é absorvido pela cultura, existem sistemas de crenças que, sem dificuldade, podemos atribuir a seu mundo mítico. Desta base parte uma das hipóteses desta apresentação: a subsistência de sistemas de crenças antagônicas que dão conta da cisão do sujeito. Por um lado, seu pensamento 1 mítico, resultado da tentativa de resolver as primeiras angústias ancoradas em aspectos indiscriminados tanático-narcísicos e, por outro, sistemas de crenças ligadas ao pensamento lógico-racional. Este último surge ao atravessar a conflitiva edípica, que o insere no mundo simbólico. O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que se pode abordar e interpretar desde perspectivas múltiplas e complementares. Tenta dar sentido ao que o homem é hoje: um ser mortal, sexuado e cultural. Porém, como veremos mais adiante, subsistem sistemas de crenças que o representam como imortal, andrógino e completo. O mito sempre é “vivência”. Implica uma experiência verdadeiramente religiosa, posto que se distingue da experiência ordinária da vida cotidiana. A “religiosidade” dessa experiência se deve ao fato de que atualiza acontecimentos fabulosos, significativos; assiste-se de novo às obras criadoras dos deuses, deixa-se de lidar com o mundo de todos os dias e se penetra em um mundo transfigurado, primordial, impregnado da presença dos “Seres Sobrenaturais”. Para a psicanálise, estes últimos são os pais infantis, com toda a ambivalência implícita no vínculo; sujeitos amados e odiados ao mesmo tempo. Destas primeiras experiências surgem dois tipos de narcisismo: um chamado trófico ou normal, que facilita o desenvolvimento do “infans”, e outro denominado tanâtico, o qual posteriormente promove as estruturas que mencionamos em nossa hipótese. A cultura humana compreende, por um lado, todo o saber e “poder fazer” que os homens adquiriram para governar as forças da natureza e arrancar-lhes bens que satisfaçam suas necessidades; por outro lado, compreende todas as normas necessárias para regular os vínculos entre os homens e, sobretudo, os bens possíveis. Porém, na regulação dos vínculos humanos toda cultura deve preservar suas normas, instituições e mandamentos para evitar que as satisfações pulsionais de uns impeçam as de outros, e, por este fato, a cultura é atacada permanentemente. Segundo Freud (3): “As indagações psicanalíticas desenvolvem o conceito de uma instância especial que se encarregaria de velar, dentro de cada indivíduo, pelo cumprimento da proibição das satisfações pulsionais imediatas. Isto se pode realizar, estabelecendo-se os ideais que toda cultura terá que incluir entre suas possessões psíquicas, quer dizer, os valores que indicam quais são seus objetivos supremos e mais ansiados. A satisfação que o ideal dispensa aos membros de uma cultura é de natureza trófico-narcisista, descansa no orgulho 2 pelo objetivo alcançado. A satisfação narcisista procedente do ideal da cultura é um dos poderes que se opõe à hostilidade à cultura por parte do homem. A cultura prevê, através das construções míticas, os elementos para dissipar os terrores provocados pelo viver diário, e também brinda respostas ao desejo de saber dos homens. Os mitos são uma tentativa de compreender e lidar com as forças e destinos impessoais. Se nos elementos da natureza existem paixões como em nossa própria alma; se nem sequer a morte é algo espontâneo e sim o ato violento de uma vontade maligna; se por toda a parte nos rodeiam na natureza seres como os que conhecemos em nossa própria sociedade; então construímos um mito e sentimo-nos em casa (heimlig) diante do “estranho” (Unheimlig), e podemos elaborar psiquicamente nossas angústias sem nome. Ainda que continuemos indefesos, já não estamos paralisados e desvalidos; ao menos podemos reagir, tentando conjurar, apaziguar, subornar ou arrebatar parte do poder desses super-homens violentos daí de fora com os afluxos recebidos da cultura. Esta situação não é nova, tem um arquétipo infantil, na verdade não é senão a continuação de uma situação inicial; em semelhante desvalimento já nos havíamos encontrado uma vez quando pequenos, diante de um casal de progenitores aos quais temíamos com razão, sobretudo ao pai, porém de cuja proteção contra os perigos externos estávamos seguros. Com o desenvolvimento da cultura a ameaçante natureza perde sua força, porém o desamparo dos seres humanos permanece, e com ele sua nostalgia do pai e dos deuses. Estes retêm sua tríplice missão: desterrar os terrores da natureza, fazer as pazes com a crueldade do destino – em particular como se apresenta na morte – e compensar pelas penas e privações que a convivência cultural impõe ao homem. Todo o desenvolvimento freudiano aponta para a importância do Pai Primordial, porém teorias psicanalíticas posteriores localizam no centro da problemática humana os vínculos com a Mãe Primitiva. A libido segue os caminhos das necessidades narcisísticas e se adere aos objetos que asseguram sua satisfação. Assim, a mãe que satisfaz a fome converte-se no primeiro objeto de amor, e por certo também na primeira proteção frente à angústia. Isto deu lugar a representações religiosas ligadas à exaltação das figuras femininas com semelhante ambivalência à que se teve em relação à mãe. Cabe denotar uma alternância significativa entre a exaltação no matriarcado primitivo, seguido de um obscurecimento de seu papel no 3 patriarcado posterior. Freud,S. (2) propõe que as representações religiosas são ilusões, realizações dos desejos mais antigos, mais intensos, mais urgentes da humanidade e que incluem substantivas reminiscências históricas vinculadas ao chamado complexo paterno, porém, de acordo com o que foi previamente aqui exposto, devemos incluir reminiscências de situações materno- narcisísticas primordiais em ditas representações. Sabemos que as crianças não podem seguir seu caminho de desenvolvimento até a cultura sem passar por uma fase de neurose. Isto significa que uma criança não pode sufocar suas exigências pulsionais sem fazer uso da repressão. A maioria das neuroses da infância se supera espontaneamente no curso do crescimento, em particular as neuroses obsessivas. De modo parecido, pode-se supor que a humanidade em seu conjunto, no curso de seu secular desenvolvimento, viveu estados análogos às neuroses, e sem dúvida pelas mesmas razões: porque nas épocas de sua ignorância e de sua debilidade intelectual, as renúncias pulsionais, indispensáveis à convivência humana, só podiam ser obtidas através da força da repressão. “A religião seria a neurose obsessiva humana universal e, como a da criança, proviria do Complexo de Édipo e do vínculo com o pai”. (3) É certo que a essência da religião não se esgota com esta analogia. Se por uma parte a religião oferece limitações obsessivas, por outra contém um sistema de ilusões de realização de desejo, com um desmentido (verleugnung) da realidade. Dito desmentido também o encontramos em certas patologias como as perversões e as adições. E nós o consideramos essencial para compreender o sentimento mágico-religioso concomitante ao pensamento lógico-racional. As estruturas míticas, subsidiárias das narcisísticas inconscientes subsistem no pré-consciente com as estruturas lógico-racionais. Isto produz uma das cisões do sujeito e permite compreender como certas pessoas com um desenvolvimento intelectual e científico, de acordo com a razão, podem possuir sentimentos mágico-religiosos e participar de atividades sectárias ou de crenças em poderes sobrenaturais. A teoria psicanalítica reconhece distintos tipos de cisões sofridos pelo sujeito; mas neste momento estamos fazendo referência só àquela que surge da oposição entre estruturas edípicas e narcísicas. Esta cisão se manifesta no pré-consciente do sujeito, o qual, de acordo com a primeira (estrutura edípica) reconhece sua finitude e incompletude, porém por desistência da segunda (estrutura narcísica) 4 desmente (Verleugnung) dita percepção e sustenta sistemas de crenças sobre sua imortalidade, completude andrógina e pensamento mágico. Se considerarmos que há dois tipos de narcisismo: um trófico e outro tanático de variável importância, que depende das vicissitudes das primeiras relações objetais, podemos concluir, dizendo que o sentimento religioso depende do narcisismo trófico, produto de um vínculo primário “suficientemente bom”, e que as adições a drogas e a seitas messiânicas fundamentalistas dependem do sadomasoquismo inerente ao narcisismo tanático. O auge de ditas crenças, que mobilizam grandes grupos, provém desse ego ideal narcisista de caráter tanático. Os fundamentalismos religiosos escondem por trás de suas propostas messiânicas, um dos mal-estares mais importantes em nossa cultura, as ameaçantes reminiscências do “Terror Primordial”. Freud,S. (3) introduz o conceito de “Sentimento Oceânico” para dar conta do narcisismo trófico primário, origem do sentimento religioso. Nós temos que incluir o conceito de “Terror Primordial”, que acompanharia esse sentimento oceânico, como expressão do narcisismo tanático. Portanto, para que emerja o sentimento oceânico, deve ser cindido o terror primordial, o qual é projetado no mundo externo. Em todo movimento de massa surge um líder político ou religioso, que pode erigir-se em protetor para o desenvolvimento da cultura, ou de forma maniqueísta projetar em outros: negros, brancos, judeus, muçulmanos, ocidentais, fiéis de outras igrejas, o agente perseguidor, destrutivo, ao qual adjudicam ser o promotor desse terror primordial. E, como diz Freud (3): “Fica aqui, no meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie humana: se seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo em que medida, dominar a perturbação da convivência que deriva da humana pulsão de agressão e autoaniquilamento. Nossa época merece, talvez, um interesse particular com relação a isto. Hoje os seres humanos levaram tão adiante seu domínio sobre as forças da natureza que, com seu auxílio, lhes resultará fácil exterminarem-se uns aos outros, até o último homem. Eles o sabem: daí boa parte da inquietude contemporânea e de seu estado angustiado. E agora cabe esperar que o outro dos “poderes celestiais”, o Eros eterno, faça um esforço para garantir-se na luta contra seu inimigo igualmente imortal. Porém, quem pode prever o desenlace?” 5 Bibliografia 1. 2. 3. 4. 5. 6. Eliade Mircea. (1964). Tratado de História de las Religiones. Ed. Era. Freud, Sigmund. (1927). El Porvenir de una Ilusión. Ed. 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