OS ÍNDIOS TREMEMBÉ E OS SABERES SOBRE O MAR Gerson Augusto de Oliveira Júnior – UECE RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo descrever a pesca artesanal marítima dos índios Tremembé em Almofala, situada no litoral oeste cearense, distante cerca de 272 km de Fortaleza. Constitui resultado da pesquisa etnografia desenvolvida junto a referida população. Longe de ser um espaço homogêneo, o mar é engenhosamente esquadrinhado e organizado. Possui divisões, marcas e caminhos, os quais os pescadores cruzam cotidianamente nas suas viagens de pesca. A organização do espaço marítimo se constitui como um pressuposto indispensável para a navegação e realização da pesca artesanal. Afinal, embarcações como canoas, jangadas e paquetes não possuem instrumentos de navegação, como uma simples bússola, por exemplo. Além do mais, são bastante vulneráveis aos fenômenos atmosféricos. Assim, no exercício diário da profissão, os índios pescadores lançam mão de um conhecimento sobre a natureza pautado na observação e no respeito aos ciclos inerentes ao ecossistema marinho. Revelendo a aptidão para contextualizar e integrar saberes, os Tremembé recorrem à experiência e improvisação para solucionar problemas que surgem inesperadamente durante a navegação, tais como as tormentas e as calmarias. Palavras-chave: índios Tremembé - pesca artesanal marítima – saberes ambientais DIVISÕES DO MAR E SABERES SOBRE A PESCA ARTESENAL Durante toda navegação, é preciso não descuidar e ficar sempre atento para tudo o que está acontecendo na embarcação e em sua volta, o que inclui uma atenção ímpar para com os ventos e suas variações. Adquirir a capacidade de discernir os diversos tipos de ventos destaca-se como um requisito imprescindível para que um pescador possa assumir o leme de um paquete, canoa ou bote e realizar com êxito uma viagem de pesca. Não é qualquer vento que favorece a entrada e a saída do mar. O vento que empurra as velas e lança a embarcação contra as vagas levando os pescadores para os locais de captura não é o mesmo que possibilita o regresso para a terra. Ao término da ornada de trabalho, os pescadores aprontam-se para fazer o percurso de volta, recolhem os instrumentos de captura, guardam devidamente o pescado e a vela içada é entregue às lufadas do vento nordeste, o mais adequado para as viagens de regresso. Na apropriação dos recursos pesqueiros, os Tremembé realizam uma divisão do espaço marítimo, delimitando os locais de pescara e estabelecendo pontos de referência para orientação das rotas náuticas. Para tanto, é considerado, essencialmente, o critério da profundidade das águas, o qual também inclui o alcance da visão humano, no horizonte imaginário, onde a terra é perdida de vista, para demarcar os limites entre “o mar de terra” e o “mar de fora”. O exercício da atividade pesqueira conduz cotidianamente o pescador a uma situação de risco para a sua vida, em face dos perigos que enfrenta no mar. Cada viagem de pesca é marcada pelo desafio frente à onipotência da natureza, a qual se expressa na fúria dos ventos, nas calmarias nos meses de inverno, no duelo com peixes grandes, na navegação noturna, nos naufrágios. Em cada viagem de pesca, os pescadores Tremembé estão sempre às voltas com os perigos inerentes à navegação. No ritmo das vagas, insinua-se um jogo de vida e de morte. No horizonte da pescaria, descortina-se a possibilidade de que talvez se esteja fazendo a última viagem. Isto, porque, ao reconhecerem seus limites, os pescadores inserem a relação com o mar numa acentuada dimensão de possibilidades, na qual nem mesmo o retorno à terra é garantido. O mar se opõe à estabilidade continental, em virtude da perenidade e da imensidão, assim como à ameaça constante dos fenômenos atmosféricos, os quais podem provocar elevação brusca das águas, más pescarias e naufrágios. Invariavelmente, a prática cotidiana dos pescadores se submete a fatores cíclicos, oscilantes e imprevisíveis, tais como borrascas e maremotos, porque, ao contrário da atividade agrícola, na qual os fatores naturais são mais fáceis de serem controlados, na pesca marítima, a imponderabilidade é a característica preponderante. As oscilações dos fenômenos naturais e, notadamente, a fragilidade das embarcações acarretam sérios perigos para os pescadores, de modo que a incerteza é um componente angular na prática da pesca artesanal marítima. Portanto, a divisão operada pelos Tremembé entre “mar de terra” e “mar de fora” pode ser vista como uma tentativa de refutar as ameaças do mundo natural e garantir a plausibilidade num ambiente em que os perigos estão sempre à espreita. Com a organização do espaço marítimo, a imensidão do mar e a sua aparente ausência de limites são minimizadas. Estabelecendo pontos de orientação que permitem o desenrolar das suas ações em relativa segurança, os Tremembé elaboram o suporte espacial necessário para a realização da atividade pesqueira. Ademais, deve-se considerar que o processo de esquadrinhamento e organização do espaço é essencial na criação de um lugar antropológico, isto é, um lugar dotado de sentido e marcas identitárias de um determinado grupo. Por essa razão, os Tremembé pescadores expressam um profundo sentimento de pertença quando se referem ao “mar de Almofala”. O mar, precisamente por se constituir lugar dotado de marcas identitárias e sentido para determinados indivíduos, é também palco de disputas e conflitos. Em Almofala, os conflitos ocorrem com maior freqüência no “mar de terra” e refletem a luta política que os índios travam para fazer valer os seus direitos, entre os quais se destaca a demarcação de suas terras, o que implica também a demarcação de um espaço marítimo do qual depende a sobrevivência dos índios. TRANSMISSÃO DO SABER Conquanto canoas, paquetes, redes, linhas e anzóis constituam-se a dimensão mais visível da atividade pesqueira, a utilização desses instrumentos pressupõe um profundo saber acerca da natureza e seus ciclos. Esse saber é transmitido no próprio exercício da atividade pesqueira e o mestre é o principal responsável pela iniciação dos jovens pescadores. A experiência e o saber dos quais o mestre é guardião lhe reservam lugar privilegiado na hierarquia dos pescadores. Ele lidera a embarcação. Organiza a pescaria e seleciona os tripulantes com quem vai trabalhar. Sua autoridade, entretanto, não se assenta na expectativa da submissão, medo ou obediência dos pescadores, mas objetiva coordenar a ação dos tripulantes de maneira cooperativa. A cooperação é a condição indispensável à viabilidade de uma pescaria satisfatória, a qual diz respeito não só a uma boa produção, mas também ao retorno para a terra de todos os que se encontram à bordo. Aliás, a coesão da tripulação é imprescindível para garantir o sucesso da pescaria e, principalmente, para o enfrentamento dos perigos do mar. Entre outras coisas, cabe ao mestre manter a tripulação coesa e apaziguar as divergências que, porventura, venham a emergir durante o período em que permanecem embarcados. Um bom mestre é definido como aquele que sabe garantir o respeito e possui habilidade para manter a tripulação unida. Isso implica uma posição que não ignora o conhecimento e a opinião dos demais pescadores durante as pescarias. Suas decisões são resultantes do diálogo constante com a tripulação que também opina e participa ativamente durante toda a navegação. A formação de um bom pescador demanda tempo, sendo sedimentada na vida prática do trabalho no mar. Em Almofala, tal como ocorre em diversas comunidades pesqueiras, desde tenra idade os meninos se habituam a conviver com o mar e com todos os afazeres inerentes ao cotidiano da pesca. Frequentemente, os meninos Tremembé andam pela praia entre os pescadores, ajudam na hora do desembarque, levando os peixes, as redes, os anzóis, linhas ou qualquer outro instrumento que possam carregar. Os meninos falam com desenvoltura os nomes dos peixes e do material da pescaria. É comum vê-los ocupando as embarcações ancoradas, alguns empunhando linhas e anzóis, começando a exercitar a arte da pesca. É precisamente por meio das brincadeiras, bem como do contato direto com o mar e a convivência com a rotina da atividade pesqueira, que os meninos Tremembé aprendem as noções de como lidar com as embarcações e se fazem íntimos dos instrumentos de captura. Não existe uma idade especifica para que um principiante embarque para participar de uma viagem de pesca, mas quase sempre sua iniciação ocorre durante as pescarias no “mar de terra” e sob a orientação de um membro da família, ou seja, o pai, um irmão, um tio, um cunhado ou um primo. Entretanto, sempre e invariavelmente um pescador com larga experiência no exercício da atividade pesqueira. Alguns jovens, todavia, estão demonstrando pouco interesse em dar continuidade aos trabalhos de seus familiares. Entre outros argumentos, costuma dizer que as jornadas de trabalho estão ficando cada vez mais exaustivas e provocando pouca produtividade. Esse fato está associado à degradação ambiental e à redução do estoque pesqueiro no mar de Almofala, o que também é fruto da pesca industrial predatória. CONSIDERAÇÕES FINAIS No exercício da pesca artesanal marítima, os Tremembé lançam mão de todo um conhecimento sobre a natureza pautado na observação dos ciclos inerentes ao ecossistema marinho, recorrendo à experiência e à improvisação para solucionar problemas. Os principais recursos de um índio pescador estão encerrados na sua própria pessoa, no conhecimento passado de geração a geração. Longe de refletir uma lógica disjuntiva, tal conhecimento espelha uma qualidade central do pensamento Tremembé: a aptidão para contextualizar, integrar saberes e apreender os fenômenos em sua totalidade. O desinteresse dos jovens Tremembé pela pesca artesanal pode representar o abandono de todo um conjunto de saberes que são de extrema importância no conjunto das práticas sociais e dos elementos simbólicos que compõem o patrimônio imaterial dos índios. Não obstante a este fato, os Tremembé são hábeis mergulhadores e detêm um excelente conhecimento do fundo marinho, o que contribui para ampliar a visão que possuem acerca das ações danosas ao meio ambiente e os reflexos das mesmas na prática da pesca artesanal marítima. REFERÊNCIAS AUGÈ, Marc. Não lugares: uma introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria de Maria Lúcia Pereira. Campinas. São Paulo: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do século). BACHELARD, G. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Denesi. Revisão da tradução Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Tradução de Suzana Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 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ESQUEMA DO POSTER Título: OS ÍNDIOS TREMEMBÉ E OS SABERES SOBRE O MAR Apresentador: Gerson Augusto de Oliveira Júnior Palavras-chave: pesca artesanal marítima – índios pescadores – saberes ambientais Texto: O presente trabalho tem por objetivo descrever a pesca artesanal marítima dos índios Tremembé em Almofala, situada no litoral oeste cearense, distando cerca de 272 km de Fortaleza. referida população. Constitui resultado da pesquisa etnografia desenvolvida junto a Longe de ser um espaço homogêneo, o mar é engenhosamente esquadrinhado e organizado. Possui divisões, marcas e caminhos, os quais os pescadores cruzam cotidianamente nas suas viagens de pesca. A organização do espaço marítimo se constitui como um pressuposto indispensável para a navegação e realização da pesca artesanal. Afinal, embarcações como canoas, jangadas e paquetes não possuem instrumentos de navegação, como uma simples bússola, por exemplo. Além do mais, são bastante vulneráveis aos fenômenos atmosféricos. Assim, no exercício diário da profissão, os índios pescadores lançam mão de um conhecimento sobre a natureza pautado na observação e no respeito aos ciclos inerentes ao ecossistema marinho. Revelendo a aptidão para contextualizar e integrar saberes, os Tremembé recorrem à experiência e improvisação para solucionar problemas que surgem inesperadamente durante a navegação, tais como as tormentas e as calmarias. Os Tremembé são hábeis mergulhadores e detêm um excelente conhecimento do fundo marinho, o que contribui para ampliar a visão que possuem acerca das ações danosas ao meio ambiente e os reflexos das mesmas na prática da pesca artesanal marítima. O desinteresse dos jovens Tremembé pela pesca artesanal pode representar o abandono de todo um conjunto de saberes que são de extrema importância no conjunto das práticas sociais e dos elementos simbólicos que compõem o patrimônio imaterial dos índios.