Diálogos Sociais
Reflexões e Experiências para a
Sustentabilidade do Desenvolvimento
do Norte e Nordeste de Minas Gerais
Aline Amorim Melgaço Guimarães
Ângela C. Porto
Breno Gonçalves dos Santos
Carlos Aberto Dayrell
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
Cid Wildhagen (org.)
Claudia Luz de Oliveira
Francisco Carvalho Duarte Filho
João Silveira d'Angelis Filho
João Valdir Alves de Souza
Justine Bueno
Marcos Antônio Nunes
Miguel Fernandes Felippe
Mônica Alves Gonçalves
Roberto Marinho Alves da Silva
Rodrigo Bandeira de Luna
Belo Horizonte
Instituto de Desenvolvimento do Norte
e Nordeste de Minas Gerais
2008
1
Governador do Estado de Minas Gerais
Aécio Neves da Cunha
Secretária de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento
dos Vales do Jequitinhonha, do Mucuri e do Nor te de Minas
Elbe Brandão
Diretora Geral do Idene
Rachel Tupynambá de Ulhôa
Vice Diretor
Walter Antônio Adão
Diretor de Planejamento, Gestão e Finanças
José Augusto de Oliveira
Diretora de Coordenação de Programas e Projetos
Simone Maria Alves Pereira
Diretor Regional do Norte de Minas
Paulo Almeida Filho
Diretor Técnico do Norte de Minas
Edson Ferreira do Couto
Diretora Regional do Vale do Jequitinhonha
Margareth Fátima Dias Durães
Diretora Regional do Vale do Mucuri
Patrícia Rocha Pinheiro Corrêa
Coordenador Editorial da Série “Diálogos Sociais”
Cid Dutra Wildhagen
Secretária do Projeto
Mariana Ferreira
Colaboradores
Daniella Silva Ribeiro
Nahissa Harumi
Assessoria de Comunicação Social
Andresa Resende
Projeto Gráfico
Tratos Culturais
Normalização Bibliográfica
Fernando Corrêa Bolognini
Revisão Ortográfica
Joana Pinto Wildhagen
Projeto Editorial
Eficaz Comunicação & Marketing
Editora
Instituto Mineiro de Gestão Social - IMGS
Apoio Institucional
Fundação de Auxílio à Investigação e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Sustentado - FUNDECIT
Realização do Sistema SEDVAN/IDENE
Rua Rio de Janeiro, 471, 12º andar - Centro. Cep: 30160-040 - Belo Horizonte - MG
www.idene.mg.gov.br
www.bibliotecaidene.org
2
Diálogos Sociais:
Reflexões e Experiências para a
Sustentabilidade do Desenvolvimento
do Norte e Nordeste de Minas Gerais
1ª edição
Belo Horizonte
2008
3
Organização:
Cid Dutra Wildhagen
Editoração Eletrônica:
Eficaz Comunicação & Marketing
Avenida Francisco Sales, 329 - Salas 207/208 Floresta
CEP: 30150-220 Belo Horizonte MG Brasil
PABX: (0XX31) 3074-6122
e-mail: [email protected]
Capa: Adaptado de: www.idene.mg.gov.br
Normalização Bibliográfica:
Fernando Corrêa Bolognini
Impressão:
Sografe Editora e Gráfica Ltda.
Rua Alcobaça, 745 - São Francisco - Belo Horizonte/MG
Tiragem:
1.000 exemplares
Edição e Distribuição:
Instituto Mineiro de Desenvovimento do Norte
e Nordeste de Minas Gerais
Rio de Janeiro, Nº 471 - 10º andar - Centro - CEP : 30.160-040
Belo Horiznte - Minas Gerais - Brasil
Telefone: 51 (31) 3279-8500 / 3279-8510
© Todos os direitos reservados
Ficha Catalográfica:
Obs.: Os textos não refletem necessariamente a posição do Instituto Mineiro de
Desenvovimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais.
4
PREFÁCIO
Diminuir a distância entre o governo e a população, por
meio de um aumento significativo dos investimentos nas áreas
sociais. Diminuir a distância entre as diversas regiões de Minas,
estimulando o desenvolvimento de um Estado mais solidário.
Diminuir as diferenças entre as pessoas, criando e democratizando
oportunidades. Foram essas as premissas para a criação da Secretaria
de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do
Jequitinhonha, Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN). Porém,
como seria organizar políticas públicas, que fossem capazes de
motivar as pessoas, estimular e motivar os cidadãos a participar
politicamente em um contexto de fragmentação e desigualdade social?
Este questionamento conduziu a uma outra reflexão: qual política
econômica a ser organizada pelo Governo de Minas Gerais, no
território Norte-Nordeste mineiro, capaz de ampliar a percepção,
centrada apenas no aumento da renda, e que fosse capaz de ampliar
as oportunidades da população?
A intervenção direta do Estado, por meio desse novo ator
político, a SEDVAN, reconhecendo as “privações existentes” na
região, conforme vários indicadores sociais, representou um passo
decisivo, e significou a primeira experiência de um governo estadual
em que um órgão público está inteiramente voltado para o
desenvolvimento territorial.
Com base nessas questões, buscando cumprir as
prioridades definidas pelo governo estadual, elegemos a governança
social, conceito em construção, definido como processo que
promove um ambiente social de diálogo e cooperação, com alto
nível de democracia e conectividade, estimulando a constituição de
parcerias entre muitos setores da sociedade, por meio do
protagonismo do cidadão. A democracia, dessa forma, é um ideal
comunitário, não uma abstração, algo distante das pessoas. É na
comunidade que os indivíduos e os grupos podem comunicar-se,
interagir e compartilhar suas atividades e conseqüências.
5
A partir desse conceito, ficou estabelecido o “diálogo social”
- ferramenta na busca da convergência de idéias e sugestões, em
questões estruturais e remoção de entraves para a construção de um
projeto de desenvolvimento das regiões de abrangência. São princípios
norteadores de uma política de “justiça social” que fortemente
relacionam-se e, ao se aproximarem, potencializam seus resultados, e
compõe o eixo principal dos programas e projetos organizados em
toda a região.
Inauguramos, com essa publicação, a série – Diálogos Sociais
- que tem com objetivo ajudar a construir, na teoria e na prática, uma
sólida cultura política de gestão participativa e temas contemporâneos
sobre a região. Esta ação vem sendo realizada por meio de uma série de
conferências de pensadores das áreas da sociologia rural, economia
regional, meio ambiente, gestão social, inovações tecnológicas, cultura
e educação popular. As conferências buscam afirmar uma visão do
desenvolvimento territorial, indicação de rumos, orientações e
posicionamentos sobre os desafios para a construção de um projeto
emancipador. Tudo isso, respeitando a transdisciplinariedade,
ultrapassando o domínio da visão única. A “ética transdisciplinar” recusa
toda a atitude que rejeita o diálogo e a discussão, de qualquer origem,
seja de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou
filosófica. Porque não pode existir uma Secretaria de Governo, que
leva o nome de nossa região, se não se respeitar, com convicção, a
cultura, as práticas e os sonhos daqueles que dão cor e vida aos Vales
e ao Norte de Minas. Esta é a nossa maior riqueza: a nossa cultura,
nossa força e esperança na vida, a cor que colocamos em tudo que
fazemos.
Belo Horizonte, dezembro de 2008
Secretaria de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento
dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN).
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APRESENTAÇÃO
Cid Wildhagen*
Com o objetivo de disseminar a difusão do conhecimento
gerado por pensadores, intelectuais, pesquisadores e especialistas
sobre temas de relevância para as regiões Norte e Nordeste de Minas Gerais, lançamos a série Diálogos Sociais: Reflexões e Experiências para a Sustentabilidade do Desenvolvimento do Norte
e Nordeste de Minas Gerais.
As complexidades desta região se revelam numa imensa
diversidade cultural percebida em tudo de artificial produzido: artesanato, arte popular, música, literatura e dramaturgia.
Sob o ponto de vista social, existe uma enorme teia que
envolve comunidades desiguais de acampados e assentados de reforma agrária, assalariados rurais, produtores familiares (parceiros,
meeiros, posseiros e arrendatários), proprietários rurais minifundistas,
populações tradicionais (ribeirinhas, pescadores artesanais,
quilombolas), garimpeiros, povos indígenas, atingidos por barragens,
comunidades extrativistas, entre outros, além de cidades modernas.
As desigualdades sociais resultam das relações contraditórias, refletidas na apropriação e dominação originadas na forma de ocupação
e colonização destas regiões.
O emaranhado de demandas que ele apresenta, estão a
exigir a construção interdisciplinar de saberes que sejam capazes de
responder muitas questões. Como conhecer e como agir nessa realidade? Quais os significados e identidades deste território? Que debates estão nele contidos? Como perceber as opções para a
*Cid Wildhagen é historiador e atua como Ar ticulador Territorial no Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas. É membro da Câmara Técnica do
Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável e do Conselho Estadual de
Coordenação Cartográfica.
7
sustentabilidade de seu desenvolvimento? Como escolher caminhos?
Um conhecimento que envolva a construção dos saberes por meio
de diálogos sociais, certamente! Um conhecimento complexo que
lança o desafio do desenvolvimento de novos modos de conhecer:
este é o caminho que esta publicação, primeira de uma série, propõe.
Os textos que compõe este primeiro número foram originalmente produzidos para o ciclo de conferências “Em busca do desenvolvimento regional: principais desafios e compromissos”, coordenado pelo sistema SEDVAN/IDENE. As palestras foram realizadas em Montes Claros, Diamantina, Corinto e Belo Horizonte, com o
apoio da Fundação de Auxílio à Investigação e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico Sustentado (FUNDECIT), Universidade
Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Universidade Federal
dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Comitê de Convivência com a Seca, Associação dos Municípios da Microrregião do
Médio Rio das Velhas (AMEV) e do Instituto Mineiro de Gestão
Social (IMGS).
O artigo de Aline Amorim Melgaço Guimarães, que abre a
coletânea se situa no campo analítico do pensamento social brasileiro. Revela a importância da democracia como uma forma de governo que atue na responsabilidade social para com os diferentes segmentos que possui, pensando a diversidade pautada pela inclusão e
promoção dos diversos grupos sociais, principalmente aqueles que
se encontram sub-representados, especialmente minorias ou grupos
atingidos por diferenças estruturais. Destaca a formatação do novo
pacto federativo, firmado a partir da Constituição de 1988, e que se
refere à desconcentração de poderes do Executivo nacional em prol
dos estados e municípios, tendo como perspectiva uma maior abertura e proximidade da sociedade em relação aos gestores locais. A
seguir, faz uma reflexão sobre a prática pública e seus impasses
reais, no que diz respeito aos problemas enfrentados com relação a
construção de práticas cotidianas entre os atores políticos. Nesse
cenário, a municipalização é abordada diante do difícil processo de
compartilhamento de decisões entre representantes do executivo local e sociedade civil, conforme estabelecido constitucionalmente, nos
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espaços construídos para tal Conselhos Gestores Municipais de
Políticas Públicas. Aspectos e experiências, positivas e negativas,
são analisados indicando rumos a serem perseguidos na busca de
maior envolvimento da sociedade civil neste processo de participação política e desenvolvimento social.
O pesquisador Rodrigo Bandeira de Luna apresenta o “Mapa
de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de
Minas” com o propósito de examinar e avaliar as contribuições que
pode trazer para o estudo e o entendimento mais aprofundado da realidade da economia dos 188 municípios que compõem a região. A partir dos resultados das pesquisas, que foram elaboradas em diversas
bases de dados, este trabalho busca apreciar em que medida as subregiões e cada município desta região, sabidamente deprimida, reservam potenciais de crescimento econômico nos diversos setores da sua
economia. Esta análise salienta que, apesar da difícil realidade vivida
pelos seus mais de 2,8 milhões de habitantes, o Norte e o Nordeste
mineiro guardam um inexplorado potencial de aumento da produtividade econômica baseado no estudo dos indicadores dos municípios
limítrofes, da mesma microrregião. Além disso, observa-se que a maior contribuição que pode advir do presente estudo é a disponibilização
destas informações por meio de um sistema capaz de combiná-las, por
meio de tabelas, gráficos e mapas, para a utilização de gestores públicos, empresários, produtores rurais e agentes sociais com foco no desenvolvimento integral da região dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri,
São Mateus e Norte de Minas.
O artigo “Políticas de Incentivo para o Desenvolvimento
Regional”, assinado pelos economistas Francisco Duarte Filho e
Ângela Porto, lança a seguinte indagação: planos e políticas regionais são de fato necessários e desejáveis para orientar o processo de
desenvolvimento? A resposta é afirmativa: malgrado os resultados
obtidos ao longo de várias décadas, no caso mineiro e de outras regiões brasileiras, uma política regional com recursos efetivos e
programaticamente direcionados, continua pertinente. Ampliando essa
questão, os autores dizem que, no caso de Minas Gerais, apesar de,
historicamente, reunir experiências de políticas de desenvolvimento
9
regional de considerável importância, seus efeitos acabaram por privilegiar regiões que apresentavam potenciais de competitividade favoráveis ao incremento do setor produtivo. Esta situação conduziu à
concentração das atividades em alguns centros mais bem equipados
em termos de infra-estrutura sócio-econômica, agravando o cenário
de pobreza e de desigualdade nas regiões desatendidas.
No tocante às áreas mais carentes do Estado, notadamente,
as regiões do Jequitinhonha/ Mucuri e do Norte de Minas, é desejável e mesmo exeqüível, na opinião dos economistas, a formulação de
propostas de estratégias deliberadas, baseadas em instrumentos de
apoio financeiro que, ao lado de objetivos e ações claramente definidos, venham colocar a questão regional de forma efetiva como meta
integrante dos planos, estratégias, objetivos e ações para o desenvolvimento econômico do Estado. Assim, ganha relevância a proposição de constituição de um Fundo de Desenvolvimento Regional. Este
instrumento deve ser capaz de conferir por meio de suas políticas e
objetivos, condições de atratividade de investimentos produtivos e de
infra-estrutura às regiões ou municípios menos favorecidos do Estado, prioritariamente aqueles com índices de IDH abaixo da média
estadual, em especial nas regiões mencionadas anteriormente.
O artigo do pesquisador Roberto Marinho Alves da Silva,
“Políticas Públicas para Convivência com o Semi-Árido”, realiza uma
importante prospecção sobre o tema. A partir da revisão da literatura e dos estudos documentais sobre o Semi-Árido, recupera a construção dos processos de formulação dos pensamentos sobre esta
realidade. Superando a visão do “combate à seca e aos seus efeitos”, que predominou durante quase todo o século XX, apresenta os
fundamentos da sustentabilidade do desenvolvimento. A proposta da
“convivência com o Semi-árido”, superando a abordagem anterior,
vem se caracterizando como uma perspectiva cultural orientadora
de um desenvolvimento cuja finalidade é a melhoria das condições
de vida e a promoção da cidadania. Embora esteja ainda em processo de formulação, suas propostas procuram a harmonização entre a
justiça social, a prudência ecológica, a eficiência econômica e a cidadania política no Semi-árido. O artigo faz uma leitura dessa reali10
dade, e, principalmente, descreve os avanços relacionados às
tecnologias hídricas apropriadas para o Semi-árido, como abastecimento de água, gestão comunitária de mananciais hídricos, manejo
da vegetação nativa, alternativas de silagem e criação de pequenos
animais, dentre outras práticas de sustentabilidade.
O professor Carlos Eduardo Mazzetto Silva abre um universo de reflexões a respeito do choque da modernidade do desenvolvimento com as tradições dos pequenos lugares, povos e culturas da região. O seu instigante artigo “Envolvimento Local e
Territorialidades Sustentáveis” aponta para os problemas causados pelo ideário desenvolvimentista da década de 50, e a “invenção” do subdesenvolvimento, teoria que, segundo o autor, representa as limitações impostas ao mundo periférico à área central da
“economia mundo” (EUA e Europa) pela divisão internacional do
trabalho com o desenvolvimento capitalista no pós-guerra.
Exemplifica esta noção com a “invasão do sertão pela monocultura
e a perda do controle social-territorial, como também as implicações da identidade sertaneja e geraizeira”. Questiona conceitos
como a vida de subsistência, que o rico ocidente interpreta como
pobre. Ao contrário, de acordo com o pesquisador, a economia natural baseada em subsistência, garante uma alta qualidade de vida,
se considerarmos o acesso à alimentação, uma consistente identidade cultural e social e um sentido de vida às pessoas. Convidanos a “reinventar” e criar idéias para gerar impulsos que contribuam para que as populações locais possam manter ou construir a
sustentabilidade de seus territórios. Aponta a perspectiva endógena:
o envolvimento local e o protagonismo camponês para a superação
dessas dificuldades, e a produção agroecológica e o manejo sustentável como meio de produção adequados.
O Coordenador Técnico do Centro de Agricultura Alternativa (CAA) e Mestre em Agroecologia do Desenvolvimento Sustentável, João S. D'Angelis Filho, juntamente com outros colaboradores,
chama a atenção, no artigo “Agricultura Familiar: Importância Econômica e Novos Caminhos para sua Sustentabilidade”, para o segmento como vetor para a dinamização econômica dos municípios.
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Estudos recentes reconhecem uma economia movimentada por complexas redes de relações e experiências que os autores denominam
de “economia invisível”. Situa como exemplo a agricultura familiar
do Alto Rio Pardo, que abriga a maior área plantada de cana-deaçúcar da região (mais de 2.000 hectares), que permite produzir algo
em torno de 10 milhões de litros de cachaça. No entanto, o registro
de cifras irrisórias na arrecadação de ICMS: de R$500,00 e R$1000,00
reais nos anos 2003 e 2004, respectivamente, sinalizam um imenso
campo de atividade econômica que permanece invisível. Uma interpretação imediata desse fato deve-se a aplicação rigorosa da legislação fiscal e sanitária que não deixa permanecer na região nenhuma
cachaçaria. Assim, a sustentação econômica da população local fica
ancorada sobre uma frágil estrutura institucional. De acordo com
D'Angelis e equipe, faltam políticas de apoio ao setor para sua
dinamização. O artigo chama a atenção para a busca de referências
para construção de novos cenários, inspirados nas experiências públicas e da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição de fornecedoras de mercadorias de primeira
geração, de baixo valor agregado, para inseri-las na economia da
informação ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”, como fornecedoras de mercadorias de quarta geração por
meio do valor agregado ao conhecimento tradicional.
O professor João Valdir Alves de Souza apresenta, em seu
artigo “Pedagogia da Alternância: Uma Alternativa Consistente de
Escolarização Rural?”, a organização da Escola Família Agrícola
(EFA) no âmbito do território mineiro e, em destaque, a experiência
da EFA de Turmalina, suas práticas e efeitos para a região. A partir
de uma síntese, demonstra os quatro pilares que caracterizam e “sustentam” esta experiência didático-pedagógica: as associações
mantenedoras da EFA, a Pedagogia da Alternância, a formação integral do aluno e o desenvolvimento local sustentável. Na EFA surge
a reflexão, questionamentos, análises, sínteses, aprofundamentos e
generalizações. A vida do aluno no seu meio, experiências e pesquisas, observações e questionamentos adquirem relevância como um
eixo do processo ensino-aprendizagem. De acordo com o autor, não
há dúvida de que se trata de uma experiência que não pode mais ser
12
desconsiderada em sua concepção, suas práticas e seus efeitos, sobretudo, quando se busca uma alternativa de escolarização adequada ao meio rural de regiões de baixo desenvolvimento econômico.
O livro se conclui por uma análise minuciosa sobre o
“Desmatamento na Bacia do Mucuri em Minas Gerais: Histórias e
Processos Recentes”, competente trabalho organizado pelos
geógrafos Miguel Fernandes Fellippe, Marcos Antônio Nunes e a
pesquisadora Justine Bueno. Narra a história de ocupação da bacia
do Mucuri, marcada pela exuberante retirada da cobertura vegetal
original, os processos ocorridos nos séculos passados e que deixaram cicatrizes na paisagem que ainda hoje podem ser vistas. Alertam
para um necessário esforço coletivo entre o governo, organizações
não-governamentais e população para que a bacia do Mucuri tenha
primazia nos projetos que resultem na recomposição de suas matas
nativas, tendo em vista que os recursos florestais e as terras relacionadas com eles devam ser manejados para suprir as necessidades
sociais, econômicas, ecológicas, culturais e espirituais das gerações
presentes e futuras.
13
14
BREVE INFORME SOBRE
O SISTEMA SEDVAN-IDENE
Criada em caráter extraordinário pela Lei Delegada nº. 49,
de dois de janeiro de 2003, e continuada pela Lei Delegada nº. 112,
de vinte e cinco de janeiro de 2007, a Secretaria Extraordinária para
o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e do Norte
de Minas SEDVAN é uma ação política ousada que visa combater
às desigualdades regionais. Em vinculação direta com o Instituto de
Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE,
sua missão está assim definida: articular, coordenar e deliberar junto
aos agentes econômicos, institucionais e sociais a implementação e
gestão participativa de programas e projetos, que assegurem o processo de desenvolvimento social e econômico dos Vales do
Jequitinhonha, do Mucuri, do Rio São Mateus, Região Central e Norte de Minas, considerando o conhecimento acumulado dos agentes
locais, respeitando suas características e promovendo a transformação das suas potencialidades em riqueza para a região. A área de
abrangência do sistema SEDVAN-IDENE é um espaço equivalente
a 37% da área do Estado de Minas, atuando em 188 municípios,
onde habitam 2.828.480 pessoas, ou 16% da população mineira
(IBGE-2000).
15
16
SUMÁRIO
1. Participação social e políticas públicas: novos rumos para a construção de políticas emancipatórias.......................................................
19
Aline Amorim Melgaço Guimarães
2. Mapa de potencialidades econômicas das regiões do Norte e Nordeste de Minas Gerais: onde está escondido o ouro...............................
45
Rodrigo Bandeira de Luna
3. Políticas de incentivos para o desenvolvimento regional......................
75
Ângela C. Porto e Francisco Carvalho Duarte Filho
4. Políticas públicas para convivência com o semi-árido........................... 107
Roberto Marinho Alves da Silva
5. Envolvimento local e territorialidades sustentáveis: desvelando a
desterritorialização do desenvolvimento................................................. 173
Carlos Eduardo Mazzetto Silva
6. Agricultura familiar: importância econômica e novos caminhos para
a sustentabilidade........................................................................................ 205
Claudia Luz de Oliveira, Breno Gonçalves dos Santos, João Silveira d'Angelis Filho e
Carlos Aberto Dayrell
7. Pedagogia da Alternância: uma Alternativa Consistente de
Escolarização Rural?.................................................................................. 225
João Valdir Alves de Souza e Mônica Alves Gonçalves
8. Desmatamento na bacia do Mucuri em Minas Gerais: causas históricas e processos recentes........................................................................... 251
Miguel Fernandes Felippe, Marcos Antônio Nunes e Justine Bueno
17
18
1
PARTICIPAÇÃO SOCIAL E POLÍTICAS
PÚBLICAS: NOVOS RUMOS PARA A
CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
EMANCIPATÓRIAS
Aline Amorim Melgaço Guimarães *
1. Apresentação
A presente conferência faz parte de um ciclo de reflexões
que tem como objetivos elaborar propostas de desenvolvimento
territorial, indicar rumos, orientações e posicionamentos sobre os
desafios para a construção de políticas emancipatórias capazes de
promover desenvolvimento e inclusão social.
Inicialmente, ela aborda uma importante discussão a respeito de profundas críticas ao modelo democrático minimalista, o
qual teria se tornado hegemônico com o processo da restauração
democrática na Europa, a partir do século XVIII. Em
contraposição a este modelo, o século XX apresenta outras discussões teóricas importantes. Tais discussões, que vêm sendo
abordadas internacionalmente, ressaltam a importância de se refletir a respeito da construção democrática, chamando atenção
para aspectos negligenciados pelo modelo minimalista. Atenta,
ainda, para a necessidade de se pensar sobre o processo de construção democrática principalmente em países que apresentam
grandes disparidades sociais, étnicas, culturais e econômicas. Para
tanto, é necessário o uso de modelos que sejam, ao mesmo tem*Mestre em Ciências Sociais pela UFRN (2006), graduada em Ciências Sociais pela
UFMG (2003), Atualmente é professora convidada do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona no curso de Especialização
em Políticas Públicas, professora titular da Universidade Presidente Antônio Carlos,
professora da Universidade José do Rosário Vellano, da Faculdade de Sabará e professora titular do Centro de Ensino Superior de Itabira. Este texto é a transcrição de
conferência apresentada na UNIMONTES, Montes Claros, em 19 de agosto de 2008,
19
po, realmente representativos destas diversidades e também capazes de construir políticas públicas a partir de um maior
envolvimento e participação social neste processo.
O objetivo desta abordagem é trazer a discussão da teoria
democrática contemporânea para o contexto da nova formatação
democrática nacional, que tem início nos processos de disputa e conflitos que envolveram a construção da Constituição de 1988. Dessa
forma, novos formatos de desenvolvimento de políticas públicas foram configurados, diante do novo pacto federativo assumido, cujo
destaque foi o fortalecimento das instâncias subnacionais de governo, quais sejam, estados e municípios.
A municipalização é abordada, em especial, diante da análise do processo complexo de compartilhamento de decisões entre
representantes do executivo local e sociedade civil nos espaços
construídos para tal, Conselhos Gestores Municipais de políticas
públicas (obrigatórios): Assistência Social, criança e adolescente,
educação, trabalho e saúde. São abordados alguns dos aspectos
que mais têm sido observados na difícil tarefa de envolvimento da
sociedade no processo de deliberação efetiva a respeito das políticas públicas, em conjunto com os representantes do executivo local. Alguns dos aspectos e experiências positivas e negativas são
analisados, com o intuito de indicar rumos a serem perseguidos
nesse processo.
Por último, pretendeu-se apontar novos rumos para a construção de políticas democráticas e emancipatórias, assinalando algumas alternativas possíveis a serem trabalhadas a partir do envolvimento
de diferentes segmentos da sociedade para um maior empoderamento
social, a fim de que este se reflita sobre mudanças na cultura política
local. Para que o embate político ocorra a partir do real
compartilhamento decisório entre Estado e Sociedade é necessário
que aquele atue na construção de um estoque de capital social, tornando a sociedade mais capaz de se posicionar e apresentar seus
interesses frente às propostas e projetos políticos oferecidos pelos
representantes do executivo local.
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2. Democracia Inclusão e Participação Social: muito além do
minimalismo
Observa-se no cenário internacional do século XX, principalmente no período que vai do final da Segunda Guerra Mundial e
durante todo o período da Guerra Fria, a forte ascensão da proposta
democrática. Mais do que isto, trata-se de uma aspiração pela democracia enquanto melhor forma de governo. Por outro lado, tem-se
a proposta que se torna hegemônica, um modelo com fortes restrições da participação e da ampliação da soberania popular. Tal projeto democrático tem seus fundamentos em torno da idéia de que a
democracia seja exclusivamente um procedimento eleitoral com a
finalidade de formar governos (Shumpeter, 1983).
Tendo em vista a forte ascensão da proposta minimalista
de democracia e a perspectiva hegemônica sobre a qual se impôs,
principalmente, entre as democracias desenvolvidas a partir do período pós-segunda guerra, colocou-se o problema da incapacidade deste
modelo democrático refletir sobre a qualidade do governo que promoveria. Isso acontece, mais notadamente, a partir de meados dos
anos setenta, quando há um início do período caracterizado como a
“terceira onda de democratização”.
Quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. Aliás, a expansão global da democracia liberal coincidiu com uma grave crise desta nos países
centrais onde mais se tinha consolidado uma crise que ficou conhecida como a da dupla patologia: a patologia da participação,
sobretudo em vista do aumento dramático do abstencionismo; e
a patologia da representação, o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram.
(Santos, 2001, p.42).
Também é nesse período da “terceira onda de democratização”, que a perspectiva de um modelo de democracia participativa
começa a ganhar força. Há uma necessidade de discussão a respei21
to da qualidade da democracia, da inclusão social nas deliberações
públicas diante dos problemas que Santos (2001) classifica como a
“patologia da representação”. Tal fenômeno tem propiciado a exclusão de diversos grupos sociais, como mulheres, homossexuais, negros, entre outros, da vida política, já que eram escassas as políticas
de reconhecimento das minorias na sociedade.
Diante desta discussão, faz-se importante refletir a respeito do processo de reconstrução da democracia no Brasil, que têm
início a partir da elaboração da Constituição de 1988, a fim de refletir
a respeito do modelo democrático estabelecido institucionalmente,
assim como suas implicações no que se refere às práticas democráticas cotidianas.A Constituição de 1988, trata-se do marco institucional
de um processo o qual ainda se apresenta em construção. Neste
sentido, trata-se de uma reflexão a qual considera a democracia como
sendo um valor, mas não em si mesma. A democracia como uma boa
forma de governo, mas que precisa ser problematizada e repensada
a fim de proporcionar aos diversos e diferentes grupos e segmentos
sociais, melhores condições de vida em sociedade.
Propõe que o processo inicial de institucionalização das
regras democráticas trata-se apenas de um primeiro passo rumo à
construção de qualquer governo democrático. A concepção de democracia minimalista, a qual considera a democracia como sendo
um procedimento para a seleção de lideranças através de eleições
competitivas, pelo povo que governam, não deve ser uma justificativa satisfatória para a escolha desta forma de governo.
Trata-se do ponto inicial de construção de um governo democrático aquele país em que o líder político foi escolhido a partir de eleições periódicas, honestas e imparciais, através de votos, após uma livre
concorrência entre os demais candidatos tendo toda a população adulta
livre direito de participar de tal processo. A partir daí, o governo passa a
lidar com questões que envolvem práticas anteriores ao momento de
institucionalização das regras democráticas, que irão ser percebidas nas
práticas cotidianas, percebidas a partir de uma tensão entre cultura política autoritária e regras democráticas. (Avritzer, 1995).
22
Entretanto, não se trata de pensar um formato de ruptura
com o modelo de representação político-eleitoral tradicional, nem são
estas as proposições teóricas feitas por autores que propõem a participação da sociedade no processo de construção da democracia (Avritzer,
1996; Santos, 2001; Young, 2000; Benhabib, 20021). O objetivo é apenas propor algo novo ao modelo minimalista de representação, observando-se os limites que este apresenta, diante da sua incapacidade de
representação de diversos segmentos e grupos que se encontram excluídos da participação política e o fato de não se verem, nem se sentirem representados pelos seus “representantes” legais-formais.
No presente trabalho observa-se a importância de se pensar
na democracia não como um simples procedimento que tem como preocupação apenas a observância das garantias e instituições formais democráticas. Acredita-se, antes, na importância da mesma como uma
forma de governo que tenha como ponto fundamental a preocupação
com a qualidade das políticas produzidas, assim como da democracia
vivenciada pelos seus cidadãos. A democracia proposta seria, portanto,
uma forma de governo que possua responsabilidade social para com os
diferentes segmentos que agrega, pensando na diversidade pautada pela
inclusão e promoção dos diversos grupos sociais, principalmente aqueles
que se encontram sub-representados, especialmente minorias ou grupos
atingidos por diferenças estruturais. (Santos, 2001;Young, 2000).
3. A Reconstrução Democrática Nacional: Descentralização
e Participação Social
O processo de redemocratização nacional partiu de um longo
processo de negociação de poderes, o qual se concretizou na Constituinte de 1986. Diversos setores da sociedade civil organizada, setores da
burguesia emergente e os diferentes segmentos da esquerda nacional,
representada fortemente na figura do MDB (o qual se fortalecia enquanto oposição parlamentar), se fizeram presentes neste importante
momento para a redemocratização nacional. (Guimarães, 2008).
Trata-se dos autores em discussão no presente trabalho, embora diversos outros autores
trabalhem com esta perspectiva participativa e inclusiva.
1
23
Tais segmentos sociais foram essenciais no envolvimento
com o processo de luta democrática e tiveram um peso significativo
para pressionar os militares e todo o grupo de aliados civis, em prol
da garantia de que a consolidação das instituições democráticas fosse pautada por uma perspectiva descentralizante e participativa, tendo em vista a história política nacional ter se caracterizado, mesmo
em momentos democráticos, pela centralização decisória e pela exclusão de diversos setores da sociedade da participação política.
A redemocratização nacional deve ser analisada enquanto
uma lenta transformação, em que instituições democráticas convivem com uma cultura política não-democrática, ou até mesmo enquanto um misto de duas culturas contraditórias. A consolidação democrática consiste, neste sentido, na consolidação de práticas políticas democráticas entre os atores políticos nos espaços do Estado e
da sociedade civil. (Avritzer, 1995). Tal processo é um longo caminho a ser percorrido.
Faz-se importante perceber, inicialmente, alguns aspectos
de mudança no plano institucional, para, em um segundo momento,
refletir a respeito da prática pública e seus impasses reais, no que diz
respeito a alguns dos problemas enfrentados com relação a uma nova
forma de construção de práticas cotidianas entre os atores políticos.
Trata-se de analisar a forma como o enfrentamento do
compartilhamento de decisões entre Estado e sociedade vem ocorrendo na prática cotidiana, no que tange às mudanças na legislação
as quais inseriram esta inovação na gestão das políticas públicas no
âmbito dos três níveis da federação.
3.1. Descentraliação
Observa-se que a Constituição de 1988, assim como algumas emendas posteriores, tem como aspectos fundamentais a
introdução de uma proposta descentralizadora de poderes políticos
e econômicos, bem como uma abertura à participação política, por
parte da sociedade civil, na deliberação de políticas públicas. (Guimarães, 2008).
24
No que se refere à descentralização, esta pode ter diferentes significados:
1-Deslocamento da capacidade de decidir e implementar
políticas para instâncias subnacionais;
2- Transferência para outras esferas de governo da
implementação e administração de políticas definidas no
plano federal;
3- Passagem de atribuições da área governamental para o
setor privado.
Na presente discussão, faz-se importante dar destaque às
duas primeiras possibilidades descentralizadoras, pois elas incidem
diretamente na discussão a respeito da formatação do novo pacto
federativo firmado a partir da Constituição de 1988, o qual se refere
à desconcentração de poderes do Executivo nacional em prol dos
estados e municípios, tendo como perspectiva política, além da
desconcentração de poderes políticos e econômicos, uma maior abertura e proximidade da sociedade em relação aos gestores locais.
As causas do modelo descentralizador observado no novo
quadro federativo nacional têm por fundamento, duras críticas ao
passado centralizador sob o qual se fortaleceu o modelo unionistaautoritário durante os períodos de ditadura vivenciados no país. No
contexto da discussão a respeito da redemocratização nacional, a
descentralização política e fiscal torna-se sinônimo de democracia,
tendo em vista a idéia de que haveria uma maior possibilidade de
controle e participação da sociedade sobre as decisões políticas por
estas serem tomadas em âmbito local. Além disso, observam-se correlações entre descentralização e maior transparência na gestão das
políticas públicas, além de críticas em relação à ineficiência e ineficácia do modelo centralizador das mesmas.
Neste sentido, as teses que se desenvolveram a propósito
das dificuldades de um Estado centralizador formular respostas adequadas a determinadas demandas políticas são de base fiscal, política e racional.
25
O argumento da crise fiscal está assentado na incapacidade financeira do Estado de atender a todas as demandas da sociedade, sendo que estas seriam provenientes de diferentes focos de interesse e, desta forma, inconciliáveis. Esta crise seria observável a
partir de vários problemas enfrentados, tais como: déficits orçamentários, poupança pública baixa e muitas vezes negativa, deterioração
do crédito do Estado e também em déficit de credibilidade do mesmo. (Zauli, 1999).
A tese da sobrecarga de demandas propõe que o Estado
centralizado estaria submetido a uma alta taxa de demandas, somada ao problema da crise fiscal, o que surte efeito na implementação
das políticas. Assim, devido a uma suposta sobrecarga de demandas,
o Estado teria dificuldades em absorver aquelas da sociedade e, desta forma, não seria capaz de atender às reais necessidades da população através da implementação de políticas sociais.
A tese da crise de racionalidade refere-se a todo este processo de crescente dificuldade do Estado em formular respostas
adequadas às demandas dos diferentes atores sociais, crise esta que
se expressaria na incapacidade governamental de implementação de
respostas necessárias, capazes de justificar o sistema enquanto tal.
(Zauli, 1999).
Este argumento de uma crise de racionalidade culminaria
em uma crise de legitimidade do sistema político centralizado, gerando,
por sua vez, certo consenso sobre a necessidade de descentralização
de políticas do executivo federal em prol dos estados e municípios.
Desta forma, desenvolve-se o argumento altamente disseminado, em
vista do momento de redemocratização do país, de que a formulação e
implementação de políticas em bases regionais, locais, por intermédio
da sociedade civil organizada, permitiriam uma melhor resposta às
demandas sociais dos diferentes setores da sociedade. Este argumento se fundamenta em uma concepção participativa ou deliberativa de
democracia, a qual aponta para o direito da sociedade civil de participar das decisões que se referem aos tipos de serviços e à forma como
estes serão prestados pelo Estado.
26
Faz-se importante destacar a “revolução descentralizadora”
promovida pela Assembléia Constituinte (87/88): “A Constituição de
88 definiu um novo arranjo federativo, com significativa transferência
de capacidade decisória, funções e recursos do governo nacional para
os estados e, especialmente, para os municípios”.(Almeida, 1995, p.92)
No entanto, esse processo de transferência de funções e
recursos não ocorreu instantaneamente; mas vem se desenvolvendo
ao longo dos anos. A Constituição não teria sido clara ao estabelecer
as competências dentre os entes federativos. Ao contrário, teria estipulado aproximadamente trinta funções concorrentes entre os três
entes federativos, União, estados e municípios, sendo boa parte delas na área social. Desse modo, observa-se a importância, na
contemporaneidade, de ações políticas por parte do executivo federal, a fim de que se possam definir as atribuições específicas e as
áreas de cooperação entre as demais esferas do governo. (Almeida,
1995, p.92).
Os problemas enfrentados em relação à concretização das
disposições contidas na Constituição, o papel da União tem sido de
fundamental importância no desenvolvimento de mecanismos para a
promoção de medidas descentralizantes. Alguns estudos realizados
sobre a descentralização de políticas sociais têm demonstrado a importância que a União possui em articular propostas e mecanismos
de indução que sejam bem recebidos pelos estados e/ou municípios,
tendo em vista a autonomia por estes adquirida a partir da referida
Constituição. (Arretche, 1999).
A partir da nova Constituição, estados e municípios adquirem status de entes federados, o que significa que possuem autonomia administrativa, política e econômica definidas constitucionalmente.
Desse modo, é necessário que a União, ao pretender realizar a
descentralização de alguma política, isto é, de colocá-la a cargo dos
estados e/ou municípios, crie incentivos para que haja adesão por
parte dos referidos níveis subnacionas de governo.
Desse modo, na conjuntura atual do Brasil, a adesão dos
governos locais à transferência de atribuições por parte do governo
27
federal tem revelado uma dependência de cálculo racional entre custos e benefícios fiscais e políticos de assumir a gestão de uma dada
política pública e, por outro lado, dos próprios recursos fiscais e administrativos os quais cada uma das administrações, local (is) ou estadual (is) conta para desempenhar de forma eficaz tal tarefa.
(Arretche, 1999, p.115).
3.2. Participação Social
Com relação à participação social, observa-se que a Constituição de 1988 reflete reivindicações sociais, tanto por parte de
movimentos sociais, quanto das esquerdas nacionais, promovendo iniciativas de maior abertura e integração da sociedade no que se refere
às tomadas de decisões a respeito das políticas públicas, assim como
outros mecanismos de consulta popular que vão além da participação
pelo voto no período de quatro em quatro anos. Observam-se tais aspectos, a partir do Art. 5º, Inciso LXXIII, da referida Constituição.
Este garante a inserção da participação popular através da ação popular e do plebiscito. Outra importante conquista, trata-se do direito à
participação nas decisões do governo, em algumas áreas de políticas
sociais como no planejamento municipal – Art.29 Incisos X e XI. No
que se refere à seguridade social, fica assegurada a descentralização
assim como a participação da sociedade na gestão destas políticas,
contidas nos Artigos 194 e 195. Com relação à saúde e à assistência
social, suas perspectivas participacionistas ficam garantidas a partir
dos dispositivos contidos nos Artigos 198 e 204. As políticas de educação também são inseridas neste contexto descentralizador e participativo,
Art. 205 e 206 inciso VI, como também as políticas de promoção e
defesa das crianças e adolescentes, Art. 227.
Diante do exposto, observa-se que a Constituição de 1988
inaugura, de certo modo, um processo de abertura à participação da
sociedade civil, que ocorre, principalmente, com a criação dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Neste sentido, abordaremos alguns
aspectos que foram analisados a respeito de como as práticas públicas
têm se estabelecido nos conselhos gestores obrigatórios, seus maiores
28
impasses na consolidação democrática. (Guimarães, 2008) Propõe-se
analisar quais as barreiras que se colocam à construção da participação
dos diversos grupos da sociedade na deliberação das políticas públicas, a
fim de se pensar a respeito da construção de uma democracia capaz de
refletir a respeito de uma representação que vá além da livre escolha de
representantes pelos seus cidadãos e seja capaz de propor a representação e a inclusão de setores historicamente excluídos da participação
política frente a frente com importantes decisões no âmbito da deliberação das políticas públicas. Mais do que propor um modelo específico de
democracia, apesar de considerar a importância da participação social,
trata-se de refletir sobre o processo que se tem colocado em marcha,
apontando alguns dos grandes impasses contemporâneos.
4. Experiências Participacionistas: Desafios e Conquistas
Antes de abordar a discussão a respeito da participação
social propriamente dita, em quaisquer espaços nos quais ela seja
abordada, faz-se importante destacar alguns dos aspectos que antecedem a construção da participação social no Brasil. Dentre os vários aspectos que permeiam a difícil tarefa do desenvolvimento de
políticas mais participativas no país, encontramos três principais:
1- Desinteresse e desconhecimento da sociedade em
relação aos novos formatos políticos que vêm se desenvolvendo a partir da Constituição de 1988 e que propõem novas
formas de participação que estão além da escolha das representações partidárias. Apesar de termos observado uma
grande mobilização por parte da sociedade civil organizada,
durante os processos de luta em prol da redemocratização
nacional, este intenso movimento não pode ser estendido para
a maioria da sociedade brasileira, nem mesmo para a grande
parte dos municípios nacionais. Diante do longo percurso
histórico de intensa centralização decisória, conforme mencionado anteriormente, grande parte da sociedade brasileira
se viu alijada dos processos políticos durante um longo perío29
do histórico, o que exerce, ainda hoje, um grande reflexo na
cultura política vigente de desinteresse e desconhecimento
em relação às novas possibilidades de participação e
envolvimento com as políticas locais. (Guimarães, 2008).
2- Falta de vontade política por parte dos gestores; tendo
em vista a trajetória de excessiva concentração de poderes
nas mãos dos gestores, nacionais e regionais observada ao
longo da nossa história política, tem-se observado grandes dificuldades nas mais diversas regiões do país (Guimarães, 2008),
por parte dos gestores locais e regionais, em compartilhar decisões e prestar contas a respeito das suas decisões políticas
para com a sociedade, contribuindo para o ciclo de desconhecimento da sociedade em relação aos novos espaços de
“compartilhamento” de decisões no que concerne às políticas
públicas – Conselhos Gestores obrigatórios. (Guimarães, 2008).
3- Cultura política verticalizada. Observam-se, em grande parte dos estados, problemas no que se refere à manutenção de uma cultura política verticalizada por parte dos
representantes políticos, a partir da manutenção de práticas
clientelistas, em detrimento do fortalecimento da cidadania.
Tal fenômeno somado à manutenção de práticas
centralizadoras vem contribuindo para a difícil construção
da participação e envolvimento social na deliberação a respeito das políticas públicas locais, pensadas a partir da Constituição de 1988, a partir de uma concepção de ampla participação de envolvimento social. (Guimarães, 2008).
A fim de refletir a respeito do processo de construção da
democracia no país, considera-se extremamente importante analisar
as relações que vêm se desenvolvendo entre Estado e sociedade
civil, a partir do estabelecimento de espaços criados com a perspectiva de inserção da sociedade na deliberação das políticas públicas,
30
ou seja, espaços que visam o compartilhamento da gestão das políticas públicas. Considera-se importante analisar como, na prática, têmse desenvolvido esta nova proposta de relacionamento.
A escolha destes espaços enquanto objeto de reflexão foi
devido a tratar-se de uma importante inovação do ponto de vista
institucional, os quais prevêem a descentralização decisória e a participação da sociedade, representada a partir de diferentes segmentos e grupos, nas decisões a respeito das políticas públicas.
Os conselhos gestores obrigatórios são os Conselhos de
Assistência Social, Conselho de Saúde, Conselho de Educação, Conselho do Trabalho e Conselho da Criança e do Adolescente. Tais
conselhos foram criados no âmbito dos três níveis da federação, tendo, assim, representação federal, estadual e municipal. Foram escolhidos os conselhos obrigatórios pelo seu caráter deliberativo, observando-se que outros conselhos existentes, apesar da sua relevância,
apresentam um caráter meramente consultivo por parte dos poderes
executivos para com a sociedade civil.
Não se pretende discutir a respeito das peculiaridades
institucionais de cada um desses espaços, mas antes propor uma
análise sobre a construção da participação nesses espaços de deliberação compartilhada, para apontar possibilidades e problemas no
convívio dos atores políticos envolvidos entre os representantes dos
poderes executivos e da sociedade civil, além de propor saídas e
soluções em prol do desenvolvimento de um modelo democrático
que seja realmente inclusivo e representativo.
A partir das análises de alguns trabalhos (Andrade, 2002.1,
2002.2, 2002.3; Bonfim, 2002; Côrtes, 2002; Dagnino, 2002; Kerbauy,
2002; Avritzer, Pereira, 2005), observa-se nesses espaços de gestão
compartilhada com o executivo municipal, no que diz respeito à participação da sociedade civil, a importância de se destacar a existência de algumas descontinuidades nas análises realizadas. O que comprova as diversas formas sob as quais as políticas e práticas políticas
possam vir a ser implementadas, tendo como origem até um mesmo
mecanismo institucional. Tais observações corroboram as
31
inconstâncias e diversidades que se podem verificar neste campo, no
que se refere à participação da sociedade civil nos conselhos e as
sucessivas relações produzidas nestes, entre o poder executivo, nas
diferentes regiões do país. (Guimarães, 2008).
Algumas variáveis podem ser destacadas enquanto essenciais para se pensar o problema da participação, assim como da representação nesses espaços. Aquelas que têm se revelado fundamentais na explicação dos sucessos e fracassos vivenciados pelos
conselhos atualmente são: 1) Forma de escolha dos conselheiros, 2)
Paridade dentro dos Conselhos, 3) Grau de comprometimento com
as entidades que representam, 4) Grau de compartilhamento das
decisões, 5) Grau de transparência dos governos locais, 6) Dependência orçamentária. (Guimarães, 2008).
O sucesso ou fracasso dos conselhos vem apresentando
uma forte correlação com a posição contrária ou favorável dos representantes do executivo para com a sociedade em prol de uma
gestão compartilhada das políticas públicas.
De forma geral, observa-se com relação à primeira variável que a escolha dos conselheiros não obedece a critérios
institucionais rígidos. Pelo contrário, ela é feita a partir da proximidade que possuem com o representante do executivo. O que atenta
contra a real capacidade de representação da sociedade por parte
destes espaços. Uma representação que, mais do que a existente no
interior do Estado, deva preocupar-se em ampliar a representação e
a participação de grupos sub-representados, como minorias e grupos
atingidos por diferenças estruturais (Young, 2000), os quais vêm encontrando, na prática, graves entraves, o que tem contribuído para a
manutenção de falhas na representação, assim como sua a inclusão
no processo político.
Com relação à paridade, trata-se de uma questão de extrema relevância para a possibilidade da transformação das relações
historicamente hierarquizadas entre a sociedade civil e os representantes do executivo, que haja uma distribuição numérica e de poderes reais entre os dois segmentos, para que a participação e a deli32
beração ocorram de forma essencialmente compartilhada, sem que
haja a imposição de uma das partes sobre a outra. Entretanto, na
prática, apenas a paridade numérica vem sendo observada na composição dos conselhos. Há diferenças estruturais entre os participantes, as quais contribuem para uma desigualdade com relação ao
nível de escolaridade e, muitas vezes, para a imposição do saber
técnico, em detrimento de um compartilhamento das decisões. Também existem outros tipos de diferenças que vêm contribuindo para a
desigualdade da participação, como a questão de diferenças culturais e de gênero, entre outras. Tal fato é extremamente negativo do
ponto de vista da afirmação e da construção da democracia. Mais do
que a coexistência dentro dos conselhos, deve-se pensar em um relacionamento pautado pela igualdade entre os grupos, apesar de sua
diversidade. (Benhabib, 2002).
Com relação ao grau de comprometimento com as entidades que representam, faz-se importante destacar que, muitas vezes,
os representantes são escolhidos apenas para compor numericamente
os conselhos, tanto por parte dos representantes do executivo, quanto por parte dos representantes da sociedade civil. Neste caso, não
se tem uma postura de compromisso e representação dos interesses
coletivos que representariam. Trata-se de uma postura de desvalorização dos conselhos e do seu papel enquanto promotor da democratização da elaboração e implementação das políticas públicas.
No que se refere ao grau de compartilhamento das decisões,
grau de transparência dos governos locais e dependência orçamentária, pode-se dizer que tais variáveis encontram-se diretamente relacionadas à postura dos respectivos governos em compartilhar decisões,
preocupar-se em comprovar e publicar os gastos públicos e valorizar a
descentralização decisória, com o fim de gerar condições favoráveis à
participação popular no que se refere às políticas públicas. Tal pressuposto, em relação às experiências positivas e bem-sucedidas dos conselhos gestores, aponta para sinaliza a constante contradição entre a
convivência de uma cultura política autoritária e centralizadora e com
a existência de espaços institucionais democráticos.
33
Tendo em vista o peso da atuação do gestor público para a
legitimação ou não dos conselhos, observa-se que não se pode permitir o real funcionamento democrático desses espaços nas mãos
dos governos locais. Para que estes espaços se tornem independentes e autônomos, é preciso pensar uma série de mecanismos
institucionais que garantam e regulem as ações que se desenvolvam
no seu interior, a fim de torná-los eficazes do ponto de vista da construção de uma democracia inclusiva, plural e representativa.
Para além desta proposta, considera-se necessário o fortalecimento e a criação de novas instituições independentes, capazes
de regularizar e fiscalizar o funcionamento dos conselhos, para tornálos mais incisivamente vigiados e tenham as suas irregularidades denunciadas. Além disso, tal proposta garantiria a institucionalização
real das ações participativas por parte dos diferentes grupos da sociedade, no seu interior, de modo horizontal, livre das desigualdades no
tratamento das diferenças dos grupos envolvidos.
5. Aspectos que Influenciam Positivamente na Construção
da Participação Social nas Polítias Locais
Apesar das grandes disparidades encontradas nas diferentes regiões do país, a partir de alguns estudos analisados (Andrade,
2002.1, 2002.2, 2002.3; Avritzer, Pereira, 2005; Bonfim, 2002; Costa,
2003; Côrtes, 2002; Cunha, 2004; Dagnino, 2002; Duarte, 2004; Filhos,
2002; Kerbauy, 2002; Rêgo, 2002; Silva, 2002; Vilar, 1997), foi possível
destacar alguns dos aspectos que têm sido apresentados como extremamente importantes para a construção da participação social.
1- Força associativa pré-existente no município, antes da criação de projetos e políticas participativas.
Observa-se que nos municípios onde tradicionalmente já
havia um maior envolvimento da sociedade com questões
coletivas, os Conselhos criados desenvolveram-se de forma mais efetiva e vêm se apresentando como referência
34
em espaços de envolvimento e participação democrática.
2- Governo local com características participativas.
Apesar de não se observar esta característica na maioria
dos municípios brasileiros, alguns trabalhos mostram a existência da participação em determinados locais e a importância para a mudança da cultura participativa de forma
hierarquizada para uma proposta mais horizontal, em que o
clientelismo cede lugar à cidadania.
3- Apoio das diferentes secretarias municipais e estaduais, tendo em vista os diversos projetos pretendidos (de acordo com a política específica).
Mesmo aqueles governos que não se mostravam favoráveis
a uma abertura à participação social e ao compartilhamento
de decisões, quando havia aceitação por parte dos secretários municipais (ligados aos seus referidos conselhos), existia
uma grande positividade da participação política nos Conselhos pesquisados. Nesse sentido, por serem as pessoas mais
ligadas aos Conselhos, representando os governos locais,
eram capazes de promover a participação e a deliberação
para a construção das políticas públicas específicas.
6. Aspectos que Influenciam Negativamente na Construção
da Participação Social nas Políticas Locais
Assim como em relação aos aspectos positivos, os estudos
já citados também caminham na elaboração de aspectos que têm
sido destaque como principais obstáculos para a participação social
na deliberação das políticas públicas.
1-Governos locais com características autoritárias e
centralizadoras.
São características que se observam na grande parte dos
municípios brasileiros diante da herança política autoritária
35
e centralizadora que tem marcado profundamente as relações políticas e sociais no país, contrariando os princípios
democráticos definidos institucionalmente, mas que se evidenciam na prática política cotidiana e ganham espaço no
interior dos Conselhos Gestores, em grande medida pela
falta de fiscalização e forte atrelamento desses espaços
aos seus respectivos governos locais.
2- Ausência de força associativa no município, antes
da criação dos projetos e políticas. (Baixo estoque
de capital social).
A luta pela inclusão e participação política observada pelos
movimentos sociais durante o processo de redemocratização
nacional não pode ser generalizada para grande parte dos
municípios do país. Observa-se que a ausência de uma força associativa nos municípios brasileiros é também uma
forte herança do tradicional modelo centralizador decisório,
que marcou grande parte da história política do país, produzindo um desinteresse pelas questões coletivas. Esta característica, por sua vez, dificulta a construção dos Conselhos Gestores como espaços de maior envolvimento social
e participação na construção de políticas públicas que dizem respeito a toda a comunidade referida.
3- Falta de comprometimento dos representantes
com as instituições que representam.
Observa-se que grande parte dos representantes participantes dos Conselhos não agem de acordo com os interesses das instituições com as quais estão envolvidos. Muitas
vezes operam de acordo com suas vontades e crenças pessoais e dificultam a construção da representação no interior dos Conselhos.
Os aspectos abordados acima apresentam alguns dos principais pontos que estão sendo analisados, pois dificultam a promoção
democrática e inclusiva na construção das políticas públicas em nível
local. Apesar de algumas diferenças, grande parte dos Conselhos de
36
diferentes regiões do país têm demonstrado grandes semelhanças no
que se refere ao continuísmo dos problemas enfrentados. Algumas
alternativas contra estes aspectos negativos serão apresentadas ao
final do presente trabalho como propostas para uma melhoria da qualidade da construção das políticas públicas locais e, por sua vez, da
própria democracia nacional, tendo em vista a ampliação da sua capacidade de produzir governos que sejam eficientes, mas, sobretudo, capazes de envolver os cidadãos na construção da sua própria cidadania.
7. Novos Rumos para a Construção de Políticas
Democráticas e Emancipatórias a partir do Compartilhamento
Decisório entre Estado e Sociedade
O presente trabalho não tem como pretensão propor uma
análise rígida a respeito do processo de reconstrução da democracia
no país, nem esgotar a discussão a respeito dos aspectos que vêm
contribuindo e/ou dificultando a construção da participação social, no
que se refere ao compartilhamento decisório na construção de políticas públicas emancipatórias. Este processo encontra-se em movimento e em constante transformação diante dos momentos específicos vivenciados nas relações que se entrecruzam entre sociedade
civil e Estado.
Entretanto, considera-se importante propor uma breve reflexão a respeito de uma rejeição ao modelo hegemônico de democracia durante os processos de luta social, que culminaram com a
Constituição de 1988. Tal rejeição a um modelo minimalista de democracia corrobora a tese da incapacidade e da insuficiência de tal
modelo em dar respostas a questões valorativas e substantivas da
democracia.
Dar uma solução convincente para duas questões principais: a
questão de saber se as eleições esgotam os procedimentos de
autorização por parte dos cidadãos e a questão de saber se os
procedimentos de representação esgotam a questão da representação da diferença. (Santos, 2001, p.46).
Além disso, observa-se que tal rejeição ao modelo
37
minimalista aproxima-se de toda uma discussão que prevê a necessidade da participação social na deliberação das políticas públicas,
já que há uma incapacidade do formato tradicional de representar
os diferentes grupos da sociedade. (Young, 2000). Grupos estes os
quais devem ser portadores dos mesmos direitos, apesar das suas
diferenças culturais, sociais, de gênero, raça, entre outras.
(Benhabib, 2002). Tal perspectiva inicial foi fundamental para a
inauguração de mecanismos institucionais descentralizantes de poder e inclusivos do ponto de vista da sociedade, embora tenha sido
apenas um primeiro passo para a transformação das práticas políticas que envolvem: Estado e sociedade.
Trata-se de propor uma reflexão a respeito da difícil construção da democracia. Uma democracia que deve se preocupar
em se tornar universal, pautando-se na discussão a respeito da
necessidade de uma maior representação e inclusão dos diferentes grupos sociais de forma efetiva nos diversos espaços de participação, como por exemplo, nos conselhos gestores. Uma democracia preocupada em compartilhar decisões e aprender a cada
dia com a diferença e o diálogo, sem, é claro, cair em um
relativismo despreocupado, mas a partir da luta pelo reconhecimento da garantia dos direitos de todos, sobretudo de grupos socialmente menos privilegiados.
No período mais recente, observa-se uma série de discussões em relação ao potencial democrático do novo formato descentralizado de provisão de políticas sociais. Faz-se importante refletir
sobre o formato político desenhado pela Constituição de 1988 quanto
às suas potencialidades de introdução de maiores níveis de transparência com relação à tomada de decisões pelas instâncias subnacionais
de governo, assim como em relação à possibilidade de inclusão da
sociedade civil no que diz respeito à sua capacidade de deliberação,
por meio dos Conselhos Municipais obrigatórios nas áreas de saúde,
educação, assistência social e proteção à criança e ao adolescente e
trabalho; assim como através dos conselhos de orçamentos
participativos adotados por alguns municípios.
Nesse momento, faz-se importante questionarmos a tese
38
da positividade da descentralização como forma de promoção da
democracia, principalmente à luz da tradição autoritária e pouco competitiva do poder ao nível das municipalidades no Brasil. Esse
questionamento é importante por representar a oportunidade de averiguarmos, a partir da análise de casos concretos, o real alcance
democrático das iniciativas descentralizantes.
Além da atuação dos governos estaduais, das desigualdades
econômicas nos municípios, as desigualdades regionais e a enorme heterogeneidade do país tem se constituído ao longo do período republicano numa variável explicativa central, na compreensão das diferenças e complexidades sociais estabelecidas
territorialmente e das conseqüências políticas resultantes desse
processo. (Kerbauy, 2002, p. 13)
Deve-se ainda refletir a respeito da eficácia e eficiência
dos governos subnacionais na prestação de serviços e do grau de
accountability no que diz respeito às ações governamentais. De
acordo com Bonfim (2002), existiria uma aposta com relação à possibilidade de, através da criação desses “espaços deliberativos”, romper-se com a “tradição autoritária e burocrática do Estado brasileiro”; desse modo, as políticas sociais seriam um importante elemento
na construção de uma sociedade menos desigual.
O novo formato de provisão de benefícios sociais no Brasil
deve evoluir no sentido de se buscar novas alternativas institucionais,
com o intuito de promover uma maior participação nos atuais conselhos e, assim, desburocratizá-los, tornando-os representativos à participação deliberativa na esfera pública
Observa-se em relação às análises apresentadas neste trabalho, que a construção da participação social nos conselhos gestores
deva caminhar no sentido da criação de uma rede de articulações
com outras forças sociais da sua localidade, como movimentos sociais, universidades, igrejas, ONGs, instituições públicas e privadas;
como também um envolvimento com setores não organizados.
Dessa forma, destaca-se a importância de desenvolvimento do empoderamento social diante das políticas públicas.
39
Outro aspecto importante com relação ao modelo descentralizado é a tentativa de promover uma maior integração entre a
elaboração e desenvolvimento dos diversos projetos existentes, assim como entre a população beneficiada, a fim de que alcancem uma
maior eficácia.
Contudo, faz-se necessário o fortalecimento de instituições
que regularizem o funcionamento dos Conselhos, assim como promovam a avaliação e o acompanhamento dos diversos programas que
possuem caráter participativo. Observa-se que grande parte dos problemas abordados ganham força atualmente, diante da ausência de
uma intensa fiscalização em relação ao funcionamento desses espaços e das práticas políticas observadas no cotidiano democrático.
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43
44
2
MAPA DE POTENCIALIDADES ECONÔMICAS DAS REGIÕES DO NORTE
E NORDESTE DE MINAS GERAIS:
ONDE ESTÁ ESCONDIDO O OURO
Rodrigo Bandeira de Luna*
1. Resumo
Este artigo apresenta o Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas, com o propósito de
examinar e avaliar as contribuições que ele pode trazer para o estudo e o entendimento mais aprofundado da realidade da economia dos
188 municípios que compõem a região.
A partir dos resultados das pesquisas que foram conduzidas
a diversas bases de dados, este trabalho busca apreciar em que medida as subrregiões e cada município dessa região mineira,
sabidamente deprimida, reservam potenciais de crescimento econômico nos diversos setores da sua economia.
Esta análise salienta que, apesar da difícil realidade vivida
pelos seus mais de 2,8 milhões de habitantes, a região guarda um
inexplorado potencial de produtividade econômica (baseado no estudo dos indicadores dos municípios vizinhos, da mesma microrregião).
Além disso, observa-se que a maior contribuição possivelmente
advinda do presente trabalho é a disponibilização destas informações
por meio de um sistema capaz de combiná-las por meio de tabelas,
gráficos e mapas para a utilização de gestores públicos, empresários,
produtores rurais e agentes sociais, com foco no desenvolvimento
integral da região dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e
Norte de Minas.
*Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV Fundação Getúlio Var gas
(2002) e consultor. Na Universidade de Nova Iorque, especializou-se em Administração para o Terceiro Setor. Trabalhou na Ashoka – Empreendedores Sociais (Washington, DC), fazendo a interlocução com as organizações brasileiras.
45
2. Introdução
O desenvolvimento do Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas como estratégia
para a atração de investimentos, melhoria dos indicadores de produtividade e dinamização econômica da região foi feito a partir
de demanda recebida pelo Instituto Publix1 por parte da SEDVAN2
e do IDENE3.
A partir disso, partiu-se para o desenvolvimento das atividades que possibilitariam a construção de um sistema de informações com dados sobre todas as atividades econômicas presentes em pelo menos um dos 188 municípios da região.
Este documento tem o objetivo de fazer uma análise dos
resultados das pesquisas realizadas às bases de dados, cotejando
as informações resultantes com a percepção sobre o que seria
razoável almejar no horizonte de aproximadamente dois anos4 .
1
Instituto Publix para o Desenvolvimento da Gestão Pública
Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São
Mateus e do Norte de Minas
3
Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas
4
Agradeço a todos os que colaboraram para que este trabalho fosse possível. Destaco o
apoio dedicado e comprometido de toda a equipe da SEDVAN e do IDENE (em especial
a Simone Alves Pereira pelo apoio incondicional a todas as atividades do nosso trabalho
e Cid Dutra pelo convite para a elaboração deste documento), o apoio e a confiança da
diretoria do IDENE, especialmente a Rachel Tupynambá de Ulhôa, Walter Antônio
Adão e a Secretária Elbe Brandão. Agradeço também a dedicação além do limite do
colega Beno Reicher e da equipe da Fábrica de Idéias, Rodrigo Severo e Fernando Vianna.
E, finalmente, a quem, desde o começo tem oferecido suporte e depositado confiança:
os amigos do Instituto PUBLIX, em especial ao João Paulo Mota a quem agradeço pela
qualidade e dedicação durante todo o processo, ao Salo Coslowsky pela concepção
conceitual de todo o projeto e a qualidade do trabalho de acompanhamento da sua
construção e ao Caio Marini, Humberto Martins e Alexandre Borges Afonso pela confiança e o apoio de sempre. Agradeço também aos demais amigos e colegas que contribuíram, leram e revisaram este documento, deram suas opiniões e que, de uma forma ou
de outra, são também co-autores deste trabalho articulador e de caráter agregador.
2
46
3. Concepção e Fundamentos Metodológicos
O desafio proposto foi o de calcular e representar graficamente o potencial econômico de uma região composta por 188
municípios.
Os Objetivos Estratégicos do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI foram utilizados para a orientação
estratégica do trabalho. Assim, partiu-se dos seguintes objetivos
especificamente atribuídos para o trabalho no âmbito da região
analisada:
• Desenvolver a produção local;
• Aumentar produtividade no campo;
• Destaque para o agronegócio.
Para isso, trabalhou-se com dois parâmetros fundamentais.
Em primeiro lugar, a identificação do potencial econômico
é limitada apenas pela criatividade do analista, ou seja, quase tudo é
possível, mas tentar “escolher vencedores” foi um dos grandes erros
da política desenvolvimentista pregressa.
Em segundo lugar, nenhuma economia transforma-se da
noite para o dia, novas atividades nascem de atividades existentes.
As estimativas deste trabalho foram baseadas em dados
secundários e as análises foram tão precisas quanto a qualidade dos
dados encontrados e que foram utilizados na sua confecção.
A partir disso, conduziu-se a análise dos resultados objetivos que seria possível almejar no horizonte de aproximadamente dois
anos e se desenvolveram as fórmulas para o cálculo de dois mapas
(um com premissas conservadoras e outro com premissas arrojadas), além do mapa com a situação atual.
Os valores de referência dos índices de produtividade foram calculados por meio do método da extrapolação, ou seja, foram
feitas generalizações a partir de dados fragmentários, aplicando as
análises a outro domínio, para então inferir possibilidades e hipóte47
ses. Além disso, foram utilizados os dados de referência da própria
região: se o vizinho faz, é possível fazer!
3.1. Metodologia
O detalhamento da metodologia requereu um bom entendimento das atividades da região e familiaridade com os dados disponíveis, tarefas-chave para este detalhamento.
A primeira etapa do trabalho, que consistiu nas atividades que levaram ao cálculo de aproximadamente 160 mil valores
de referência, foi empreendido por meio de seis atividades consecutivas:
• Identificação de bases de dados disponíveis de atividades desenvolvidas na região e privilégios de acesso;
• Segmentar a economia da região em setores;
• Definir insumos fixos e índices de produtividade para
cada atividade;
• Identificar melhores práticas na região para cada atividade;
• Desenvolvimento conceitual do sistema de informações;
• Construção do sistema de informações e migração para
o servidor da SEDVAN/ IDENE.
O estudo aqui apresentado está limitado em função de suas
características, das decisões tomadas e das disponibilidades e qualidade dos dados obtidos. Assim, algumas premissas tiveram de ser
estabelecidas.
Premissas
O município foi a unidade de análise estabelecida em
função de ser a menor unidade de agregação de valor a que se pode
ter acesso por meio da metodologia de pesquisa empreendida.
48
No caso das atividades econômicas dos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal o componente fixo utilizado foi a área plantada ou área
colhida. Neste caso, a premissa é de que o uso do território de
cada município (áreas de lavoura, pastagens e floresta) é fixo,
ou seja, não há aumento destas áreas ou a alternância líquida de
áreas destinadas a cada uma das culturas.
A hipótese de conversão de parte da área agricultável
atual para o cultivo de uma cultura de maior lucratividade na região, portanto, traria um acréscimo líquido de geração de valor
nos territórios abrangidos por esta conversão, mas, ao mesmo
tempo, impactaria negativamente a produção de valor da cultura
de menor lucratividade.
Da mesma forma, outras ações que envolvem ganhos
oriundos da agregação de valor também poderão ser empreendidas tendo como suporte as informações contidas neste Mapa.
Assim, é possível que resultados expressivos sejam conseguidos
por meio de, por exemplo, a agregação de novas indústrias e atividades para beneficiamento local dos produtos da região, seguindo
a lógica de “subir a escada” na cadeia de valor, ou seja, obter
ganhos oriundos da chegada do próximo elo da cadeia a partir das
atividades existentes (e.g. criação de gado frigoríficos curtume).
Assim, não se admitiu que uma nova atividade fosse iniciada em dado município. As projeções foram feitas apenas para
as atividades que já existiam.
Outros componentes também são considerados fixos
tais como: a população economicamente ativa da região, o número de plantas industriais e de estabelecimentos comerciais e
de serviços.
Para os demais setores – pecuária, pesca e aqüicultura,
indústria de extração mineral (indústrias extrativas), serviços,
construção, comércio e indústria de transformação, dada a
indisponibilidade de índices de produtividade para estas ativida49
des, o potencial de incremento da produção de valor em cada
atividade foi extrapolado a partir das informações de outros setores econômicos.
O seu produto foi calculado proporcional à média dos acréscimos calculados para o conjunto das atividades dos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal.
Sendo assim, pressupôs-se que no caso destes setores,
todas as pessoas podem melhorar sua produtividade e todos os
processos podem ter sua produtividade incrementada.
Partiu-se da hipótese, também, que todas as atividades
econômicas têm mercado potencial ilimitado, mas também, por
outro lado, não seria razoável admitir que qualquer aumento de
produtividade maior do que 100% pudesse ser alcançado em um
horizonte de tempo curto. Assim, os valores de acréscimo de geração de valor econômico por atividade superiores a 100% foram
reduzidos para este patamar máximo, a fim de se preservar a
coerência interna deste conjunto de regras.
Outra premissa importante diz respeito às formas por
meio das quais seria possível aos produtores alcançarem valores
de produtividade superiores aos atuais. Com relação a isso, foi
considerado que tanto ganhos de produtividade (e.g. toneladas/ hectare), os quais refletem a qualidade da utilização de técnicas mais equipamentos, quanto ganhos de lucratividade (e.g.
Reais/ tonelada), refletindo a qualidade e o acesso a mercados
em que os produtos ou serviços pudessem ser vendidos a preços
superiores, poderiam causar esta variação na geração de valor
por atividade econômica. Por meio da combinação destes dois
indicadores, produziram-se os indicadores de rentabilidade (e.g.
Reais/ hectare) que foram utilizados para as projeções conservadora e arrojada.
Após a análise das informações e o resultado da extração e
integração de dados, percebeu-se que a variação dos valores dos
indicadores municipais de geração de valor por hectare (R$/ ha) era
50
demasiado grande (e.g. o valor máximo para feijão era de 4.050 e o
mínimo é 60; no caso da laranja, os valores máximo e mínimo eram
11.400 e 330). Contudo, na maioria dos casos, o desvio-padrão não
apresentava valor tão alto, o que indicava que esses valores de máximo e mínimo eram “outliers”, e, portanto, de pouca confiabilidade. Havia
também a possibilidade de polarização dos dados, como aconteceria
se, por exemplo, “gado de corte” e “gado de leite” fossem agrupados
sob um único título “gado”. Aprofundou-se as análises para conferir
qualidade às informações e optou-se por manter estas informações.
Limites
Segundo informações obtidas pela equipe envolvida no projeto, a região é produtora de pinhão-manso. Entretanto, a regulamentação da produção desta cultura no país é bastante nova, datando do
ano de 2008, motivo pelo qual o IBGE, na pesquisa Produção Agrícola Municipal – Cereais, Leguminosas e Oleaginosas 2002-2006 –
não informa dados relativos à cultura. Como a metodologia deste
estudo é baseada em dados secundários, cuja fontes mais importantes são os dados fornecidos pelo IBGE, não foi possível, neste momento, informar os dados relativos a esta cultura.
O girassol, outra cultura que, segundo informações, está
presente na região, também não aparece na pesquisa mencionada
anteriormente.
3.2. Concepção
Como dito anteriormente, a elaboração do Mapa de
Potencialidades Econômicas implicou no empreendimento de seis
grandes tarefas. A seguir, faremos uma breve explicação sobre
cada uma delas.
Identificar os dados disponíveis
Em primeiro lugar, foi necessário que a equipe se familiarizasse com as bases de dados federais e estaduais, além dos dados
51
geridos por entidades privadas para a elaboração de um sumário dos
dados disponíveis.
Segmentar a economia da região em setores
Em paralelo, a economia da região foi segmentada de acordo com os setores econômicos: agricultura, extração vegetal, silvicultura, produtos de origem animal, pecuária, pesca e aqüicultura,
indústria de extração mineral (indústrias extrativas), serviços, construção, comércio e indústria de transformação. A partir destes onze
grupos, procurou-se agregá-los em função da disponibilidade de
dados sobre as 292 atividades econômicas identificadas e da
confiabilidade deles. O nível adequado de agregação foi encontrado quando a amostra por segmento foi razoável e os dados eram
bons e confiáveis. Assim, as seis categorias com que se decidiu
prosseguir o trabalho foram:
• Agricultura;
• Extração vegetal + Silvicultura;
• Produtos de origem animal + Pecuária + Pesca e
aqüicultura;
• Indústria de extração mineral (indústrias extrativas);
• Serviços + Construção + Comércio;
• Indústria de transformação.
Definir insumos fixos e índices
de produtividade para cada atividade
Uma vez pronta a lista detalhada de atividades econômicas classificadas segundo o setor econômico, associou-se a cada
uma delas parâmetros fixos e índices de produtividade. Por exemplo, no caso das atividades agrícolas, o parâmetro fixo foi “área
colhida” e os índices de produtividade foram toneladas produzi52
das por hectare (ton/ ha) e também valor econômico auferido por
tonelada (R$/ ton); unindo-se os dois, tem-se o valor econômico
auferido por hectare (R$/ ha), que representa a eficiência no uso
da terra.
Os índices ideais exigiam informações que não estavam
prontamente disponíveis, como foi o caso dos dados de desfrute
por município. Nesse caso, foi necessário escolher outro indicador de produtividade (“second-best”), por exemplo, arrecadação de ICMS por atividade. Para a pecuária, por exemplo, a
indisponibilidade de informações sobre a produtividade das atividades, levou à busca e utilização da base de dados de arrecadação do ICMS a partir do que se calculou a receita por atividade.
Foi necessário também o uso de estimativas,
extrapolações e busca de dados complementares. Esse exercício
exigiu um profundo conhecimento dos dados disponíveis e das
atividades econômicas retratadas, além de um tanto de
engenhosidade e criatividade na definição de insumos e índices.
Essas três tarefas foram críticas e resultaram nas fundações do sistema de informações no qual se baseia o mapa.
A análise também indicou que há grande heterogeneidade
entre os valores dos indicadores entre as microrregiões. No caso
da cultura do milho, os valores médios variam de 0,26, em
Capelinha, a 2,13 toneladas/ hectare, na região de Corinto (vide
quadro 1).
53
Quadro 1 - Produtividade microrregional
da cultura do milho (em ton/ ha)
Fonte: autor
As informações referentes aos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal, para cada um
dos 188 municípios da região, foram sistematizadas em arquivos eletrônicos incluindo, quando disponíveis, os seguintes dados:
• Área plantada ou destinada à colheita (em hectares);
• Área colhida (em hectares);
• Quantidade produzida (em toneladas);
• Rendimento médio (em quilos/ hectare);
• Valor (em Reais/ por quilo);
• Geração de valor por hectare (em R$ 1000/ hectare);
• Valor por tonelada (em R$ 1000/ tonelada).
54
Neste trabalho também foram feitos os levantamentos de:
• Rendimento médio (em quilos/ hectare);
• Geração de valor por hectare (em R$ 1000/ hectare);
• Valor por tonelada (em R$ 1000/ tonelada).
Identificar melhores práticas na
região para cada atividade
Quando a base de dados foi finalizada, estando
estruturada e preenchida com os dados pertinentes, o próximo
passo foi montar a rotina de consulta às melhores práticas. Para
isso, optou-se por considerar a melhor prática microrregional
por ser esta a menor unidade de análise de municípios agregados e por se acreditar que os municípios pertencentes a uma
mesma microrregião deveriam ser aqueles em que se encontram as maiores semelhanças em termos de condições edafoclimáticas e de indicadores censitários condicionantes da produtividade das atividades econômicas. Isto é, identificou-se que
as melhores práticas microrregionais representavam uma meta
bastante realista sem que fosse necessário recorrer a valores
de referência de fora da região.
Esta alternativa pareceu mais enxuta para esta sofisticação do Mapa e as melhores práticas foram estabelecidas, mantendo-se algumas condições constantes. Outra alternativa teria
sido fazer as buscas apenas nos municípios com perfis semelhantes de clima, temperatura e pluviometria ou que ficassem à
mesma distância de grandes centros consumidores, mas os dados a este respeito precisariam ser tratados para se desenvolver uma cesta de indicadores que dariam os subsídios para a
classificação de cada um dos municípios segundo tipos o que
pareceu bastante complexo e, ao mesmo tempo, pouco produtivo em termos de estabelecer comparações entre os municípios
55
para as 292 atividades econômicas existentes.
Sobre os indicadores de lucratividade, percebeu-se que
as variações entre as regiões são menores, ou seja, há maiores
desafios (ou, pelo menos, maiores disparidades), no caso da utilização de técnicas e equipamentos, do que no acesso a mercados.
Isso não significa que não existam ações importantes a serem
conduzidas no sentido de reduzir disparidades como a que existe
entre o preço conseguido pelos produtores. Retomando o caso da
cultura do milho – que no estudo da produtividade apresentava
variação de até 700% – na microrregião de Janaúba, o indicador
de rentabilidade é igual a 280 Reais por tonelada enquanto, na
região de Capelinha, o resultado é superior a 97%, atingindo o
valor de 550 Reais por tonelada comercializada (vide quadro 2).
Quadro 2 - Lucratividade microrregional
da cultura do milho (em R$/ ton)
Fonte: autor
56
Desenvolvimento conceitual do
sistema de informações
Concluídas essas tarefas, o trabalho estava praticamente
pronto. O passo seguinte foi decidir os detalhes de quais relatórios o
sistema deveria gerar e como representar as extrapolações em um
mapa (agregadas, detalhadas, etc).
Além disso, também foi estabelecida a matriz-escopo que
deveria ser utilizada para fazer a carga de dados no sistema, foram
extraídos os dados setoriais, analisadas as informações e integrados
os dados. Com base neste trabalho, foi desenvolvido o desenho da
arquitetura de informação (wireframes) e o design do sistema para a
construção do piloto.
Por fim, a sofisticação inserida neste modelo foi de “plugar”
os dados projetados de cada atividade na fórmula de cálculo do PIB e
projetar um novo PIB-base para cada município e cada atividade de
acordo com duas perspectivas: uma conservadora e outra arrojada.
Construção do sistema de informações
e migração para o servidor da SEDVAN/ IDENE
Com base nas definições acima, foram desenvolvidos o
módulo de relatórios por setor com as tabelas, gráficos e o módulo de
territorialidade representado por meio de mapas. Neste momento
está em andamento a migração do sistema para o servidor da
SEDVAN/IDENE
4. O Sistema de Informação
O uso de informações estruturadas – elemento fundamental no processo de atuação estratégica das organizações, sendo elas
públicas ou privadas – permite a identificação de questões e tendências de maior impacto em determinados setores da economia, contribui para a transparência na tomada de decisão e possibilita a alocação
mais eficiente de recursos materiais e humanos, bem como níveis
crescentes de eficácia e efetividade das ações empreendidas. O Mapa
57
de Potencialidades Econômicas das Regiões do Norte e Nordeste de
Minas ancora-se nesse pressuposto.
A construção deste sistema de informação capaz de gerar
tabelas, gráficos e mapas informativos dos indicadores de produtividade das atividades econômicas da região dos Vales do Jequitinhonha,
Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas. O sistema dá conta de
organizar e representar os indicadores distribuídos em setores econômicos e atividades. Para cada atividade, o ele apresentará apenas
uma informação: o indicador de produção de valor econômico.
Este sistema foi desenvolvido para que possa ser acessado
a partir da página eletrônica da SEDVAN/ IDENE.
A especificação das dimensões e características essenciais do Mapa de Potencialidades Econômicas das regiões do Norte
de Minas, Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Rio Doce abrange
toda a região que é caracterizada: composta por 188 municípios, tem
2,8 milhões de habitantes, sendo 1,8 milhão de habitantes na zona
urbana (63 %) e 1 milhão de habitantes na zona rural (37%). Com
área de mais de 219 mil km2, sua densidade demográfica é de 12,92
habitantes por km2 e seus municípios distam, em média, 543 km de
Belo Horizonte. Seu PIB per capita é de R$ 2.712, a taxa média de
analfabetismo é de 28,94% e o IDH-M dos municípios variam de
0,568 até 0,784.
O Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas abrange a totalidade dos 188 municípios da
região, subdivididos em quatro mesorregiões:
I. Central: 11 municípios
II. Vale do Jequitinhonha: 53 municípios
III. Vale do Mucuri e São Mateus: 35 municípios
IV.Norte de Minas: 89 municípios
58
15 microrregiões:
I. Águas Formosas: 8 municípios
II. Almenara: 18 municípios
III. Araçuaí: 16 municípios
IV. Bocaiúva: 6 municípios
V. Brasília de Minas: 9 municípios
VI. Capelinha: 8 municípios
VII. Corinto: 14 municípios
VIII. Diamantina: 11 municípios
IX. Grão Mogol: 5 municípios
X. Janaúba: 15 municípios
XI. Januária: 21 municípios
XII. Mantena: 9 municípios
XIII. Montes Claros: 14 municípios
XIV. Salinas: 16 municípios
XV. Teófilo Otoni: 18 municípios
E nove territórios rurais 5:
I. Alto Jequitinhonha: 15 municípios
II. Alto Rio Pardo: 15 municípios
III. Baixo Jequitinhonha: 16 municípios
IV. Médio Jequitinhonha: 18 municípios
V. Noroeste de Minas: 4 municípios
VI. São Mateus: 8 municípios
61 dos 188 municípios da região não estão classificados segundo estas regiões.
5
59
VII. Serra Geral: 16 municípios
VIII. Sertão de Minas: 15 municípios
IX. Vale do Mucuri: 20 municípios
O mapa também abrange as informações recolhidas e sistematizadas sobre todas as 292 atividades econômicas presentes no território em referência e cuja relevância possibilite a análise comparativa dos indicadores de produtividade entre os municípios. As atividades
foram classificadas em função de seis grandes setores econômicos:
I. Agricultura: 43 atividades
II. Extração vegetal + Silvicultura: 12 atividades
III. Produtos de origem animal + Pecuária + Pesca e
aqüicultura: 8 atividades
IV. Indústria de extração mineral (indústrias extrativas):
20 atividades
V. Serviços + Construção + Comércio: 25 atividades
VI. Indústria de transformação: 184 atividades
4.1. Navegação
Para facilitar a visualização e navegação, o Mapa de
Potencialidades foi concebido em duas partes.
A primeira delas é justamente a navegação por região, que tem
por objetivo familiarizar o visitante e percorrer o sistema, utilizando a
abrangência geográfica como principal referência. A estrutura de navegação por regiões permite, a partir do dado mais amplo (norte e nordeste de
Minas), desagregar para o nível de microrregiões, mesorregiões, territórios rurais e, finalmente, por município. O acompanhamento do potencial
econômico utiliza a apresentação gráfica de mapas e tabelas, que traduzem a relação entre os dados informados e os parâmetros para eles estabelecidos. Dessa forma, privilegia-se a rápida leitura do fenômeno analisado, a partir da qual é possível o aprofundamento de informações por meio
60
de mesorregião, microrregião, território rural ou município.
A segunda parte ressalta a navegação por atividade econômica, que propicia ao usuário visualizar o sistema considerando as atividades e setores da economia como referência principal. A estrutura de navegação por atividade econômica permite, a partir do dado mais consolidado
(toda a economia), desagregar para o nível de atividades de cada setor. O
acompanhamento do potencial econômico para os setores utiliza a apresentação de gráficos e tabelas, que traduzem a relação entre os dados
informados e os parâmetros para eles estabelecidos. Dessa forma, privilegia-se a rápida leitura do fenômeno analisado, a partir da qual é possível
obter informações sobre a economia de diversos setores da região.
4.2. Metodologia de Cálculo das Projeções de Valor Econômico
Durante a etapa de desenvolvimento conceitual do Mapa
de Potencialidades Econômicas, identificou-se que sua grande força
estaria na aparente simplicidade. Assim, conduziu-se o trabalho com
apenas três cenários:
I. Situação atual;
II. Situação projetada conservadora;
III. Situação projetada arrojada.
Para cada uma delas, desenvolveu-se sua representação
por meio de um único número, que é o resultado da soma das receitas de todas as atividades econômicas. Assim, os relatórios do sistema foram projetados para oferecerem informações do tipo: hjoje, a
receita total agregada dessas atividades na região é de R$ X; em um
cenário conservador esse número poderia subir para R$ Y, e em um
cenário mais arrojado esse número poderia subir para R$ Z.
Uma vez apresentados esses números sobre o total da região, começa o exercício realmente interessante, que é mostrar, de
diferentes formas, de onde vêm esses valores, ou seja, onde está
escondido o ouro. Por exemplo: o valor conservador de R$ Y pode
ser obtido se os municípios A, B e C adotarem medidas para melhorar os índices de produtividade das atividades D, E e F.
61
A pergunta mais óbvia seria: aumentar como? Conforme
exposto, além do mapa da situação atual, foram feitas duas projeções, uma mais conservadora e outra mais ousada.
No primeiro caso, para o cálculo da projeção conservadora, o
valor foi obtido calculando-se a projeção do valor produzido em cada
atividade, caso sua produtividade fosse aumentada na proporção equivalente ao aumento global da produtividade desta atividade nos municípios de cada microrregião em um desvio-padrão. Por exemplo: a projeção conservadora da produção de valor da cultura do algodão em qualquer município da microrregião de Januária é igual a 16%, que é o valor
de acréscimo da produtividade média dos municípios desta microrregião
quando, à média, é acrescido o valor de um desvio-padrão.
Este valor de incremento na produção foi limitado até um
teto de 70% por considerar-se razoável que cada município compreenda este como um valor máximo para o aumento da produção de
valor para qualquer uma de suas atividades econômicas.
No segundo caso, para o cálculo da projeção arrojada, o
valor foi obtido calculando-se a projeção do valor produzido em cada
atividade caso sua produtividade fosse aumentada na proporção equivalente ao aumento global da produtividade desta atividade nos municípios de cada microrregião caso todos alcançassem a produtividade máxima encontrada em cada microrregião. Por exemplo: a projeção arrojada da produção de valor do leite, em qualquer município da
microrregião de Águas Formosas, é igual a 74%, que é o valor de
acréscimo da produtividade média dos municípios desta microrregião
quando todos os municípios aumentam sua produtividade até o valor
máximo obtido por aquele município que tenha o melhor índice de
produtividade de leite na microrregião.
Este valor de incremento na produção foi limitado até um
teto de 100% por considerar-se o máximo possível a ser almejado
por cada município como um valor para o aumento da produção de
valor para qualquer uma de suas atividades econômicas.
Mas onde estão essas culturas, e quais os municípios com os
melhores índices? O sistema é capaz de oferecer estas informações
desde que o usuário se disponha a testar as suas próprias hipóteses.
62
Assim, começando pelo dado mais agregado possível, foi-se
fragmentando de diferentes formas úteis para que o usuário possa obter
diversas informações sobre o desempenho da economia local de acordo
com o seu interesse e que sirvam de subsídio para a tomada de decisões
estratégicas de empresas, organizações sociais e órgãos públicos interessados em desenvolver ações para o desenvolvimento da região.
Além das consultas por atividade econômica, foram criadas consultas voltadas para municípios o que pode interessar aos
prefeitos que desejem conhecer em detalhe a matriz econômica do
município que administra.
Uma vez compilados os dados e legitimada a técnica de
extrapolação e os seus parâmetros, o desafio foi tornar o mapa amigável para a utilização considerando os seus distintos usuários (governo, produtores, imprensa, organismos internacionais, etc.)
4.3. Características Adicionais
Para que seja possível desenvolver análises que levem em
conta os indicadores censitários condicionantes da produtividade das
atividades econômicas, o Mapa também contém informações dos
municípios quanto a:
• População total (rural e urbana);
• Área total;
• Taxa de analfabetismo;
• PIB per capita;
• IDH-M;
• Distância até a capital.
4.4. Fontes de Informação
Foram consultados os principais temas do SIDRA – Sistema IBGE de Recuperação de Dados para a região estudada, com o
intuito de obtenção de dados referentes à extração vegetal, silvicul63
tura, pecuária e do número de atividades industriais da região estudada (tabela 1986 - Estrutura do valor da transformação industrial
das empresas industriais, segundo o grupo de atividades - Ano 1996
a 2005). As seguintes fontes do IBGE foram pesquisadas para cada
um dos setores econômicos:
• Produção Agrícola Municipal – PAM, 2006 para os dados sobre a agricultura;
• Produção Extrativa Vegetal, 2006 (tabelas 289 e 290)
para os dados sobre a extração vegetal;
• Pesquisa da Pecuária Municipal, 2006 (tabelas 32, 34 e
74) para os dados sobre os produtos de origem animal;
• Silvicultura, 2006 (tabelas 291 e 192) para os dados referentes à silvicultura.
Outras fontes de informação consultadas incluem a Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais para os dados
da Indústria de transformação.
5. Simulação
Para ilustrar os benefícios que o Mapa é capaz de oferecer, desenvolveremos a seguir dois estudos: o primeiro, a partir
da definição das atividades econômicas e o segundo, a partir do
território.
5.1. Oleaginosas
Como já dito anteriormente, dos produtos classificados
como oleaginosas, pudemos identificar apenas quatro: algodão
herbáceo (em caroço), amendoim (em casca), mamona (em
baga) e soja (em grão), que juntas foram responsáveis pela produção de R$ 38 milhões. As produções de girassol e pinhãomanso não foram identificadas nas bases de dados consultadas.
64
As culturas são encontradas de forma mais ou menos
dispersa no território. A cultura mais difundida é o amendoim
que é cultivado em 46 municípios, em seguida vem o algodão,
presente em 22 municípios, seguido pela mamona, presente em
17 municípios e, finalmente, a soja, que é cultivada em apenas
sete dos municípios da região (vide quadro 3).
Quadro 3 – Oleaginosas:
Municípios produtores
Fonte: autor
Quanto à sua distribuição pelas mesorregiões, apenas a
região norte não registra o plantio de qualquer destas culturas. Já as
mesorregiões do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas registram
produção das quatro culturas. A região do Vale do Mucuri e São
Mateus registra cultivo apenas de amendoim e mamona.
Quanto à distribuição do cultivo de oleaginosas em função
das microrregiões, há três delas que não registram esse cultivo (Águas
Formosas, Almenara e Teófilo Otoni). E apenas em Janaúba e Januária
podemos encontrar a produção de todas as quatro culturas.
A microrregião que mais produz algodão é Corinto, responsável por 44,43% da produção de toda a região. No caso do amendoim, o maior produtor é Janaúba que responde por 28,74% da produção regional. A mamona é mais produzida em Januária, com 67,68%
da produção neste território. Finalmente, a soja é a que tem sua produção mais concentrada, sendo 79,43% produzido apenas na
microrregião de Corinto (vide quadro 4).
65
Quadro 4 – Oleaginosas: produção de valor
microrregional (em R$ mil)
Fonte: autor
De forma geral, as microrregiões mais relevantes com relação à produção de oleaginosas são: Corinto que produz 70,12% de
todo o valor econômico resultante do cultivo de oleaginosas, Januária
que responde por 18,88% desta produção, Janaíba, com 3,52%, Montes Claros, com 3,33% e Bocaiúva com 2,78% (vide quadro 5).
Dentre as quatro culturas, a mais relevante em termos
de produção de valor econômico é a soja com 82,86% do valor
total, seguida pelo algodão, com 9,69%, pela mamona, com 5,63%
e pelo amendoim, com apenas 1,83%.
66
Quadro 5 – Oleaginosas: produção de valor
microrregional agregado (em R$ mil)
Fonte: autor
De acordo com a projeção conservadora, o acréscimo
de geração de valor econômico, resultado da produção de oleaginosas, seria de 16,6%. Das quatro culturas, a mamona é a que
apresenta maior potencial, podendo ser incrementada em 50,46%,
o amendoim e o algodão têm potenciais de crescimento de 21,86%
e 20,27% respectivamente, e a soja é a que apresenta menor
potencial de crescimento, com apenas 1,63%. Contudo, vale observar que o pequeno valor de acréscimo percentual para a cultura da soja mascara um grande potencial de geração de valor
que, nominalmente, ultrapassa R$ 4,3 milhões.
67
Analisando-se as microrregiões, o maior potencial de incremento na geração de valor está nas microrregiões de Janaúba,
53,02%; que é seguido por Capelinha, 50,88%; Salinas, 50%;
Januária, 34,89%; Grão Mogol, 32,86% e Araçuaí, 30,62% (vide
quadro 6). Em dentre as mesorregiões, os maiores potenciais estão
na região do Norte de Minas, 16,61% e Vale do Jequitinhonha,
13,89% (vide quadro 7).
Quadro 6 – Oleaginosas: potencial de incremento
na geração de valor microrregional
Fonte: autor
68
Quadro 7 - Oleaginosas: potencial de incremento
na geração de valor mesorregional
Fonte: autor
6. Microrregião de Araçuaí
A microrregião composta por 16 municípios (Araçuaí, Berilo,
Caraí, Catuji, Chapada do Norte, Comercinho, Coronel Murta, Francisco Badaró, Itaobim, Itinga, Jenipapo de Minas, José Gonçalves de Minas, Medina, Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa) tem
231.545 habitantes, sendo 107.700 habitantes na zona urbana (46,51%)
e 123.845 habitantes na zona rural (53,49%). Com área de 14.317 km2,
representando 6,53% da área da região do Norte e Nordeste de Minas,
sua densidade demográfica é de 16,17 habitantes por km2 e seus municípios distam, em média, 594 km de Belo Horizonte. Seu PIB per capita
é de R$ 1.420, a taxa média de analfabetismo é de 31% e o IDH-M dos
municípios varia de 0,594 a 0,689.
De todas as atividades existentes na região, a que representa
o maior valor econômico produzido é a “extração de granito e
beneficiamento associado” com 51,36% do valor total gerado na
microrregião; seguida pela “Construção de rodovias e ferrovias”, com
17,36%; “extração de mármore e beneficiamento associado”, com
10,76%; e “extração de outros minerais não-metálicos não especificados anteriormente”, com 6,77%.
Dentre as 292 atividades econômicas, são registrados valores
de produção para apenas 90. O conjunto destas 90 atividades econômicas produziu o valor de R$ 11,3 milhões na microrregião de Araçuaí.
Destes, 71,5% vieram do setor da indústria de extração mineral; 17,59%
dos setores de serviços, construção e comércio; 10,33% da indústria de
transformação e apenas 0,42% da agricultura (vide quadro 8).
69
Quadro 8 – Microrregião de Araçuaí: participação
dos setores econômicos na economia
Fonte: autor
Quadro 9 – Microrregião de Araçuaí: participação
dos municípios na produção de valor econômico (em R$)
Fonte: autor
70
Os produtos que singularmente representam os maiores
valores, em termos de produto econômico na região, são o café com
29,18%; a mandioca, com 26,59%; a cana-de-açúcar, com 14,79% e
o abacaxi, com 12,46% (vide quadro 10).
Quadro 10 – Microrregião de Araçuaí: participação das
atividades na produção de valor do setor agrícola (em R$)
Fonte: autor
71
7. Conclusão
Este trabalho permitiu observar que a região, de economia
fortemente baseada na indústria e na prestação de serviços, guarda
um expressivo potencial de crescimento econômico especialmente
no setor agrícola. Para que seja possível desfrutar deste potencial
são necessários esforços e investimentos de todos os tipos de recursos por parte dos atores-chaves deste processo, notadamente, empresários, gestores públicos e agentes de desenvolvimento social,
econômico e ambiental.
Desta forma, espera-se ter sido possível contribuir para a
compreensão de que as ações em processo de condução para o aprimoramento das condições sociais, especialmente nas áreas de saúde
e educação, precisam ser complementadas com investimentos dos
demais setores da sociedade para que a região tenha um crescimento
sustentado e promotor de bem estar para toda sua população.
7.1. Parceiros: Sedvan, Idene e Publix
Instituto de Desenvolvimento do Norte
e Nordeste de Minas
O Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de
Minas – IDENE foi criado em 2002 para promover o desenvolvimento econômico e social das regiões Norte e Nordeste do Estado
de Minas Gerais e formular e propor diretrizes, planos e ações,
necessários ao desenvolvimento econômico e social destas regiões, compatibilizando-os com as políticas dos Governos federal e
estadual. Responsável por toda articulação e desenvolvimento do
Norte e Nordeste de Minas, planeja, coordena, supervisiona, orienta e executa ações sempre tendo em vista os interesses das
regiões Norte e Nordeste.
O IDENE atua de forma articulada com os demais órgãos
e entidades dos poderes executivos municipais, estadual e federal
além de entidades privadas, nacionais ou internacionais que atuem
72
nas áreas de desenvolvimento das regiões Norte e Nordeste.
Também articula com os organismos competentes para a
fixação de critérios de concessão de estímulos fiscais e financeiros;
combate aos efeitos da seca; proteção e conservação do patrimônio
cultural, histórico, arqueológico, espeleológico e paisagístico e o desenvolvimento do turismo ecológico e rural.
Secretaria de Estado para o
Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha,
Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas
A Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales
do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas –
SEDVAN foi criada em 2003 para fortalecer politicamente esta região mineira de economia historicamente deprimida. A secretaria incorpora o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas – IDENE, como órgão operacional, e tem como missão
“oportunizar as potencialidades do Norte e Nordeste de Minas em
desenvolvimento político e sócio-econômico sustentável”. Sua missão se orienta pelo objetivo estratégico de reduzir as desigualdades
da região, objetivo este inserido no Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI.
A criação da secretaria traduziu-s em uma atitude inédita
que caminha na busca de alternativas inovadoras na construção da
história de uma região que convive simultaneamente com a pobreza
e muitas potencialidades naturais, culturais, sociais e econômicas.
Tem como estratégia absorver o acúmulo dos conhecimentos locais
e implementar, com eficiência, criatividade e permanente participação popular, projetos e programas que resultem em efetivos avanços
do bem estar da sociedade.
Desempenha um importante papel na redução do problema
da desigualdade ao gerar um contexto favorável ao surgimento de novas
associações civis e estimular a participação da população no planejamento e execução de políticas públicas e na tomada de decisões.
73
Instituto Publix para o Desenvolvimento
da Gestão Pública
Em atuação desde 1999, o Instituto Publix foi criado com a
finalidade de desenvolver conhecimentos inovadores em gestão e
transformá-los em resultados para governos, organizações e pessoas.
Tendo como competência essencial a gestão para resultados, a Publix oferece soluções integradoras abrangentes, abordando
as diversas dimensões da gestão: Estratégia, Estrutura, Pessoas, Processos, Sistemas de Informação e Controle por meio de uma rede de
profissionais com vivência executiva nos setores público e privado,
trajetória acadêmica de destaque e larga experiência em consultoria.
A utilização de uma metodologia própria de gestão para
resultado, dotada de flexibilidade para propiciar sua customização às
necessidades e características únicas de cada organização, admite
também a integração com outras metodologias.
Possui uma abordagem de trabalho participativa, baseada
no desenvolvimento das capacidades e na apropriação do conhecimento pelos clientes.
74
3
POLÍTICAS DE INCENTIVOS PARA O
DESENVOLVIMENTO REGIONAL
Ângela C. Porto e Francisco Carvalho Duarte Filho
Consultores da P&D Consultoria Econômica
1. Apresentação
O presente artigo pretende levantar a discussão sobre a
questão das políticas de incentivos para o desenvolvimento do Estado e de suas regiões, abordando a necessidade e a oportunidade de
se estabelecerem ações direcionadas, sobretudo para regiões mais
atrasadas.
O objetivo é incluir a política de incentivo ao desenvolvimento regional como uma prioridade na agenda do governo estadual
e da sociedade. Assim, seria possível promover uma integração das
regiões mais carentes e absorver as potencialidades regionais, visando assegurar acesso mais eqüitativo aos benefícios do processo
de desenvolvimento.
Sabe-se que os problemas regionais, especialmente em
Minas Gerais, são de grande profundidade quanto ao seu conteúdo e
natureza, requerendo, portanto, soluções que vão além do mero ato
da disponibilização de recursos. Tais saídas devem estar estreitamente ligadas à consecução de políticas e planejamento governamental, com foco potencial no combate às desigualdades regionais e
à pobreza.
Desta maneira, o trabalho visa reunir informações que sejam traduzidas no conhecimento atual de instrumentos de política
regional e em perspectivas para a formulação de um novo modelo
de sustentação do desenvolvimento regional. Para tanto, é necessário que se conheçam, pelo menos em linhas gerais, as ações no âmbito
75
do governo federal, medidas e ações institucionais para a recuperação
e criação de políticas nacionais regionais e a experiência da União
Européia, em suas atividades de apoio financeiro a projetos de desenvolvimento econômico para os países membros. Com isso, pretendese estabelecer uma referência para a discussão da criação de instrumento de apoio financeiro, que seja aplicável à realidade mineira, a
qual já se sabe, antecipadamente, ser totalmente distinta das demais.
2. Introdução
É sabido que as políticas sociais desempenham importante papel
no processo de distribuição de recursos e de integração regional. Portanto, elevar sua eficácia e incrementar as fontes de financiamento passam a ser metas fundamentais para fortalecer esse papel. Neste contexto, a criação de novas oportunidades de emprego com efeitos diretos
e indiretos sobre o nível de renda, torna-se objetivo da maior relevância
na busca de maior equidade no processo de desenvolvimento.
A integração dos recursos materiais e humanos das regiões atualmente menos favorecidas no processo produtivo é essencial para o alcance daqueles objetivos. Todavia, o esforço a ser realizado deve ser acompanhado de iniciativas que resultem no fortalecimento das instituições públicas. Isso pode ser conseguido através de
políticas, estratégias e regras claras, bem definidas, sustentadas por
fontes confiáveis e duradouras de recursos, com vistas ao incremento da produtividade dos setores mais atrasados e da capacitação dos
grupos de menor renda.
Nesse sentido, políticas regionais direcionadas para regiões mais atrasadas devem constituir-se em prioridade nas agendas
dos governos federal e estadual. Dessa forma, possibilita-se a
integração de suas populações e a absorção das potencialidades regionais, assegurando um acesso mais eqüitativo aos benefícios do
processo de desenvolvimento.
Na verdade, os desequilíbrios e as desigualdades regionais
no processo de desenvolvimento situam-se entre os principais de76
safios a serem enfrentados pelos diferentes níveis de governo. Isso
ocorre em função de um elenco de fatores, os quais conduzem à
concentração das atividades em poucos centros mais equipados em
termos de infra-estrutura socioeconômica, cuja força polarizadora
causa a ampliação ou a manutenção dos diferenciais de renda e de
oportunidades entre as regiões.
Considera-se aqui, como elemento primordial para balancear a força polarizadora dos centros hegemônicos, a existência de
uma rede de cidades médias melhores estruturadas e fortalecidas,
para competir por investimentos e produzir um maior equilíbrio no
processo de desenvolvimento. A inexistência dessa rede de cidades
é entendida, entre outros fatores que se inter-relacionam, como um
elemento determinante da perpetuação dos desequilíbrios existentes
entre as regiões de Minas Gerais.
É fato reconhecido que as forças de mercado por si só não
promovem uma automática desconcentração produtiva e, mesmo
quando isso ocorre, elas não o fazem na velocidade e na direção
desejada na maioria dos casos, o que, em princípio, pode implicar na
necessidade de intervenção governamental.
Por outro lado, fica a questão: planos e políticas regionais
são de fato necessários e desejáveis para orientar o processo de
desenvolvimento? Malgrado os resultados obtidos ao longo de várias
décadas, no caso mineiro e de outras regiões brasileiras, uma política
regional com recursos efetivos e programaticamente direcionados,
continua pertinente.
As regiões mais pobres apresentam, no Brasil e em Minas
Gerais, não apenas uma grande base territorial com recursos variados e abundantes que lhes conferem grande potencial, mas também
fortes carências e deficiências nos sistemas de infra-estrutura e de
rede de cidades que lhes impõem condicionantes e restrições para
decolarem. São regiões detentoras de um contingente populacional
expressivo, que vivem em condições de vida e bem estar altamente
precários.
77
Acrescente-se que, no interior dos estados, os problemas
são, invariavelmente, ainda mais graves. Nos níveis estaduais e municipais de governo, os recursos são mais escassos e os desafios e
problemas a serem enfrentados são ainda maiores para a superação
das desigualdades internas.
Acredita-se que definições claras de estratégias e objetivos sejam indispensáveis, isto é, necessita-se de políticas deliberadas, não apenas para a superação dos problemas de desigualdades,
mas também para valer-se das possibilidades de uso mais eficiente
das potencialidades intra-estaduais, seja no âmbito das macrorregiões,
das microrregiões ou dos municípios.
Procura-se, a seguir, destacar alguns temas que permitam entender o quadro das desigualdades regionais como um
problema persistente no Brasil e em Minas Gerais. Este tema
ainda se constitui em um “tabu” no processo de desenvolvimento e, por suas dimensões, deve ser tratado como o grande desafio no campo das mudanças rumo ao desenvolvimento de uma
sociedade mais justa.
3. Aspectos dos Problemas Regionais em Minas Gerais
Ao longo de sua trajetória, Minas Gerais envidou esforços
em busca do desenvolvimento através de políticas e ações capazes
de promover uma melhor inserção do Estado no cenário econômico
nacional, associados a uma distribuição mais eqüitativa das atividades econômicas em seu território e a uma melhor qualidade de vida
de sua população.
Minas Gerais foi pioneira na adoção de planos intra-regionais destinados ao conhecimento das limitações e dos potenciais de
suas regiões, em especial daquelas que são consideradas áreas-problema no contexto do Estado e mesmo do País1.
Os diferentes potenciais de desenvolvimento e os problemas
1
Como exemplos destas iniciativas citam-se os planos regionais desenvolvidos pela Fundação João Pinheiro durante a década de 70, endereçados às diversas regiões mineiras.
78
que caracterizam as diversas regiões refletem a diversidade social, econômica, ambiental e cultural presentes no país e em Minas Gerais, e se
constituem na matéria-prima das políticas públicas regionais, elemento
fundamental para qualquer estratégia de redução das desigualdades e
da pobreza.
É importante destacar que a busca pelo conhecimento da realidade econômica e social do Estado, sempre foi prioridade para Minas
Gerais, por entender que o desenvolvimento de uma região depende,
fundamentalmente, da quantidade e da qualidade da infra-estrutura de
apoio e suporte à população e às atividades produtivas, dos recursos
disponíveis e do grau de sua utilização, fatores esses potencializados
pela educação adequada de seu contingente populacional.
Para entender a complexidade e a profundidade da questão
regional é necessário ir além de uma visão apenas setorialista e incorporar as especificidades do espaço onde se localizam e se desenvolvem as
atividades econômicas, no que tange aos aspectos sociais e de infraestrutura. Para tanto, é indispensável deter o conhecimento das características das regiões e a contextualização dos problemas a serem
equacionados e dos recursos a serem explorados.
Em diferentes momentos da história econômica do Estado,
problemas estruturais foram identificados e ações e programas foram
acionados com diferentes graus de sucesso. O estabelecimento de uma
tradição de estudos sobre a economia mineira e de adoção de planos de
desenvolvimento levou à articulação de um aparato institucional de promoção do desenvolvimento do Estado de Minas Gerais, que formavam a
base de apoio e sustentação das políticas implementadas nos anos 702.
A ampla literatura sobre a economia mineira mostra que,
de fato, a experiência do Estado é rica em planos, programas e projetos para o desenvolvimento da economia e também de medidas3 e
ações que permitiram ao Estado conhecer sua realidade e buscar o
Várias experiências são discutidas em Duarte Filho, F.C., “Reflexões sobre a questão
regional em Minas Gerais”, Cadernos BDMG n. 13, Dezembro, 2006.
3Ao lado dos planos regionais e como suporte aos mesmos buscou-se dividir o Estado em
regiões de planejamento devendo-se citar ainda a criação do CEDEPLAR na FACE/
UFMG para formar pessoal técnico de alta qualificação e elaborar estudos e pesquisas
sobre a economia mineira.
2
79
equacionamento de deficiências em sua estrutura produtiva e a redução das desigualdades econômicas e sociais entre as regiões mineiras. No entanto, neste segundo aspecto, as iniciativas parecem
não ter sido suficientes para atenuar ou superar os problemas.
Pode-se dizer que, no caso do Brasil e de Minas Gerais,
apesar de, historicamente, reunir experiências de políticas de desenvolvimento regional de considerável importância, seus efeitos acabaram por privilegiar regiões que apresentavam potenciais de
competitividade favoráveis ao incremento do setor produtivo. Esta
situação conduziu à concentração das atividades em alguns centros
melhores equipados em termos de infra-estrutura sócio-econômica,
agravando o cenário de pobreza e de desigualdade nas regiões desatendidas.
A experiência demonstra, ainda, que os incentivos fiscais e
os subsídios ao setor privado tiveram efeito limitado ao induzir o deslocamento de empresas de médio/grande porte para regiões menos
desenvolvidas, ocasionando impacto mais relevante sobre decisões
de localização em áreas com estruturas semelhantes ou mais próximas aos centros consumidores.
4. Fatores Inibidores do Desenvolvimento Regional
4.1. Tendências à Concentração Espacial das Atividades
Um forte condicionante de crescimento regional equilibrado é a tendência à concentração espacial inerente às atividades produtivas. O processo de desenvolvimento capitalista é concentrador
por natureza e que, assim, a própria dinâmica da estrutura espacial
vigente age no sentido de imprimir um padrão concentrado à distribuição dos novos financiamentos, influenciados por fatores locacionais
relevantes.
A constatação é de que o processo de desenvolvimento em
qualquer país, estado ou região se dá inicialmente de forma concentrada em termos espaciais, privilegiando os centros urbanos de maior
80
porte. Isso resulta do fato de que a indústria, carro-chefe do processo de crescimento, necessita de grandes aglomerados urbanos para
evoluir.
Neste quadro, o processo de globalização, em curso nas
últimas décadas, é um elemento externo que vem apresentando ou
impondo restrições e obstáculos à promoção de um crescimento espacialmente equilibrado, porque reforça a concentração das atividades econômicas e sociais em um número limitado e selecionado de
localidades.
Durante os anos 1990, devido às importantes transformações ocorridas no contexto mundial, o ambiente econômico brasileiro
sofreu grandes mudanças, impostas pela abertura comercial intensa
e rápida e pela necessidade de reestruturação produtiva que exigiu a
adoção de novos paradigmas tecnológicos de produção. Todo esse
movimento trouxe conseqüências sensíveis na dinâmica espacial do
desenvolvimento brasileiro.
Embora esses fenômenos possam ser considerados relativamente recentes, alguns estudos vêm sinalizando a interrupção da
desconcentração do desenvolvimento brasileiro na direção de suas
regiões menos desenvolvidas. No caso da indústria, dados sugerem
mais uma vez que, assim como ocorreu em meados da década de 60,
existe uma tendência a reforçar a concentração de seu dinamismo
em espaços específicos do território brasileiro, onde os objetivos almejados possam ser alcançados com maior eficiência.
Neste contexto, o eixo central de novas políticas regionais
deve constituir-se, de um lado, pelo objetivo da equidade, gerando
uma dinâmica de crescimento local; e de outro, pela eficiência, através da implantação de uma estrutura de produção com atividades
que promovam resultados positivos para a região e sejam, idealmente,
competitivas nacional e internacionalmente.
A inserção ativa de qualquer localidade neste processo requer investimentos em infra-estrutura, educação, capacitação e
tecnologia, alguns de lento retorno, o que aumenta a importância das
políticas públicas estaduais no desenvolvimento regional, considerando,
81
como já sabido, que a capacidade financeira e de gestão da maioria
dos municípios é bastante precária.
4.2. A Qualidade de Rede Urbana
Ao lado da superação dos aspectos apontados anteriormente, o desenvolvimento econômico com menores desigualdades entre
as regiões exige um sistema urbano equilibrado, caracterizado por cidades que apresentem disponibilidade de serviços diversificados (sociais, econômicos, financeiros, etc.) e de qualidade que suportem uma
maior complexidade da estrutura produtiva e demográfica.
Em seu estudo sobre a rede de cidades, Ruiz 4 argumenta,
em suas conclusões, que na distribuição do tamanho de cidades do
Brasil há uma predominância dos grandes centros urbanos, enquanto
que, nos EUA, as cidades médias tendem a ter uma presença mais
marcante. Assim, a estrutura brasileira é mais concentrada enquanto
que a norte-americana é menos polarizada, gerando uma distribuição
mais equilibrada do ponto de vista espacial, onde provavelmente os
desequilíbrios e desigualdades também tendem a ser bem menores.
Outra conclusão do autor, esta mais importante e bastante
visível em Minas, seria o fato dos estados brasileiros apresentarem estruturas urbanas mais desiguais do que a média brasileira e que, em
muitos estados, a rede de cidades apresenta sérias fragilidades, em particular no que tange às cidades médias, estas ainda em pequeno número.
Tais características reforçam o caráter hegemônico das capitais e das
regiões metropolitanas no desenvolvimento mineiro e brasileiro.
Os sistemas urbanos de maior porte, melhores equipados
em termos de infra-estrutura, são elementos determinantes das alternativas de localização das atividades econômicas e, assim,
estruturam o seu entorno, exercendo um papel polarizador e irradiador
do crescimento, aglutinando as ações e as relações de produção,
oferta e distribuição de bens e serviços.
Ruiz, Ricardo Machado. Rede de cidades comparadas: Estados Unidos, Brasil e Minas
Gerais, in BDMG, Cadernos BDMG, nº 9, Outubro de 2004
4
82
A Rede Urbana Mineira
De acordo com o estudo “Minas Gerais do Século XXI”5 ,
estruturou-se no Estado uma rede de cidades dispersas e de pequenas dimensões, aspecto que influencia os novos padrões de mobilidade espacial da população e das atividades econômicas.
Segundo o documento, apesar de contar com um grande
número de municípios, Minas Gerais possui poucos centros urbanos
com capacidade de estruturar o espaço sob sua influência, gerando
microrregiões empobrecidas, sem dinamismo e com baixos níveis de
bem-estar social.
Vários estudos apontam a desigualdade regional em Minas
Gerais como sendo, apenas, aquela existente entre suas grandes regiões. Entretanto, menos conhecida e debatida é a ocorrência de
marcante desigualdade intra-regional, seja mensurada no âmbito das
mesorregiões, das microrregiões ou dos municípios.
Em outras palavras, a análise com base apenas nas regiões
de planejamento, embora reveladora das desigualdades existentes, não
é suficiente para apreender a grande disparidade nos níveis de renda
prevalecentes em Minas Gerais e, conseqüentemente, não se mostra
adequada para entender a magnitude e intensidade do problema.
Á medida que se alteram os cortes de análise, ampliandose o conjunto de informações (de regiões até municípios, passando
por microrregiões), verifica-se grandes heterogeneidades intra-regionais em Minas Gerais, caracterizadas por poucos centros dinâmicos convivendo com grandes áreas ou sub-regiões de baixo dinamismo e largos espaços nos quais imperam significativos bolsões de
pobreza, a exemplo do que ocorre inclusive, dentro da própria RMBH.
Assim, quando medidas as participações das microrregiões
nos totais do Estado, percebe-se que o quadro é muito desolador e,
certamente, é ainda pior com uma avaliação utilizando-se o conjunto
de municípios. Segundo o citado estudo “Minas Gerais do Século XXI”,
5
BDMG, op.cit.
83
16 microrregiões apresentaram PIB por habitante igual ou superior à
média do Estado, enquanto que, na outra ponta, 21 microrregiões contam com valores menores ou iguais a 50% da média, e as restantes 29
microrregiões situando-se entre estes dois intervalos.
Os dados do Censo Demográfico do IBGE, do ano 2000,
mostram que, dos 853 municípios mineiros, 687 possuíam menos de
20 mil habitantes, perfazendo 80% do total de municípios. Apenas 23
municípios apresentavam população superior a 100.000 habitantes.
O predomínio de centros de pequeno porte poderia ser considerado
aceitável e não seria um grande problema se fosse acompanhado de
indicadores mais adequados de condições urbanas e de bem-estar
social, o que, em Minas Gerais, não ocorre. Por outro lado, verificase que 48 municípios se enquadram na faixa entre 1,4 hab./ km2 e
menos de 5 hab./ km2 e 118 municípios ficam entre 5 e 10 hab./ km2.
Em seu conjunto, estes dois extratos somam 43% da população estadual, o que significa o predomínio de grandes vazios econômicos e
demográficos.
Analisando as condições econômicas e sociais dos municípios mineiros, Paulo Roberto Haddad6 mostra que quase 94% dos
municípios de Minas (um total de 799 em seu estudo) têm renda per
capita inferior à média nacional, observando, ainda, ocorrência de
uma concentração de municípios nas faixas dos valores que equivalem de 30% a 70% da média nacional, uma situação, portanto, nada
excepcional.
Entretanto, pode ser alentador constatar, nas estatísticas
apresentadas pelo autor, que 420 municípios apresentam potencial
alto de desenvolvimento apesar de, no quadro atual, mostrarem nível
e ritmo de desenvolvimentos ainda diferenciados. Isto mostra haver
espaço para a definição de políticas que, se bem direcionadas, possam explorar estes potenciais e contribuir para a melhoria da qualidade de vida nos municípios.
6
Haddad, Paulo Roberto. “Força e Fraqueza dos Municípios de Minas Gerais” in: BDMG,
Cadernos BDMG, nº.8, Belo Horizonte, Abril 2004.
84
A análise em nível das “cidades-médias-pólo” no processo
de desenvolvimento regional e urbano, estudada por Pereira e Lemos7 sob duas hipóteses prospectivas, é também um importante
referencial para se avaliar a qualidade da rede urbana mineira em
termos de potencial para absorver investimentos produtivos e promover um maior equilíbrio entre as regiões.
A primeira hipótese é que as possibilidades de desenvolvimento vão responder exclusivamente aos ditames do mercado,
baseados no princípio da eficiência econômica; a outra hipótese,
mais otimista, é que o futuro das regiões vai também passar, além
dos parâmetros estritos de eficiência per se, pela retomada de alguma forma de planejamento do desenvolvimento nacional8, cabendo, neste caso, considerações sobre políticas apropriadas e
focadas para o desenvolvimento urbano e regional de cada um daqueles agrupamentos.
Segundo os autores, a persistir o processo de
reconcentração espacial, os pólos mais favorecidos tenderiam a
ser aqueles localizados no polígono geográfico do Sul-Sudeste. A
única cidade de Minas Gerais que faz parte deste grupo é Uberlândia
e esta é classificada como pólo agropecuário regional em processo
de desenvolvimento urbano-industrial. Por outro lado, o destino das
cidades médias fora do polígono de reconcentração do Sul-Sudeste
não parece promissor.
O estudo citado continua demonstrando que as sete principais
cidades-médias-pólo de Minas Gerais, por suas características e destaques, podem ser consideradas ainda frágeis para sustentar um crescimento local e para transmitir dinamismo a sua periferia. São exemplos:
Ipatinga (meso-pólo industrial com baixa capacidade de gotejamento de
suas indústrias para a região), Uberlândia (meso-pólo agropecuário com
possíveis transbordamentos regionais para sua região), Juiz de Fora
Pereira, Fabiano M. e Lemos, Mauricio Borges,” Políticas de desenvolvimento para as
cidades médias mineiras”, in: BDMG, Cadernos BDMG, nº. 9, Belo Horizonte, outubro 2004.
8As iniciativas do Ministério da Integração Nacional em formular uma PNDR é exemplo
de que este processo encontra-se em curso.
7
85
(meso-pólo industrial com risco de estagnação), Montes Claros (enclave
agropecuário sem vantagens macro-locacionais)9 .
Finalmente, encerrando o quadro de referência da questão
regional em Minas Gerais, apresenta-se, a seguir, algumas informações
e conclusões do estudo da Fundação João Pinheiro sobre os aspectos do
desenvolvimento humano em Minas Gerais, com base nos indicadores
do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM10, que sintetiza o grau de atendimento de três necessidades básicas: acesso ao conhecimento (educação), longevidade (vida longa e saudável) e padrão
digno de vida (renda). As análises abrangem o período entre 1991 e
2000, sendo que aqui serão destacados apenas alguns dados e conclusões que revelam mais detalhes sobre a questão regional em Minas.
As informações contidas nos parágrafos anteriores mostram
a gravidade de um quadro de desigualdades inter e intra-regionais medidas em termos relativos. Contudo, no período citado, pode-se constatar
que, em termos absolutos, ocorreram avanços. Analisando o componente de renda do IDHM (medido pela renda per capita média) o trabalho
da FJP11 apresenta interessantes conclusões que merecem destaque:
• O maior número de pobres do Estado não se encontra
nos municípios de menor renda e de maior proporção
de pobres, mas naqueles mais populosos, que apresentam níveis de renda per capita e de pobreza melhores
que a média.
• A renda per capita do Estado e da maioria dos municípios elevou-se a taxas relativamente altas entre 1991 e
2000. Todavia, estas estimativas ainda situavam-se, em
2000, abaixo da média brasileira e da média de todos os
estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país.
• A grande desigualdade de renda explica porque, mesmo com o decréscimo da proporção de pobres, em toPereira, Fabiano M. e Lemos, Mauricio Borges,” Op. Cit.
Ver “Aspectos do Desenvolvimento Humano em Minas Gerais”, elaborado pela Fundação João Pinheiro, in: BDMG, Cadernos BDMG, nº. 7, Belo Horizonte, dezembro, 2003.
11
Cadernos BDMG, n.7, op cit, Capítulo 4
9
10
86
das suas regiões e na quase totalidade dos municípios,
essas proporções ainda atingem níveis elevados. Em
2000, Minas Gerais concentrava 4,85 milhões de pobres, dos quais 2,03 milhões eram indigentes,
correspondendo a 29,7% e 12,6% da população total,
respectivamente.
• Nas regiões mais carentes de Minas Gerais Norte e
Jequitinhonha/ Mucuri a pobreza atinge quase dois terços de suas populações e é superior ao observado no
Estado da Bahia.
Por outro lado, nas regiões mais deprimidas e estagnadas do
Estado, registra-se um quadro de grande carência socioeconômica, onde
as condições de infra-estrutura urbana dos municípios, de organização
produtiva e de competitividade das empresas são extremamente deficientes. Essas são regiões caracterizadas pelo isolamento físico, baixas
condições urbanas, estruturas produtivas deficientes e pouco competitivas, e por infra-estruturas socioeconômicas frágeis. Além disso, são áreas
submetidas a graves dificuldades de acesso, o que contribui para a perpetuação de seus baixos índices de desenvolvimento.
Nestas regiões, o reduzido grau de integração local com o
restante do Estado, devido às deficiências nos sistemas de transporte e logística, aliados à limitada dotação de recursos e ao baixo volume de negócios realimentam o círculo vicioso das péssimas condições econômicas e sociais das regiões mais pobres do Estado.
5. Contexto da Política de Incentivo Regional
5.1. No Âmbito Federal: Apoio Institucional
Tradicionalmente, o processo de desenvolvimento econômico brasileiro ocorreu sob fortes desigualdades econômicas, sociais
e regionais, gerando um crescimento espacialmente desequilibrado,
com regiões apresentando diferentes graus de desenvolvimento. Ao
87
longo dos anos, o país buscou sanar este quadro de desigualdades
entre suas regiões, através de apoio institucional promovido, sobretudo, pelo governo federal que, no Brasil, concentra recursos e instrumentos de política econômica. A fragilidade desses instrumentos retrata, em épocas recentes, a falência dos modelos de financiamentos
e de incentivos fiscais e financeiros e as tentativas de superação das
desigualdades regionais.
As políticas de desenvolvimento regional no Brasil sofreram, ao final dos anos 90 e início do século XXI, profundas mudanças com reflexos sobre algumas economias estaduais, em especial
aquelas localizadas nas regiões mais pobres do país. Evidentemente,
Minas Gerais não estaria imune a esse processo, na medida em que
possui vastas áreas de seu território incluídas como objeto de intervenção dos planos, políticas e programas regionais nacionais.
Neste contexto, um primeiro fato marcante foi a extinção da
SUDENE e da SUDAM, cujos modelos de atuação vinham sendo contestados e considerados superados e inadequados para aquele momento
da economia nacional. Sem entrar no âmago da discussão dos motivos
para a desativação daqueles órgãos, o segundo e importante fato relaciona-se aos esforços de recriação da SUDENE, inicialmente como Agência de Desenvolvimento do Nordeste ADENE12, com novos objetivos e
estratégias, visando lograr, aos poucos, a recolocação da questão regional no centro das atenções da política econômica em nível nacional.
Política Nacional de
Desenvolvimento Regional - PNDR
Vale citar os esforços e encaminhamentos recentes no campo
das políticas regionais, no sentido de sua reativação/readequação, indicando o reconhecimento da necessidade de formulação de uma política
regional e da criação de instrumentos de suporte às políticas a serem
adotadas. Dentro desta nova ordem, foi institucionalizada, em princípio
12
ADENE foi criada pela Medida Provisória Nº 2.146-1, de 04 de maio de 2001, alterada
pela Medida Provisória Nº 2.156-5, de 24 de agosto de 2001 e instalada pelo Decreto Nº
4.126, de 13 de fevereiro de 2002
88
de 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional PNDR (Decreto nº 6.047, de 22/02/07), tendo como foco a redução das desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção da equidade
no acesso a oportunidades de desenvolvimento.
Os problemas identificados pela PNDR apontam para a
manutenção das desigualdades regionais e da estagnação econômica que continuam a caracterizar, sobretudo, a região Norte e Nordeste do País, apesar dos esforços governamentais empreendidos,
desde a década de 1950. O diagnóstico reforça a importância da
promoção do desenvolvimento e da integração nacional, sob um novo
enfoque, que deve abordar os problemas da pobreza (objeto das políticas sociais) e os da competitividade (objeto das políticas
agropecuária, industrial, de ciência e tecnologia e inovações).
Os desafios a serem superados relacionam-se com a necessidade de articulação de novos instrumentos que garantam a
implementação de políticas e de programas que promovam o desenvolvimento territorial, além de políticas setoriais (infra-estrutura econômica e social) direcionadas para regiões e sub-regiões prioritárias,
sobretudo as de baixa renda, estagnadas e com dinamismo recente,
segundo variáveis de rendimento domiciliar médio e crescimento do
PIB per capita, determinadas pela tipologia inserida na PNDR. Estes aspectos conjunturais e estruturais a que estão submetidas as
diferentes parcelas do território nacional devem ser objeto das prioridades de intervenção na regionalização da ação publica nacional.
No novo enfoque, considera-se que alguns problemas possuem, naturalmente, maior afinidade com o desenvolvimento regional. Assim, a PNDR alerta que o objeto de uma política nacional de
desenvolvimento regional não deve ser exclusivamente o combate
à pobreza, que constitui um problema também afeto a outros campos de ação pública, em especial no das políticas sociais e urbanas.
O foco das preocupações incide, portanto, sobre a ativação das
potencialidades de desenvolvimento das regiões brasileiras, com
melhor distribuição das atividades produtivas no território, embora
a pobreza e a desigualdade regional mostrem-se convergentes em
muitos lugares e em várias regiões do país e dos estados.
89
Na visão dos formuladores do Plano Nacional de Desenvolvimento Regional PNDR o combate à pobreza, pelas políticas
sociais, também poderá ser implementado com base em unidades
territoriais definidas e, para seu maior sucesso, deverá estar articulado com ações e programas integrados e focados em suas áreas de
prioridade ou de atuação.
Nesta ótica, encontra-se em execução a iniciativa dos “Territórios da Cidadania - TC”, cuja abordagem guarda estreita convergência com os objetivos de atuação da PNDR, ao reforçar a territorialidade
defendida pela política nacional. É um programa de desenvolvimento
regional sustentável que pretende atender as regiões/municípios do país
com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
O TC tem como objetivo incentivar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. O programa está sendo implementado através de um trabalho integrado de
ações dos governos federal, estadual e municipal, com a participação da sociedade, produzindo, como resultado, um plano desenvolvido em cada território, contemplando as orientações, ações e prioridades para atendimento das populações locais.
Fundo Nacional de
Desenvolvimento Regional - FNDR
Sob o enfoque de alavancar as potencialidades regionais e
promover a integração territorial, a PNDR ampara-se na criação do
Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional FNDR, cuja proposta encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, no âmbito da
emenda constitucional que prevê a reforma tributária. Este fundo
assume caráter cada vez mais indispensável para a efetividade da
Política Nacional de Desenvolvimento Regional, materializando-se
como um instrumento financeiro para garantir os objetivos da política
nacional, voltados para a redução das desigualdades territoriais.
Os recursos a serem destinados ao fundo têm previsão de
aplicação em programas de financiamento do setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e em programas de desenvolvi90
mento econômico e social das áreas menos desenvolvidas do país. Prevê-se, ainda, a transferência de recursos para fundos de desenvolvimento dos estados e do Distrito Federal para alocação em investimentos
estruturantes, fundamentados em planos locais de desenvolvimento regional no contexto de uma orientação nacional prevista na PNDR.
A proposta já indica estas destinações obrigatórias para a
aplicação dos recursos do fundo, porém outras utilizações poderão ser
estabelecidas quando da regulamentação do FNDR, o que poderá facultar aos estados destinações adicionais de acordo com a realidade
local, observando-se, no entanto, as diretrizes da política nacional.
Citando o texto que justifica a criação do fundo, percebese a orientação do governo federal no sentido de ampliar o volume
de recursos a serem alocados para a PNDR e de imprimir um novo
enfoque para a sua atuação, que passa a ter uma abrangência nacional. Isto implica dizer que as diretrizes da política nacional pretendem incorporar, não somente as regiões tradicionalmente apoiadas
pelos programas federais, como também aquelas de menor dinamismo do país, identificadas no âmbito dos seus objetivos.
Outra avaliação aponta mudanças importantes nos mecanismos de execução da política regional, cuja lógica é “a instituição de
um modelo de desenvolvimento regional mais eficaz que a atração de
investimentos através dos recursos à guerra fiscal, que tem se tornado cada vez menos funcional para os Estados menos desenvolvidos”.
5.2. No Âmbito Estadual: Readequação Institucional de Minas Gerais
em Relação à Questão Regional
Por ocasião da extinção da SUDENE e criação da ADENE,
o governo mineiro, através do Decreto 14.171/2002, criou o Instituto
de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE,
resultado da transformação da Comissão de Desenvolvimento do
Vale do Jequitinhonha CODEVALE, e da absorção das funções da
Superintendência de Desenvolvimento do Norte de Minas
SUDENOR, instituições que atuaram, ao longo de vários anos, na
91
defesa dos interesses das municipalidades e dos empreendimentos
produtivos destinados para a região
O IDENE tem por missão formular e propor diretrizes, planos e
ações para essas regiões, compatibilizando-os com as políticas dos Governos federal e estadual apoiando e defendendo os interesses dos municípios
de sua área de atuação, articulando ações com os demais órgãos e entidades dos Poderes Executivos municipais, estadual e federal.
Sua finalidade é promover o desenvolvimento econômico e
social dos municípios das Mesorregiões Norte de Minas e do Mucuri e
dos demais municípios integrantes das bacias hidrográficas dos rios
Jequitinhonha e São Mateus e da Microrregião de Curvelo (pertencente
a Mesorregião Central Mineira), que integram sua área de abrangência.
Em reforço a uma política regional voltada para áreas mais
carentes, foi criada, no início de 2003, a Secretaria de Estado para o
Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e
do Norte de Minas SEDVAN, com a finalidade de fortalecer politicamente a região mineira de economia historicamente deprimida. A
Secretaria incorpora o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE, como órgão operacional, e tem como
missão “oportunizar as potencialidades do Norte e Nordeste de Minas em desenvolvimento político e socioeconômico sustentável”.
A SEDVAN deve buscar alternativas inovadoras na construção da história de uma região, que convive, simultaneamente, com
desigualdades e pobreza ao lado de muitas potencialidades representadas por seus recursos naturais, culturais, sociais e econômicos.
As perspectivas para as Regiões
mais carentes do Estado
As Regiões do Norte de Minas e do Jequitinhonha/Mucuri
reúnem um conjunto de problemas e desafios de tal magnitude que
têm exigido do governo estadual tratamento especial, baseado na
estrutura institucional descrita anteriormente e nas ações de políticas
públicas que vem incorporando ao planejamento de médio e longo
92
prazos objetivos permanentes para a redução das desigualdades e
criação de equidade entre pessoas e regiões, com foco em programas voltados para as regiões e locais de menor IDH.
De fato, são muitos os seus problemas, que podem ser
sumarizados nos fatores climáticos adversos; na predominância de
municípios muito pequenos e mal estruturados e uma rede urbana
bastante frágil, formando áreas de extrema carência e pobreza; nos
fortes desequilíbrios interregionais, nos níveis de renda e de oportunidades de empregos, com fraco mercado interno, dependente dos programas governamentais de renda; no precário sistema de transporte
interno e de infra-estrutura de modo geral, sobretudo saneamento e
energia e, apesar de avanços recentes, há problemas na área de
educação, resultando num índice de analfabetismo mais elevado do
que o constatado no Estado e no país.
Mas, apesar deste quadro, há condições positivas que, se
bem articuladas nos três níveis de governo, podem resultar em avanços relevantes para estes regiões. O grande desafio é explorar vocações e vantagens comparativas presentes nas regiões, identificando
e aproveitando o potencial endógeno de crescimento, muitas vezes
representado por pequenas iniciativas que geram renda e emprego,
valorizando os recursos locais e estimulando a fixação da população.
Pode-se, assim, salientar como fatores positivos os que
se seguem.
• Possibilidade do retorno dos investimentos através das
políticas de incentivos fiscais e financeiros, sinalizadas
pela nova reestruturação da política nacional de desenvolvimento regional.
• Prioridade e opção do governo estadual no
enfrentamento das desigualdades regionais,
consubstanciada no seu planejamento de médio/longo
prazos.
• Programas do governo estadual nas atividades
agropecuárias, industriais e de infra-estrutura.
93
• Potencial agroindustrial decorrente dos projetos de irrigação, reiterando a grande importância e perspectivas
favoráveis do Projeto Jaíba, o maior perímetro irrigado
do Brasil.
• Potencial turístico representado pelo Rio São Francisco, pela diversidade do patrimônio cultural e ambiental
e pela qualidade do artesanato regional.
• Disponibilidade e diversidade dos recursos minerais.
• Possibilidade de desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais, nos segmentos que as regiões possuem tradição e vocação, favorecendo setores econômicos e
grupos sociais localizados.
5.3.A Política de Desenvolvimento Regional no Contexto Internacional
A experiência européia
Quando se trata de política regional inovadora, obrigatoriamente remete-se à experiência européia, mais notadamente no modelo europeu de política regional e nos mecanismos de apoio financeiro adotados para o enfrentamento das disparidades econômicas e
sociais entre as nações do bloco. Um aspecto importante é que,
embora a União Européia possa, à primeira vista, ser identificada
uma região de prosperidade, constatam-se diferenciais marcantes
nos níveis de renda, sinalizando problemas no interior do bloco, entre
os países membros e também dentro deles.
As disparidades do PIB por habitante, identificadas entre
os países da Comunidade e dentro deles, embora pequenas pelos
padrões brasileiros e de várias outras regiões do planeta, têm inspirado preocupações relacionadas ao processo de integração econômica
do continente europeu. De um lado, os países e as regiões de menor
desenvolvimento visualizam crescentes ameaças à sua própria viabilidade econômica. Do outro, os mais adiantados percebem que a
persistência de discrepâncias muito grandes no âmbito da Comuni94
dade pode pôr em cheque a marcha rumo à consolidação da união
econômica e monetária e, no limite, inviabilizá-la.
É importante salientar que uma das bases para a formação
da União Européia foi e continua sendo o ideal de promover a coesão do território, o que significa eliminar as disparidades econômicas
e sociais entre os países-membros. Assim, o grande objetivo não é
apenas o de viabilizar a livre circulação de bens, serviços e capitais e
a união monetária, mas principalmente promover o bem estar de seus
quase 500 milhões de habitantes distribuídos nos seus 27 Estados
Membros.
Na concepção européia, os desequilíbrios no desenvolvimento são vistos não só como fenômenos que afetam os países atrasados, mas que também podem reduzir o ritmo de crescimento global
da União Européia, impedindo a realização de todo o seu potencial
econômico, humano e tecnológico.
Portanto, no que tange à questão regional a UE busca-se
conduzir uma política que se distancie de uma estratégia simples de
realização de transferências diretas das regiões ricas para as pobres,
optando, ao contrário, por uma perspectiva dinâmica, na qual as diferenças sejam superadas pela criação de condições que permitam a
reprodução, o aprimoramento e o aproveitamento de todo seu potencial endógeno.
Estrategicamente, a solução para as desigualdades tem
muito a ver com a melhoria da capacidade das regiões e de todos os
participantes no campo socioeconômico de inserirem-se no moderno
jogo competitivo. Neste contexto, o maior desafio é descobrir formas de estimular o uso dos potenciais de desenvolvimento presentes
nas regiões.
Os baixos níveis de desenvolvimento dos países ou regiões,
de modo geral, eram percebidos pela UE como resultantes, entre
outros fatores, da reduzida capacidade de atrair e manter atividades
produtivas devido à inadequação de infra-estrutura; da baixa qualificação da mão de obra; e das características da estrutura produtiva,
em termos da agregação de valor, do tamanho da empresas, da cul95
tura empresarial, etc. e, muito importante, da própria capacidade dos
governos em gerar soluções para o desenvolvimento local.
Desta maneira, a política regional da UE tem por finalidade
provocar um impacto significativo na competitividade das regiões e
nas condições de vida dos seus habitantes, essencialmente através
do co-financiamento de programas de desenvolvimento plurianuais.
Cabe à política regional possibilitar que todas as regiões da UE tirem
pleno partido das oportunidades propiciadas pelo mercado interno,
bem como contribuir para o êxito da união econômica e monetária.
A implementação e execução da política regional da União
Européia estão consolidadas em Planos Plurianuais ou Programas
Operacionais com objetivos e estratégias bem definidas de longo prazo,
critérios negociados de elegibilidade de regiões a serem assistidas e
de instrumentos financeiros sólidos, confiáveis, consistentes e duradouros. Em outras palavras, no planejamento das ações são definidos os objetivos prioritários, as áreas territoriais e respectivas populações beneficiárias dos apoios providos pela política regional. São
estabelecidos, ainda, o período de programação e as informações
sobre os critérios utilizados no processo de seleção e priorização de
projetos. Isso é entendido como condição necessária para que uma
política baseada em processos de planejamento e programação, articulada entre várias instâncias de poder e com suporte mais amplo da
sociedade, possa se estabelecer satisfatoriamente.
Os programas são apoiados por uma estrutura de fundos de
finalidade estrutural e de efeitos regionais, destacando-se o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional - FEDER, o Fundo Social Europeu
(FSE), o Fundo de Coesão, o Fundo Europeu de Orientação e Garantia
da Agricultura e Pecuária (FEOGAP), e os Fundos Estruturais, além
dos recursos do Banco Europeu de Investimentos (BEI). A ação da
Comunidade Européia em parte tem sido a de coordenar e concatenar
esses instrumentos numa política estrutural única, de forma a garantir
uma atuação coerente, evitando superposição de esforços.
De maneira particular, destaca-se a atuação do FEDER
que tem como objetivo apoiar programas que abordem o desenvolvi96
mento regional, a evolução econômica, o reforço da competitividade
e a cooperação territorial em toda a UE. As prioridades de financiamento incluem a investigação, a inovação, a proteção do ambiente e
a prevenção de riscos, juntamente com o investimento na infra-estrutura, nomeadamente nas regiões menos desenvolvidas.
A estratégia de desenvolvimento regional adotada pela UE
vem sendo vista como uma iniciativa de sucesso, que pode ser confirmada de várias maneiras. Um dos primeiros sinais positivos está
no processo de ampliação no número de países-membros do bloco.
Em 1993 o bloco era constituído por 15 países membros, já em 2007
esta composição era de 27 países, quase que dobrando o número de
membros então existentes. Também, como aspecto positivo, vale citar que, do ponto de vista econômico, a União Européia vem se consolidando nas últimas décadas como a maior economia do mundo,
superando a dos Estados Unidos.
Os bons resultados alcançados pela UE tem uma razão
para o seu sucesso. E esta pode ser encontrada na solidez, na consistência e na coerência das políticas de sustentação do bloco, que
asseguram recursos e mercados e podem propiciar melhoria da qualidade de vida de suas populações em termos de saúde, educação,
avanços tecnológicos, oportunidades de empregos, crescimento de
renda, etc.
Assim, uma conclusão que se pode tirar, e que traz importantes ensinamentos, está na identificação das “disparidades econômicas e sociais” no interior do bloco, como fundamento básico para
a criação da União Européia. Da identificação correta do problema
surge o objetivo de “Coesão Territorial”, entendido como a redução
das disparidades e a promoção da melhoria do bem estar da população do bloco.
A “Coesão Territorial” é, portanto, um objetivo permanente que norteia todas as definições estratégicas das Políticas Regionais da UE para os países membros e orienta as propostas de apoio
financeiro através dos Fundos Estruturais, com destaque para o FEDER, seu principal instrumento. Este objetivo, portanto, passa a ser
97
o ideal e o fundamento de todas as ações de caráter regional nos
Programas Operacionais de cada país membro.
O caso de Portugal
Avaliando o caso especifico de Portugal, um dos maiores
beneficiários da política de coesão nos primeiros anos, pode-se observar que o país orientou sua estratégia para a identificação de um
rumo à sua modernização e desenvolvimento, com coesão social,
buscando aproximar-se, de forma decidida e sustentada, do nível de
desenvolvimento dos países mais avançados da União Européia.
Acertamente, para alcançar seus objetivos, a estratégia do
Governo se apoiou na recuperação da confiança para lançar uma
dinâmica de crescimento progressivo da economia, que permitisse
também combater ao desemprego e reduzir as desigualdades sociais, não se limitando, apenas, a dar respostas aos problemas
conjunturais da recessão econômica, mas sim enfrentar, num horizonte de médio prazo, os problemas estruturais que prejudicam a
competitividade do país e estão na base do seu atraso.
Esta política tem-se desenvolvido entorno de cinco grandes eixos: retomar o crescimento da economia; reforçar a coesão
nacional; melhorar a qualidade de vida dos portugueses; elevar a
qualidade do processo democrático, reforçando a credibilidade do
Estado e do sistema político; e valorizar o posicionamento do país
no quadro internacional. Para cada um destes eixos são
estabelecidas linhas de atuação específica. Para o alcance destas
estratégias, o planejamento governamental definiu seus objetivos
de forma regionalizada e elencados em programas operacionais, os
quais fazem parte das ações de apoio às estratégias de desenvolvimento do país.
A Comissão Européia participa no desenvolvimento das regiões, ou zonas elegíveis criadas por Portugal para fins de participação nos recursos disponibilizados com o objetivo de promover o desenvolvimento regional, mediante o co-financiamento dos programas
regionais, através de seus fundos estruturais. Destaca-se que, no
98
período 2000-2006, em termos globais, foram disponibilizados pela
UE cerca de 60% dos investimentos totais despendidos nos Programas Regionais. Ressalta-se a participação majoritária do FEDER,
com um percentual de 72% no total co-financiado pelos Fundos Estruturais. Para o período 2007-2013 esta participação está estimada
em 60%.
A referência aos números serve para demonstrar que na
esteira dos investimentos viabilizados pelos recursos dos fundos da
União Europeia, bons resultados foram obtidos pelo País. Nos últimos anos, Portugal entrou num processo de mudanças e modernização, contando com um ambiente bastante dinâmico, após juntar-se
aos ideais e programações da União Europeia. Os sucessivos governos constitucionais fizeram várias reformas, privatizaram empresas
controladas pelo Estado e liberalizaram áreas-chave da economia,
incluindo os setores das telecomunicações e financeiros.
Como resultado, Portugal vem desenvolvendo uma economia crescentemente competitiva e baseada em serviços, sendo um
dos primeiros países-membros que aderiram ao Euro, moeda criada
em 1999 e cuja circulação ocorreu em janeiro de 2002. Portugal,
hoje, faz parte dos países com Indice de Desenvolvimento Humano
(IDH) alto e, também, enquadra-se no conjunto de países que formam o grupo dos países desenvolvidos. As informações a seguir
resumidas dão conta do êxito de Portugal em relação ao seu desempenho no cenário Europeu e mundial.
Dados do FMI mostram que o crescimento econômico português esteve acima da média da União Européia na maior parte do
período 1986-2000, quadro que se inverte no período 2001-2006, tendo sido recuperado em 2007. O PIB per capita destacou-se na faixa
que corresponde a, aproximadamente, 75% dos valores registrado
pelas maiores economias ocidentais europeias. Um estudo sobre
qualidade de vida feito pelo Economist Intelligence Unit, ou EIU
Quality-of-life Survey coloca Portugal em 20º lugar entre os países
com melhor qualidade de vida
No período 1980-1985, em média, o PIB de Portugal re99
presentava 0,8% do PIB da Comunidade, enquanto a PIB por habitante situava na faixa de US$ 3.000. No período 1986-2007 a participação do PIB de Portugal no total da UE se eleva para 1,4%, enquanto o PIB por habitante atinge o expressivo valor de US$ 20.600
em 2007. Os valores da participação de Portugal, no total da comunidade, tornam-se mais significativos se considerarmos que nestes
21 anos o número de países-membros saltou de 12 para 27.
Finalmente, o Relatório do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento - PNUD de 2007, com base em dados de
2005, coloca Portugal como 35º no ranking em que constam 174
países, posicionando-se como 28º país no mesmo ranking, quando
medido pelo IDH.
6. Bases para Formulação de Instrumentos de Apoio
Ao mostrar os atributos da política regional européia, pretende-se posicionar o caso brasileiro e mineiro frente às evidências
internacionais para a superação das desigualdades regionais e da
pobreza. Nesta ótica, o sentido das políticas públicas regionais deve
ser o de criar e sustentar uma trajetória de reversão das desigualdades que, historicamente, apresentam lentidão e sinais de fortes resistências na promoção de um processo de desconcentração/
interiorização e o de explorar as vocações e os potenciais endógenos,
bastante diversificados em todo o território.
No caso de um estado com as dimensões territoriais de
Minas Gerais e sua forma de inserção na economia nacional, parece
cada vez mais evidente o imperativo de combater as desigualdades
internas e trabalhar a diversidade econômica, social, cultural e
ambiental existente como um ativo essencial em um novo modelo de
desenvolvimento.
Essa constatação remete, obrigatoriamente, a adoção de
ações que conduzam à estruturação de iniciativas inovadoras, que
contenham o engajamento do conjunto de atores públicos, privados e
das diversas forças sociais e políticas afetas à questão regional, de
forma a garantir efetividade na aplicação das políticas.
100
Do ponto de vista geral, políticas públicas para estas questões, que conduzem ao desenvolvimento e fortalecimento das regiões e de seus municípios, demandam ações que exigirão programas
e projetos de investimentos, tanto em iniciativas estruturantes, como
nos segmentos produtivos e de infra-estrutura. O alcance desses
elementos representa uma tarefa complexa, pois depende de uma
grande capacidade de coordenar esforços, administrar conflitos políticos e obter recursos, dentre outros.
Desta maneira, o impulso mais intenso a esse processo de
crescimento sustentável deverá ocorrer por meio de instrumentos de
apoio financeiro que promovam o fortalecimento socioeconômico, a
integração das áreas e recursos, por meio da diversificação de suas
estruturas produtivas promovendo a melhoria da competitividade das
regiões e das condições de vida de seus habitantes.
Melhorar a competitividade das regiões implica em criar as
condições que permitam o desenvolvimento e o ajuste estrutural que
levem a tal situação. Isto significa investir na qualidade da infraestrutura urbana, melhorando o perfil da rede de cidades (educação,
saúde, saneamento, habitação), nos sistemas de transporte em busca
de maior integração regional, na ampliação da oferta de energia e no
desenvolvimento das novas tecnologias da informação e das telecomunicações. Significa, também, priorizar investimentos na capacitação
e formação profissional, bem como na requalificação de mão-deobra, adaptando-a às transformações do sistema produtivo, observadas as características e necessidades socioeconômicas locais.
No tocante às áreas mais carentes do Estado, notadamente
as regiões do Jequitinhonha/ Mucuri e do Norte de Minas, é desejável
e mesmo exeqüível a formulação de propostas de estratégias deliberadas, baseadas em instrumentos de apoio financeiro que, ao lado de
objetivos e ações claramente definidos, venham colocar a questão regional de forma efetiva como meta integrante dos planos, estratégias,
objetivos e ações para o desenvolvimento econômico do Estado.
Tratar diferenciadamente estas áreas no tocante aos seus
problemas e potenciais é um desafio para as políticas governamen101
tais. Por suas características físicas particulares de clima e relevo,
associadas às condições sócio-econômicas de extrema carência, elas
(as áreas) são marcadas pelo fraco dinamismo econômico e pelo
baixo grau de integração a mercados, resultando em visíveis indicadores de pobreza e insuficiência de inclusão produtiva.
Neste instante, o papel das medidas e ações institucionais,
em especial a recuperação e criação de políticas nacionais regionais,
incluindo ações das demais esferas de governo em parceria com as
lideranças locais, é imprescindível para a definição de um modelo de
atuação eficaz para o enfrentamento e a busca de soluções contra o
atraso das regiões.
Assim, ganha relevância a proposição de constituição de
um Fundo de Desenvolvimento Regional. Este instrumento deve ser
capaz de conferir, através de suas políticas e objetivos, condições de
atratividade de investimentos produtivos e de infra-estrutura às regiões ou municípios menos favorecidos do Estado, prioritariamente
aqueles com índices de IDH abaixo da média estadual, em especial
nas regiões mencionadas anteriormente.
O fundo deverá contribuir para o aproveitamento de oportunidades de desenvolvimento das regiões, valendo-se, da melhor
maneira possível, dos recursos financeiros existentes e a serem mobilizados, requerendo a identificação de recursos perenes e estáveis
e a aplicação de mecanismos eficazes de gerenciamento e execução
de projetos, de forma a gerar soluções duradouras para o desenvolvimento regional e local.
No contexto da questão regional, a Constituição Estadual
de 1988, em seu art. 51 (§ 4º), autoriza a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional. O texto constitucional já determinava, também, a redução das desigualdades regionais como um dos eixos estratégicos do desenvolvimento do Estado, prevendo o direcionamento
da ação governamental para a execução articulada de planos, programas e projetos regionais e setoriais dirigidos ao desenvolvimento
global das coletividades do mesmo complexo geoeconômico e social
e a assistência aos Municípios de escassas condições de propulsão
102
socioeconômica, situados na região, para que se integrem no processo de desenvolvimento. (CE, art 41).
Esta orientação se consolida na estratégia do desenvolvimento do Estado para resultados, consagrada no Plano Mineiro de
Desenvolvimento Integrado (2007-2023), que prioriza, como um dos
eixos estratégicos, o tema da eqüidade entre pessoas e regiões, que
deverá ser alcançada através de programas voltados para as regiões
e locais de menor IDH, com destinação aos segmentos mais vulneráveis, envolvendo o combate à pobreza, a geração de emprego e de
renda e a segurança alimentar.
No que diz respeito ao fomento para o setor produtivo, vale
acrescentar que o Estado já dispõe de um arranjo de fundos de desenvolvimento estruturados para o gerenciamento de recursos destinados à promoção industrial, ao fomento dos micro, pequenos e médios empreendimentos, à infra-estrutura e incentivos às atividades
específicas dentre elas turismo, cultura, recursos hídricos e desenvolvimento florestal.
Ao que tudo indica, este aparato institucional tem garantido
êxito na promoção do desenvolvimento econômico, restando, então,
a integração das políticas de incentivo com as diretrizes regionais, o
que pode resultar em uma aplicação coordenada dos diversos instrumentos de financiamento em programas de desenvolvimento de cunho econômico e social em áreas e segmentos desatendidos pelos
mecanismos tradicionais.
Finalmente, merece ser destacada a necessidade de se
estabelecer uma estratégia no plano estadual e local de forma a aproveitar a oportunidade prevista na política nacional, cujas diretrizes
básicas apóiam-se na promoção de uma maior integração de políticas e das economias das várias regiões e na proposição de criação
do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), como
instrumento financeiro para aplicação em áreas menos desenvolvidas do País. Neste particular, torna-se desejável ao Estado antecipar-se às orientações da PNDR que, necessariamente exigirá a criação, em nível estadual, de um fundo de desenvolvimento regional
103
para atender às finalidades previstas na aplicação dos recursos a
serem transferidos pela União.
Referências
FERREIRA, H. V. C; SILVA, A. R. A. Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional: Uma Proposta Inovadora para a Redução das
Desigualdades Regionais Brasileiras. Boletim Regional. Informativo da Política Nacional de Desenvolvimento Regional, Ministério da
Integração Nacional, nº 6, Brasília, jan. - abril 2008, p. 23-37.
TERRITÓRIOS DA CIDADANIA. Brasília: Brasil, Governo Federal, 19 p, 2008. Disponível em: www.mda.gov.br
DUARTE FILHO, F. C. Relatório 1: Apoio à Gestão de Políticas e
Programas de Desenvolvimento Regional no Estado de Minas Gerais, Texto de Referência para a Formulação de Fundo de Desenvolvimento Regional: Desenvolvimento Regional na União Européia e
Portugal. Belo Horizonte, jul. 2008.
Textos sobre a União Européia e Portugal, disponíveis em13:
www.europa.eu/scadplus - (Síntese de legislação)
www.eur-lex.europa.eu.pt - (Documentos oficiais e sínteses)
www.europaparl.europa.eu - (Documentos do Parlamento Europeu)
www.ccr-norte.pt - (Comissão Coordenação e Desenvolvimento
Regional Portugal )
www.qren.pt - (Quadro de Referência Estratégica Nacional / 20072013)
Os sites citados reúnem, em vários idiomas, uma ampla documentação relativa a
Políticas e Programas Operacionais que cobrem o período 2000-2013 (abrangendo
para os diferentes períodos os objetivos das políticas regionais, tanto da União Européia
quanto dos países-membros, e o detalhamento dos instrumentos de financiamento para
os projetos relacionados: valores, prazos, condições, etc.). No caso de Portugal, nos
sites foi possível identificar os Programas Operacionais para suas regiões, bem como os
Planos de Desenvolvimento dos diversos Governos Constitucionais, em que são
contextualizados os programas regionais. São apresentados também estudos avaliando
os principais resultados alcançados.
13
104
www.imf.org - (Informações sobre países e regiões)
www.igeo.pt - (Atlas de Portugal)
www.ordemeconomistas.pt - (Portal da Ordem dos Economistas)
www.portugal,gov.pt - (Portal do Governo)
105
106
4
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO
Roberto Marinho Alves da Silva*
1. Semi-Árido Brasileiro: Complexidade Ambiental e
Contrastes Socioeconômicos
O Semi-Árido brasileiro abrange 1.133 municípios com uma
área de 969.589,4 km2, correspondente a quase 90% da Região
Nordeste e mais a região setentrional de Minas Gerais, com uma
população de cerca de 21 milhões de pessoas. A porção mineira do
Semi-Árido, segundo a delimitação oficial de 20051, abrange 85 municípios das Regiões Norte e do Jequitinhonha, numa área total de
103.590 km2, onde vivem mais de 1,2 milhões de pessoas.
A região é caracterizada pela insuficiência e irregularidade
de chuvas com médias anuais iguais ou inferiores a 800 mm, com
elevadas temperaturas e taxas de evapotranspiração que se refletem no modelamento da paisagem predominante. A hidrologia é dependente do ritmo climático. As secas são caracterizadas tanto pela
ausência e escassez, quanto pela alta variabilidade espacial e temporal das chuvas. A limitação hídrica é anual devido ao longo período
seco que leva à desperenização dos rios e riachos endógenos. A
reduzida capacidade de absorção de água da chuva no solo é dificultada em virtude do relevo alterado e dos solos rasos e pedregosos.
* Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (2006), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), graduado
em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(1989). Atualmente exerce a função de Diretor do Departamento de Estudos e Divulgação da Secretaria Nacional de Economia Solidária. Este texto é a transcrição de
conferência apresentada na FIEMG, Montes Claros, em 29 de setembro de 2008.
1
Em 2005, o Governo Federal atualizou a área de abrangência do Semi-Árido (BRASIL, 2005).
107
Outro fator marcante da paisagem semi-árida, é a vegetação de caatinga, que na língua indígena quer dizer “mata branca”. Trata-se de
um bioma2 com alta biodiversidade, no qual se destaca a formação
vegetal xerófila, com folhas pequenas que reduzem a transpiração,
caules suculentos para armazenar água e raízes espalhadas para
capturar o máximo de água durante as chuvas.
Apesar dessas características gerais, o Semi-Árido brasileiro é uma realidade complexa, tanto no que se refere aos aspectos
geofísicos, quanto à ocupação humana e à exploração dos seus recursos naturais. No caso da porção mineira do Semi-Árido, embora
as médias pluviométricas anuais (entre 700 e 1000 mm) estejam acima da média verificada na área de domínio do clima semi-árido no
Brasil, também é caracterizada pela irregularidade na distribuição
das chuvas e pela alta taxa de evaporação, com duas estações bem
definidas de período chuvoso e de seca.
Outras especificidades do Semi-Árido mineiro são a presença de nascentes, maior concentração de rios perenes e a predominância da vegetação de cerrado, formações herbáceo-lenhosas,
com árvores de pequeno e médio porte, de troncos e galhos retorcidos, revestidos por espessa casca. A paisagem também tem
especificidade bem marcada pelos tabuleiros e as grandes chapadas,
de altitudes que variam entre 900 a 1000 metros, entrecortadas por
depressões profundas de vales, denominadas de “grotas”, onde são
encontrados os solos mais férteis e úmidos. Os solos permeáveis,
diferentes dos solos cristalinos que predominam em outras áreas do
Semi-Árido na porção nordestina, proporcionam melhor e maior capacidade de armazenamento de água subterrânea, favorecendo outras possibilidades de abastecimento de água da população.
Apesar dessas características comuns, devido à extensão
e diversidade de ecossistemas, o Semi-Árido mineiro é marcado pela
complexidade e essas características podem sofrer grandes variaO bioma é definido como um conjunto de múltiplos ecossistemas agrupados em um
espaço geográfico contíguo, com certo grau de homogeneidade em torno de sua vegetação e fauna.
2
108
ções quanto às taxas pluviométricas, tipos de solos, temperaturas e
disponibilidade hídrica no subsolo e nos mananciais naturais. É possível, por exemplo, contemplar essas variações nas áreas localizadas
mais ao Norte de Minas e as áreas do Vale do Jequitinhonha.
O desconhecimento dessa complexidade conduziu à introdução de práticas agropecuárias inadequadas, provocando ou agravando desequilíbrios ambientais. A vegetação de cerrado não tem
sido poupada e a exploração desordenada das nascentes e das demais fontes de recursos hídricos naturais agrava o abastecimento de
comunidades rurais no Semi-Árido mineiro. A exploração econômica das riquezas locais levou à devastação de parte significativa do
cerrado mineiro e das matas localizadas nas áreas de transição para
as zonas úmidas, na parte baixa do Jequitinhonha. Nos últimos anos,
a região também vem assistindo à expansão da monocultura do
eucalipto em extensas áreas, colocando em risco a biodiversidade.
O mesmo ocorre na área de predomínio da caatinga, um
dos biomas brasileiros mais ameaçados pelo uso intempestivo dos
seus recursos naturais. A pastagem intensiva na atividade pecuária,
as queimadas e os processos desordenados de derrubada da mata
natural para atividades agrícolas e para retirada de lenha (fonte
energética para diversas finalidades, desde o preparo de alimentos
de famílias mais pobres, até a produção de cerâmicas e de panificação) são os principais fatores de devastação da caatinga. Além disso, a agricultura irrigada também provoca e agrava impactos
ambientais, tais como a poluição de mananciais hídricos, a diminuição na vazão de poços tubulares e a ocorrência de salinização com a
perda de fertilidade dos solos. As maiores extensões de áreas em
processo de desertificação no Brasil, com a perda gradual da fertilidade do solo, estão localizadas no Semi-Árido3.
Do ponto de vista socioeconômico, o Semi-Árido brasileiro
também é marcado por contrastes. A estrutura fundiária é extreCerca de 60% da área do Semi-Árido brasileiro está afetada por processos de desertificação,
classificados em moderados, graves e muito graves. As áreas com processos muito graves
de desertificação atingem 98.595 km2 (10%) da porção semi-árida, segundo estudos
realizados pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2002).
3
109
mamente concentrada. Além dos latifúndios, verifica-se um grande
número de minifúndios, com cerca de 90% das propriedades possuindo área inferior a 100 hectares e detendo apenas 27% da área total
dos estabelecimentos agrícolas (Brasil, 2005b). Em sua maior parte,
a economia do Semi-Árido é caracterizada pela produção de subsistência, tendo em vista que as atividades econômicas comerciais tradicionais estão em crise. Na porção mineira do Semi-Árido, por exemplo, encontram-se comunidades agrícolas (algumas são tradicionais
de catingueiros, vazanteiros, geraizeiros, quilombolas etc.) que mantém práticas agrícolas de sequeiro e de vazantes nas áreas úmidas
dos rios e nos fundos dos vales (grotas) onde predominam os cerradões
(matas ou capões), enquanto que a criação de pequenos rebanhos de
animais ocorre em áreas das chapadas.
Mas a principal aposta dos órgãos públicos e da iniciativa
privada é no desenvolvimento da agricultura irrigada nos vales úmidos. As condições naturais são favoráveis, devido ao clima seco que
reduz a incidência de pragas e doenças e pela elevada insolação e
luminosidade na maior parte do ano, favoráveis à fruticultura irrigada.
O Semi-Árido mineiro, sobretudo no norte de Minas Gerais, tornouse grande produtor de frutas, com destaque para a bananicultura
(quase monocultura), com amplo uso de tecnologias modernas de
micro-aspersão e de padrões avançados de relações comerciais.
Para isso, os investimentos públicos trataram de implantar na região vários perímetros irrigados, sendo o maior deles o projeto Jaíba, com uma área total prevista de cerca de 100
mil hectares.
Apesar do recente processo de modernização econômica, com a incorporação de novas áreas e setores dinâmicos e
competitivos, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do SemiÁrido, em 2002, era de R$ 2.541,27, bem abaixo do valor médio da
Região Nordeste, de R$ 3.694,34; e menos da metade da média
nacional, que somava R$ 7.630,93 (BRASIL, 2003). Essa situação
se reflete nos demais indicadores sociais da região que, embora
tenham experimentado melhorias nos últimos anos, mantêm-se distantes das médias nacionais.
110
O “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil - 2000”
(Ipea; Pnud; FJP, 2000), confirma que, devido ao lento ritmo de crescimento da economia e a baixa renda da população, a maioria dos
municípios do Semi-Árido assume cada vez mais a característica da
dependência da transferência de recursos: em 47,5% dos municípios, cerca de um terço da população tem mais da metade da sua
renda proveniente de transferências governamentais, principalmente
os previ-denciários. Além disso, em quase metade dos municípios a
mortalidade infantil até um ano varia de 50 a 75 por mil crianças
nascidas vivas e o percentual de pessoas de 15 anos ou mais analfabetas varia entre 36% e 48%, bem acima das médias nacionais (Ipea;
Pnud; FJP, 2000).
A gravidade dos problemas sociais no Semi-Árido constata-se há centenas de anos. Ao longo da história, essa situação sempre foi relacionada à problemática das secas. No entanto, as análises
realizadas indicam a persistência das desigualdades sociais inseridas
na base da reprodução das condições de miséria. Num país como o
Brasil, considerado um dos campeões mundiais em concentração de
renda, o Semi-Árido desponta com uma situação ainda mais grave:
em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos
chegava a 43,7%; enquanto que a renda dos 40% mais pobres era de
apenas 7,7% (Ipea; Pnud; FJP, 2000).
Em síntese, a permanência de graves problemáticas
ambientais e socioeconômicas remete à atualidade da questão: qual
o desenvolvimento apropriado à realidade do Semi-Árido brasileiro?
O debate sobre as alternativas de desenvolvimento na região vem
sendo lentamente construído desde a primeira metade do século XX.
Além dos interesses políticos e econômicos, as ações
governamentais foram e, pelo menos em parte, ainda estão sendo
orientadas por uma perspectiva de que é necessário e possível
combater a seca e os seus efeitos para a modernização econômica daquela região. Prevalece a convicção de que é preciso
modificar aquele ambiente para poder viabilizar as atividades econômicas, tornando-as rentáveis e atraentes ao capital. No entanto, nas últimas duas décadas, vem sendo recuperado e ampliado o
111
debate sobre a necessidade de uma mudança profunda na forma
de intervenção pública que possibilite a harmonização entre a justiça social, a prudência ecológica, a eficiência econômica e a cidadania no Semi-Árido. Um conjunto significativo de organizações da sociedade civil, junto com instituições de pesquisa e com
outras forças políticas que atuam naquela região, com base em
experimentações e vivencias de alternativas de convivência com
o Semi-Árido.
O presente artigo4 busca contribuir nesse debate, oferecendo uma análise da trajetória das políticas públicas que predominaram no Semi-Árido e explicitando os significados e sentidos
da sustentabilidade na perspectiva da convivência, enquanto síntese de um conjunto de práticas socioeconômicas e de diretrizes
culturais e políticas para o desenvolvimento do Semi-Árido brasileiro.
2. Combate à Seca e Modernização Econômica: Trajetórias
das Políticas Públicas no Semi-Árido Brasileiro
2.1. Políticas de combate à seca e aos seus efeitos
A seca na região semi-árida só passou a ser considerada
como problema relevante no século XVIII, com o aumento da densidade demográfica e com a expansão da pecuária bovina. Desde então, as secas passaram a entrar de forma permanente nos relatos
históricos, enfatizando a calamidade da fome e os prejuízos com a
dizimação dos rebanhos, desestabilizando as bases econômicas da
emergente sociedade pastoril. Segundo o historiador Joaquim Alves
(1982, p.39), as primeiras medidas oficiais foram: obrigação do cultivo da mandioca como alternativa para o problema da fome; o combate à desordem e à violência, que se espalhavam nos sertões durantes
Elaborado com base na Tese de Doutorado do autor, sob o título: “Entre o Combate à
Seca e a Convivência com o Semi-Árido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do
desenvolvimento” (Silva, 2006), defendida em maio de 2006, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.
4
112
as estiagens prolongadas e a formação de povoamentos com os retirantes das secas, considerados vagabundos e salteadores. Com o
fim da colonização portuguesa, durante o período imperial, prevaleceu o socorro às vítimas da fome durante as secas, com a distribuição de alimentos.
A atitude estatal começou a mudar a partir de 1856, com a
criação de uma Comissão Científica para estudar aquela realidade e
propor soluções para enfrentamento das problemáticas. Entre as recomendações para enfrentamento da seca e das suas conseqüências, prevaleceu a solução hidráulica pela açudagem e irrigação, compreendida como “[...] correção da natureza semi-árida do Nordeste”
(POMPEU SOBRINHO, 1982, p. 87). Com isso, no início do século
XX, começam as ações mais sistemáticas de prevenção e
enfrentamento das conseqüências das secas.
Com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas
(IOCS), em 1909, estabelecia-se um novo patamar na ação estatal.
O plano de ação do órgão refletia uma síntese das propostas para
combate aos efeitos das secas: realização de estudos, planejamento e execução de obras hídricas (açudes, canais de irrigação, barragens, perfuração de poços e drenagens); estradas de rodagem e ferrovias; reflorestamento e piscicultura. As investigações foram fundamentais para ampliar a base de conhecimentos sobre aquela realidade, fornecendo subsídios para o planejamento das obras de engenharia. Em 1919, a Inspetoria Federal de Obras Contras as Secas
(IFOCS) sucede o IOCS, contando com maior capacidade de atuação e com o apoio institucional da Lei Epitácio Pessoa (Lei 3.965)
que instituiu a “Caixa Especial das Obras de Irrigação das Terras
Cultiváveis no Nordeste e dos Serviços Complementares ou Preparatórios”. Porém, continuaram os problemas de descontinuidade das
ações e escassez de recursos, dependendo da disposição dos governos e da ocorrência das secas nas ações emergenciais.
Nova tentativa ocorre em 1945, com a criação do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas (DNOCS), com a finalidade de realizar obras e serviços permanentes e desenvolver ações
em situação de emergência. Começou a haver uma preocupação
113
maior com o gerenciamento dos açudes públicos, direcionando as
águas represadas para as atividades de irrigação. Foram criados postos
agrícolas para prestar serviços agro-industriais aos sertanejos e para
desenvolver ações de assistência social e educacional. Eram tentativas de mudança do foco nas ações, diante do acúmulo de críticas
feitas à época e que continuam até hoje, sobre os limites das ações
governamentais no combate às secas. As mudanças propugnadas
enfrentaram várias barreiras, entre as quais, as limitações orçamentárias, tendo em vista que os dispositivos constitucionais que estabeleciam percentuais mínimos de investimento nas áreas das secas,
nunca foram efetivamente cumpridos.
Outro desafio colocado ao DNOCS naquele período referia-se à questão do domínio das terras nas bacias dos açudes que
deveriam ser aproveitadas para irrigação. As propostas para melhorar a situação enfrentaram a forte resistência das oligarquias rurais
adeptas da pecuária extensiva, impedindo a abertura de canais para
a irrigação nas suas terras. Ainda em 1949, foi elaborado um Projeto
de Lei estabelecendo normas para a colonização das terras a serem
desapropriadas, circunvizinhas das grandes barragens e que ficou
conhecido posteriormente como “Estatuto da Irrigação”. O
posicionamento do DNOCS sofreu forte reação dos representantes
políticos das oligarquias rurais sertanejas, que o denunciaram como
uma proposta subversiva e adepta do comunismo e impediram, por
mais de uma década, a sua implantação. Somente após a criação da
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) foi possível implantar um sistema de arrendamento de lotes por contratos
de cessão.
2.2. Políticas Desenvolvimentistas no Semi-Árido
Mudanças substanciais nas ações estatais ocorrem em
meados do Século XX diante do agravamento da crise regional do
Nordeste em relação ao dinamismo econômico do Centro-Sul do país.
As críticas às formas tradicionais de combate à seca e aos seus
efeitos provocam uma reação governamental que opta pela modernização econômica para promover o desenvolvimento regional, con114
solidando a política hídrica de suporte à irrigação e reestruturando a
propriedade rural.
Esse período é caracterizado pela criação de novos órgãos
responsáveis pelas políticas de desenvolvimento regional. Em 1945,
foi criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), voltada para o aproveitamento e o desenvolvimento do potencial
energético do Rio São Francisco, resultando na construção da Usina
Hidrelétrica de Paulo Afonso, em 1948. A Constituição de 1946 reconheceu a importância da Bacia do Rio São Francisco, determinando a execução de um plano de aproveitamento das suas possibilidades econômicas. Foi criada a Comissão do Vale do São Francisco
(CVSF) com a missão de planejar e realizar ações de regularização
dos rios, de utilização adequada de seu potencial hidrelétrico e de
desenvolvimento agrícola. Outra iniciativa ocorreu em 1952, ano de
grande seca, com a criação do primeiro banco estatal de desenvolvimento regional no Brasil, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB),
como agente financeiro regional de incentivo à implantação de empreendimentos industriais e agropecuários.
A criação do Grupo de Trabalho de Desenvolvimento do
Nordeste (GTDN), em 1959, foi mais uma resposta do Governo Federal às pressões vindas de diversos setores do Nordeste. A partir
das recomendações do GTDN, o Governo Federal propôs a criação
da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Sendo portadora de uma nova visão sobre o Nordeste e sobre as
alternativas de desenvolvimento regional, coordenando esforços governamentais e aglutinando uma capacidade técnica e política especializada para a condução dos programas regionais, o órgão contribuiu significativamente para retirar a região da situação de letargia
na qual estava mergulhada.
Em relação ao Semi-Árido, o relatório do GTDN foi um
verdadeiro marco divisor de águas nos diagnósticos e nas alternativas de superação dos problemas regionais. Apresentou um diagnóstico preciso da seca como crise de produção de uma economia débil,
marcada pela baixa produtividade e pelo reduzido grau de integração
nos mercados, sujeita a crises periódicas nas estiagens prolongadas
115
(BRASIL, 1959, p. 65). Outra constatação foi a de que as ações
governamentais de combate às secas, tanto as emergenciais quanto
as de infra-estrutura hídrica, não contribuíram efetivamente para
superação dos problemas.
O GTDN apresentou algumas alternativas para o fortalecimento da capacidade monetária da população local, pela ampliação da renda real do trabalhador, reduzindo a dependência da produção para a subsistência. Trata-se de uma transformação progressiva
da economia semi-árida, no sentido de elevar sua produtividade e
torná-la resistente ao impacto das secas.
No entanto, com o Golpe Militar de 1964, a Sudene perdeu
sua relativa autonomia no planejamento regional e ficou totalmente
submetida à política de integração nacional, tendo clara opção de industrialização protagonizada pelo capital estrangeiro associado às empresas do Centro-Sul. Os desvios ocorridos na Sudene em relação às
propostas do GTDN também repetiram-se no Semi-Árido, com a opção pela modernização do setor agropecuário, mantendo privilégios
das oligarquias agrárias, além das políticas assistenciais e da continuidade das ações hídricas de represamento de água para as áreas de
irrigação.
Analisando a implantação das ações governamentais nesse
período, Bursztyn (1985) e Carvalho (1988), destacam que a nova
postura política expressa uma estratégia de modernização conservadora5, na qual o Estado busca viabilizar novas formas de acumulação
de capital, preservando as antigas estruturas socioeconômicas e políticas regionais por meio da modernização da grande propriedade agrícola. Para isso, passa a utilizar-se de novos instrumentos de intervenção programada (crédito, assistência técnica, infra-estrutura etc.),
ampliando o seu caráter autoritário e centralizador, ao mesmo tempo
5
“A modernização conservadora corresponde à introdução do progresso técnico sem
qualquer relação para com os aspectos sociais do desenvolvimento. [...] apresenta a
particularidade de constituir um processo violento de introdução do progresso técnico
no campo, porque engendra relações de produção (novas ou 'recriadas', como a parceria), sempre desfavoráveis aos pequenos produtores rurais, proprietários ou não da
terra”. (Carvalho, 1988, p. 336).
116
em que mantém as medidas assistenciais (paternalismo oficial) nos
períodos de seca, como forma de legitimação. Por fim, ressalta-se a
capacidade dos grandes proprietários rurais em recuperar, em seu
próprio proveito, as ações do Estado que eram dirigidas aos pequenos produtores.
Além dos programas especiais, o Governo Federal também reforçou sua atuação na região com a criação de órgãos públicos. Em 1974, foi criada a Companhia de Desenvolvimento do Vale
do São Francisco (Codevasf), que deveria fornecer uma face mais
moderna à agricultura empresarial na região com medidas de regularização fluvial nos rios da bacia do São Francisco, o incentivo à irrigação, à geração de energia, às obras de infra-estrutura de transporte e ao desenvolvimento urbano com saneamento, entre outras. Outra iniciativa foi a criação do Centro de Pesquisa Agropecuária do
Trópico Semi-Árido (Cpatsa), em junho de 1975, vinculado à Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), para desenvolver estudos,
pesquisas e experimentações tecnológicas no Semi-Árido.
A presença do Estado foi fundamental com a implantação
de projetos de irrigação, assumindo integralmente os custos da maior
parte da infra-estrutura de armazenamento, captação e distribuição
de água, beneficiando as empresas, nacionais e internacionais, que
implantaram suas plantas agroindustriais na região. O sucesso da
agricultura irrigada foi motivado pelos incentivos creditícios e fiscais
do Governo, por meio do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor)
e, posteriormente, do Fundo Constitucional de Financiamento do
Nordeste (FNE). Nas décadas de oitenta e noventa, a iniciativa privada assumiu a liderança desse processo, aproveitando a infra-estrutura instalada na região. O resultado foi uma incorporação significativa de áreas irrigadas no Semi-Árido, conforme os dados divulgados pelo Ministério da Integração Nacional, em 2005: considerandose que as áreas irrigáveis no Semi-Árido chegam a 2,2 milhões de
hectares, já foram irrigados 20,5% deste total (Brasil., 2005b).
Os investimentos no setor agrícola permitiram a criação de
pólos de desenvolvimento com agricultura irrigada, constituindo um
novo modelo produtivo em áreas do Semi-Árido. No setor industri117
al, desenvolveram-se as indústrias de processamento de tomates
e de frutas para sucos, de produção de vinho, de açúcar, de álcool, de equipamentos de irrigação e de insumos agropecuários; no
setor agrícola, vários empreendimentos modernos voltados para
a produção de frutas, com destaque para uva, banana, manga,
melancia e melão; no setor serviços, os bancários e o de telecomunicações. Analisando essas transformações, com a expansão
da agricultura irrigada, Gomes (2001, p. 226) afirma, entusiasmado: “Contrariamente ao que foi sempre sua realidade, o Nordeste
pode, hoje, escolher entre a miséria produzida pela sua economia
agropecuária tradicional e a riqueza gerada pela agricultura irrigada
empresarial”.
Outros estudos, no entanto, apontam para os limites técnicos nos perímetros irrigados: “No Semi-Árido brasileiro, as informações das entidades públicas que têm responsabilidade pela irrigação, CODEVASF e DNOCS, situam a área salinizada decorrente da irrigação em 5.500 ha” (CHRISTOFIDIS, 2001, p.182). Além
da salinização, as práticas inadequadas da agricultura irrigada agravam as fragilidades ambientais com a degradação de nascentes e
mananciais hídricos e a erosão dos solos, com a conseqüente diminuição da produtividade. Hoje, há quase um consenso de que, para
evitar os danos ambientais ao solo pelas práticas de irrigação, uma
das principais medidas a serem adotadas é o zoneamento
agroecológico, pelo levantamento das áreas com potencial para a
agricultura irrigada, considerando-se os tipos de solo, a quantidade
e qualidade da água.
A irrigação é apenas uma amostra da forma como foi concebida e executada a fase desenvolvimentista no Semi-Árido brasileiro. O impulso na modernização das atividades produtivas não foi
acompanhado de mudanças estruturais e políticas. O crédito, a modernização da propriedade, o desenvolvimento e disseminação de
tecnologias e os incentivos às atividades produtivas modernas foram
orientados pela busca do crescimento econômico da região, mas sem
o mesmo peso dado às mudanças sociais.
118
O papel do fundo público foi essencial nesse processo de
modernização econômica em algumas “ilhas de desenvolvimento”
do Semi-Árido, fortalecendo as atividades urbanas e industriais e
rompendo com a fraca dinâmica que prevalecia no período anterior.
No entanto, esse processo tem-se caracterizado pela heterogeneidade
intra-regional, refletindo o caráter seletivo dos investimentos estruturais realizados pelo Estado e as estratégias para localização dos
empreendimentos privados.
Apesar de alguns avanços nos indicadores sociais, as situações de emergência e calamidade continuaram a se repetir no SemiÁrido, que ainda concentra percentuais elevados de pobreza e miséria.
Um dos agravantes dessa situação foi, sem dúvida, a crise da
cotonicultura, tornando ainda mais difícil a sobrevivência de um imenso
contingente populacional no Semi-Árido. A situação tem sido amenizada
com a expansão de programas governamentais de transferência de renda, com a ampliação da cobertura previdenciária: “Hoje os velhos sustentam os moços nessa parte do Nordeste” (ARAÚJO, 1997, p. 459).
Além do declínio da economia tradicional no Semi-Árido,
verifica-se que o recente processo de modernização econômica na
região não foi capaz de romper com as bases estruturais das desigualdades no Semi-Árido. A concentração da terra e da renda são
também resultados dos incentivos do Estado na região, nos moldes
em que foram realizados. Os incentivos à pecuária, por exemplo,
fortaleceram e modernizaram essa atividade agravando a questão
fundiária, provocando a redução da produção de alimentos e a intensificação de emigração rural (ANDRADE, 1980; 1987).
2.3. Crise das Políticas Públicas no Semi-Árido: Janela de
oportunidades para mudanças
Os sentimentos de frustração e fracasso das políticas de
combate à seca e de modernização econômica conservadora fornecem as bases para justificar a necessidade de busca e valorização
de alternativas sustentáveis para o desenvolvimento do Semi-Árido.
Um conjunto de Organizações Não Governamentais (ONGs) que
119
atuam no Semi-Árido e algumas instituições públicas de pesquisa e
extensão rural, como a Embrapa e a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), passaram a desenvolver propostas e a experimentar tecnologias hídricas e produtivas,
alternativas e apropriadas à realidade ambiental, cultural e
socioeconômica do Semi-Árido. Em 1982, a Embrapa e a Embrater
divulgaram um documento intitulado Convivência do Homem com
a Seca (Embrapa, 1982), sugerindo uma orientação governamental
inovadora de implantação de sistemas de exploração de propriedades agrícolas, para assegurar a convivência do homem com a seca.
No final do século XX, novos atores sociais e políticos entraram em cena, com um discurso afirmativo da possibilidade de um
desenvolvimento sustentável no Semi-Árido. Na seca de 1992 a 1993,
houve uma mudança qualitativa na reação da sociedade civil organizada, pressionando o Governo Federal por ações imediatas e cobrando a elaboração de um plano de ações permanentes no SemiÁrido. Com a criação do Fórum Nordeste, composto por mais de
trezentas organizações da sociedade civil da região, foi elaborada
uma proposta de Ações Permanentes para o Desenvolvimento do
Nordeste Semi-Árido Brasileiro (FÓRUM, 1993), centrada no fortalecimento da agricultura familiar, no uso sustentável dos recursos
naturais e na democratização das políticas públicas.
A resposta governamental veio em 1994, com a formulação do Projeto Áridas: uma proposta de desenvolvimento sustentável para o Nordeste (BRASIL, 1995). Elaborado quarenta anos
após o documento final do GTDN, manteve a mesma proposta de
reordenamento do espaço e da economia do Semi-Árido. Além da
reestruturação fundiária, propôs um conjunto de medidas para a ocupação demográfica e produtiva compatível com a capacidade de suporte dos recursos da terra e da água.
Em 1999, durante a Terceira Sessão da Conferência das
Partes das Nações Unidas da Convenção de Combate à Desertificação
(COP 3), ocorrida em Recife, Pernambuco, representantes de movimentos sociais, de entidades religiosas e de ONGs divulgaram a Declaração do Semi-Árido, afirmando que a convivência com as condi120
ções do Semi-Árido brasileiro é possível. O documento apresenta um
conjunto de propostas baseadas em duas premissas: o uso sustentável
dos recursos naturais do Semi-Árido e a quebra do monopólio de acesso à terra, à água e aos outros meios de produção. Esses princípios
servem de referência para a constituição da Articulação do Semi-Árido (ASA), que hoje mobiliza cerca de 700 organizações no Brasil.
Fruto dessa articulação foi formulado e está em implantação o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido - Um Milhão de Cisternas Rurais
(P1MC), que garante, até agora, acesso a água de qualidade para
mais de trezentas mil famílias. Além das cisternas, o Programa realiza a capacitação para a convivência, enfatizando os aspectos de
gerenciamento de recursos hídricos e cidadania. Nessa mesma direção, em 2006, a Articulação do Semi-Árido implantou seu segundo
projeto chamado de “P1+2 - Programa Uma Terra e Duas Águas”,
com o objetivo de promover a segurança e a soberania alimentar das
famílias de agricultores do Semi-Árido brasileiro, através da produção de alimentos com base em tecnologias apropriadas à região.
Nos últimos anos, programas governamentais federais para
o Semi-Árido buscam incorporar o discurso da sustentabilidade do
desenvolvimento como um de seus referenciais, embora com enfoques
e diferentes graus de adesão às alternativas de convivência com o
Semi-Árido brasileiro. Na estiagem de 2001/2002, foi lançado o
“Programa Sertão Cidadão: convívio com o Semi-Árido e inclusão
social”. Além de ações imediatas de atendimento à população sertaneja, foi proposta a criação de um “Sistema de Planejamento e Gestão do Semi-Árido e o Programa de Disseminação de Tecnologias
Apropriadas para o Semi-Árido”, visando mudanças no padrão
tecnológico e a promoção de alternativas produtivas apropriadas com
possibilidades de inserção no mercado interno e externo.
Em abril de 2003, já no Governo Lula, foi lançado o Programa Conviver: Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido,
propiciando a convergência de ações voltadas para melhoria da
vida dos agricultores familiares da região: o seguro-safra (renda
mínima aos produtores); a compra de alimentos (Programa de Aqui121
sição de Alimentos); o acesso ao crédito para captação de recursos hídricos; investimento em culturas forrageiras e manejo da caatinga; o Cartão-Alimentação; assistência técnica; educação para
a convivência com o Semi-Árido. No entanto, o Programa Conviver resumiu seu foco em projetos hídricos, indicando uma regressão na estratégia inicial.
A preocupação com o desenvolvimento sustentável do SemiÁrido também está presente na proposta de recriação da Sudene. A
alternativa apresentada é a promoção da integração cooperativa dos
espaços intra-regionais, sendo o Semi-Árido um dos espaços prioritários
para as políticas de desenvolvimento regional: “Tal estratégia terá em
vista atender a dois tipos de exigências: as de desenvolvimento e as de
convivência com a semi-aridez” (BRASIL, 2003, p. 44).
Apesar de alguns avanços, existem sinais claros de permanência ou continuidade das características das concepções e práticas que têm predominado, historicamente, nas políticas públicas no
Semi-Árido. Neste início de século XXI, mesmo renovando os discursos, com a incorporação das dimensões da inclusão social e da
sustentabilidade, permanece a perspectiva de solucionar os problemas regionais com a implantação das grandes obras hídricas e para
a moderna produção irrigada, geralmente orientada para o mercado
externo. Subordinada à dimensão econômica, a sustentabilidade assume significados contraditórios.
É o caso, por exemplo, do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido (PDSA) que tem por objetivo o
crescimento regional sustentável, com inclusão social e redução das
desigualdades regionais. Apesar de apresentar um conjunto de estratégias sociais e econômicas, o Plano confere prioridade “[...] às
ações inovadoras ou associadas a empreendimentos de grande porte, territorialmente identificadas com o Semi-Árido” (BRASIL, 2005b,
p. 82). As prioridades para incentivar o desenvolvimento na região
são: a) a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, como base
para a integração de bacias hidrográficas; b) a hidrovia do São Francisco; c) a Ferrovia Transnordestina; d) a agricultura irrigada, dinamizando o agronegócio; e) a produção de energia alternativa
122
(biodiesel, gás natural etc.); e f) mineração e refinaria de petróleo.
Essas prioridades foram efetivamente incorporadas nas ações do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Ao mesmo tempo, setores da sociedade civil organizada,
com aliados governamentais ligados às áreas social e ambiental, buscam avançar nas propostas de convivência com o Semi-Árido, apresentando alternativas que enfatizam os aspectos da inclusão social,
da valorização da cultura e da identidade sertaneja; bem como da
preservação dos recursos naturais na Caatinga. Embora existam relações entre essas alternativas e algumas das prioridades do Governo Federal, permanecem grandes focos de conflitos. São sinais evidentes de que as concepções e proposições de políticas públicas para
aquela região continuam em disputa. No centro dessa disputa, encontra-se o debate sobre os significados e proposições de um desenvolvimento dotado de sustentabilidade no Semi-Árido.
3. Um Novo Paradigma de Desenvolvimento: A
Sustentabilidade
A questão do desenvolvimento tem sido uma das principais
preocupações das sociedades humanas. Sob diversos enfoques e
concepções, o desenvolvimento sempre foi interpretado e almejado
como uma promessa do futuro, como uma situação de conforto pela
satisfação das necessidades, ampliando as capacidades e a liberdade humana. Com o advento da modernidade, resta interpretado como
progresso, como expressão da capacidade racional, cujas finalidades
são a ampliação das riquezas materiais e a geração de bem-estar.
No entanto, essa concepção moderna de desenvolvimento
encontra-se em crise. A promessa de futuro foi concretizada em
alguns países e para apenas uma parte da humanidade. A degradação do meio-ambiente e o agravamento das desigualdades sociais,
frutos desse modelo, colocam em risco as gerações presentes e futuras. Construir e conquistar novas estratégias e objetivos de um
desenvolvimento sustentável são desafios que se colocam para a
humanidade.
123
A capacidade criativa e criadora dos seres humanos possibilita o desenvolvimento de alternativas para a satisfação das
necessidades básicas de sobrevivência e a busca permanente do
conforto e da felicidade. A idéia de progresso tem suas raízes no
século XVIII, no período de ascensão da filosofia iluminista que
proclamou a idade da razão e propôs a evolução cultural da humanidade, como a conquista da sabedoria, enfatizando a superioridade da ciência e da tecnologia. Essa concepção de racionalização das instituições e das atividades humanas convergiu com a
ideologia do capitalismo nascente sobre a eficiência produtiva,
como a possibilidade de ampliação acelerada das riquezas e da
conquista do bem-estar.
A atual concepção hegemônica do desenvolvimento deriva
desse paradigma do progresso. A industrialização possibilitou a produção em massa de bens de consumo cada vez mais sofisticados. A
sociedade contemporânea passou a mover-se em torno de uma “[...]
visão otimista da história e da capacidade infinita de inovação
tecnológica que permitiria uma dinâmica sem limites do processo de
transformação da natureza em bens e serviços” (BUARQUE, 1990,
p. 132). A ampliação seletiva do consumo é o combustível desse
processo. Para tanto, são criadas ou induzidas novas necessidades
por meio de poderosas estratégias de marketing que geram a demanda, despertam o desejo e o sentimento de falta, para depois produzir a escassez e selecionar o acesso aos bens, reduzindo a economia a um mecanismo de ajuste entre oferta e procura.
No entanto, contraditoriamente, o padrão de desenvolvimento capitalista também limita a satisfação do consumo ao gerar as
desigualdades sociais. A promessa histórica do progresso técnico e
do crescimento econômico constante realiza-se apenas para uma
parte da sociedade. Em alguns casos, ao contrário da promessa, destrói culturas tradicionais, promove a máxima exploração dos recursos naturais e introduz técnicas sofisticadas que substituem o trabalho humano, levando a uma degradação das condições de vida da
maioria da população. Esse misto de realização e frustração constitui uma crise civilizatória.
124
Manifestações críticas sobre o modelo hegemônico de crescimento econômico vêm se formulando desde o emergir da Revolução
Industrial. Essas críticas constituem a base de um novo paradigma de
desenvolvimento. Ainda na primeira metade do século XX, Josué de
Castro, ao trazer o tema da fome e do subdesenvolvimento para o centro
dos debates, ressaltava a importância do desenvolvimento como forma
de superar as desigualdades sociais. Mas seria necessária uma mudança, ou melhor, uma reconversão do tipo de desenvolvimento que conduzisse a uma “ascensão humana” por meio de mudanças sociais sucessivas e profundas: “Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem. O homem, fator de desenvolvimento, o homem beneficiário do desenvolvimento” (CASTRO, 2003, p. 105).
O economista Celso Furtado, que ajudara a formular as teorias cepalinas do período desenvolvimentista, passou a criticar explicitamente o mito que fora criado entorno do crescimento econômico:
A idéia de desenvolvimento econômico é um simples
mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da
coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço
da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos como os
investimentos, as exportações e o crescimento (FURTADO,
1974, p. 76).
Furtado alertou que a orientação geral do desenvolvimento
capitalista é excludente. Fez isso a partir de duas constatações: o
aumento do fosso entre os países centrais e os da periferia; e a exclusão das massas e a ampliação dos privilégios da minoria nos países periféricos. Além disso, os custos ambientais para universalização
do estilo de vida dos países centrais poderiam provocar um colapso
da civilização pela degradação da natureza. A conclusão do autor é a
de que os países periféricos do sistema capitalista nunca serão similares aos países centrais: “O custo, em termos de depredação do
mundo físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que toda
tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda
uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência
da espécie humana” (FURTADO, 1974, p. 75).
125
A crítica ao mito do crescimento econômico, formulada no
início da década de setenta por Celso Furtado e por outros autores,
não resulta, necessariamente, numa postura de negação radical do
desenvolvimento. Celso Furtado (1974; 1980), por exemplo, propõe
que o desenvolvimento deveria ser concebido como um “projeto social”, como uma orientação política e social que possibilitasse a transformação global da sociedade. O crescimento econômico seria um
instrumento a serviço dessa transformação, combinando a produção
das riquezas necessárias à satisfação das necessidades de toda a
população, com a incorporação de direitos (humanos, civis, culturais,
sociais e econômicos), preservando o equilíbrio ecológico. É essa a
base do pensamento sobre o desenvolvimento sustentável.
Enquanto ação humana, o desenvolvimento é um processo
cultural de transformação da natureza e das relações sociais e produtivas, numa dinâmica que pode ou não ser harmoniosa. Na perspectiva antropocêntrica, a capacidade de recriação da realidade natural para a satisfação da necessidade implica o controle e a dominação do ser humano sobre os fenômenos e entes da natureza. Numa
perspectiva holística, ao contrário, busca-se o desenvolvimento como
harmonização entre cultura e natureza, entre a modificação do ambiente para a satisfação de necessidades e a preservação dos bens
naturais comuns. O desenvolvimento também expressa a possibilidade de mudança, de transformação da realidade. O caráter transformador também está relacionado à concepção de desenvolvimento como construção societária. As civilizações são expressões de
acúmulos de sociabilidade (proximidade) e de dominação
(estranhamento e desigualdade) nas relações culturais, sociais e econômicas. A conquista da cidadania (como expansão e vivência de
direitos) e o exercício ativo da participação política (democracia)
apresentam-se como germes de um modelo alternativo de civilização, no qual os esforços culturais, econômicos e políticos sejam subordinados à finalidade da melhoria das condições de vida.
Nas últimas décadas, foi agregado um novo componente no
debate sobre os significados do desenvolvimento. A questão ambiental
é uma conquista recente da humanidade, como reação crítica às práti126
cas predatórias dos recursos naturais. Os grandes desastres ambientais
e os riscos futuros para a humanidade provocaram, a partir da década
de sessenta, o surgimento do movimento ambientalista, colocando em
debate a questão dos limites do crescimento econômico, sob a ótica da
escassez dos recursos naturais e das capacidades de suporte do planeta Terra. Os alertas e críticas tiveram repercussões éticas e
epistemológicas de alcance mais profundo, influenciando o pensamento sobre o desenvolvimento, reconciliando ser humano e natureza. O
debate ambiental passou também a dar ênfase às relações entre a
questão ambiental e as condições sociais. A relação entre a questão
ecológica e as condições sociais de pobreza tornou-se uma preocupação recorrente, enfatizando a necessidade de um desenvolvimento
qualitativamente modificado: “[...] buscando uma distribuição mais justa
da renda, a conservação dos recursos e enfatizando técnicas limpas
de produção” (SACHS, 1993, p. 21).
No entanto, mais uma vez havia a tendência da economia
ser sobreposta às outras dimensões do desenvolvimento, apropriando-se, ao seu modo, do conceito de sustentabilidade. De fato, o
principal documento-síntese da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, produzido em 1987,
sob o título “Nosso Futuro Comum”, enfatizou um tipo de
sustentabilidade compreendida como adequação das atividades
socioeconômicas aos limites dos recursos naturais (McCormick,
1992). Interpretado sob o predomínio da lógica econômica, o significado do desenvolvimento sustentável foi reduzido ao de um “desenvolvimento que perdura no tempo”, como um desenvolvimento
duradouro que leva em consideração o bem-estar humano e o respeito pelos sistemas naturais de que depende.
A reação de parte do movimento ambientalista e de teóricos do desenvolvimento sustentável articulava argumentos éticos e
políticos na critica aos desvios dessas concepções mecanicistas de
sustentabilidade que atendiam aos interesses de legitimidade do processo econômico. A crítica ambiental ao economicismo
desenvolvimentista mostrava que a sustentabilidade do desenvolvimento não seria possível com a manutenção de um modo de produ127
ção que transforma tudo em mercadoria inclusive a vida dos diversos seres e depende da ampliação constante do consumo para sua
expansão.
Apesar de permanecerem, até hoje, as divergências sobre
os conteúdos e significados da sustentabilidade do desenvolvimento
do ponto de vista conceitual e político, existem avanços significativos
na formulação de princípios, critérios e estratégias para promoção
de um “ecodesenvolvimento”6 que, segundo Sachs (1986), combina
as diversas dimensões da realidade. A primeira delas é a dimensão
ambiental: a sustentabilidade do desenvolvimento tem por base a transformação das relações entre as pessoas e a natureza, “[...] baseada
na consciência da fragilidade e finitude da terra [...] e na
autocompreensão radical do vínculo de pertinência do homem à natureza” (BARTHOLO JÚNIOR, 1984, p. 80).
Além disso, considera que os aspectos ecológicos e culturais têm uma dimensão territorial, considerando as diversidades ecológicas (biomas e ecossistemas) e as diversidades culturais (comunidades tradicionais e etnias). Nessa perspectiva, o caráter endógeno
do desenvolvimento implica repensar as territorialidades, considerando o ordenamento ecológico das atividades produtivas.
A dimensão social da sustentabilidade expressa a perspectiva includente do desenvolvimento como estratégia de redução das
disparidades de renda e de riqueza, com um patamar razoável de
homogeneidade social. A sustentabilidade implica a conquista de novos direitos relativos ao ambiente, à cultura, à autodeterminação dos
povos, e à igualdade de gênero, raça e etnia. A qualidade de vida não
é reduzida à promessa do “bem estar” da sociedade de consumo;
mas é compreendida como “[...] o direito a uma vida digna, ao pleno
desenvolvimento das faculdades dos seres humanos e à realização
de suas aspirações morais, intelectuais, afetivas, estéticas, mediante
a reconstrução do ambiente” (LEFF, 2000, p. 220).
Submetida a essa orientação sociocultural e ambiental, a
6
O conceito de ecodesenvolvimento foi lançado em 1973 pelo canadense Maurice
Strong. Posteriormente, Ignacy Sachs desenvolveu os seus princípios e critérios.
128
sustentabilidade econômica é a promoção do crescimento das forças
produtivas e da produtividade ambientalmente equilibrada, com a
construção de novas dinâmicas de geração e de redistribuição social
das riquezas. Sob a ótica da sustentabilidade, o objetivo estratégico
das atividades econômicas deveria ser a elevação da produtividade
global, incentivando atividades produtivas adaptadas às condições
ecológicas da região, baseando-se na utilização racional dos recursos naturais e na valorização do trabalho humano. Expressa, portanto, uma nova racionalidade que valoriza as formas de produção apropriadas aos ecossistemas como potenciais para um crescimento econômico eqüitativo e sustentável.
A sustentabilidade política é explicitada num processo contínuo e participativo de conquista da cidadania, com a democracia
definida em termos de apropriação universal dos direitos humanos,
incluindo a capacidade de participação na formulação e implantação
de projetos de desenvolvimento. Por isso, do ponto de vista do poder,
a sustentabilidade implica o avanço dos processos de gestão
participativa que modifique as estruturas dominantes e excludentes
do poder político e econômico. Esse modelo de gestão negociada e
contratual é fundamental, por exemplo, nas políticas de gestão
ambiental e requer a sensibilização e a participação ativa dos atores
envolvidos como condição fundamental para seu sucesso.
O desenvolvimento sustentável expressa, portanto, uma ação
cultural; é a construção de uma nova racionalidade contextualizada do
desenvolvimento, ou seja, deve considerar as diferentes realidades
socioambientais, valorizando a diversidade cultural dos povos. As ações
descontextualizadas e desprovidas de adesão e participação política
ativa da população estão fadadas ao fracasso, pois expressam uma
atitude autoritária e de intolerância diante da diversidade ambiental e
cultural. A atual concepção econômica e tecnológica que predomina
nos modelos hegemônicos de desenvolvimento impede a participação
ativa e consciente dos povos (autodeterminação) nesses processos,
conduzindo, na maioria das vezes, ao fracasso.
Para Hassan Zaoual, um dos autores que tem contribuído
para a compreensão da importância da contextualização cultural em
129
contraponto à uniformização como tentativa de imposição de um
pensamento único, a inclusão cultural é contraditória com a visão
moderna de inserção econômica orientada pelo mercado. Para o autor,
a base dessa contradição é a concepção do homo economicus, da
redução do ser humano a produtor e consumidor de bens materiais e
imateriais, moldado pelas estratégias de marketing, para inserção
no mercado. No entanto, o ser humano é um animal territorial. Suas
ações requerem sentido, direção e vínculo com o local e com as
coletividades: “É o homem social, pensando e agindo em dada situação. E ele é tudo isso, transmitindo o significado do momento, o de
sua situação com todo o peso do passado e da mudança que se impõe” (ZAOUAL, 2003, p. 29).
O debate sobre a dimensão cultural da sustentabilidade torna-se fundamental para o reconhecimento de que o desenvolvimento
sustentável implica e requer a contextualização cultural, a partir da
qual é possível resgatar e construir, de forma dialógica, novos valores e implementar novas práticas de convivência. No entanto, é preciso reconhecer que as mudanças culturais, enquanto transições
paradigmáticas, envolvem disputas que somente são resolvidas em
longo prazo: “(...) ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do
paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou
paradigmas emergentes. A transição paradigmática é um objetivo de
muito longo prazo” (SANTOS, 2001, p. 19).
Nesse sentido, deve-se reconhecer a importância dos processos culturais de resgate e construção de novos referenciais de
pensamento (consciência) e do agir (comportamento) dos seres humanos. É essa a nova orientação que tem sido construída para o
desenvolvimento sustentável no Semi-Árido brasileiro com base na
perspectiva da “convivência”.
4. Sustentabilidade e Convivência com o Semi-Árido
Brasileiro
Está em construção uma proposta alternativa de
enfrentamento e superação das problemáticas sociais, econômicas e
130
ecológicas no Semi-Árido brasileiro. Ela se formula ao longo da história das crises regionais, como uma crítica ao pensamento e à política de combate à seca e aos seus efeitos, e ainda ao modelo de
modernização econômica conservadora. No período mais recente,
essa construção recebeu influências do debate sobre o desenvolvimento sustentável que se constitui em um novo paradigma civilizatório.
Tanto o pensamento crítico quanto as novas contribuições
da sustentabilidade são constitutivos da proposta de convivência com
o Semi-Árido. No entanto, essa proposta tem sido interpretada de
forma variada, gerando questionamentos diversos. Em alguns casos,
ela é vista como uma proposta de acomodação ou de passividade
diante dos fenômenos e condições naturais. Em outros, é vista como
simples apelo à conformidade das tecnologias e práticas produtivas
da semi-aridez. Essas interpretações descaracterizam a complexidade da convivência. Daí a necessidade de resgatar os seus vários
sentidos e significados.
Deve-se considerar que a convivência expressa uma mudança na percepção da complexidade territorial e possibilita construir ou resgatar relações de convivência entre os seres humanos e a
natureza. Nesse sentido, um desafio fundamental é o de construir o
“sentido da convivência”. Para isso é preciso superar o “monopólio
do sentido” que está sempre presente, de forma explícita ou velada,
nas proposições e projetos descontextualizados (pacotes tecnológicos,
produtivos e socioculturais). A convivência expressa um conflito de
sentidos “[...] entre o modelo especializado introduzido de cima para
baixo em nome da ciência e as exigências da grande variedade de
situações e, mais ainda, a necessidade vital de participar do poder de
inovar e criar” (ZAOUAL, 2003, p. 75).
4.1. O Sentido Ambiental da Convivência
A convivência com o meio ambiente é um imperativo fundamental para o manejo e uso sustentável dos recursos naturais
num ecossistema sem inviabilizar a sua reprodução. Implica uma
nova orientação para as atividades humanas, buscando conciliar ou
131
corrigir os limites naturais à intervenção antrópica. É importante
aprender a viver em harmonia com o código da natureza, buscando
a adaptação ao seu habitat, e não a partir de uma relação de
estranhamento, de destruição ou de combate. Convivência é “viver
com”, estar junto com outros. Significa a possibilidade de interação
e coexistência dentro de uma lógica de reciprocidade, “[...] da aceitação e do cuidado com o outro reconhecido em sua legitimidade
enquanto outro da partilha, aquele com quem cada uma das partes
da convivência estabelece laços de complementaridade e
interdependência” (PIMENTEL, 2002, p. 193).
Os avanços da ecologia permitiram esse reconhecimento da reciprocidade entre os diversos seres vivos como condição
de equilíbrio do espaço comum vivido. Daí o significado da convivência como coabitação num mesmo espaço ou a
interdependência entre os diversos seres vivos. A coabitação requer a constituição de novas formas de pensar, de sentir e de agir
de acordo com o ambiente no qual se está inserido. Por isso, a
convivência é imperiosa em numerosas regiões do mundo, obrigando os seres humanos a regularizar as suas ações produtivas,
considerando as características ambientais. O sentido da imperiosa convivência com o Semi-Árido foi formulado há cerca de
quarenta anos atrás, por Guimarães Duque (1996, p. 9): “Outrora
o conceito de seca era aquele de modificar o ambiente para o
homem nele viver melhor. A ecologia está nos ensinando que nós
devemos preparar a população para viver com a semi-aridez, tirar dela as vantagens”.
Atenção especial deve ser dada às fragilidades hídricas, ao
manejo sustentável dos mananciais e à valorização da captação,
armazenamento e gestão da água de chuva. Hoje, são perceptíveis
os avanços relacionados às tecnologias hídricas apropriadas ao SemiÁrido. Um dos fundamentos desse processo é o reconhecimento das
múltiplas necessidades de abastecimento hídrico: captação e distribuição de água para consumo, com a construção e manutenção de
pequenas barragens e outros equipamentos de uso familiar e comunitário; uso das áreas úmidas para produção de alimentos, visando a
132
segurança alimentar; produção de mudas para recuperação da mata
ciliar; formação para o manejo de recursos hídricos e do solo, evitando o desperdício e a poluição. Além das tecnologias apropriadas, a
convivência com o Semi-Árido requer a gestão comunitária para
garantir o uso sustentável da água, possibilitando o abastecimento
humano e a produção apropriada, sem degradar os mananciais hídricos
da superfície e os aqüíferos subterrâneos. Algumas tecnologias alternativas de captação e armazenamento de água de chuva são citadas no quadro 1:
• Cisternas de placas: alternativa simples e com baixo
custo para captação e armazenamento de água de chuva
para o consumo humano. A captação da água ocorre nos
telhados das casas que, normalmente, são suficientes para
aparar a quantidade de água que a família necessita para
beber, cozinhar e para a higiene bucal durante os meses
de estiagem. A cisterna de placa é a mais utilizada, sendo
sua construção de fácil aprendizado pelos pedreiros. A disponibilidade de água limpa próxima de casa contribui para
a redução de doenças, diminui o tempo e o esforço físico
de mulheres e crianças na busca de água. Segundo a Articulação do Semi-Árido (ASA), foram construídas mais
de cem mil cisternas. A meta é construir um milhão de
cisternas para atender a cinco milhões de pessoas.
• Cisternas de placas calçadão: trata-se de uma variação da forma de captação de água das chuvas para as
cisternas de placas, quando os telhados das casas são insuficientes para aparar a quantidade de água necessária.
A tecnologia consiste na construção de uma calçada de
chão cimentado, inclinado, com uma área de 110m2, perto
da casa e cercada para evitar a entrada de animais. A
água da chuva escorre pela calçada até a cisterna. Famílias que já têm cisternas de placas constroem outra cisterna com calçadão, aumentando a disponibilidade hídrica.
133
• Bomba d’água manual: inventada pelo holandês Gert
Jan Bom, na década de 1970, possibilita captar água em
poços com até 40 metros de profundidade. Acionada por
meio de um grande volante, permite captar até mil litros de
água numa hora, com baixo custo de manutenção e fácil
manuseio. Um projeto-piloto lançado em 2004 pela ASA
previa a instalação de bombas em poços já perfurados,
mas que não tinham equipamentos: “[...] levando-se em
conta que um carro pipa transporta 7 m3 de água, 50 mil
bombas manuais equivalem a 31.285.714 milhões de carros pipa, em 12 meses” (ASA, 2004).
• Gestão e tratamento de água para o consumo humano: todas as alternativas hídricas podem fracassar, se
não forem acompanhadas de processos sistemáticos de
sensibilização e de formação para o manejo dos recursos
hídricos e o tratamento da água a ser consumida pelas
pessoas. Os cursos de gestão hídrica que são ministrados
às famílias que têm acesso às cisternas de placas, contribuem para evitar o desperdício e a contaminação da água
da chuva armazenada. Além do uso da água armazenada,
os participantes são incentivados ao manejo sustentável
dos recursos hídricos existentes nas comunidades, principalmente a limpeza dos açudes e barreiros existentes, e a
preservação ou reposição da mata ciliar em rios e riachos.
Outras alternativas disseminadas são: a produção caseira
de filtros de cerâmica e o uso da semente da Moringa
para purificação da água.
Quadro 1: Tecnologias hídricas alternativas de captação e armazenamento de água da
chuva para abastecimento familiar no Semi-Árido brasileiro
Fontes: Articulação do Semi-Árido ASA (2001, 2002); Diaconia (2002), Caatinga
(2002), Irpaa (1996, 2000), Embrapa (1999), Cáritas Brasileira (2001, 2002, 2003),
MOC (2002), SHISTEK (1998).
Também estão sendo resgatadas e desenvolvidas soluções
hídricas para a produção apropriada, combinando a captação da água de
134
chuva com a melhoria das áreas de produção agrícola e para fortalecer
atividades pecuárias com pequenos animais, conforme o quadro 2:
• Barragem subterrânea: tecnologia simples e barata que
permite a captação e armazenamento de água de chuva
debaixo da terra sem inundar as áreas de plantio nos baixios.
Há sessenta anos, Duque (2001, p. 244) chamou a atenção
para a importância da barragem subterrânea que “[...] acumulando água dentro do solo e no subsolo com muito menor
exposição à evaporação, levam uma grande vantagem em
relação às represas comuns”. Os reservatórios subterrâneos ficam ao abrigo da evaporação direta e intensa e podem ser construídos em rios e riachos, abrindo uma valeta
entre as margens. A parede da barragem é feita com lona
plástica, chumbada embaixo com massa de cimento e
entupida com terra. Em cima é feito um barramento de pedra para aumentar a infiltração da água. Com a barragem
aumenta a água das cacimbas cavadas no leito do rio ou
riacho e aumenta a produção agrícola.
• Barragens sucessivas: são paredes de alvenaria,
construídas uma após outra, no leito de um rio. A água
armazenada numa barragem encosta na parede da outra,
garantindo a oferta de água. Diferente das grandes barragens, a inundação fica limitada ao leito do rio, permitindo
um melhor aproveitamento agrícola das terras úmidas. As
barragens ficam acima do solo e seu fluxo não é grande o
suficiente para vazar ou comprometer o leito do rio com o
assoreamento. Proporciona o plantio irrigado e de vazante
de frutas, hortaliças, forragens e cereais, além da criação
de peixes.
• Barreiro trincheira: são barreiros estreitos e profundos, escavados em terrenos com pedra firme, com pelo
menos dois quadros divisórios para a água ser usada em
tempos diferentes. A água da chuva é carregada para dentro
do barreiro com o uso de valetas, evitando a contaminação com as fezes de animais. A água concentrada reduz a
evaporação. A manutenção do barreiro é feita anualmente
com a escavação, o reforço das paredes e a limpeza das
135
valas. A água serve para banho, lavar louça e roupa, regar
hortas e para os animais.
• Barreiro de Salvação: São barreiros utilizados na irrigação de salvação. A idéia central é captar e armazenar o
máximo de água de chuva que escorre rapidamente na
superfície do solo. Trata-se de uma pequena barragem de
terra formada por uma área de captação, tanque de
armazenamento e área de plantio.
• Uso sustentável de água de poço amazonas em pequena irrigação: o poço amazonas possibilita pequenos
plantios irrigados, com o manejo adequado da água e da
plantação, solucionando os problemas de diminuição da
vazão nas secas, alta evaporação, o risco de salinização
das terras e os altos custos de energia elétrica e combustível. Para isso, é necessário combinar sistemas bem
dimensionados em pequenas áreas, com plantas que consomem pouca água; reduzir os efeitos da evaporação, fazendo cobertura morta, irrigando o mais próximo possível
do pé da planta e nos horários mais frios do dia.
• Tanques de pedra: aumenta a capacidade de captação
e armazenamento de água de chuva nos chamados “caldeirões” ou “lajedos” que ocorrem naturalmente nos grandes maciços cristalinos de algumas regiões do Semi-Árido. A técnica possibilita o aproveitamento desse potencial,
com a construção de tanques com muros de alvenaria, ao
redor das áreas de lajedos ou utilizando impermeabilizantes
e lonas plásticas para evitar as perdas de água de chuva,
aumentando a disponibilidade hídrica para o abastecimento da família e dos animais.
Quadro 2 - Tecnologias hídricas alternativas de captação e armazenamento de água da
chuva para produção apropriada no Semi-Árido brasileiro
Fontes: Diaconia (2002), Caatinga (2002), Cáritas (2001), Irpaa (1996, 2000), Embrapa
(1989, 1995 e 1999); Chapada (2002) e Bernat (1992).
136
A sustentabilidade ambiental implica a recuperação e conservação de recursos naturais dos ecossistemas no Semi-Árido. As
tecnologias e práticas de manejo devem ser apropriadas, considerando
as potencialidades e fragilidades ambientais. Os sistemas de policultura
são preferíveis às práticas monocultoras, pois a combinação de cultivos é um dos segredos da convivência, incluindo o replantio de árvores
resistentes à seca, o aproveitamento das forrageiras rasteiras, as lavouras de chuva, a irrigação apropriada e o extrativismo sustentável.
O manejo sustentado da vegetação nativa exige mudanças na matriz
energética e nas práticas agrícolas irrigadas e de “sequeiro”, reduzindo o desmatamento, principalmente nas regiões que estão sofrendo
processos de desertificação. Algumas das alternativas de manejo sustentado da Caatinga são apresentadas no Quadro 3.
• Agroflorestas ou roçados agroflorestais no bioma
caatinga: os sistemas agroflorestais são formados por culturas permanentes, com fruteiras (pinheiras, cajueiros,
umbuzeiros etc.) e com forrageiras (palmas); lavouras de
inverno (milho, feijão de corda, fava, abóbora, etc.) e com
plantas destinadas à produção de matéria orgânica (feijão
guandu e gliricídia). A produção garante a melhoria do consumo familiar de alimentos e a ração para os pequenos rebanhos durante o período da seca. São resgatadas outras
espécies nativas da Caatinga, como o tamboril e o cumaru.
A construção de cercas vivas com mandacaru diminui os
gastos na criação de pequenos animais. Os agricultores
começam a substituir as queimadas por coberturas mortas
(compostos orgânicos em decomposição) e a preservação
de árvores de grande porte nas áreas de plantio.
• Combinação de sistemas produtivos: quanto maior a
diversificação dos sistemas, mais fácil será a preservação
dos recursos físicos e bióticos do ecossistema. As múltiplas e complexas realidades dos ecossistemas no SemiÁrido exigem tecnologias que privilegiem a diversificação
produtiva com a complementaridade entre a criação de
137
animais e os cultivos agrícolas, valorizando a biodiversidade
na construção da sustentabilidade. Alguns sistemas
associados já estão em experimentação e avaliação: o sistema agrosilvopastoril, que combina agroflorestas (frutas,
leguminosas e forragens), com a pecuária de pequenos
animais e a horticultura; o sistema sisal-caprinos; o sistema apicultura-caju; o sistema irrigação-sequeiro etc.
• Plantio em curva de nível: trata-se de uma técnica conhecida e utilizada desde muito tempo pela humanidade. No
entanto, no Semi-Árido não foi muito difundida nas áreas de
morros, havendo muito “plantio morro abaixo”. O plantio em
curva de nível segue a disposição dos níveis do solo, evitando
a perda da terra fértil, causada por processos de erosão, e
aumenta o aproveitamento da água da chuva nos roçados. O
nível é tirado da parte mais alta para a mais baixa do terreno,
utilizando piquetes para cada ponto marcado. A aração segue
as linhas marcadas. A parte de cima dos morros nunca deve
ser desmatada. Com essa técnica a água não escorre nas
enxurradas, sendo aproveitada nas plantações.
• Barramento de pedra para reduzir as perdas de terras nos períodos chuvosos: consiste na construção de
barramentos horizontais, feitos com pedra solta, em forma
de arco-romano, capazes de reduzir o impacto da velocidade de escoamento e de reter grande parte do material
que desce com as enxurradas, com formação de pequenas áreas agricultáveis. Deve ser combinada a outras
medidas de combate à erosão, como, por exemplo, preservar a mata nativa nos locais onde a terra está mais exposta. Além da diminuição da perda de terra, fortalece a
recarga do lençol freático, e com o passar do tempo, forma-se um baixio úmido, favorável à agricultura.
• Captação de água de chuva in situ: é um sistema que
vem sendo desenvolvido pela Embrapa/Cpatsa com base
nos experimentos de Guimarães Duque, ainda nos anos
138
trinta. Trata-se de um conjunto consecutivo de sulcos nas
áreas de plantio, aproveitando melhor a água de chuva e
evitando a perda do solo que ocorre normalmente com as
enxurradas.
Quadro 3 - Agroflorestas e manejo sustentado da caatinga
Fontes: Embrapa (1989, 1995, 1996, 1999), Sabiá (2002), Patac (1991, 1993).
As práticas agroecológicas experimentadas e disseminadas afirmam a imperiosa convivência com um ecossistema frágil,
recuperando áreas degradadas e reduzindo o uso de insumos químicos que mantêm a dependência dos agricultores em relação à produção industrial. Algumas dessas tecnologias e práticas agroecológicas
na Caatinga são citadas no Quadro 4.
• Cobertura seca (ou cobertura morta) no plantio na
Caatinga: na Caatinga nativa, o solo é naturalmente coberto por folhas e galhos secos, sendo composta de árvores (arbóreas) e plantas baixas (herbáceas) para proteger
do sol e do vento a terra e os seus microorganismos, que
são fundamentais para a alimentação das plantas. Com
essa cobertura seca (ou cobertura morta), a água da chuva se infiltra no solo após ser amortecida, não causando
erosão. O incentivo à cobertura com matéria orgânica resultante dos roçados anuais e dos desmatamentos é uma
das formas apropriadas na Caatinga para conservar os
solos e controlar os processos de desertificação.
• Compostagem orgânica para adubação dos roçados
na Caatinga: consiste na utilização de matéria vegetal e
esterco, existentes na propriedade, para a produção de
adubos e outros fertilizantes orgânicos para o solo. A utilização do esterco orgânico fornece alimentos às plantas,
aproveitando nutrientes existentes no solo; melhora a infiltração de água, deixando a terra sempre úmida; e faz com
139
que a terra fique mais fofa, diminuindo os riscos de
compactação do solo, favorecendo o bom desenvolvimento das plantas. Existem diversas técnicas de compostagem,
que enriquecem esse processo, combinando o esterco com
outras matérias disponíveis no local, reduzindo os custos
com os adubos químicos e preservando a saúde do solo,
dos animais e das pessoas.
• Uso de inseticidas naturais em roçados
agroecológicos: o uso de remédios e inseticidas naturais para controlar pragas que ocorrem nas plantações
tem baixo custo e reduz a dependência da agricultura
em relação ao uso de produtos químicos que trazem prejuízos ao solo, às plantas e ao ser humano. Os principais inseticidas são: o “Macerado de Fumo”, que utiliza
fumo de rolo, água, álcool e sabão, para conter o avanço do pulgão e da mosca branca; o “Macerado de
Agave”, para controlar as formigas cortadeiras; a
“Manipueira” da mandioca; a “Urina de Vaca”, misturada com água, utilizada como adubo foliar para combater a mosca branca nas hortaliças; a “Calda de Alho”
fervido em água, para controlar o pulgão e a vaquinha
que atacam as hortaliças.
Quadro 4 - Agroecologia no bioma caatinga
Fontes: Caatinga (2002), Irpaa (2001), Chapada (2002), Centro Sabiá (2002), Patac
(1991, 1993).
Em síntese, na perspectiva da convivência com o SemiÁrido, a gestão ambiental adquire novos sentidos e significados
ao priorizar a busca de soluções locais apropriadas às condições naturais, tendo por base a sensibilização e a participação
ativa e consciente das populações locais, para que modifiquem
suas percepções e comportamentos em relação à natureza. Além
dessa dimensão cultural, outro desafio é a mudança estrutural
na economia, com o fortalecimento da agricultura familiar no
Semi-Árido.
140
4.2. A Economia da Convivência
Um dos desafios atuais no Semi-Árido brasileiro é a combinação dos princípios e valores da convivência com a viabilização
das atividades econômicas necessárias ao desenvolvimento sustentável. Do ponto de vista da dimensão econômica, a convivência é a
capacidade de aproveitamento sustentável das potencialidades naturais e culturais em atividades produtivas apropriadas ao meio ambiente. Nesse caso, não é o ambiente que tem que ser modificado ou
adaptado às atividades produtivas. Na perspectiva da convivência,
ao contrário, são as práticas e métodos produtivos que devem ser
apropriados aos ambientes.
Não se trata, porém, de voltar aos tempos passados, abandonando os avanços tecnológicos modernos que contribuem para
melhorar a produtividade do trabalho. Trata-se de uma perspectiva
orientadora de uma produção apropriada, “[...] transformando a economia sertaneja, adaptando-a às exigências do meio natural, sobretudo às contingências climáticas” (ANDRADE, 1973, p. 132).
A perspectiva da convivência possibilita inverter as explicações sobre a baixa produtividade e os baixos rendimentos nas atividades econômicas no Semi-Árido. Há uma nova interpretação de
que foi a falta de uma adequada compreensão sobre os limites e
potencialidades dessa realidade que conduziu à introdução de atividades econômicas não apropriadas que terminaram por agravar ainda mais os problemas ambientais, quebrando o equilíbrio biológico
existente e empobrecendo mais ainda as famílias sertanejas. Em
muitos casos, os fracassos econômicos e o agravamento das condições naturais, tais como os processos de desertificação no SemiÁrido, são conseqüências também do processo de modernização,
implantado sem o necessário conhecimento da região, por meio da
transposição de experiências exógenas.
Daí a importância da convivência, como uma imperiosa
necessidade de adaptar a economia à realidade semi-árida, seja na
adoção de atividades produtivas apropriadas que usem tecnologias
contextualizadas, seja no que se refere à modificação na estrutura
141
socioeconômica, promovendo a justiça social. Requer outros valores
e outros padrões de produção como as alternativas baseadas na
agroecologia, no manejo sustentável da Caatinga e na criação de
pequenos animais. Além de sustentáveis, as iniciativas de produção
e distribuição das riquezas devem ser includentes, com a democratização do acesso aos meios necessários à produção (terra, água, crédito, tecnologias, assistência técnica e organizativa).
Uma produção apropriada no Semi-Árido requer a combinação de diferentes atividades em sistemas múltiplos que viabilizem
a diversificação das fontes de obtenção de renda, evitando a dependência em relação à regularidade das chuvas. Nos cultivos agrícolas,
deverão ser consideradas, entre outras, a consorciação e a rotação
de culturas, considerando as práticas de manejo sustentado da Caatinga, incluindo os métodos de irrigação apropriados à realidade regional e às condições da agricultura familiar. A pequena irrigação deve
ser valorizada, em primeiro lugar, na perspectiva da segurança alimentar da população sertaneja, reduzindo os custos com aquisição
de alimentos de primeira necessidade. No Quadro 5, apresentam-se
algumas dessas alternativas:
• Irrigação de salvação: a irrigação de salvação tem sido
uma tecnologia apropriada para o aproveitamento da água
de barreiros, açudes ou poços amazonas, para irrigar lavouras que sofrem com a irregularidade da chuva durante
o inverno (o que se chama de seca verde). A irrigação é
feita durante o próprio período do inverno, aproveitando
melhor a água armazenada, sem prejudicar o abastecimento
humano e animal.
• Sistema irrigado de produção familiar com microaspersão: várias experiências de manejo sustentado do
solo e da água são desenvolvidas, apontando soluções para
o plantio irrigado na Caatinga, combinado com outras atividades agrícolas e pecuárias de sequeiro, ocupando áreas menores e com melhores condições de drenagem, para
142
evitar o desperdício de água e a perda da fertilidade do
solo. A irrigação é feita por força da gravidade e com o
uso de micro-aspersores que controlam a quantidade da
água que a planta necessita, mantendo o solo úmido. A
combinação de outras práticas agroecológicas de fertilização do solo e do manejo de pragas também são técnicas
adotadas nesses sistemas.
Quadro 5 - Métodos alternativos de irrigação no Semi-Árido
Fontes: Caatinga (2002), Embrapa (1996) e Chapada (2002)
Deve-se considerar, também, o extrativismo vegetal,
aproveitando a riqueza de plantas adaptadas ao ambiente seco,
que poderiam ser economicamente exploradas como produtoras
de óleos (Catolé, Faveleira, Marmeleiro, Oiticica e Mamona); de
látex (Pinhão e Maniçoba); de ceras (Carnaúba); de fibras
(Bromeliáceas, Sisal e Agave); medicinais (Babosa e Juazeiro);
frutíferas (Imbuzeiro e cajueiro). Essas plantas são superiores
para o reflorestamento da caatinga e também servem como atividade econômica geradora de renda nas atividades extrativistas,
agrícolas e consorciadas com a pastagem, ocupando as terras
não irrigáveis, conforme o Quadro 6:
• Algodão mocó: uma espécie de algodoeiro perene,
dotado de capacidade de conservar reservas nutritivas
nas raízes e nos galhos vegetativos para resistir às secas. Tem grande importância social no Sertão. Nas décadas que antecederam a crise do algodão no Nordeste, Duque já havia chamado a atenção para a necessidade de melhoramento genético e seleção de espécies
mais produtivas.
• Carnaubeira: destaca a sua importância econômica e
a possibilidade de plantações mistas ou consorciadas,
além da extração da cera e da palha. Entre as suas
143
vantagens destaca: manejo fácil, resistente às secas; o
principal produto, a cera, é de fácil conservação e tem
comércio garantido.
• Oiticica: é uma das poucas espécies que resistem verde
às secas. Destaca a possibilidade de expansão da lavoura
para extração da semente para produção de óleos secantes,
na fabricação de tintas, vernizes, esmaltes finos, oleados e
lonas. A industrialização do óleo da oiticica tem como limites as variações nas safras, mas um processo de melhoramento genético poderá ajudar.
• Palma forrageira: destaca-se o seu potencial para melhoramento da pecuária na região. É um tipo de cactus
sem espinho, que contém nas suas folhas verdes 93% de
água. É ótimo alimento forrageiro misturado com a torta
de caroço de algodão para completar a ração do pasto
seco.
• Umbuzeiro: destaca a possibilidade de melhoramento
genético por meio do estudo, da seleção e enxertia, aumentando o volume da polpa com maior teor de açúcares,
na diminuição do volume do caroço e no afinamento da
casca. É uma fonte de diversas matérias-primas: “O umbu
pode se converter na ‘ameixa’ das caatingas” (DUQUE,
2001, p. 115).
• Cajueiro (semixerófila): destaca-se o valor econômico, com a diversidade de produtos que podem ser obtidos
do cajueiro: do tronco da árvore, resina, casca taninosa e
madeira; do fruto, bebidas, doces, óleo da amêndoa e óleo
da casca. Além disso, serve para reflorestamento no litoral setentrional e para as caatingas úmidas.
• Umbuzeiro (spondis tuberosa): as frutas nativas são
mantidas e utilizadas no Agreste e no Sertão, e assumem
grande importância na dieta alimentar. O extrativismo do
umbu é hoje praticado em grande parte do Semi-Árido,
144
com avanços no beneficiamento da fruta para produção
de suco concentrado, doces e geléias. Além disso, essas
árvores produzem sombra, adubo para o solo, madeiras,
estacas, medicamentos e alimentos para as abelhas.
• Algaroba: destaca-se a sua importância para fornecimento de lenha, da estaca para as cercas, da folhagem,
como rama para o gado, além do seu verdadeiro valor que
está nas vagens (mesocarpo) e nas sementes (endocarpo),
como alimentos concentrados.
• Maniçoba: sua importância é para o reflorestamento das
áreas mais secas e a possibilidade de extração do látex
para produção de borracha.
• Faveleiro: é uma planta dotada de grande resistência à
secura, prestando-se ao reflorestamento de vastas extensões erodidas e proporcionando o óleo e torta de alto valor
energético, sendo talvez o vegetal de maior importância
econômica, no Semi-Árido.
• Licuri: destaca-se a possibilidade de utilizar as amêndoas para produção de torta, na alimentação de suínos e dos
bovinos, e o aproveitamento das folhas para produção de
cera usada na fabricação de papel carbono, graxa para
sapato, para móveis, para pintura de automóveis.
• Jurema: uma leguminosa espontânea que despeja, no
chão, boa quantidade de matéria orgânica, podendo ser
associada com o algodoeiro perene, formando um conjunto protetor-produtivo.
Quadro 6 - Lavouras Xerófilas
Fonte: Guimarães Duque 1980; 1988; 2001; 2004.
Na pecuária, a criação de pequenos animais é preferida
quando comparada com a pecuária bovina. O volume de suporte
forrageiro e de água, requerido para a manutenção desses pequenos
145
animais, é significativamente menor em relação às exigências da
bovinocultura. O pasto natural da Caatinga é rico em nutrientes, dada
a grande diversidade e o valor forrageiro das espécies resistentes às
estiagens. A escassez de pastagem nos períodos de seca pode ser
enfrentada com as alternativas de fenação e silagem. Hoje, há um
avanço na compreensão de que a segurança alimentar e hídrica dos
rebanhos é de fundamental importância na região. Da mesma forma,
a apicultura, a meliponicultura, a avicultura e a piscicultura são incentivadas para fortalecer e diversificar as iniciativas econômicas
da agricultura familiar no Semi-Árido, conforme o Quadro 7.
• Caprinovinocultura: além de se adequar às condições
ambientais e socioculturais da região, a criação de caprinos
e ovinos não exige grandes investimentos e permite a geração de renda. Além da criação de rebanhos, tem-se incentivado o beneficiamento de seus produtos, com indústrias de laticínios, curtumes etc. O desenvolvimento da
caprinocultura implica resgatar e valorizar a rusticidade
desses animais por meio de processos de seleção natural.
A Embrapa Semi-Árido tem pesquisado um modelo de
produção orgânica de caprinos, com as forrageiras nativas da Caatinga, aumentando a eficácia no controle das
verminoses, reduzindo custos e incentivando o manejo sustentável do rebanho.
• Fenação, silagem e bancos de proteínas animal:
a produção e conservação de forragens é a principal
medida para manutenção dos rebanhos nos períodos de
estiagem. O excesso de forragem nos períodos chuvosos deverá ser armazenado de forma adequada para
posterior utilização. A variação das culturas de forragem permite combinar a quantidade do material com a
qualidade nutricional da ração. Os bancos de proteínas
podem ser formados a partir de forragens disponíveis
na Caatinga, de acordo com orientações técnicas sobre
a composição das plantas.
146
• Apicultura e meliponicultura: o Semi-Árido brasileiro é
uma grande região produtora de mel, tendo em vista que a
flora da Caatinga é constituída por uma riqueza de flores.
As abelhas nativas e africanizadas contribuem para
polinização da flora local e fornecem diversos produtos (mel,
própolis e cera) para a alimentação e a saúde da população.
A apicultura é uma atividade tradicional que se aprimora no
Semi-Árido, com a disseminação de instrumentos e práticas de manejo em apiários. O cuidado com a alimentação
das abelhas leva à preservação das floradas nativas da
Caatinga e ao manejo da água, para que os enxames não
abandonem as colméias nos períodos da seca. A colheita e
beneficiamento do mel, da cera e da própolis em ambiente e
com instrumentos apropriados evitam o desperdício e a contaminação dos produtos.
• Piscicultura: a piscicultura nos sistemas integrados de
agricultura familiar, aproveitando a água acumulada em açudes, pode contribuir para melhorar a renda no Semi-Árido.
Diversas tecnologias são desenvolvidas para a implantação
de projetos de piscicultura sustentável, como os tanquesredes e a produção de ração, com aproveitamento de matéria prima disponível no local.
• Avicultura (galinha de capoeira ou caipira): a Embrapa
contribuiu para o desenvolvimento de um conjunto de técnicas de manejo de aves e de produção local de ração, que
melhoram a produtividade na criação de galinha de capoeira destinada à produção de carnes e ovos, gerando trabalho
e renda, e contribuindo para a segurança alimentar nas áreas rurais. Os projetos implementados incentivam sobretudo
a participação das mulheres na gestão das atividades.
Quadro 7 - Produção Apropriada no Semi-Árido: a criação de pequenos animais
Fontes: Embrapa (1996); Chapada (2002); Patac (1993); Macedo e Menezes (2004);
Holanda Júnior (2005).
147
No entanto, uma economia da convivência com o SemiÁrido requer bem mais do que modificações nos sistemas produtivos. O fortalecimento da agricultura familiar, como eixo central de
uma estratégia de desenvolvimento rural sustentável, requer um conjunto de políticas públicas: a realização de uma reforma agrária democrática e sustentável, o acesso ao crédito, às tecnologias apropriadas e a realização de processos educativos, participativos e sistemáticos são fundamentais. Da mesma forma, o incentivo e o apoio
às iniciativas econômico solidárias, com base no associativismo e no
cooperativismo autêntico são também formas de convivência. A exemplo do que ocorre com a natureza no bioma Caatinga, as diversas
formas de cooperação e associação são fundamentais para ampliar
e melhorar os resultados da produção apropriada, reduzindo os efeitos dos intermediários comerciais e financeiros sobre os pequenos
produtores (Quadro 8).
• Fundos de pasto: o fundo de pasto é uma prática tradicional no Semi-Árido brasileiro. Caracteriza-se pela ocupação e uso da terra de forma comum, por uma determinada coletividade que, além dos laços de parentesco e
compadrio, tem em comum a criação de animais de pequeno e grande porte, soltos na área; e pequenos roçados
de subsistência das famílias e de suplementos alimentares
para o rebanho.
• Bancos e Casas de Sementes Comunitárias: é um
modelo de gestão coletiva do estoque de sementes necessário para o plantio. As famílias se associam e têm direito
a tomar emprestada uma certa quantidade de sementes,
que são restituídas após a colheita numa quantia superior,
segundo valores definidos pelos associados. O Banco de
Sementes Comunitárias permite aumentar o número de
famílias beneficiadas e formar estoques de reserva para
os períodos de estiagem prolongada. Também funcionam
como guardiões estratégicos das variedades adaptadas e
por isso têm incentivado a variedade de sementes de mi148
lho, feijão, gergelim, mamona, sorgo, moringa, fava, girassol, jerimum, melancia, melão, pepino, arroz, algodão, amendoim e outras espécies de plantas nativas e
medicinais.
• Feiras de agricultura familiar e agroecologia: a
promoção de feiras livres é uma alternativa para o escoamento da produção da agricultura familiar, para
melhoria da renda e para a aproximação entre produtores e consumidores. Ultimamente, têm surgido várias
iniciativas de feiras agroecológicas e de economia solidária. Na Paraíba, há uma experiência de “pontos ecológicos” nas feiras livres, estimulando novas relações
dos agricultores com os consumidores.
• Redes e cooperativas de beneficiamento e
comercialização: rompendo com o velho
cooperativismo, capturado pelos médios e grandes proprietários rurais (criados por incentivo governamental
na década de setenta), surgem novas cooperativas e
redes de grupos de produção de agricultura familiar,
grupos de mulheres e assentamentos rurais. São espaços que organizam a comercialização de produtos
agroecológicos (hortaliças e frutas), produtos apícolas,
artesanato, castanha de caju, doces, rapadura de leite
de cabra, produtos de higiene pessoal etc. As redes também têm valorizado o uso de marcas que identificam
produtos agroecológicos e regionais.
Quadro 8 Iniciativas econômicas solidárias no Semi-Árido
Fontes: ASA (2003, 2004), EBDA (1997), Freire e Almeida (2005), Cordeiro e Faria
(1993).
Diante da dificuldade de acesso ao crédito nas instituições
financeiras públicas e privadas, têm-se incentivado algumas organizações de finanças solidárias no Semi-Árido, conforme exemplificado
no Quadro 9, a seguir.
149
• Fundos rotativos solidários: no Semi-Árido, têm-se
incentivado os fundos rotativos solidários, como mecanismos de mobilização e valorização social da poupança comunitária, assumindo a forma de gestão compartilhada de
recursos coletivos. O fundo rotativo é uma forma de gestão coletiva de recursos provenientes de ONG's e de organizações de Cooperação Internacional. O acompanhamento na administração do fundo é feito por um coletivo
comunitário. Um dos exemplos mais significativos é a formação de Consórcios de Cisternas de Placas. Trata-se de
um Fundo criado com a devolução de parte dos recursos
que são doados às famílias e comunidades, por entidades
nacionais e internacionais, públicas e privadas, para a construção de cisternas. Os fundos rotativos financiam outras
cisternas e atendem um número maior de as famílias de
uma comunidade ou município.
• Cooperativas de crédito: têm-se ampliado nos últimos anos, com a finalidade de facilitar o acesso de pequenos produtores ao crédito, tendo em vista a inadequação
do sistema financeiro oficial para atender a essas demandas. Recentemente, houve uma expansão do
cooperativismo de crédito ligado à agricultura familiar no
Semi-Árido, possibilitando a canalização de créditos alternativos e oficiais para estruturar as propriedades dos agricultores que, normalmente, têm dificuldade de acesso ao
fundo público, sobretudo o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf).
Quadro 9 - Finanças solidárias no Semi-Árido
Fontes: ASA (2003, 2004); Rocha e Costa (2005).
A pluriatividade deve ser promovida como uma das principais estratégias de desenvolvimento sustentável, incentivando as atividades não-agrícolas de transformação (industrialização) e prestação de serviços. Celso Furtado (1959) alertava que não seria possí150
vel um desenvolvimento daquela região sem o crescimento das atividades secundárias e por isso defendia que a criação de indústrias
apoiadas em base favorável de matérias-primas locais deveria proporcionar a inserção noutros mercados, ampliando a captação de
divisas para outras atividades regionais, gerando alternativas urbanas de trabalho e agregando valor aos produtos regionais.
Entre as oportunidades e possibilidades destacam-se: as
agroindústrias que beneficiam produtos da Caatinga, no setor de alimentação (frutas, compotas, laticínios, doces, concentrados de suco
etc.) e de matérias-primas para uso industrial (fibras diversas, tecelagem, ceras etc.); o artesanato característico do Sertão (fibras, couro
etc.); as pequenas indústrias urbanas; a prestação de serviços técnicos; o turismo ecológico, arqueológico e de lazer, possível em diversas áreas atrativas do Semi-Árido (regiões serranas, parques históricos, reservas ambientais, estações termais etc.); a prestação de serviços pessoais e coletivos (transporte, construção etc.), entre outros.
Enfim, o fortalecimento da produção regional apropriada,
com base na valorização dos produtos locais, enfatizando suas características e identidades territoriais, é um dos sentidos da convivência. O desenvolvimento e acesso às tecnologias apropriadas para
a melhoria da produção e a realização de processos educativos,
participativos e sistemáticos, são fundamentais para o fortalecimento dessas iniciativas econômico solidárias no Semi-Árido. Trata-se
de um reconhecimento de que a diversidade ambiental e a riqueza
cultural podem ser elementos impulsionadores de uma nova dinâmica de desenvolvimento, dotada de sustentabilidade, orientada pela
inclusão social.
4.3. Convivência com Qualidade de Vida
A convivência com o Semi-Árido significa uma nova perspectiva do desenvolvimento que visualize a satisfação das necessidades fundamentais como condição para expansão das capacidades
humanas e da melhoria da qualidade de vida, concebida como redução das desigualdades sociais. Nesse sentido, a convivência com o
151
Semi-Árido não é uma proposta de passividade e acomodação diante da pobreza existente na região, principalmente nos períodos de
seca: “Mesmo perfeitamente adaptados à convivência com a rusticidade permanente do clima, os trabalhadores das caatingas não podem conviver com a miséria, o desemprego aviltante, a ronda da
fome e o drama familiar profundo criado pelas secas prolongadas”
(AB'SÁBER, 2003, p. 85).
A convivência exige a melhoria da qualidade de vida dos
sertanejos, inclusive, como condição para estabelecer uma nova relação com o meio ambiente. A construção de novas perspectivas
sobre meio-ambiente, junto a populações marcadas pela condição de
pobreza, exige a capacidade de articulação das iniciativas de gestão
ambiental sustentável com as iniciativas socioeconômicas orientadas
para a melhoria da qualidade de vida da população local. Caso contrário, o discurso da convivência torna-se vazio, sem dar respostas
às problemáticas locais.
A base da superação da pobreza é o acesso a bens e serviços públicos fundamentais, como educação, saúde, moradia, saneamento, assistência social e previdenciária, com qualidade e em quantidade suficiente para atender às demandas locais, como direitos de
cidadania. Melhorias na educação, na saúde, na alimentação, nas
condições habitacionais e, principalmente, no abastecimento hídrico,
podem fazer significativa diferença na melhoria dos indicadores sociais do Semi-Árido brasileiro. O acesso à água de qualidade para o
consumo humano, por exemplo, pode repercutir significativamente
na redução de doenças, diminuindo, inclusive, a mortalidade infantil
na região. A elevação da escolaridade, com base numa educação
contextualizada, também poderia ter conseqüências significativas nas
demais áreas sociais e produtivas.
Além do acesso aos serviços sociais básicos de qualidade,
a convivência implica mudanças nas relações sociais de dominação
(de classe, étnicas, de gênero e de geração), enraizadas no SemiÁrido. A questão de gênero, por exemplo, tem ganhado destaque
cada vez maior nas iniciativas organizativas da sociedade civil. Isso
porque a construção da igualdade nas relações sociais, respeitando
152
as diferenças, é também uma forma de convivência. Algumas iniciativas de segurança alimentar e nutricional7 são incentivadas. O cultivo de agroflorestas, o aproveitamento dos quintais produtivos e a
horticultura, combinadas com a criação de pequenos animais, envolvendo principalmente as mulheres. Para conviver é necessário integrar harmonicamente as ações imediatas de suprimento de carência
alimentar com as ações permanentes que viabilizem o enfrentamento
das condições de pobreza e aumentem a resistência das atividades
econômicas na região, conforme o Quadro 10, a seguir.
• Hortas orgânicas: a técnica correta de plantio e o acesso
à água de barreiros trincheira e poço artesiano viabilizam
a produção de hortaliças. O manejo adequado do solo (cobertura morta), a variedade de plantas, o uso de adubos
orgânicos (esterco, compostos, biofertilizantes) e o uso de
inseticidas naturais garantem a produção de alimentos saudáveis para o abastecimento familiar e para geração de
renda com a venda do excedente.
• Quintais produtivos: a agroecologia pode contribuir
para criar uma situação de disponibilidade de alimento suficiente, de boa qualidade e diversificado nos quintais das
casas no Semi-Árido. Vários exemplos mostram que, com
água disponível e utilizada de forma econômica, é possível
explorar um hectare com alta diversificação de produtos:
frutas, cereais, verduras e hortaliças. A água é captada,
elevada com bomba manual para uma caixa de água para
irrigar por gravidade e gotejamento.
• Mandallas: trata-se de uma tecnologia desenvolvida no
Sertão da Paraíba, que combina a segurança alimentar e
7
A Segurança Alimentar tem sido definida como um direito humano ao acesso regular e
permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, orientado por práticas
alimentares que promovam a saúde. Outros aspectos também devem ser considerados,
como por exemplo, o respeito às práticas alimentares regionais ou étnicas; e a produção
de alimentos em processos sustentáveis que não causem danos significativos ao ambiente.
153
nutricional com a melhoria de renda na agricultura familiar. É um tanque cilíndrico, com capacidade de, aproximadamente, dois mil litros de água, que serve para criatório
de peixes e aves, além de servir para a irrigação de pequenas hortas e pomares. A irrigação é feita por microaspersores
que são fabricados a partir de material reciclado. A produção das Mandallas é voltada para a segurança alimentar e o
excedente é vendido no comércio local.
• Programa alimento por trabalho: executado por organizações da sociedade civil, com o apoio do Programa
Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, a Cáritas Brasileira e a Catholic Relief Service (CRS), realizado no Nordeste durante o período de 1992-1994. O programa atendeu 61 mil famílias em 80 municípios, combinando a distribuição de alimentos com ações permanentes de convivência. As atividades apoiadas visavam a melhoria do abastecimento de água (recuperação de açude, construção de
barreiro trincheira, construção de cisternas, cacimbas, aguadas etc.); o fortalecimento das atividades de produção
agropecuária (roçados, apicultura, caprinocultura, piscicultura); incremento da produção artesanal (bijuterias, confecções, louças e filtros de barro, peças decorativas), mobilizando suas capacidades.
Quadro 10 - Alternativas de segurança alimentar no Semi-Árido brasileiro
Fontes: CRS (1996); ASA (2003, 2004); Castelo Branco e Marra (2004).
4.4. A Cultura da Convivência
A convivência com o Semi-Árido requer a valorização e
a reconstrução dos saberes da população sobre o meio em que vive,
sobre as suas especificidades, fragilidades e potencialidades. A
contextualização dos processos de ensino-aprendizagem à realidade
local é apresentada como uma estratégia de sensibilização, mobilização
e organização da população sertaneja, para identificar as problemáti154
cas e construir soluções apropriadas que visem à melhoria das condições de vida. Para isso, os processos formativos não podem se
resumir à ampliação de conhecimentos e habilidades, como prevalece no ensino formal; nem deve ser limitada ao ensino de novas
tecnologias de produção, como tem sido a tônica dos processos de
assistência técnica e extensão rural. A formação contextualizada deve
servir de instrumento de mudanças de atitudes e valores, a partir de
um conhecimento aprofundado da realidade local, induzindo ou fortalecendo as alternativas de convivência.
Além das orientações ambientais e da melhoria da infraestrutura para promoção do desenvolvimento regional, Guimarães
Duque (1980, 2001) dava destaque especial a uma proposta de educação orientada para o contexto socioambiental que habilitasse as
famílias sertanejas a resgatar e valorizar as atividades e o modo de
vida rural. A educação para a convivência, com base no conhecimento adequado e aprofundado do meio-ambiente, é fundamental
para preservar a vegetação que resta na Caatinga, para a fertilidade
do solo e o manejo adequado da água.
A cultura é uma das dimensões enfatizadas pelo pensamento sobre a sustentabilidade do desenvolvimento. Ignacy Sachs
(2000), por exemplo, chama a atenção para a necessidade e possibilidade de convivência com os ecossistemas frágeis, a partir de processos participativos de resgate e de construção cultural de alternativas apropriadas. Esses processos requerem uma abordagem negociada e contratual de identificação de necessidades, de capacidades
locais e do aproveitamento dos recursos potenciais para a melhoria
das condições de vida das populações locais.
A convivência é fruto da sensibilidade e não apenas da
racionalidade. Carvalho e Egler (2003) afirmam que, como princípio,
a convivência com a semi-aridez é um processo permanente de aprendizagem que vem desde os tempos da colonização, cujo principal
ator é a própria população sertaneja. Com essa perspectiva, é possível conceber e desenvolver uma “pedagogia da convivência”, constituída por um conjunto de princípios, diretrizes e de métodos vivenciais.
155
Nesse sentido, a convivência com o Semi-Árido é uma nova
cultura, construída a partir de uma relação de proximidade entre ser
humano e natureza. É por meio da observação dos fenômenos naturais, dos “comportamentos” das plantas e dos animais, em distintos
momentos ou ciclos climáticos na região, que os agricultores ampliam seus conhecimentos e formulam experimentações. A combinação desses saberes locais com os conhecimentos universais acumulados pela humanidade complementa o processo de educação para a
convivência. É com essa perspectiva que são enfatizados os processos de construção da educação contextualizada e a pedagogia da
alternância no Semi-Árido8.
A educação contextualizada é concebida como um processo dinâmico de construção de conhecimentos e atitudes dos seres
humanos, considerando o ambiente no qual está inserido. Sem desconhecer os problemas estruturais do sistema educacional brasileiro,
sobretudo no Semi-Árido, a educação contextualizada contrapõe-se
aos processos de destruição e desvalorização das culturas pela imposição de modelos exógenos de modos de vida e de pensamentos
sobre a realidade. Trata-se de uma estratégia fundamental de construção de uma cultura da convivência, dos seus sentidos e significados que estão subjacentes nas diversas práticas produtivas apropriadas e nas tecnologias alternativas. Os processos culturais amalgamam essas várias práticas produtivas e tecnologias apropriadas com
os saberes acumulados, constituindo uma base fundamental para a
construção de alternativas de desenvolvimento sustentável para a
região, conforme o Quadro 11.
• Educação para convivência com o Semi-Árido: vários projetos vêm sendo implantados com essa concepção
da educação contextualizada nos processos formais e informais de ensino. Uma iniciativa pioneira nesse sentido
foi desenvolvida pelo Instituto Regional da Pequena ProA pedagogia da alternância combina momentos formativos presenciais nas escolas
rurais e momentos de aprendizagens e experimentações fora do ambiente escolar.
8
156
dução Agrícola Apropriada (IRPAA), na região de Curaçá,
na Bahia, e pela ONG Caatinga, em Ouricuri, Pernambuco.
Partia-se do pressuposto de que os processos formativos
para a convivência, que eram realizados nas comunidades
rurais, deveriam também ser incorporados aos projetos
político-pedagógicos das escolas urbanas e rurais, responsáveis pelo ensino formal. Posteriormente, diversas entidades, entre elas a Cáritas Brasileira e a Comissão Pastoral da Terra, vêm expandindo a proposta para outras regiões dos estados do PI, PB, PE e BA. Por meio de processos formativos com educadores, comunidade e gestores
educacionais, pretende-se construir políticas educacionais
apropriadas ao Semi-Árido, com base em um novo olhar
sobre a região, suas particularidades e potencialidades. Os
docentes e administradores escolares são capacitados para
incluir nos processos pedagógicos a temática da convivência com o Semi-Árido, destacando o conhecimento da
realidade, os cuidados com o meio ambiente, as alternativas tecnológicas e a produção apropriada, as ações afirmativas de igualdade de gênero, etnia e geração.
• Escolas famílias agrícolas e a pedagogia da
alternância: a pedagogia da alternância é seguida há décadas na formação e capacitação de jovens, filhos e filhas
de agricultores. Ela combina momentos formativos
presenciais, em escolas localizadas em áreas rurais, garantindo a permanência dos alunos na escola durante um
certo período no qual são realizadas as atividades de ensino teórico-prático, com momentos junto às famílias, cujos
aprendizados são experimentados. Essa estratégia amplia
a abrangência dos processos formativos alcançando outras pessoas do círculo familiar e da vizinhança. Ao mesmo tempo, as experimentações e vivências retornam para
a escola, possibilitando questionamentos e o enriquecimento
dos debates coletivos em sala de aula. As escolas agrícolas alternativas visam formar os futuros agricultores e
157
agricultoras, incentivando a permanência da juventude no
campo, com base na utilização de conhecimentos e
tecnologias apropriadas que viabilizem o aumento da produção e a melhoria de renda, considerando o meio ambiente. No Semi-Árido, as Escolas Famílias Agrícolas
enfatizam os temas relacionados ao clima e à água, às
técnicas de convivência com o Semi-Árido e ao
associativismo.
Quadro 11 - Educação contextualizada e pedagogia da alternância no Semi-Árido brasileiro - Fontes: ASA (2001, 2003 e 2004), Caatinga (2002), Irpaa (2001), Cáritas
Brasileira (2001).
Os estudos realizados por Osmar Rufino Braga (2004)
possibilitam uma sistematização dos principais fundamentos político-pedagógicos da educação contextualizada no Semi-Árido brasileiro. Entre esses fundamentos, destacam-se os significados e
sentidos da convivência. O autor destaca três dimensões da convivência que orientam os processos socioeducativos:
1) a do estar junto para, na liberdade da existência, construir identidades e compartilhar a vida; 2) a do viver comum, que
é mais do que estar junto, pois implica aceitar o outro ser vivo
(humano e natureza) como legítimo outro, na sua 'existencialidade',
identidade e subjetividade e 3) a da contestação e da luta, da
dialética e da existência e da afirmação da diferença, onde buscamos o equilíbrio entre as forças opostas da vida. Educar para a
convivência é trabalhar essas dimensões juntas com os sujeitos
do processo educativo (BRAGA, 2004, p. 33. Grifos do autor).
Considerando essas dimensões, o caráter socioambiental
da educação vem despertando a atenção dos movimentos sociais,
de gestores públicos e de pesquisadores dos processos educativos.
Por isso, antes mesmo da inserção da pedagogia da convivência
com o Semi-Árido nos processos formais de ensino, a educação
contextualizada já era desenvolvida e experimentada nas atividades de assessoria e acompanhamento realizadas por organiza158
ções não-governamentais junto a comunidades e grupos populares, conforme o Quadro 12.
• Capacitação para o desenvolvimento local sustentável: existem várias iniciativas conduzidas por órgãos governamentais e por organizações da sociedade
civil, de incentivo ao desenvolvimento local sustentável,
a partir de territórios, municípios e comunidades rurais
e urbanas, que se orientam pela perspectiva da convivência com o Semi-Árido. Em 2000, a Articulação do
Semi-Árido Paraibano, com o apoio da Sudene, implantou um projeto com o objetivo de favorecer o desenvolvimento comunitário a partir do manejo sustentável de
recursos hídricos, da produção de forragem para alimentação animal, da alfabetização de jovens e adultos
e da participação popular no processo orçamentário
municipal. O projeto tem como estratégia fundamental
a formação de pessoas e organizações para a convivência com o Semi-Árido, como um processo contínuo
que estimula a prática e a disseminação de novos conhecimentos. Outra estratégia é favorecer a gestão
participativa do desenvolvimento local nos municípios.
• Agricultores experimentadores: algumas ONG's
que participam da Articulação do Semi-Árido têm incentivado a prática de “agricultores e agricultoras
experimentadores”, formando uma rede de formação e
disseminação de tecnologias apropriadas para a convivência. Trata-se de uma proposta de desenvolvimento
de tecnologias apropriadas, viabilizando e incentivando
a efetiva participação de agricultores e agricultoras na
análise da realidade, na construção de novos conhecimentos, na seleção das alternativas tecnológicas, na execução das ações, e na disseminação das inovações. Os
processos formativos sistemáticos são realizados de forma descentralizada, a partir da combinação da obser159
vação de campo no uso de métodos comparativos, do
resgate e análise de práticas e no intercâmbio de conhecimento entre os participantes.
• Projeto UniCampo (Universidade Camponesa):
existe desde 2003, tendo sido formulado por professores
do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Sustentável no
Semi-Árido (GPDSA), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Trata-se de uma iniciativa que busca a articulação entre a Academia e os movimentos sociais. As primeiras atividades formativas foram realizadas
no Cariri Paraibano, com agricultores e agricultoras de
comunidades e áreas de assentamento de reforma agrária, envolvendo alunos e professores da universidade. Os
conteúdos dos cursos foram definidos de forma
participativa, e tinham como eixo orientador o conhecimento da realidade na perspectiva da convivência. Existe
a intenção de criar um curso de nível superior voltado para
as características, projetos e interesses dos camponeses
do Semi-Árido brasileiro.
Quadro 12 - A Formação para a convivência com o Semi-Árido brasileiro - Fontes: ASA
(2003 e 2004), Articulação do Semi-Árido Paraibano (2001), Unicampo (2006).
Considerando os problemas estruturais do sistema educacional no campo, a educação contextualizada no Semi-Árido contrapõe-se aos processos de destruição e desvalorização das culturas,
pela imposição de modelos exógenos de modos de vida e de pensamentos sobre a realidade. Trata-se de uma estratégia fundamental
de construção de uma cultura da convivência, dos seus sentidos e
significados que estão subjacentes nas diversas práticas produtivas
apropriadas e nas tecnologias alternativas. Os processos culturais
amalgamam essas várias práticas produtivas e tecnologias apropriadas com os saberes acumulados, constituindo uma base fundamental
para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável
para a região.
160
5. A Conquista de políticas Públicas de Convivência com o
Semi-Árido Brasileiro
A convivência com o Semi-Árido é uma proposta política de mobilização da sociedade e do Estado Brasileiro, para a
implementação de políticas públicas apropriadas ao desenvolvimento sustentável na região. Enquanto projeto, a convivência com
o Semi-Árido, deverá ser uma conquista política dos diversos sujeitos que se comprometem com as transformações
socioeconômicas necessárias à garantia da dignidade da maioria
da população sertaneja. Por isso, a convivência com o Semi-Árido requer a conquista de políticas públicas permanentes e apropriadas, que tenham como referência a expansão das capacidades humanas locais, a partir da superação das estruturas geradoras da desigualdade, como a concentração da terra, da água, do
poder e do acesso aos serviços sociais básicos.
A análise da trajetória histórica das políticas governamentais no Semi-Árido brasileiro permite compreender a situação presente, identificando os sinais de continuidade e de mudanças. A primeira conclusão é a de que realmente ocorreram mutações significativas nas formas de intervenção no Semi-Árido, concernente ao
que se fez e ao que se faz para superação das suas problemáticas
socioeconômicas e ambientais. Essas mutações são dotadas de significados (ideologias) e de orientações políticas com base em interesses socioeconômicos.
No final do Século XIX, as práticas assistencialistas e
descontínuas para “salvação dos flagelados da seca” entram em crise e passam a ser valorizadas as soluções de caráter permanente,
principalmente as obras hídricas, orientadas pela concepção do combate à seca e aos seus efeitos. Em meados do século XX, a mudança de orientação das políticas governamentais passaram a priorizar
as ações de modernização das atividades produtivas no Semi-Árido, diante da constatação da ineficiência das políticas de combate à
seca. No final do Século XX, inicia-se uma nova transição. Além dos
questionamentos às políticas públicas de combate às secas e de
161
modernização conservadora que predominam no Semi-Árido, são
disseminadas propostas e práticas alternativas de convivência com
o Semi-Árido com base em uma nova orientação socioambiental
para o desenvolvimento sustentável na região.
Diferente das situações anteriores, a visibilidade e a expressão pública da proposta e das práticas de “convivência com o
Semi-Árido” são conduzidas por novos sujeitos políticos que buscam
ampliar os espaços públicos decisórios de formulação e controle social nas políticas públicas de desenvolvimento regional, contrapondose às velhas e decadentes oligarquias sertanejas, às forças empresariais que reproduzem a exploração socioambiental na região e ao
tecnicismo burocrático do Estado. A Articulação do Semi-Árido
(ASA) é fruto da aglutinação desses atores sociais, conferindo a
necessária expressão política às práticas e à concepção da “convivência com o Semi-Árido”.
É nesse contexto de transição que se formulam novos planos, programas e projetos para o desenvolvimento sustentável no SemiÁrido brasileiro. A proposta do combate à seca e aos seus efeitos,
atualmente em crise, não participa ativamente da disputa, tendo em
vista que os seus fundamentos negam, explicitamente, os princípios da
sustentabilidade, não havendo condições de se reproduzir e de se sustentar ao longo do tempo. A matriz da modernização econômica e
tecnológica vem renovando seus discursos, inserindo a questão
ambiental e dando uma maior atenção às questões sociais, interpretando a sustentabilidade como sendo a durabilidade do desenvolvimento
com base na eficiência tecnológica e na racionalidade produtiva. A
convivência com o Semi-Árido expressa uma compreensão do significado da sustentabilidade, ao reafirmar que as concepções e as práticas devem ser contextualizadas na realidade onde incidirá o processo
de desenvolvimento, considerando-se as suas várias dimensões.
A convivência com o Semi-Árido não significa, portanto, uma postura conservadora em relação à realidade socioeconômica,
nem de acomodação diante das condições físico-climáticas locais.
Não nega as possibilidades do desenvolvimento e não expressa uma
renúncia ao ideal humanitário da satisfação das necessidades e da
162
melhoria das condições de vida das pessoas. Ao contrário, significa
uma nova orientação estratégica para intervenção nessa realidade,
enquanto processo em construção e de experimento de alternativas
apropriadas, buscando aprender a conviver com as suas
especificidades ambientais.
Nesse sentido, pode-se definir a convivência com o SemiÁrido como sendo uma perspectiva cultural orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável, cuja finalidade é a
melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por
meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas apropriadas,
compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais. Considera-se que é essa a orientação de um novo paradigma
civilizatório para a humanidade: satisfação das necessidades e expansão de suas capacidades, em comunhão com a natureza.
Essas proposições e práticas estão ampliando sua presença em espaços institucionalizados de formulação e de execução de
políticas públicas, fruto da mobilização de movimentos sociais que
estão disputando espaços de poder político. No entanto, há uma forte
resistência das práticas políticas autoritárias, culturalmente enraizadas
nos principais espaços decisórios, dificultando os avanços no processo participativo na definição de alternativas de desenvolvimento sustentável no Semi-Árido brasileiro.
Nos espaços socioculturais, a construção da convivência
será fruto da contestação cultural das imagens historicamente
construídas, sobre uma terra considerada imprópria ao desenvolvimento, condenada à miséria e à dependência dos socorros
emergenciais. É necessário sensibilizar e conquistar a adesão da sociedade em torno dessa proposta, seja mobilizando a população local
e suas organizações comunitárias, seja ocupando espaços informativos e formativos, locais e nacionais, ampliando a adesão às novas
propostas alternativas da convivência. Nesse caso, a disputa ocorre
nas esferas da sociedade civil, buscando a inserção de novos conteúdos e significados sobre a realidade, nos meios de comunicação
social e nos espaços de produção e disseminação de conhecimentos.
Trata-se de uma ação cultural pela convivência.
163
No campo da disputa política, grandes desafios se apresentam nesse momento histórico para os movimentos que defendem
a convivência como sendo o sentido e o significado da sustentabilidade
do desenvolvimento no Semi-Árido. Faz-se necessário avançar na
formulação de uma proposta integrada de desenvolvimento sustentável no Semi-Árido com base na convivência, articulada a uma política nacional de desenvolvimento regional. O diálogo com o poder
público não deve ficar restrito às ações específicas (formulação,
negociação e execução de programas e projetos), mas deve avançar
para um processo de mobilização regional e nacional de debate sobre as estratégias de um desenvolvimento sustentável para o SemiÁrido. Faz-se também necessária a articulação com as outras proposições regionais de desenvolvimento sustentável que estão em
concepção para os diversos biomas brasileiros.
A alternativa é a combinação entre a cultura e a política,
entre a mudança nos pensamentos, como construção de uma nova
racionalidade para a sustentabilidade do desenvolvimento; e os avanços na ampliação da cidadania, em termos de participação ativa e
consciente na formulação e implantação de um novo projeto político
no Semi-Árido brasileiro. Ou seja, a convivência terá que ser uma
conquista política!
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171
172
5
ENVOLVIMENTO LOCAL E
TERRITORIALIDADES
SUSTENTÁVEIS: DESVELANDO A
DESTERRITORIALIZAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO
Carlos Eduardo Mazzetto Silva*
Novembro de 2008
Chegou em nossa região um tal desenvolvimento vindo lá do estrangeiro trazido por um grupo de gente que vivia só explorando e não
falava claramente.
Dizia que aqui estava esquecido e atrasado o povo era preguiçoso, simples e mal-educado que em nosso país precisava de homens mais avançado.
(Trecho da poesia História do Cerrado de Oscarino Aguiar Cordeiro, camponês do município de Porteirinha, norte de Minas Gerais)
1. Introdução crítica ao desenvolvimento
A fala do camponês sertanejo acima, evidencia, no mínimo, um estranhamento com o desenvolvimento que chegava ao norte
de Minas Gerais na década de 1970, via incentivos da SUDENE. A
região inseria-se no Semi-árido brasileiro e passava a receber programas e recursos especiais para deflagrar um processo de desenvolvimento regional que diminuisse a disparidade em relação às regiões desenvolvidas do Estado.
* Engenheiro agrônomo, doutor em Ordenamento Territorial e Ambiental pelo Departamento de Geografia da UFF, pesquisador de pós-doutorado do GESTA (Grupo de
Estudos na Temática Ambiental) da FAFICH/UFMG e professor dos cursos de Licenciatura Indígena e Licenciatura do Campo da FAE/UFMG. Atua ainda como consultor
autônomo em projetos e programas vinculados à reforma agrária e à autonomia e
sustentabilidade de comunidades rurais e grupos de famílias camponesas.
173
Porque o camponês tinha este estranhamento? Porque
fala deste desenvolvimento como algo que vem do estrangeiro
e que desqualifica o povo do lugar? Certamente há razões concretas para este estranhamento e essas razões se relacionam com
as abordagens e concepções que embasaram o ideário geral do
desenvolvimento desde o seu início e, no seu bojo, os pensamentos que, desde a década de 1950, formularam e debateram possíveis fórmulas para o desenvolvimento de regiões tidas como pobres e subdesenvolvidas.
Momento importante do lançamento do ideário do desenvolvimento vindo do estrangeiro é o discurso de posse de
Harry Truman, como presidente dos Estados Unidos da América,
em 20 de janeiro de 1949, pouco após o término da 2a guerra.
Mais da metade da população do mundo vive em condições
próximas da miséria. Sua alimentação é inadequada, é vítima
da enfermidade. Sua vida econômica é primitiva e está
estancada. Sua pobreza constitui um obstáculo e uma ameaça
tanto para eles como para as áreas mais prósperas. Pela primeira vez na história, a humanidade possui o conhecimento e
a capacidade para aliviar o sofrimento desta gente. Creio que
deveríamos por à disposição dos amantes da paz os benefícios de nosso acervo de conhecimento técnico para ajudá-los a
lograr suas aspirações de uma vida melhor... O que temos em
mente é um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos do tratamento/comércio justo e democrático... Produzir mais é a chave para a paz e a prosperidade. E a chave para
produzir mais é uma aplicação maior e mais vigorosa do conhecimento técnico e científico moderno1 (TRUMAN apud
ESCOBAR, 1996).
As passagens grifadas denunciam algumas das verdades
que embasam a visão do Outro na concepção desenvolvimentistaocidental do então presidente norte-americano:
1
Todas as citações do texto de Escobar são traduções que fiz a partir do espanhol original.
Grifos meus Grifos próprios.
174
• o diferente é primitivo, portanto, atrasado, subdesenvolvido;
• a pobreza (de acordo com sua concepção de pobreza/
riqueza) é ameaçadora;
• o conhecimento técnico é único e o mundo ocidental
moderno tem o seu monopólio;
• a chave para o desenvolvimento é simplesmente produzir mais (visão produtivista) e é a tecnociência moderna
do capitalismo central que tem os instrumentos para o
aumento da produção.
Para Esteva (2000), nesse dia do discurso de Harry
Truman 20 de janeiro de 1949 -, foi inventado o subdesenvolvimento: “É preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços e nosso progresso
industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso
das áreas subdesenvolvidas” (Truman, citado por ESTEVA,
2000: 59). A partir desse momento, de acordo com Esteva, dois
bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Estava criado um novo símbolo, de matriz estadunidense, que desde então,
passou a ser usado para afirmar e referir-se à sua hegemonia: o
desenvolvimento. Não é à toa, pois, que Oscarino, muito sabiamente, manifesta seu estranhamento percebeu que ele estava
enquadrado do lado que não tem valor. Afinal, o que sabe um
rude camponês sertanejo, poeta, mas de alfabetização precária e
vida econômica estancada (sic)? Para Truman e seus assessores, apenas demonstra o subdesenvolvimento.
2. As abordagens clássicas do desenvolvimento regional
Percebe-se no pensamento regional clássico dos anos 1950,
uma voz quase uníssona identificando problemas de desigualdade
espacial do desenvolvimento, e em boa parte das vezes, recomendando estratégias, que através de ações governamentais (muitas vezes
articuladas a ações da “sociedade regional”) venham a contribuir
175
para a superação destas desigualdades regionais.
Nessa linha, deve-se ocupar em pesquisar e determinar
os fatores e os processos regionais do desenvolvimento capitalista,
visando disseminá-lo inter-regionalmente. De início, esse pensamento debateu-se a respeito de duas vertentes fundamentais:
a) Uma que explicava o processo de desenvolvimento regional através de estágios progressivos que vão (ou devem ir)
eliminando a dualidade econômica: setores (ou regiões) não capitalistas (de subsistência) e setores (ou regiões) capitalistas (comerciais). Claro que sempre em favor do segundo setor, que é o
que gera desenvolvimento. Esta tendência propõe um planejamento regional que, através de passos progressivos (da agricultura de
subsistência à indústria), leve à redenção capitalista. Esta tendência está representada no texto de John Friedman de 1959: Planejamento: Problema de Integração Espacial. Podemos inferir que
nesta vertente, o papel que resta à agricultura familiar é o de produzir matéria-prima para a indústria e, para isso, deve, naturalmente, abandonar suas estratégias de produção, historicamente
construídas, visando auto-suficiência e auto-reprodução. Ao contrário de uma virtude que gera maior autonomia, essa característica é vista como atrasada. Essa estratégia foi aplicada intensamente no norte de Minas Gerais com a difusão e incremento do cultivo
de algodão na micro-região da Serra Geral nas décadas de 1970 e
1980, através da política de extensão e crédito rural, que transformou diversas famílias camponesas dessa região em
monocultivadores dessa espécie, como o objetivo de abastecer as
indústrias que se instalaram na região com subsídios da SUDENE.
Tal processo resultou num enorme endividamento desses pequenos
proprietários, numa contaminação ambiental e deterioração da saúde das famílias2, em virtude da massiva aplicação de agrotóxicos
nas lavouras e numa desestruturação da economia diversificada
que articulava subsistência e produção de alimentos para o merca2
Uma das faces mais dramáticas dessa agressão mostrou-se com o aumento assustador de
abortos entre as mulheres moradoras de locais de uso intensivo de agrotóxicos na
lavoura do algodão.
176
do regional. No final, o bicudo acabou com tudo. Este é um caso
exemplar do que seja um modelo insustentável.
b) A outra vertente diverge da generalização da fórmula
anterior, argumentando que em muitos países (em especial nos EUA,
pela natureza de sua colonização) o desenvolvimento se fez desde o
início através de uma base de exportação, ou seja, de uma especialização regional. Esta vertente também questiona a necessidade
obrigatória da industrialização para a complementação do processo
e é representada pelo texto de Douglass C. North, de 19553: Teoria
da Localização e Crescimento Econômico Regional. Dois casos,
que envolveram polpudos recursos do Estado, também na antiga
Região Mineira da SUDENE, exemplificam esta vertente: a agricultura irrigada e os maciços de eucalipto. A primeira, tida como “vocação da região”, já há muitos anos, dá mostras de enormes dificuldades de sustentabilidade, principalmente devido a três fatores: a) é
super-intensiva em capital, fazendo com que grande parte dos agricultores fiquem inadimplentes e não consigam nem pagar a água; b)
é super-intensiva em água que é o recurso natural mais escasso dessas regiões e c) o tamanho e configuração dos lotes não permite que
o agricultor integre agricultura com pecuária, simplificando o sistema
e impedindo a diversificação e uma integração que sempre potencializa
o uso dos recursos e gera margens de segurança ao agricultor. Portanto, o modelo não é replicável e pode ainda gerar problemas de
disputa de uso da água, fato que já veio à tona com o polêmico debate sobre a transposição das águas do rio São Francisco.
O outro caso, das monoculturas de eucalipto, constitui-se
no maior fator de pressão sobre as comunidades dos locais onde
foram implantadas. Estas perderam as terras altas da chapada (os
Gerais áreas de uso comum), ficaram encurraladas entre as beiras
de córregos e as áreas de monocultura e, para arrematar, viram suas
fontes de água diminuir drasticamente, chegando, em alguns casos a
secarem completamente. Além disso, essas monoculturas vêm se
mostrando, naturalmente, muito pouco empregadoras.
3
Importante notar que os autores das duas vertentes são estadunidenses.
177
Estas atividades certamente aumentaram o PIB regional,
alimentaram algumas cadeias (como a da siderurgia) e geraram acumulação para algumas empresas (que não tem vínculo com os lugares onde se dão as atividades produtivas primárias), mas não geraram desenvolvimento humano, nem sustentabilidade de comunidades rurais e ainda contribuíram para desequilíbrios e processos de
poluição e/ou contaminação ambiental.
Poderíamos dizer, com uma certa dose de simplificação (e
sem querer deixar de reconhecer várias nuances no interior dessas
matrizes de pensamento), que essas vertentes clássicas do pensamento sobre o desenvolvimento regional carregam intrinsecamente
(ou não conseguem romper com) visões obviamente ocidentais e
modernas a respeito do que seja desenvolvimento e de seu instrumento viabilizador fundamental: o planejamento.
A visão da modernidade ocidental parte, como vimos na
fala do presidente Harry Truman, de um conceito pré-estabelecido e
eurocêntrico (o eurocentrismo aqui diz respeito ao centro do sistema-mundo, incluindo, portanto, os EUA, originados do modelo europeu) do que seja desenvolvido/atrasado, integrado/isolado, em expansão/ estagnado, cuja raiz está na concepção de progresso ocidental deflagrado pelo Iluminismo e levado a cabo pela ascenção do
capitalismo e pelo advento da Revolução Industrial no planeta - o
que pode ser bastante diferente das concepções e dos anseios da
maior parte das populações regionais, em especial dos povos do campo
chamados de comunidades tradicionais, camponeses ou agricultores
familiares. Desta forma, o que está ligado, por exemplo, a atividades
de subsistência (que carrega uma lógica de autonomia) é imediatamente rotulado como subdesenvolvido, e muitas vezes a própria atividade primária é tratada como sinal de um estágio mais primitivo de
desenvolvimento (no caso da agricultura empresarial de exportação
isso é menos válido).
Este fato reflete uma visão linear de desenvolvimento e a
crença em soluções universais (urbano-industriais) para a sua
potencialização. Embutida nesta visão está a desqualificação de ou178
tras matrizes culturais ou de visão de mundo não tão alinhadas com a
lógica moderna/ocidental que automaticamente ficam excluídas desse processo - como as culturas indígenas, camponesas e afro-descendentes.
A ênfase também dada à especialização, exportação e industrialização explicita esse caráter unidirecional do processo de
desenvolvimento, bastante calcada na economia clássica e em seus
indicadores tradicionais: PIB, renda per capita, índice de emprego,
etc. Nessa economia, a natureza é um repositório de recursos que
existem para ser explorados em benefício do progresso humano - ou
pelo menos de uma pequena parte “mais qualificada” de seu contingente. É a lógica antropocêntrica e utilitarista do domínio e do controle da natureza.
Raramente se observa nestas análises uma preocupação
com especificidades e potencialidades ambientais e/ou culturais próprias da região ou do local.
3. Alguns pressupostas para reorientar os conceitos e os
caminhos
Vamos compreendendo, então, que a transposição de propostas, modelos e receitas de desenvolvimento oriundas do chamado
do centro do sistema-mundo (Mignolo, 2003) não só, não geraram,
na maior parte dos casos, resultados humanos emancipatórios, como,
ao contrário, provocaram resultados extremamente nefastos como:
expropriação territorial de populações indígenas e camponesas,
extinção ou descaracterização de culturas locais, degradação de diversos ecossistemas, ampliação das desigualdades e outros. Um exemplo muito claro é o inchamento das cidades e a favelização massiva
ocorrida no Brasil a partir dos anos 1960, com o advento da modernização da agricultura o privilégio à monocultura patronal de exportação, atrelada aos complexos agroindustriais (o que se chama hoje
de agronegócio) fez inviabilizar e expulsar um número enorme de
famílias camponesas foi um êxodo rural de mais de 40 milhões de
pessoas em menos de 40 anos, provavelmente, um recorde mundi179
al, resultando numa sociedade urbana apartada e violenta. E essa
pressão não cessou no tempo atual, como vemos através dos conflitos que ocorrem no campo brasileiro, em especial nas áreas de
expansão da fronteira agrícola dos biomas do Cerrado e da Floresta Amazônica.
Toda essa concepção exógena4 de desenvolvimento, ao contrário de ser portadora de algum tipo de solução, é a razão da crise
socioambiental contemporânea.
Para se pensar em construir alternativas a esses modelos
importados e nada adequados às realidades rurais de países como
o Brasil e, em especial, de regiões que conjugam limitações ecológicas e uma certa pobreza econômica5 , temos que reinventar e criar idéias que devem partir de alguns pressupostos. Parto aqui dos
seguintes:
• Vivemos uma crise socioambiental que é a crise do
modelo moderno-ocidental de desenvolvimento como
tentei expor anteriormente exclusão, desigualdade,
apartação e violência social, destruição ambiental,
dizimação de povos e culturas, níveis de produção e
consumo insustentáveis para o planeta. É na verdade,
uma crise civilizatória sistêmica que tem no aquecimento global o seu mais dramático sintoma: a Mãe-Terra
está doente.
• Para se pensar as alternativas para o campo, o conceito
de agricultura familiar tem sua utilidade, mas também
suas restrições e limitações no sentido de “puxar” um
processo transformador a partir do espaço rural. Entre
elas, dificulta uma visão histórica e multidimensional
desse sujeito social no Brasil.
• O campesinato, ao contrário de ser uma noção ultraExógeno(a) tem aqui o sentido de um processo que se dá de fora para dentro, o contrário
de endógeno(a).
5Uma das questões centrais que essa discussão coloca é a redefinição do que seja pobreza
e riqueza.
4
180
passada e um problema, é um conceito-força e uma
parte central da construção de alternativas ao modelo
hegemônico em crise.
Vou tentar construir a argumentação relativa aos dois últimos pressupostos.
Nas décadas de 1940 e 1950, proliferaram trabalhos na
antropologia que procuravam diferenciar as categorias de sujeitos
socais do campo. A vertente chamada de culturalista, de acordo com
Heynig (1982), fazia a seguinte diferenciação fundamental:
Camponês (peasant) exerce um controle sobre a terra que
lhe permite levar adiante em comum, um modo de vida tradicional
que a agricultura integra, mas não como inversão econômica para
obter lucro. O trabalho agrícola tem valor superior ao comércio.
Fazendeiro (farmer) exerce a atividade agrícola como comércio e considera a terra como capital e mercadoria (Redfield, 1941)6 .
Parece-me que essa diferenciação continua a ser fundamental, pois explicita um contraste central: o valor da terra como
lugar de viver e o valor da terra como mercadoria, dialogando com a
diferenciação de José de Souza Martins de terra de trabalho e
terra de negócio, mas indo além dela. Essa diferenciação de valor
explica, certamente, a permanência e até intensificação dos conflitos
no campo que antepõem populações rurais locais (índios, sem-terra,
comunidades camponesas tradicionais, etc.) e setores ruralistas e do
agronegócio exportador.
A professora Marta Marques da USP reforça esse caráter
da tradicionalidade do campesinato:
(...) o modo de vida camponês como um conjunto de práticas e
valores que remetem a uma ordem moral que tem como valores
nucleantes a família, o trabalho e a terra. Trata-se de um modo de
vida tradicional, constituído a partir de relações pessoais e imedi6
No livro “The Folk Culture of Yucatan”. Redfield, 1941 Bibliografia?
181
atas, estruturadas em torno da família e de vínculos de solidariedade, informados pela linguagem de parentesco, tendo como
unidade social básica a comunidade (MARQUES, 2004, p. 148).
Nesta visão, então, não é apenas o caráter familiar da exploração que definia a organização social camponesa, mas também,
e fundamentalmente, sua sociabilidade comunitária e um modo
de vida tradicional. Jacques Chonchol enfatiza essa dimensão da
coletividade local e de sua solidariedade interna:
As coletividades ou as comunidades locais nas quais vivem as
famílias camponesas constituem pequenas sociedades onde todos se conhecem, onde há freqüentemente particularismos de linguagem e onde existem relações de solidariedade entre as diferentes células familiares e entre o conjunto delas e a coletividade local
(vilas ou povoados) que elas constituem. (CHONCHOL, 1986, p. 3)
Por todas essas características, os antropólogos daquele tempo entendiam as comunidades camponesas como grupos
cujo comportamento econômico se explica por suas atitudes, valores e sistemas cognitivos transmitidos de forma verbal entre
gerações (HEYNIG, 1982). Essa abordagem foi chamada de
culturalista por entender a dimensão econômica como subordinada à cultura e criticada por enfoques marxistas que entendiam
o campesinato como uma categoria contraditória e subordinada
no capitalismo, tendendo ao desaparecimento, no processo de desenvolvimento do seu modo de produção. Para estes autores
marxistas, os culturalistas relegavam a um plano secundário os
aspectos econômicos e o conceito de classes sociais e favoreciam um enfoque que colocava maior ênfase na importância da
cultura, dos valores e das normas. Entretanto, com afirma Margarida Moura (1986):
... os processos sociais que viabilizam a existência do camponês
têm sido mais expressivos e fortes do que aqueles que o levam à
extinção. É mais correto falar em recriação, redefinição e até diver182
sificação do campesinato do que fazer uma afirmação finalista
(MOURA, 1986, p. 17 e 18).
Moura sintetiza com lucidez a problemática da permanência / desaparecimento no capitalismo, afirmando que, na maioria dos
contextos históricos, o camponês adaptou-se e foi adaptado, transformou-se e foi transformado, diferenciou-se internamente, mas permaneceu identificável como tal.
Ocorre que o camponês desempenha um contraditório papel que,
de um lado, expressa a sua resistência em desaparecer e, de outro
é resultado do próprio capitalismo que não o extingue. Este não
só extrai sobretrabalho dos operários, como também o capta onde
é possível. Entre essas possibilidades encontra-se o trabalho
camponês. É nesse contexto de dramáticas tensões que o camponês vive no meio rural contemporâneo (MOURA, 1986, p. 19).
Complementando esses pensamentos, a abordagem
chayanoviana7 vem acrescentar ainda a dimensão da micro-economia
camponesa, explicitando traços fundamentais de sua racionalidade, como:
- a exploração familiar como unidade central da economia camponesa;
- a equação entre trabalho e consumo: equilíbrio que se
dá em função do tamanho e composição da família (os
que trabalham e os que não trabalham, só consomem);
- a diferenciação entre a unidade camponesa que produz
valor de uso e a empresa capitalista que produz valor
de troca;
- a ausência das categorias salário, lucro e acumulação
na economia camponesa.
- o trabalho camponês busca a satisfação das necessidaAlexander Chayanov, agrônomo e economista russo do início do Século XX, que
estudou a microeconomia das comunas camponesas na Rússia. Seus estudos são uma
referência fundamental para o entendimento do caráter não-capitalista da economia
camponesa. Ver, por exemplo, o texto “Sobre a Teoria dos Sistemas Econômicos não
Capitalistas” (CHAYANOV, 1981).
7
183
des e essa subsistência é culturalmente definida
(CHAYANOV, 1981).
Importante observar que o caráter familiar da exploração
da unidade produtiva é apenas uma das características da categoria
Campesinato e mesmo da economia camponesa de Chayanov. As
outras características (referentes à racionalidade econômica, à sociabilidade, à dimensão cultural, etc.) são também fundamentais para
diferenciar essa categoria das outras que pertencem ao setor patronal da agricultura: fazendeiro ou da empresa rural capitalista.
Um outro componente surge nesse debate políticoconceitual, recentemente, referente à dimensão ecológica dessa categoria, ou seja, às formas camponesas de apropriação da natureza.
Essa dimensão se articula a diversos temas e enfoques bastante atuais como as abordagens agroecológica, etnoecológica e a que articula hoje a relação entre povos tradicionais e manejo/conservação da
natureza. Tudo isso desemboca no que venho chamando de
territorialidades camponesas, que são no plural por serem inúmeras
e diversas, mas guardam traços comuns em termos de racionalidade
ecológico-econômica.
4. Territorialidades camponesas e a sustentabilidade
Podemos conceituar a territorialidade como a forma que
um determinado grupo social vivencia e experimenta o espaço-território. Ou como diz Paul Little, “... a territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar
com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendoa assim em seu território ou homeland.” (LITTLE, 2002, p. 3).
Concordando com este autor, podemos afirmar que este
entendimento leva à constatação de que qualquer território é um
produto histórico de processos sociais e políticos.
Podemos, então, estabelecer uma clara relação entre diferentes tipos de territorialidades e respectivos modos de apropriação
184
da natureza (a dimensão material da territorialidade8), a partir da
abordagem histórica e etnoecológica de Toledo (1996), que ajuda a
entender a construção histórica das territorialidades camponesas.
Sinteticamente, a história da apropriação humana da natureza passa, de acordo com Vitor Toledo (1996), por três modos básicos: o extrativista, o agrícola (ou camponês) e o industrial (ou moderno). Este último é que gerou a crise ambiental contemporânea e, em
última instância, o aquecimento global, sintoma-síntese da crise
advinda de um conflito entre Sociedade e Natureza, estabelecido
pelo modo industrial-moderno oriundo da civilização ocidental e de
seu modelo de desenvolvimento correspondente. Esse conflito, entretanto, não é característico das sociedades camponesas tradicionais e de suas formas de apropriação da natureza que articulam o
primeiro (extrativista) e o segundo modos (agrícola).
As formas camponesas de apropriação da natureza
(racionalidade ecológica), como demonstram as abordagens agro e
etnoecológicas (ALTIERI, 2002 e TOLEDO, 1996), definem-se por
uma série de características e atributos que a tornam não só compatíveis, como demonstradoras da noção de sustentabilidade. Entre elas:
•
as formas camponesas são, em geral, produto de uma,
relativamente longa, co-evolução entre o sistema social
(a comunidade rural) e o sistema ecológico
(ecossistema), gerando agroecossistemas resilientes e
de alto grau adaptativo, onde são respeitados os limites
ambientais locais e aproveitados os seus potenciais;
• esse processo adaptativo reforça duas características
fundamentais que ajudam a manter a complexidade ecológica: a heterogeneidade espacial e a diversidade biológica;
8
Argumentei, em outros textos recentes, (MAZZETTO SILVA, 2006 e 2007) que a
noção de território remete a três dimensões: a simbólica (sentido e caráter de lugar,
sentimento de pertencimento e identidade), a material (uso do espaço e seus recursos,
meios de existência e sobrevivência) e a do poder (acesso, domínio e controle sobre o
espaço).
185
• os sistemas camponeses apresentam grau relativamente elevado de auto-suficiência relacionado a uma ênfase ao valor de uso em detrimento do valor de troca,
conduzindo a sistemas mais diversificados de produção,
comparativamente à agricultura moderna;
• a produção se dá em pequena escala, o que implica numa
dimensão também pequena de interferência nas dinâmicas dos ecossistemas;
• há um uso predominante da energia solar no processo
de produção, com base na manipulação biológica e na
utilização dos fluxos ecológicos;
• os níveis de emprego de insumos externos e produção
de dejetos são baixos ou nulos;
• há utilização de um conjunto de conhecimentos de caráter holístico e uma visão não-materialista da natureza
no processo de apropriação/produção.
Essas características não se manifestam pelo fato do
campesinato ser eminentemente ecológico, mas sim em função de
sua dependência e relação íntima com os ecossistemas e do objetivo
social da sua exploração: a reprodução familiar (COSTA, 1994).
Este objetivo implica na construção de formas de exploração que,
procurando evitar os riscos, - pois eles implicariam, talvez, na geração de um estado de carência extrema e insegurança alimentar na
família consiga manter, ao longo de anos e décadas, níveis de produção e produtividade que permitam compatibilizar a otimização do uso
dos recursos disponíveis com o seu não-esgotamento, caso contrário, a unidade familiar (que é de produção e de moradia ao mesmo
tempo) entraria em colapso. Alguns autores poderiam chamar essa
característica de ecologismo de sobrevivência (MARTINEZALIER, 1998), que contrasta com um ambientalismo mais urbano,
originado nas classes médias dos países industrializados que MartinezAlier, chamou de ecologismo da abundância.
186
Atualmente no Brasil, há um movimento social e intelectual que vem procurando reformular a conceituação e abordagem sobre o campesinato brasileiro, a partir desses pensamentos que procurei expor aqui (entre outros) e que busca articular as diversas dimensões do campesinato: a dimensão econômica (reprodução familiar a partir da produção rural) com a dimensão ecológica (formas
diferenciadas de apropriação da natureza) e cultural (hábitos de consumo, modos de ser e de viver). Ela está representada numa definição contida num trabalho de Horácio Martins de Carvalho, a partir
da contribuição de diversos intelectuais brasileiros.
Entende-se, então, por camponesas aquelas famílias que, tendo
acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem
seus problemas reprodutivos a partir da produção rural extrativista, agrícola e não-agrícola - desenvolvida de tal modo
que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a
alocação do trabalho dos que sobrevivem com o resultado dessa
alocação. Essas famílias, no decorrer de suas vidas e nas
interações sociais que estabelecem, desenvolvem hábitos de
consumo e de trabalho e formas diferenciadas de apropriação da
natureza que lhes caracteriza especificidades no modo de ser e de
viver no âmbito complexo das sociedades capitalistas contemporâneas. (CARVALHO, 2005, p. 170)
Como esse sujeito social se constituiu no Brasil, um país de
formação colonial, calcado no trinômio latifúndio/monocultura/escravidão
e voltado para exportação de riquezas para as nações já ricas desde 1500?
Vários autores argumentam que apesar da relação dominante senhor/escravo, outras relações dentro do latifúndio, à sua
margem ou longe dele, se estabeleceram. Elas eram vinculadas à
existência de homens livres-pobres da colônia (em geral mestiços).
Nelson Werneck Sodré no seu Formação Histórica do Brasil, vai se referir aos posseiros dos espaços vazios: “invasão
formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores,
no seu conjunto, ausente do mercado” (SODRÉ, 1979, p. 248).
Alberto Passos Guimarães no seu Quatro Séculos de La187
tifúndio vai falar que “intrusos e posseiros foram os precursores
da pequena propriedade camponesa” (GUIMARÃES, 1968, p. 38).
Já Ciro Cardoso (1980), buscando uma classificação mais
detalhada, argumenta que os homens livres do campo, durante o período colonial, eram divididos em três categorias:
• Homens livres assalariados inseridos no modo de produção escravista colonial como relação de produção
subsidiária, ou seja, quando a plantagem necessitou de
trabalhadores livres qualificados.
• Agregados vivam na periferia dos latifúndios, sustentando-se de “paupérrima economia natural”.
• Pequenos cultivadores não-escravistas independentes
ocupavam ínfimos pedaços de terra (posseiros), em áreas
não apropriadas pela plantagem (terras públicas ou
devolutas). Praticavam a economia de subsistência, sendo que a comercialização dependia da proximidade de
centros urbanos ou de vias de transporte.
Mas, a noção que, a meu ver, melhor esclarece a formação
da maior parte das comunidades rurais e do campesinato brasileiro é
a noção de cultura rústica, oriunda de trabalhos de Darci Ribeiro
(1977) e Antônio Cândido (1964). Diegues e Arruda em seu Saberes
Tradicionais e Biodiversidade no Brasil recuperam essa categoria,
articulando-a a de populações tradicionais:
Essa cultura rústica brasileira coexistiu tanto com as fazendas
monocultoras quanto com as fazendas de gado, constituindo a
base da produção do abastecimento para essas empresas e para
os povoados, e expandindo-se por todo o Brasil à medida que
encontrava terras devolutas para reproduzir seu modo de vida.
Em outras palavras, as populações alijadas dos núcleos dinâmicos da economia nacional, ao longo de toda a história do Brasil,
adotaram o modelo da cultura rústica, refugiando-se nos espaços menos povoados, onde a terra e os recursos naturais ainda
188
eram abundantes, possibilitando sua sobrevivência e a reprodução desse modelo sociocultural de ocupação do espaço e exploração dos recursos naturais, com inúmeras variantes locais determinadas pela especificidade ambiental e histórica das comunidades que nele persistem. Processo paralelo ocorreu com os povos 'desindianizados' que se mantiveram como comunidades relativamente fechadas, mas perdendo sua identidade étnica, convergiram para o modelo da cultura rústica (ARRUDA; DIEGUES,
2001, p. 31).
Posseiros mestiços de terras devolutas constituíram, então, essas culturas rústicas Brasil afora, formando as comunidades
rurais que sobrevivem até hoje. Fica clara a condição de
marginalidade em que esses sujeitos sociais se constituíram e se
reproduziram: terras ilegais, ameaças e processos de expropriação, perseguições (o caso das comunidades negras é exemplar nesse
sentido), subordinação aos coronéis, alijamento das políticas, seja
da colônia, seja da república... Entretanto, são essas comunidades
que vão sustentar os mercados locais de alimentos e que vão dar
identidade e vitalidade cultural aos territórios-regiões. Afinal quem
são os guardiões e protagonistas do que chamamos de culturas
regionais, na verdade, o que temos de mais peculiar e original para
oferecer ao mundo. Isso envolve conhecimento dos ecossistemas,
formas próprias de relação com a terra, determinados regimes alimentares e habilidades de culinária, costumes e espíritos festeiros,
sincretismos religiosos, etc. Esse é o patrimônio que o campesinato
construiu na sociedade brasileira. Não parece pouco.
5. As territorialidades do sertão mineiro
No sertão mineiro não é diferente, aliás, ele é um dos locais
onde essas culturas rústicas germinaram com mais vitalidade, não é
fortuito o fato das obras de Guimarães Rosa terem ganhado o mundo
vocalizando-as. O Sertão é um só, mas são diversos os sertanejos e
os recursos que abriga: geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros,
barranqueiros, quilombolas... o cerrado, as veredas, a caatinga, o car189
rasco, o rio São Francisco, suas ilhas, o das Velhas... Pequi, araticum,
buriti, mangaba, cagaita, sucupira, vinhático, umbu, caju, juá, surubim,
matrinchâ, pacu, curimatá, caititu, veado campeiro, tatu... São culturas
que se construíram a partir de um envolvimento com os locais onde
viviam, de onde extraiam sua sobrevivência e exercitavam seus modos de vida. Naturezas que guardavam uma generosidade, talvez menos exuberante e graciosa que as das florestas tropicais, mas portadoras do mistério da beleza rude, ajustada aos regimes climáticos, restrições hidrológicas e características geoambientais.
Como afirma Costa (1997), o norte de Minas Gerais se
organizou a partir de dois “todos econômicos”: a grande propriedade
de criação de gado e os núcleos camponeses.
A grande fazenda, enquanto um todo econômico, era auto-suficiente, com mão-de-obra escrava, negra e/ou indígena, e ocupouse das atividades produtivas para o abastecimento das zonas
mineradoras e de criação de gado, com caráter mercantil. Anterior
à abolição da escravatura, tanto os índios quanto os negros foram transformados em agregados, propiciando mão-de-obra escrava para o funcionamento da atividade econômica...
Os núcleos camponeses, espalhados por todo o sertão, também
se constituíam, cada um, um todo econômico, baseados fundamentalmente na produção coletiva e na utilização das chapadas
para a complementação alimentar e criação de gado 'na solta'. A
integração das diversas famílias camponesas assentava-se nas
relações de parentesco, de vizinhança e de compadrio, pois vinculavam e aproximavam os habitantes de cada núcleo camponês.
(COSTA, 1997, p. 79).
Na verdade, as comunidades camponesas apropriaram-se
da paisagem, estratificando-a, separando-a em unidades ambientais
e de uso, analisarei, adiante, este fenômeno com mais detalhe.
Sabemos que entre esses dois “todos” sempre houve certa
interdependência, ligada às relações de produção e se desdobrando
em relações de poder. Gervaise (1975) registra essa dependência no
sertão mineiro ainda na década de 70:
190
Para o camponês sem terra, a fazenda é um quadro no interior do qual
ele pode cultivar; o fazendeiro cede uma parcela de terra em troca do
trabalho que é, assim, disponível com poucos gastos. ...
Em outro nível, o pequeno proprietário é, também, dependente do
fazendeiro, porque freqüentemente a terra que ele possui, sendo
insuficiente, ele é levado a cultivar também a terra dos mais favorecidos. Os sistemas tradicionais de “meia” ou “terça” têm também, por
resultados criar certos laços de dependência na medida em que aquele
que possui a terra dispõe não somente desse fator, mas contribui, na
grande maioria dos casos, para o fornecimento das sementes ou
adubos, eventualmente utilizados (GERVAISE, 1975, p. 95).
A submissão dos camponeses ao grande fazendeiro - depois
denominado “coronel” - se dava também através das relações de
compadrio. O “coronel”, tendo em vista inclusive o grande período de
isolamento vivido pela região, de certa forma substituía o Estado e
assumia ele próprio um papel assistencial em relação às camadas mais
pobres, que a ele recorriam para solucionar a mais variada gama de
necessidades pessoais ou familiares. O coronel era tanto o mediador
entre o Estado e o camponês e seu agregado, como era o próprio
Estado na localidade sob o seu jugo. Neste contexto, Costa afirma:
Articulando-se interna e externamente, os homens dessa região
construíram uma identidade própria e uma cultura singular - a sertaneja -, que Luz (1991) compreende como sendo fruto da relação
estabelecida com a terra e com a natureza. Tratados como parceiros na reprodução da vida, constituíram coletivamente e viabilizaram
um ´modus vivendi´ que proporcionou uma cosmovisão inteira e
integrada - holística - expressando-a no principal valor cultural: a
solidariedade, através da parentela, bem como por relações de vizinhança e compadrio (COSTA, 1997, p. 80).
O autor procura esclarecer as origens desse caráter sertanejo. Na verdade, ele é fruto de um caldeamento de modos de comportamento, relações, saberes e fazeres de etnias diferenciadas que se
colocaram em contato no e com o território norte-mineiro, além das
191
articulações com populações de outras regiões. Neste caldo, o autor
ressalta a predominância do tipo ocidental judaico-cristão que determinou os parâmetros relativos ao modo de comportamento. Entretanto, houve também uma assimilação dos conhecimentos indígenas,
em especial sobre a fauna, flora e solo e suas formas de utilização,
além da incorporação da cultura negra nas manifestações religiosas
como as festas do Rosário e os congados, muito presentes na região
e relacionados ao que o autor chama de cosmovisão afro-brasileira. Ele chama ainda a atenção para uma contradição fundamental
da cultura sertaneja que se dá entre a cordialidade e a violência. A
primeira ligada à solidariedade com a vizinhança e a parentela antes
citada, e a segunda ao poder e abuso da força inerentes aos coronéis
e seus jagunços. Em outras palavras, uma solidariedade horizontal
permeada e ao mesmo tempo subordinada a uma relação hierarquizada
de mando extremamente rígida, mas que se mesclava, pela necessidade, com uma relação de compadrio paternalista. Todo esse caldo
cultural e essas complexas relações de poder interagiram com os
vastos horizontes das chapadas, com as largas distâncias entre um
povoado a outro, com a forte insolação e o forte azul do céu do
sertão, com as duras estiagens de vários meses, com o brilho cristalino das estrelas nas noites sertanejas. Neste contexto é que vão ser
forjadas essas territorialidades tradicionais do sertão que citei acima,
populações que chamamos de caatingueiras, geraizeiras, vazanteiras,
barranqueiras, portadoras de matrizes de racionalidade peculiares
(PORTO-GONÇALVES, 2000), forjadas numa sociabilidade própria e em formas de convivência produtiva com o ambiente, cuja
prática policultora e extrativista e o regime alimentar são testemunhas ainda atuais9 .
Estas matrizes de racionalidade são na verdade a expressão do que os geógrafos franceses do início do século chamavam de gênero de vida, que, por sua vez, guarda uma
estreita correlação com o que Toledo, na abordagem etnoecológica, chama de corpus e
práxis camponesa.
9
192
Voltando à apropriação camponesa da paisagem, em muitos lugares do Sertão, ela distribuiu-se e se organizou assim10 : no
fundo do vale, próximo ao curso d'água, se faz a roça de vazante
(arroz, cana, feijão da seca, hortaliças), um pouco mais acima, no
início da encosta, se constrói a casa, se faz o quintal e se cultiva um
roçado diversificado que pode incluir milho, feijão, fava e outro ainda, ao lado ou mais acima, que mistura mandioca, feijões catador e
guandu. Até aí a apropriação é familiar. Acima, nas chapadas não há
cerca, a apropriação é comunitária, área de uso comum os Gerais.
Afinal esse não é um sertão qualquer, é o Sertão dos Gerais.
O povo fala que é o mundo 11 ... O Gerais tá dentro do Sertão.
(S. Salvador, camponês do vale do Riachão,
Coração de Jesus).
O Gerais do sertanejo tem outro significado, não tinha nada a ver
com Minas Gerais... Antes não tinha divisão, era comum... Acho
que essa palavra Gerais nasceu desse comum, dessa terra comum... Até que essa palavra Gerais é na boca dos antigos... veio
dessa terra comum... não existe mais a terra comum.
(camponesa do Vale do Riachão, Coração de Jesus).
Nesse mesmo Vale do Riachão (durante minha pesquisa
de campo para a dissertação de mestrado) colhi uma preciosidade
que deixou Guimarães Rosa com inveja: a precisa e bela definição
de Gerais de D. Ermínia, camponesa sertaneja do Vale do Riachão,
no município de Coração de Jesus:
Gerais é porque a planta nasce lá no mato, no meio da mata,
então dá o fruto lá, ninguém planta, ninguém limpa e dá lá, então
diz que é Gerais ... Só colhe e come... Qualquer um pode colher;
10
Esse é apenas um exemplo de modelo, talvez o mais comum ao longo do conjunto de
vales/encostas/chapadas dos cerrados do sertão mineiro.
11S. Salvador aqui se refere ao Sertão.
193
todo mundo vai na manga do outro colhe pequi, colhe coco,
colhe manga, vai na chapada e colhe coquinho; se achar um
tatu lá também pegado no meio do Gerais, pega ele, leva pra
casa e come.
Gerais é um lugar livre, de uso geral, sem cercas, ninguém
cultiva lá, mas a biodiversidade do Cerrado oferece uma série de
recursos frutos, carne de caça, lenha, madeira, remédio e onde todo
mundo pode colher e ainda soltar o gado misturado, “na larga”. Resta o que D. Ermínia não falou, mas sabe a chapada é a caixa
d'água do sertão. E essa caixa distribui água para as principais
bacias hidrográficas brasileiras.
Nós é sangue mesmo dessa região aqui. No tempo dessa chapada
aí eu ainda lembro como era, eu era menino. Eu tinha uns 12-14
anos, nós ocupava muito essa chapada aí pra caçá mangaba,
rufão, coco, tinha muito coco, aquele coco de cacho. Cortava
pau-d'água pra tirar ripa. Pai tinha um cavalinho vermeio. Tinha
um jumentão da mão torta, era criado solto, que corria atrás da
gente. Muito gado na chapada... Era gado demais que vinha, só
quando buscava, porque dificilmente o gado descia nas beiras
de rio, porque tinha água, muita água nas pontas das cabeceira.
(S. Arcílio, camponês geraizeiro da Comunidade de Vereda Funda, município de Rio Pardo de Minas)12.
Essa água que agora “tá rariano”, depois que os cerrados
deixaram de ser Gerais, foram privatizados13 e viraram monocultura
de eucalipto, braquiaria ou plantações irrigadas por pivôs-centrais
que sugam, embaixo, avidamente as fontes d'água para molhar a
12
Depoimento colhido em 2004, durante a pesquisa de campo para minha tese de doutorado.
13Do ponto de vista jurídico, esses Gerais eram terras públicas ou devolutas, sob gestão do
governo estadual. Em alguns locais foram sendo apropriados pelos fazendeiros maiores
e, em alguns casos, “legalizados” em cartório. Em outros locais, a Ruralminas, nas
décadas de 1970 e 1980 concedeu ou arrendou a preços simbólicos para empresas
“reflorestadoras” plantarem grandes áreas de eucalipto.
194
chapada, no alto... De área de recarga hídrica, a chapada passou a
ser área de alto consumo de água, invertendo seu papel no ciclo
hidrológico. As territorialidades tradicionais do Sertão, que mantinham e ainda mantêm em muitos lugares, as chapadas como Gerais
é que permitiam que a chapada - com seus solos porosos e permeáveis e com um Cerrado econômico em água - fosse a esponja
hidrológica como atestou, brilhantemente, Guimarães Rosa, em duas
passagens, no seu famoso Grande Sertão Veredas.
O chapadão é sozinho a largueza. O sol. O céu de não se querer
ver. O verde carteado do grameal. As duras areias. As arvorezinhas
ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de
araras araral conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o
canto-clim. Ali chovia: Chove – e não encharca poça, não rola
enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador.
...
O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando
debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?
Enfim, voltando para a análise geral, é importante resumir
o cerne da questão que quero frisar aqui.
A gênese do campesinato brasileiro deu-se num contexto
colonial, que privilegiou o latifúndio e bloqueou o seu desenvolvimento (WANDERLEY, 1996). Esse contexto de marginalidade propiciou a ocupação de áreas marginais (posseiros, quilombolas), a
interação com populações indígenas e a articulação entre policultura,
pecuária, extrativismo vegetal, caça e pesca e também garimpo e
artesanato, como se constata, por exemplo, no Vale do Jequitinhonha,
em Minas Gerais. Em várias dessas tipologias, a vegetação nativa e
sua biodiversidade, ao invés de empecilho como para os europeus, é
parte da paisagem manejada e da cosmovisão camponesa. Modos
muito próprios de apropriação da natureza e de adaptação ao meio
desenvolveram-se no Brasil e em Minas Gerais, assim como de sociabilidade. Estas formas, desenvolvidas localmente, constituíram
195
habitats específicos, sociedades de interconhecimento como afirma
Mendras, a partir da frase “aqui todo mundo se conhece”. “'Aqui'
designa um habitat, isto é, ao mesmo tempo um território, definido
por oposição aos territórios vizinhos, e um território construído
que serve a seus habitantes de residência, de instrumento de trabalho e de quadro de sociabilidade” (MENDRAS, 1978, p. 87).
Como terra de viver e de trabalho, o território tem valor de uso e é o
lugar da coletividade local ou da comunidade rural, núcleo organizador
da sociabilidade camponesa e célula territorial fundamental da vida
camponesa. Na Amazônia, é comum as populações ribeirinhas da floresta se autodenominarem de “comunitários”, identificando aí sua distinção em relação a outros atores rurais e urbanos. O valor de habitat
que tem esses locais/ecossistemas de vida promovem um envolvimento
socioambiental e ajudam a construir territorialidades sustentáveis. Como
argumentei em outro trabalho:
(...) A passagem para um estado de sustentabilidade deve ter
como base a sustentabilidade dos lugares. É, portanto, mais
envolvimento local do que des-envolvimento de fora para dentro. É mais endógeno do que exógeno. Neste aspecto, a lógica
desterritorializante e homogeneizante da globalização vai no caminho inverso, pois, na falta do envolvimento com os lugares, a
“ordem global” os desorganiza e desestrutura as formas de vida
locais, gerando exclusão social, padronização cultural e caos
ambiental. Não pode haver por isso nenhuma ilusão autonomista
do local em relação ao global, fato demonstrado exemplarmente
por Chico Mendes e pelo movimento dos seringueiros no Acre.
Entretanto, e por isso mesmo, é fundamental reforçar o princípio
da autonomia e da autodeterminação das comunidades, mas adicionado de uma consciência e articulação global, para que as
populações locais possam tomar o destino do seu lugar nas mãos,
mediadas, mas não subordinadas, pela sociedade que as envolve
(MAZZETTO SILVA, 2001, p. 46 e 47).
6. Finalizando
A falência do modelo de desenvolvimento moderno-ocidental
nos solicita uma reinvenção de outros modelos (no plural) a partir
dessas realidades que eles chamaram, preconceituosamente, de
196
subdesenvolvimento ou de Terceiro Mundo14. Alguns pensadores europeus mais lúcidos deram-se conta disso há muito tempo, como atesta
essa passagem do famoso filósofo e sociólogo grego (mas que fez
sua carreira acadêmica na França) Cornelius Castoriadis que, mesmo preso a essas categorias dicotômicas (desenvolvimento/subdesenvolvimento), consegue perceber o valor do patrimônio sócio-cultural,
único deste Terceiro Mundo, e o potencial que existe para um diálogo horizontal entre as culturas tradicionais e uma ciência modernaocidental que pudesse ser aberta e não-arrogante.
Aquilo que há muito considero como essencial em toda a questão do desenvolvimento é que os países do Terceiro Mundo
tinham, e talvez ainda tenham, a possibilidade de oferecer uma
contribuição positiva, original, à necessária transformação da
sociedade mundial. É essa possibilidade que é totalmente
escamoteada nas discussões habituais sobre o desenvolvimento; e é ela que é destituída pelo desenvolvimento capitalistaburocrático daqueles países... Podemos dizer que na maior parte
desses países as formas tradicionais de cultura não estavam,
ainda, e ainda não estão hoje, completamente dissolvidas, nem o
tipo tradicional do ser humano, completamente destruído...
É desnecessário frisar que essas formas tradicionais, na maior
parte do tempo, vinham acompanhadas pela exploração, pela
miséria, por toda uma série de fatores negativos; mas elas preservam alguma coisa que, no Ocidente, foi destruída no e pelo
desenvolvimento capitalista: um certo tipo de sociabilidade e
de socialização e um certo tipo de ser humano. Há muito tempo
que eu considero que a solução dos atuais problemas da humanidade deverá passar pela conjunção desse elemento com a
contribuição que o Ocidente pode trazer; entendo com isso a
transformação da técnica e do saber ocidentais de tal modo que
possam ser postos a serviço da preservação e do desenvolvimento das formas autênticas de sociabilidade que subsistem
nos países subdesenvolvidos e, em troca, a possibilidade para
os povos ocidentais de aprender alguma coisa que foi esquecida
Afinal, o lugar onde vivemos e moramos nunca é um “terceiro mundo”, ao contrário,
é sempre o mundo essencial e primordial, seja em nosso vínculo afetivo, seja no exercício de um modo de viver e sobreviver.
14
197
e de se inspirarem neles para fazer reviver formas de vida
genuinamente comunitárias (CASTORIADIS apud PORTOGONÇALVES, 1995, p. 332)15.
Arturo Escobar, antropólogo colombiano e professor nos
EUA, vai mais além quando enfatiza a relevância ecológica dos
modelos camponeses do Terceiro Mundo.
Antropólogos, geógrafos e ecologistas políticos vêm demonstrando com crescente eloqüência que muitas comunidades rurais
do Terceiro Mundo constroem a natureza de formas impressionantemente diferentes das formas modernas dominantes: eles
designam, e, portanto, utilizam os ambientes naturais de maneiras muito particulares. Estudos etnográficos dos cenários do
Terceiro Mundo descobrem uma quantidade de práticas significativamente diferentes de pensar, relacionar-se, construir e experimentar o biológico e o natural (ESCOBAR, 2000, p. 118).
Esses modelos locais devem ser, então, a matéria-prima (e
não o impedimento) para construção da sustentabilidade e autonomia das comunidades no seu habitat. Entretanto, uma série de fatores devem se somar para que essa perspectiva da sustentabilidade
dos espaços rurais possa se materializar. Entre outros princípios, essa
perspectiva deve se basear:
• numa distribuição eqüitativa do território, na democratização do acesso à terra que deve ser antes de tudo um
bem público a serviço da sociedade (função
socioambiental da terra),li e não uma mera mercadoria;
• no fortalecimento e construção de modelos produtivos
e de vida que sejam cuidadosos com os territórios rurais
- água, biodiversidade, solo, infra-estruturas comunitárias e que conservem a paisagem e o funcionamento
dos processos ecológicos dos ecossistemas - fluxos
15
Grifos próprios
198
energéticos, ciclos de nutrientes (biogeoquímicos), ciclo
hidrológico, processo de equilíbrio biótico - e assegurem
a riqueza do patrimônio natural para esta e para as futuras gerações;
• na inclusão (não-expulsão) e no protagonismo das famílias agricultoras e no respeito às comunidades rurais
e valorização de sua história e cultura;
• na produção de alimentos e outros produtos de boa qualidade biológica, isentos de produtos contaminantes que
garantam a segurança alimentar e a saúde da sociedade.
Nenhum desses fatores tem sido garantidos pela chamada
agricultura moderna, ou pela sua noção contemporânea: o agronegócio.
Ao contrário, essa lógica tem se mostrado concentradora de terra,
intensiva em capital, energia e recursos naturais, poupadora de mão
de obra, simplificadora e degradadora dos ecossistemas.
Seguindo os princípios acima, podemos apontar algumas
pistas em termos de estratégia e concepção:
• Ao invés do des-envolvimento (de fora para dentro),
incrementar o envolvimento da cultura, do ambiente,
da economia, da organização social local (de dentro
para fora).
• Fortalecer espaços de participação protagônica e de
construção da autonomia das famílias camponesas locais tomar o seu destino nas mãos
• Fortalecer as identidades que são portadoras do apego
ao lugar, da cultura da adaptação ao meio, da convivência com os ecossistemas, do incremento da diversidade
biológica e da heterogeneidade espacial as
territorialidades sustentáveis.
• Incrementar a articulação em redes de luta territorial e
emancipatória, troca de experiências, diálogo de sabe199
res e ajuda mútua: rural-rural, rural-urbano, regionalestadual-nacional-internacional...
O universo para se criar novas perspectivas e modelos é
imenso, em especial, em países como o Brasil, portador de uma rica
miscigenação étnica e cultural, com uma diversidade e riqueza de
ecossistemas incomensuráveis e ainda não tão enquadrados na forma do capitalismo e da cultura ocidental (européia-estadunidense).
Essa recriação e descolonização do pensamento passam pela afirmação de Boaventura de Souza Santos.
A falência da miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente, e, em vez de se buscar novos modelos de desenvolvimento alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas
ao desenvolvimento (SANTOS, 2005, p. 28)16.
São outros conceitos e novas idéias-força, a partir das margens do sistema-mundo, que poderão gerar os impulsos, as energias,
as sabedorias e as ações que contribuam para as populações locais
manterem ou construírem a sustentabilidade de seus territórios.
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203
204
6
AGRICULTURA FAMILIAR: IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E NOVOS CAMINHOS PARA A SUSTENTABILIDADE
Claudia Luz de Oliveira
Breno Gonçalves dos Santos
João Silveira d'Angelis Filho
Carlos Aberto Dayrell
1. Introdução
Este artigo busca analisar a incidência da agricultura familiar nas distintas mesoregiões de Minas. Considera-se este modo
de produção como o mais importante vetor de geração de ocupação na agricultura. Nesse sentido, é feito um movimento de
relativização da agricultura tradicional e das comunidades camponesas, que se encontram na periferia do sistema mundial, sendo
essencializadas pela produção para o autoconsumo e isoladas da
economia central. Os estudos, portanto, reconhecem uma economia movimentada por complexas redes de negócios, imersas no
que estamos chamando de uma “economia invisível”. Esta
invisibilidade diminui a capacidade destes atores de negociação de
políticas com o conjunto da sociedade, deixando terreno para que
as grandes corporações tomem de assalto as economias dos municípios, apresentando-se como a única alternativa de âncora econômica e de “ajuda ao desenvolvimento”.
Noutro aspecto, observa-se um processo crescente de
perda da participação da contribuição dos pequenos municípios e
paisagens rurais na economia mineira. Assim, amplificam-se
assimetrias entre as regiões ricas e as de baixo dinamismo econômico em Minas Gerais.
Atualmente, diferentes leituras, conjunto de medidas, projetos e programas públicos ressurgem no Brasil e em Minas e vem
205
trazendo a questão do enfrentamento do que, nos tempos dos
cepalinos, chamou-se de intercâmbio desigual. Pelo menos três
enfoques nas estratégias de desenvolvimento podem ser grafados
de forma mais clara: a) o de desenvolvimento comunitário, inspirado nas teorias latino-americanas do “desenvolvimento comunitário”, matizado no Brasil com as contribuições da educação
Freiriana; b) o de desenvolvimento local/territorial, inspirado nas
experiências européias e nos estudos sobre capital social; c) o de
macropólos de serviços e atração econômica, inspirados nos recentes estudos liderados pelo professor Clélio Campolina Diniz
(2003), do CEDEPLAR/FACE/UFMG, procurando delimitar os
pólos econômicos e suas áreas de influência, como base para uma
proposta de nova regionalização para o Brasil.
A reflexão aqui desenvolvida reclama pela ausência de
uma abordagem própria apoiada nas experiências em curso no
Brasil e chama atenção para a necessidade de se buscar referências para a construção de novos cenários. Cenários estes inspirados nas experiências de governos e de organizações da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição de fornecedoras de mercadorias de primeira geração, de
baixo valor agregado, para inseri-las na economia da informação,
ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”,
os quais atuam como fornecedores de mercadorias de quarta geração, por meio do valor agregado ao conhecimento tradicional
(CUNHA; ALMEIDA, 2001).
2. Minas e a Agricultura Familiar
Minas é o estado da diversidade, onde observa-se uma
marcante variedade ecológica e rastros culturais contrastivos, sendo
uma economia notadamente diversificada. As paisagens das minas e dos gerais são conformadas, ao longo dos últimos séculos,
pelo contexto sócio-econômico, político e cultural, advindo da expansão da ocupação de grupamentos humanos oriundos, principalmente, da Europa e África e em detrimento dos ocupantes
206
originais, os ameríndios.
Uma das marcas inscritas na fisionomia deste estado é
a transição ecogeográfica do Sudeste para o Nordeste brasileiro,
da mancha atlântica (que não toca a costa brasileira, mas recebe
os ares da mesma) para o sertão. Do clima subúmido para o semiárido, do cerrado para a caatinga. Do mar de morros da Zona da
Mata, para a aparente calmaria dos cerrados que invadem o sertão mineiro, que é notadamente uma fisionomia singular no âmbito dos ecossistemas brasileiros. Abriga, em um pouco mais do
que meio milhão de quilômetros quadrados, uma diversidade única de paisagens conformadas pelo contato ecossistêmico. Os cerrados, as caatingas, a mata atlântica ora se entrelaçam como quem
disputa o território, ora constroem imensas e profundas manchas
de domínio e calmaria. A malha hídrica e os movimentos migratórios de animais, incluídos os da espécie humana, encarregam-se
de por em contato estas imensas manchas de domínios
ecossistêmicos (DANGELIS FILHO, 2005).
Das montanhas de Minas, dentro dos domínios da Mata
Atlântica, cuja paisagem é movimentada por um relevo inicialmente ondulado, à medida que deslocamos pelas estradas que
ligam ao triangulo, ou ao norte, em cuja paisagem dominam os
cerrados, as curvas se estendem até tornarem manchas
esbranquiçadas ao fundo. Os caminhos deixam os terrenos movimentados do mar de morros e se espraiam na imensidão dos
altiplanos que vão tocar o planalto central brasileiro.
Muda o relevo, mudam as formações vegetais, da mata
atlântica para o cerrado, além de um emaranhado de formações
fitoecológicas designadas ora de mata seca, ora de caatinga. É
nessa paisagem múltipla e singular que se assenta uma “agri-cultura” diversa, movida por diferentes matrizes de racionalidade,
uma fisionomia social rica e complexa. Poderíamos também dizer
que estão inscritos sobre esta paisagem uma boa mostra daqueles que são os verdadeiros portadores do patrimônio cultural do
agrus brasileiro.
207
Biomas de Minas Gerais
Figura 1: Biomas de Minas Gerais
Fonte: http://www.biodiversitas.org.br/1.
Mesmo sob a égide de uma política arrogante e conservadora, em que a agricultura familiar é mantida sempre que possível à margem dos benefícios das políticas distributivas e à margem das estratégias e políticas emanadas do estado e do capital privado, esta população ainda subsiste e permanece ocupando a maioria absoluta da população rural em Minas Gerais. De um total de 2.000.046 pessoas ocupadas no campo em Minas, 1.293.922 encontram-se absorvidas pela
agricultura familiar (fonte: Censo Agropecuário 1995/96, IBGE).
1
Revisão do Atlas de Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade.
208
Gráfico 1 - Percentual de participação do pessoal ocupado pela Agricultura Familiar e Patronal nas doze
macro-regiões do Estado de Minas Gerais
Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996, IBGE. Convênio INCRA/FAO Organizado pelos autores.
Os dados acima sinalizam a significativa participação da
agricultura familiar enquanto absorvedora de mão-de-obra, especialmente nas regiões Norte, Jequitinhonha, Rio Doce, Mucuri e Zona
da Mata. Por outro lado, sinaliza a crescente configuração das regiões Noroeste, Triângulo/Alto Paranaíba e Central de Minas, que cada
vez mais se estabelecem sobre dinâmicas concentradoras de terras
e recursos, associações inevitáveis de sistemas de produção e consumo liderados por grandes corporações internacionais e complexos
conglomerados, o que passou a ser chamado no Brasil de agronegócio.
3. Redes e Negócios Associados à Agricultura Familiar:
Descortinando uma Economia Invisível
A partir de uma rápida passagem pelas mesoregiões mineiras e pelos dados do último Censo Agropecuário (1995), é incontestá209
vel a importância da agricultura familiar na geração de ocupações e
formação do patrimônio material e imaterial de Minas e, por que não
dizer, na formação da episteme da mineiridade.
Porém, os dados capturados pelo censo, a nosso ver, não
fundamentam e nem dão magnitude aos circuitos de negócios que dão
sustentação a estas economias locais.
Vamos recorrer a estudos de caso realizados pelo Centro de
Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/PNUD/MMA, 2005)
sobre circuitos econômicos locais nos municípios da Serra Geral e do
Alto Rio Pardo. Esses estudos indicam como a agricultura familiar no
território estudado movimenta complexas redes de negócios, imersas
no que estamos chamando de uma “economia invisível”. As tentativas
de mensuração exercitadas nos estudos realizados apontam alguns
indicativos da magnitude desta economia, tais como:
- 2/3 do VBP (valor bruto da produção) da bacia leiteira da
Serra Geral é movimentado a partir de pequenas e micro unidades de
processamento de leite, pequenas queijarias e fábricas de doces e requeijão. Enquanto muito se fala da importância das grandes corporações de
alimentos para a estruturação da cadeia de leite na região, esses dados, na
verdade, revelam que a imensa maioria dos produtores de leite acessam
os mercados via esses pequenos empreendimentos que se mantêm na
mais completa clandestinidade (vide Box I, Gráficos 2 e 3);
Box 1
Hoje em Porteirinha, 37 pequenas queijarias e a Cooperativa Crescer organizam a produção leiteira de 593 famílias de um total 637 unidades produtivas envolvidas com
a pecuária leiteria, o que representa 97% das propriedades,
em sua grande maioria, pequenos e micro proprietários rurais. Por outro lado, a NESTLE coleta a produção apenas
de 44 unidades produtivas (apenas 7% das propriedades),
sendo que estas, geralmente, são de maior porte. Em termos do volume beneficiado por estas três rotas de
processamento, pode-se observar que elas se equivalem,
210
ou seja, o conjunto das 37 fabriquetas processa o mesmo
volume que a Cooperativa Crescer e o mesmo volume que
é coletado pela NESTLÉ (vide Gráfico 2)
Gráfico 2 - Participação Agroindústrias Processadoras de Leite
na Região da Serra do Espinhaço (Porteirinha, Riacho dos Machados e Serranópolis de Minas)
Fonte: CAA/PNUD/MMA (2005)..
Gráfico 3 - Participação Agroindústrias Processadoras de Leite na Região da Serra do Espinhaço (Porteirinha, Riacho dos Machados e
Serranópolis de Minas), na composição do VBP leiteira.
Fonte: CAA/PNUD/MMA (2005).
Analisando do ponto de vista econômico, considerando o volume anual processado por estas
agroindústrias familiares e cooperativa, além de processarem praticamente o dobro do volume da NESTLÉ,
elas geram um VBP 60% superior ao gerado pela
NESTLE, Gráficos 2 e 3.
Ou seja, a estratégia cunhada pela agricultura familiar desta microrregião vai na contramão da subordinação
cega da agricultura junto aos grandes conglomerados
agroindustriais, gerando uma cadeia invisível de negócios,
211
de emprego e renda que extrapolam a vida socioeconômica
apenas dos agricultores familiares da caatinga estendem
seus benefícios para a cidade de Porteirinha, sua vizinhança, atingindo municípios geograficamente distantes como
São Paulo, mas culturalmente muito próximos. Lá também, seus produtos geram emprego e renda caminhando
por uma teia também invisível de distribuição até chegar
aos consumidores finais, seus pares oriundos em sua grande
maioria do sertão (CAA/PNUD/MMA, 2005).
- A agricultura familiar do Alto Rio Pardo, que abriga a maior
área plantada de cana-de-açúcar da região - mais de 2.000 ha,
produz algo entorno de 10 milhões de litros de cachaça e registrou na arrecadação de ICMS cifras irrisórias de R$500,00 e
R$1000,00 reais nos anos 2003 e 2004, respectivamente. Da
mesma forma esses dados sinalizam um imenso campo de atividade econômica que permanece invisível (vide Box II, Gráficos 4 e 5).
Box 2
O Gráfico 4 destaca a área plantada de cana-deaçúcar na região estudada, onde se destaca a produção
do município de Rio Pardo de Minas. Todavia, esta produção não aparece nas estatísticas como geradora de
riqueza. No Gráfico 5 evidencia-se o baixo valor
comercializado de cachaça neste município. Nos estudos que estão sendo realizados pelo CAA/NM, nesta
região, já foram mapeados mais de 200 alambiques
artesanais, ocupando, diretamente na produção, em torno
de 800 trabalhadores. Estimativas iniciais sinalizam que
mais de 4 mil pessoas ocupam-se na atividade, num
universo de 9.392 pessoas ocupadas pela agricultura familiar no município.
212
Gráfico 4 - Evolução da área plantada de cana de açúcar 1990 - 2004
Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (CAA/PNUD/MMA, 2005).
Por outro lado, os estudos com base em estatísticas oficiais sobre os pólos, sinalizam a pouca eficiência do agronegócio
na geração de ocupação e de inclusão produtiva da imensa
massa de agricultores familiares. Essas atividades são geralmente lideradas por empresários e empresas de outras regiões, agentes econômicos dotados de capacidade de investimento de capital financeiro e capacidade de endividamento.
As estatísticas oficiais (censo agropecuário, 1995/96) revelam que 78,7% das ocupações na agricultura são geradas
nas cercanias dos negócios da agricultura familiar. Dos 50.595
de pessoal ocupado na agricultura do território estudado,
39.801 estão empregados na agricultura familiar. Pondo em
tela a situação do papel da silvicultura em Rio Pardo de Minas, que ocupa um terço das terras do município, a atividade
é capaz de gerar menos 5% dos empregos formais do município. Todavia, os dados do Censo Agropecuário de 1996 indicam que os estabelecimentos rurais familiares no município
geram ocupação para 9.392 agricultores maiores de 14 anos.
(CAA/PNUD/MMA, 2005).
213
Gráfico 5 - Evolução do Valor comercializado de cachaça, Norte de Minas,Território GESTAR
Serra Geral/MG e municípios com base no ICMS.
Fonte: Secretaria de Estado da Fazenda.(CAA/PNUD/MMA, 2005)..
Tabela 1 - Nível de Emprego Formal Direto
Fonte: RAIS, 2005.(org. Barbosa,2008)
Ora, se esses negócios que tecem essa economia estão
assentados principalmente sobre as cadeias produtivas estudadas, e
as informações obtidas confirmam tal afirmação, então a imensa
maioria da população ocupada nesses municípios está inserida em
uma rede de negócios “clandestinos e ilegais”. Portanto, a sustentação econômica da população desses municípios está ancorada sobre
uma estrutura institucional extremamente frágil. Uma interpretação
e aplicação rigorosas da legislação fiscal e sanitária não deixariam
permanecer em atividade nenhuma cachaçaria do Alto Rio Pardo ou
214
Montes Claros; muito menos, nenhuma queijaria ou laticínio da Serra
Geral vinculados à agricultura familiar. Portanto, a questão tem que
ser debatida seriamente enquanto problema público.
4. Políticas para Agricultura Familiar
Na formação da paisagem rural brasileira, desde os tempos coloniais, prevaleceram os interesses associados ao desenvolvimento dos sistemas de plantation, largamente grafados na
historiografia brasileira. As comunidades camponesas estabeleceram-se nas zonas marginas e se limitavam a ocupar os solos que à
cana não interessava (ANDRADE, 1998 p. 92). A produção miúda, de pouca conta, mesmo não tendo o apoio de políticas oficiais,
não deixa de, contraditoriamente, ser considerada importante à
medida que crescia a população no Brasil. A agricultura camponesa sempre cumpriu papel determinante no abastecimento de alimentos e outros bens fundamentais na formação da nação brasileira, embora sempre permanecesse à margem das políticas de desenvolvimento nacional.
Desde sempre, os sistemas locais de produção, modos de
vida dos povos do sertão, sempre foram “associados ao atraso”, o
que os tornou alvos de políticas de desenvolvimento que promovessem rupturas e desestruturação dos sistemas agroalimentares locais.
Um vasto repertório de políticas de modernização truncadas foi disparado sobre esta população ao longo da história política brasileira.
Não vamos neste artigo adentrar nesse universo, todavia, é importante citar algumas manifestações mais recentes, que denunciam o
espaço marginal desse setor, enquanto âncora para uma estratégia
nacional de desenvolvimento. Denunciam essa marginalidade a desintegração dos sistemas locais de produção e consumo, submetidos
à subordinação de grandes agroindústrias, seja de carne, fumo ou
celulose; e as inúmeras vilas e povoados que se formam estabelecendo-se como reservas de mão-de-obra barata para complexos
associados ao agronegócio. Segundo dados do DIEESE (2007) mais
de um milhão de trabalhadores ocupam-se no corte de cana. A vida
215
útil destes trabalhadores da cana retorna aos índices dos tempos dos
canaviais, tocados pelo regime escravocrata (10 a 12 anos; passando de 15 anos, verificados nas décadas de 80 e 90, para 12 anos a
partir de 2000).
Por outro lado, não podemos afirmar que as coisas não
mudaram. O processo de redemocratização no Brasil, e as olas
internacionais de pressões advindas da crise ambiental, energética
e, mais recentemente, a de alimentos atraíram para a arena pública
preocupações com a sustentabilidade, com a participação popular,
com as desigualdades sociais e também intra-regionais. De uma
forma geral, surge, no Brasil, um repertório de políticas que incorporam a questão da participação e da sustentabilidade com
rebatimento nos territórios.
Um conjunto de projetos e programas públicos surge no
Brasil e em Minas, tendo como questão o enfrentamento, daquilo
que nos tempos dos cepalinos, se chamou de intercâmbio desigual e
deterioração dos termos de intercâmbio entre nações. A aplicação
deste modelo de análise entre regiões do país resultou em busca de
soluções como a criação da SUDENE e da SUDAM na década de
1960. Na atualidade, pelo menos três enfoques nas estratégias de
desenvolvimento podem ser grafados de forma mais clara: a) o
de desenvolvimento comunitário, inspirado nas teorias latino-americanas do “desenvolvimento comunitário”, matizado no Brasil
das contribuições da educação Freiriana; b) o de desenvolvimento local/territorial, inspirado nas experiências européias e nos estudos sobre capital social; b) o de macropolos de serviços e atração econômica, inspirados nos recentes estudos liderados pelo
professor Clélio Campolina Diniz (2003), do CEDEPLAR/ FACE/
UFMG, procurando delimitar os pólos econômicos e suas áreas
de influência, como base para uma proposta de nova regionalização
para o Brasil.
O enfoque do desenvolvimento comunitário veio embalar
um grande número de experiências de trabalho popular no Brasil
durante os anos 70 e 80. Tal abordagem foi mais claramente con216
ceituada como metodologia2 do trabalho comunitário e social3 .
Esta abordagem orienta a maioria das iniciativas lideradas por um
campo de ONG´S, organizações populares locais, pastorais e, em
alguns casos, até mesmo de programas de cooperação multilateral
com organismos internacionais. Acompanha esta abordagem um repertório de conceitos como: projetos de base comunitária (GESTAR/
PNUD/MMA), grupos locais de geração de renda (PPPECOS/
GEF Cerrados/MMA), projetos comunitários de geração de renda (PCPR). Ela se articula a partir do planejamento da ação “na
comunidade”, muitas vezes encerrado na fronteira comunitária, acreditando que o sucesso das soluções que se consolidam na escala das
famílias e comunidades possui, em si mesmo, potencial de expansão
e transbordamento para outras localidades.
A partir da regulamentação da Constituição de 1988, inicia-se o processo de descentralização política e municipalização no
Brasil, trazendo em seu bojo as preocupações com o local e, com
elas, as teorias do Desenvolvimento Local. As preocupações e teorias migram da escala comunitária para a escala local (este entendido, na grande maioria das vezes, enquanto escala municipal, ou
microrregional, arranjo de municípios vizinhos. Em seguida, já durante o governo Lula, o conceito de desenvolvimento territorial toma o
lugar do local. Noutro flanco, com a constituição da União Européia,
ressurgem preocupações com correções das assimetrias entre regiões e países dentro do bloco. Neste contexto, surgem diversas ações
de governos, como programa líder e outros que se propunham a
promover reversão dessas assimetrias.
O conceito de capital social, desenvolvido principalmente a
partir de estudos que buscavam explicar os elementos fundadores de
Michel Thiollent(1985), Willian Castilho(1988 e 1984), Belfiore(1993),
Arcoverde(1985), Hirschnan(1987), Dallari (1983), Brandão(1984), Cardoso(1987),
Faleiros(1982), Fritzen (1985), Bonfiglio (1982); foram alguns dos expoentes que
vieram a desenvolver teorias que iluminaram a questão no campo conceitual.
3
Boa parte dessa literatura me foi apresentada por Solange Monteiro de Souza, socióloga
do CAA, profunda conhecedora dessa abordagem. Além de me por em contato com esta
literatura, os debates que tivemos na montagem do curso que demos juntos na UNESP de
Registro-SP me ajudaram construir uma visão panorâmica sobre o tema.
2
217
dinâmicas diferenciadas de desenvolvimento na região central da Itália,
ganha enorme virulência no Brasil, repercutindo fortemente nos programas que emanavam especialmente do MDA e/ou programas de
governos estaduais com financiamento do Banco Mundial. Assim
como os antigos PDLS, nos tempos do PRONAF infra-estrutura, o
atual Programa de Desenvolvimento Territorial do MDA talvez seja
o mais fiel depositário desse conceito. O programa se sustenta na
crença profunda de consertação entre organismos de governo e sociedade (como nos tempos dos governos socialistas na região de
Bolonha e Trieste, na Itália, e a imensa trama de negócios e empresas que se desenvolveram nessas regiões após décadas de governos
de esquerda).
Embora ainda exista uma certa crença em torno das possibilidades desse programa, não seria surpresa um processo crescente
de esvaziamento e esgotamento. Ora, nem sempre as condições de
consertação serão dadas, nem sempre haverá governo disposto a
estabelecer acordos com a sociedade, nem sempre haverá organizações de Estado e sociedade em condições de igualdade de diálogo.
Além do mais, estamos no Brasil. Por outro lado, o próprio conceito
de desenvolvimento, mesmo com o qualificativo de sustentável, começa a ser bombardeado a partir da crítica às Teorias do Desenvolvimento, vindas da América Latina a partir de Max Neff (1986),
Furtado (1992,1996,1999), Henrique Leff (1998), ou de vozes mais
distantes como Amartya Sem (2000), W. Sachs(2000), Rist (1997)
ou mesmo de Boaventura de Souza Santos (2002).
Uma outra contribuição importante vem dos estudos desenvolvidos pelo CEDEPLAR, em que se procura delimitar os pólos
econômicos e suas áreas de influência, como base proposta de nova
regionalização para o Brasil. Esta abordagem destaca o papel da
integração geográfica intersetorial e da escala urbana, capazes de
ofertar um amplo espectro de serviços superiores ligados à produção
industrial, infra-estrutura e estabelecimento de uma rede de cidades
economicamente integradas e gravitando sob a influência das cidades pólos. Esta abordagem tem inspirado o desenvolvimento de políticas nos Ministérios da Integração e Indústria e Comércio.
218
Embora seja complicado aplicar a teoria das relações “centro- periferia” do tempo dos cepalinos à análise de intercâmbios
desiguais entre regiões dentro de um mesmo país, os dados abaixo
mostram como se reproduz, no nível regional e de forma exacerbada, o que ocorre em um panorama nacional: um padrão de desenvolvimento que impulsiona o aprofundamento das desigualdades também dentro das regiões, ampliando a exclusão social e o avanço predatório sobre os estoques de capital natural. O gráfico 6 sinaliza esse
movimento centrípeto da economia regional: enquanto Montes Claros, município pólo que já detém mais da metade do PIB da região,
cresce sua participação no PIB regional, decresce a participação
dos demais municípios do Território GESTAR Serra Geral/MG 4.
Esta tendência centrípeta constitui-se em um problema de
magnitude incalculável para as nações pobres. Não resta dúvida de que
tal processo é produto do fracasso de uma estratégia de desenvolvimento que guiou todas as economias periféricas, após a Segunda Guerra, e
impôs uma rápida industrialização às custas da deterioração do campo.
Gráfico 6 - Produto interno bruto a preços correntes, segundo Montes Claros e demais municípios do
Território 2000-2003.
Fonte: IBGE, 2004.
4
Porteirinha, Janaúba, Capitão Enéas, Pai Pedro, Riacho dos Machados,Rio Pardo
de Minas.
219
Em certas zonas do planeta, a debilitação da agricultura
e das pequenas cidades alcançou proporções aterrorizantes, constituindo o “calcanhar de Aquiles” da hiper urbanização
(DANGELIS FILHO, 2005). Sabemos “o que hay que hacer, pero
no sabemos aún como hay que hacerlo, porque no tenemos una
teoría alternativa de desarrollo que sea convincente”5 (MAXNEFF, 1985, p. 190-191).
5. Considerações Finais: Novos Caminhos
Este artigo reclama pela ausência de uma abordagem
própria apoiada nas experiências em curso no Brasil, a exemplo
desta aqui analisada. Pretendemos chamar atenção para a necessidade de buscar referências para construção de novos cenários, inspirados nas experiências públicas e da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição
de fornecedoras de mercadorias de primeira geração, de baixo valor agregado, para inseri-las na economia da informação, ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”, como fornecedoras de mercadorias de quarta geração por meio do valor agregado ao conhecimento tradicional
(CUNHA; ALMEIDA, 2001). Nesta perspectiva, os circuitos econômicos locais passam a ser vistos como âncoras para
uma estratégia de geração de riquezas e oportunidades, e não
como fator de atraso. As estratégias de desenvolvimento econômico das regiões devem absorver as lições deixadas pelas
economias invisíveis.
A permanência da condição de clandestinidade não interessa ao conjunto da sociedade, porque são oferecidos a ela produtos sem certificação de origem pelos órgãos de vigilância sanitária.
Ora, sob os auspícios da clandestinidade tudo pode ser possível,
desde a produção dos melhores queijos ou das melhores cachaças
a preços acessíveis, até a oferta à população de produtos de alto
risco alimentar.
5
Tradução livre: “Sabemos o que precisa ser feito, mas não sabemos ainda como tem que ser
feito, porque não temos uma teoria alternativa de desenvolvimento que seja convincente”.
220
Isso não interessa aos produtores, porque a condição clandestina inviabiliza acesso a políticas específicas de fomento ao setor, tais como:
crédito, assistência técnica, acesso a mercados institucionais e a pesquisas
de desenvolvimento tecnológico e de logística públicos. Ao mesmo tempo,
diminui sua capacidade de negociação de políticas com o conjunto da sociedade, deixando terreno para que as grandes corporações tomem de assalto as economias destes municípios, apresentando-se como a única alternativa de âncora econômica, e de “ajuda ao desenvolvimento”.
Não interessa também aos governos, pois essa mesma condição arremessa para fora da arrecadação municipal gorda fatia dos repasses de valor fiscal agregado, ao mesmo tempo em que saca dos municípios
a capacidade de investimentos estruturais com recursos do próprio orçamento. Este pacto sinistro, permissivo à clandestinidade, é uma cilada que
condena o conjunto destes municípios rurais a um processo crescente de
empobrecimento e a uma participação cada vez menos significativa no
produto regional, acentuando o desaquecimento da economia.
O desafio a ser enfrentado, enquanto questão pública, é traçar
estratégias e um conjunto articulado de políticas, desde a esfera municipal, para um processo gradual e crescente de inclusão dessas cadeias e
redes de negócios na suas cercanias, criando as condições de ajuste à
legislação fiscal e sanitária. Além disso, políticas de criação de fundos de
financiamento de longo prazo devem ser direcionadas, especificamente,
para estruturação dos circuitos econômicos protagonizados agricultura.
Por fim, este artigo chama atenção para a necessidade de
buscar soluções próprias no desenho de políticas e estratégias locais,
capazes de responder ao que a realidade efetivamente reclama e
menos a modelagens teóricas vindas de alhures, ou de modismos dos
circuitos da academia.
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223
224
7
PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: UMA
ALTERNATIVA CONSISTENTE DE
ESCOLARIZAÇÃO RURAL?
João Valdir Alves de Souza*
Mônica Alves Gonçalves**
1. Introdução
Este texto é o resultado de uma pesquisa realizada a partir
de uma experiência de extensão universitária, na Escola Família
Agroindustrial de Turmalina, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Inicialmente vista como um espaço de intervenção, uma vez que
havia demandas de diversas ordens (formação de monitores, produção de material didático, levantamento de acervo bibliográfico, ampliação da biblioteca), a experiência de organização da escola, em conformidade com o que prescreve a Pedagogia da Alternância, revelouse também um objeto privilegiado de pesquisa, uma vez que já havia
uma ampla história que suscitava vários questionamentos. São eles:
diferente estrutura organizacional e administrativa em relação à escola
convencional; aposta em um modelo pedagógico que pretende permitir
uma formação, ao mesmo tempo, totalizadora em relação a uma determinada concepção de sociedade e individualizante em relação a
uma determinada concepção de personalidade; e, sobretudo, a apresentação de uma alternativa de escolarização adequada às vicissitudes do meio rural (esvaziamento demográfico, dificuldade de realização de transporte escolar, inadequação do calendário agrícola ao calendário escolar convencional) e a um ambiente ainda não totalmente
submetido à lógica da divisão técnica e intelectual do trabalho.
Dessa forma, constituiu objeto deste trabalho um exercício mais amplo de reflexão sobre os indicadores demográficos
*Professor de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da UFMG.
**Licenciada em Pedagogia pela UFMG.
225
e socioeconômicos da região nordeste de Minas Gerais, onde estão concentradas as Escolas Famílias Agrícolas mineiras, com
base nos postulados filosóficos e pedagógicos da alternância e
sobre suas possibilidades e seus limites, considerados os fatores
observados na Escola Família Agroindustrial de Turmalina (EFAT).
O principal fator que levou à análise da experiência realizada pela Pedagogia da Alternância foi a ênfase com que vários interlocutores locais se referiram à função social dessas escolas, seu caráter inclusivo, sua dinâmica democrática e sua proposta de compromisso com o desenvolvimento local sustentável.
Dessa forma, os principais objetivos da pesquisa foram:
- Analisar os significados da alternância e a relação
entre escola e comunidade, a partir do estudo do caso
particular da escola sediada em Turmalina;
- Situar o contexto histórico de fundação da escola,
tendo em vista os sujeitos ou movimentos sociais que
tiveram maior expressividade neste processo;
- Identificar as entidades parceiras que contribuem para
a manutenção e funcionamento da escola;
- Analisar a adequação das práticas observadas no cotidiano da escola ao projeto pedagógico da
alternância.
Quanto aos procedimentos de pesquisa, foram combinadas várias abordagens, como a leitura da bibliografia pertinente
ao tema, particularmente o material publicado em decorrência de
dois Seminários Internacionais (1999 e 2002), a análise de relatórios e da documentação disponível na escola (Estatuto da Associação de Apoio e o Regimento Interno da escola), a observação
direta e entrevistas com alguns atores (pais, monitores, alunos e
ex-alunos) que ocupam lugares estratégicos na organização da
rede escolar.
226
2. Origens da Pedagogia da Alternância
As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) originaram-se das
Maisons Familiales Rurales da França. Toda a bibliografia consultada destaca a iniciativa de três agricultores e um padre de
uma comunidade rural do sudoeste da França, quando se confrontaram com a situação de um adolescente de 14 anos que se
recusou a ir à escola convencional. Como resultado do debate
que se seguiu, foi criada, em 1935, a primeira Maison Familiale
Rurale (MFR) de que se tem notícia. Segundo essa bibliografia,
os princípios que orientaram a construção da identidade do movimento das MFRs, nesse período de criação e expansão, podem
ser assim resumidos:
- A constituição de uma associação de pais responsáveis
por todas as questões relativas à escola, da demanda
por sua criação às condições de funcionamento;
- A alternância de etapas de formação entre a Maison
Familiale e a propriedade familiar como princípio
norteador da prática pedagógica;
- A composição de pequenos grupos de jovens (de 12 a
15), sob a responsabilidade de um monitor, como possibilidade de aplicação dos princípios pedagógicos da
alternância;
- A formação completa da personalidade, dos aspectos
técnicos aos morais e religiosos, como pressuposto fundamental do ideal de educação a ser perseguido;
- O desenvolvimento local sustentável como horizonte a
nortear a relação entre as pessoas e o meio ambiente
que habitam.
Os agricultores pioneiros, que levaram adiante a constituição das Maisons Familiales Rurales, estavam preocupados em criar
estratégias de desenvolvimento para sua comunidade, ao mesmo tem227
po em que se preocupavam com um tipo de educação diferenciada
para os jovens de seu vilarejo. Eles imaginaram um tipo de escola
que seus filhos não rejeitariam, porque ela iria atender às suas reais
necessidades. Assim, eles pensaram em criar uma estrutura de formação que seria da responsabilidade dos pais e das forças sociais
locais, em que os conhecimentos a serem adquiridos seriam encontrados na escola, mas também na vida cotidiana, na família, na comunidade, na vila.
No começo, a escola funcionou com quatro jovens. Pouco tempo depois já eram 40. Após a segunda Guerra Mundial a
experiência foi divulgada pela França, constituindo-se os Centros
Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs), que foram reconhecidos pelo governo francês em 1960. Na década seguinte, os
CEFFAs se estabeleceram em outros países europeus (Itália,
Espanha, Portugal), no continente Africano, na América do Sul, no
Caribe, na Polinésia, na Ásia e, em seguida, na Província de Quebec,
no Canadá (GIMONET, 1999). Em cada localidade para onde a
experiência foi levada foram feitas adaptações em decorrência das
circunstâncias locais.
No Brasil, a primeira experiência educativa baseada nos
CEFFAs se deu no Espírito Santo, em 1968, com a criação da Escola
Família Agrícola de Olivânia, no município de Anchieta. O movimento das EFAs nesse Estado se constituiu sob influência das Escolas
Famílias Agrícolas Italianas, sendo liderado pelo padre Jesuíta
Humberto Pietrogrande e pelo Movimento Educacional e Promocional
do Espírito Santo – MEPES. Preocupadas com a crise econômica e
social por que passavam os agricultores do sul do Espírito Santo, na
década de 60, as lideranças do movimento assumiram para si a tarefa de construção das EFAs no Estado.
A partir da experiência pioneira do Espírito Santo, as EFAs
foram se expandindo para outros estados brasileiros, como a Bahia
(estado com maior número de escolas atualmente), Ceará, Piauí,
Maranhão, Rio Grande do Norte, Rondônia, Amapá, Goiás, Santa
Catarina e Minas Gerais. As primeiras Escolas Famílias Agrícolas
do Brasil eram caracterizadas como escolas informais, com cursos
228
livres e de duração de dois anos (BEGNAMI, 2002). Seus objetivos
principais eram permitir a formação técnica de agricultores, incentivar a permanência dos alunos no local de origem e incentivar o incremento de novas tecnologias no seu meio. Além disso, diz Begnami
(2002), essas escolas pioneiras do Brasil se preocupavam com a
formação humana e cidadã e com o engajamento social e político
dos alunos nas suas comunidades e nos movimentos sociais. Posteriormente, a “fixação do homem ao campo” deixou de ser um lema da
escola, sendo substituído pelo lema “formação para a liberdade”.
Com a expansão das Escolas Famílias para outras regiões,
surgiu a necessidade de criar uma entidade que pudesse garantir a
unidade da proposta pedagógica da formação por Alternância, articular e unir as escolas na busca de soluções para seus problemas
comuns e fortalecer seu projeto político de se constituir como alternativa viável à escolarização de populações rurais. Foi criada, então,
a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil, a
UNEFAB, instituída por ocasião da primeira Assembléia Geral das
EFAs do Brasil, realizada em 1982. Segundo a UNEFAB, atualmente estão em funcionamento cerca de 200 EFAs (há outras 40 em
fase de implantação), onde trabalham 850 monitores, beneficiando
cerca de 20.000 alunos e 100.000 agricultores. Essas escolas já formaram mais de 50.000 jovens dos quais mais de 65% permanecem
no meio rural, desenvolvendo seu próprio empreendimento junto às
suas famílias ou exercendo vários tipos de profissão e de liderança1 .
Em Minas Gerais, segundo a Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas (AMEFA), a implantação das primeiras
experiências de escolarização em conformidade com a Pedagogia
da Alternância esteve relacionada com o movimento social e eclesial
no final dos anos 70 e início dos anos 80. Essa foi uma época de
reestruturação e/ou criação de vários Sindicatos de Trabalhadores
Rurais e formação de vários outros movimentos de organização dos
agricultores na luta pela terra e na tentativa de reação da agricultura
familiar ao processo de submissão da exploração agrícola ao capital
internacional (AMEFA, 2004).
1
Informações disponíveis em: <www.unefab.org.br>. Acesso em 25 jul. 2007.
229
A primeira Escola Família Agrícola de Minas Gerais foi
criada na cidade de Muriaé, em 1984. A partir de então, numa
tentativa de resposta ao histórico abandono e esquecimento de
que os agricultores se ressentiam, foram sendo implantadas outras unidades em diversas regiões do estado, por iniciativas de
grupos diversos que objetivavam promover o desenvolvimento do
meio rural, através de alternativas de ensino e profissionalização
dos filhos de agricultores familiares. Atualmente, existem 15 EFAs
em 14 localidades do estado de Minas Gerais, grande parte delas
na mesorregião do Jequitinhonha/Mucuri. (Ver quadro 1, em anexo.) Essas EFAs estão organizadas em torno da AMEFA, que foi
instituída como entidade civil sem fins lucrativos em 24 de julho
de 1993.
A AMEFA foi criada para atender às necessidades da
formação do quadro de monitores, diretores e supervisores pedagógicos das EFAs e prestar assessoria aos dirigentes das associações locais e administração da sua expansão no âmbito do estado
de Minas Gerais. Sendo assim a AMEFA tem como principal missão ser um espaço de discussão, aprofundamento e promoção de
propostas alternativas de aprimoramento da formação por
alternância, para melhor atender as necessidades dos jovens e do
seu meio, na perspectiva de um desenvolvimento integral e sustentável das pessoas e do meio rural, numa perspectiva de fortalecer a
agricultura familiar, promover a inclusão social e melhorar as condições de vida no campo em Minas Gerais (AMEFA, 2004, p. 70).
3. Proposta Pedagógica
Segundo Pedro Puig Calvó, uma Escola Família Agrícola é
uma associação de Famílias, pessoas e instituições que buscam solucionar a problemática comum da evolução e do desenvolvimento local através de atividades de formação, principalmente dos jovens,
sem entretanto excluir os adultos (CALVÓ, 1999, p. 5).
Sendo assim, as EFAs têm quatro pilares que as caracterizam e as “sustentam”: as associações mantenedoras da EFA, a Pe230
dagogia da Alternância, a formação integral do aluno e o desenvolvimento local sustentável.
O primeiro desses pilares é a constituição de uma associação responsável pela EFA nos diversos aspectos: econômicos, jurídicos e gestão. As EFAs representam para as suas associações, não
um fim em si mesmas, mas um meio para alcançar o desenvolvimento local e coletivo (CALVÓ, 1999). Ou seja, através das EFAs suas
associações podem atuar em projetos e atividades que favoreçam o
desenvolvimento local ao mesmo tempo em que se propõem a formar as futuras gerações que vão dar continuidade ao projeto.
Esse primeiro pilar é condição necessária à formação e
manutenção de uma EFA, porque sua existência se vincula a uma
organização local de base participava, em que a associação das famílias, as comunidades, as instituições locais, os profissionais do setor são os responsáveis pela gestão e pelo desenvolvimento local.
Essas associações não devem se confundir com as tradicionais associações de pais e mestres, que, de modo geral, existem para dar
apoio externo à escola na qual estudam seus filhos. Elas são a condição apriorística da existência da EFA; esta deve consistir em uma
organização de base democrática e participativa, composta por pais
e outros atores comunitários, que tenham como principal objetivo a
promoção do desenvolvimento local.
O segundo pilar que caracteriza e sustenta uma Escola
Família Agrícola é a adoção de uma proposta pedagógica específica:
a Pedagogia da Alternância. No sentido geral, alternância significa,
segundo Calvó, um “conjunto dos períodos formativos que se repartem entre o meio sócio profissional (seja na própria família ou na
empresa) e a escola. Isto sempre dentro de uma interação educativa
escola-meio” (CALVÓ, 1999, p. 17).
Lourdes Helena da Silva (2003) também compartilha dessa definição de alternância elaborada por Calvó. Ela entende
alternância como estratégias de escolarização que possibilitam aos
jovens que vivem no campo conjugar a formação escolar com as
atividades e tarefas na unidade produtiva familiar, sem desvincular231
se da família e da cultura do meio rural. Daí a importância da Escola
Família Agrícola como uma alternativa de escolarização desse público, uma vez que possibilita ao aluno ter acesso à escola, ao mesmo
tempo em que permite a ele permanecer junto à família, à sua cultura
e às atividades produtivas (SILVA, 2003).
Para entender melhor em que consiste essa proposta pedagógica nas experiências das EFAs, Calvó recortou de dois autores, G. Malglaive e Gil Bougeon, a discussão sobre os “sentidos” da
alternância, sentidos esses que aparecem reproduzidos em grande
parte da bibliografia consultada.
Segundo Calvó (1999), Malglaive distingue três tipos de
alternância. Há a “falsa alternância” na qual não se estabelece nenhuma relação entre a formação acadêmica e as atividades práticas.
Há a “alternância aproximada”, que tem organização didática que
une os tempos e espaços de formação, dando-lhes certa coerência.
Contudo, nessa perspectiva de alternância, são utilizados modelos de
observação e análise da realidade na qual os jovens terão que trabalhar sem que, no entanto, lhes sejam oferecidos meios para atuar
sobre ela de modo a modificá-la intencionalmente. Já a “alternância
real” é aquela que almeja uma “formação teórica e prática global,
permitindo que o formando construa o seu próprio projeto pedagógico, coloque-o em prática e efetue uma análise reflexiva sobre si
mesmo” (CALVÓ, 1999, p. 19).
O outro autor citado por Calvó (1999), Gil Bourgeon, apresenta uma discussão semelhante à de Malglaive. Para Bourgeon a
“alternância justaposta” intercala diferentes períodos entre as atividades e os diferentes lugares, o trabalho e o estudo sem nenhuma
relação aparente entre eles. Já a “alternância associativa”, associa
formação profissional com a formação geral. As instituições que as
constituem tentam organizar uma única formação nas atividades teóricas e práticas, dentro de um mesmo programa. Mas o sentido
pleno da alternância está no que ele chama “alternância copulativa”,
um processo no qual acontece uma compenetração efetiva entre os
meios de vida sócio-profissional e escolar, numa unidade integrada
de tempo formativo. Não consiste, então, em uma sucessão de tem232
pos chamados teóricos e outros chamados práticos – mesmo se
estes se encontram no plano didático. Consiste, sim, num processo
de interação entre os diversos momentos de atividades, pois nesse
tipo de alternância há uma estreita conexão entre todos os elementos do âmbito educativo, sejam eles pessoais ou institucionais, individuais ou coletivos, da esfera da luta pela sobrevivência ou do
investimento na formação.
A partir da análise desses autores, Calvó (1990) constrói
seu próprio conceito de alternância, que ele reivindica como o que
deve ser perseguido por todos aqueles que se ocupam da EFA. Ele
chama a isso de “alternância interativa”, pois nela, existe uma verdadeira colaboração, co-gestão, co-habitação, co-ação, onde o meio
profissional intervém na escola e esta intervém no meio, com intervenções na educação-formação do aluno pela alternância que não
se limita a um ou dois atores, mas se estendem a toda a complexidade do mundo que envolve a vida do formando (família, amigos, trabalho, economia, cultura, escola, política) (CALVÓ, 1999, p. 19).
Como se percebe pela discussão dos autores, o sentido
da Pedagogia da Alternância ainda está sendo construído, uma vez
que se trata de experiência educativa relativamente nova, se comparada ao modelo convencional de escolarização. Assim, as pesquisas e os contornos teóricos sobre esse tema ainda estão em
emergência e em fase de consolidação. O que é preciso verificar é
em que medida esses postulados são efetivamente transpostos para
a prática, uma vez que, como se sabe, entre uma e outra há as
mediações a serem construídas a partir dos elementos de que cada
comunidade dispõe.
O terceiro pilar que dá sustentação a uma EFA e a caracteriza como tal é a formação integral da pessoa, de modo a lhe
permitir o desenvolvimento pleno da personalidade e a capacidade
de construir seu projeto de vida. Essa “formação integral da pessoa” diz respeito a tudo aquilo que pode enriquecer a sua constituição como indivíduo, considerando todos os elementos que se referem ou interferem na aprendizagem, como a organização escolar, a
formação dos profissionais que nela atuam, a configuração social,
233
as representações vigentes no meio, o projeto de vida de cada um,
as condições socioeconômicas da família e da comunidade etc.
A formação do jovem pela alternância implica o seu
envolvimento em atividades produtivas, de maneira a relacionar suas
ações com a reflexão sobre o porquê e o como das atividades desenvolvidas (SILVA, 2003). Ou seja, essa formação busca a interação
entre as atividades práticas e a reflexão teórica sobre elas. Nessa
perspectiva educativa, o jovem deve ser o protagonista de sua própria formação (GIMONET, 2005). Ele deve analisar quais conteúdos são relevantes para seu desenvolvimento pessoal e social. A atenção personalizada é importante nesse processo de formação, pois a
tutoria, o diálogo para revisão do caderno da realidade, as visitas às
famílias e às comunidades são alguns dos procedimentos didáticos
utilizados para atingir o objetivo da formação integral do aluno.
Por último, o quarto pilar que caracteriza e sustenta uma
Escola Família Agrícola é a sua preocupação com questões voltadas
para o desenvolvimento local e sustentável. A busca constante das
EFAs em promover o desenvolvimento nas comunidades locais é
uma das suas principais características, pois foi este desejo de desenvolvimento local que fez as experiências educativas pautadas na
Pedagogia da Alternância surgirem na França e expandirem-se para
outros países.
O desenvolvimento do meio no qual está inserida uma EFA
resulta da interação de diferentes atores (FORGERD, 1999, p. 64).
A interação desses atores é concretizada dentro de dimensões humanas, econômicas, sociais, culturais, ambientais, numa perspectiva
global. Sendo assim, a partir da interação dos sujeitos, quando eles
têm interesses individuais em comum, são conduzidas ações de desenvolvimento de competências, de atitudes, de comportamentos para
um bem estar econômico e social melhor para todos que vivem nesse meio (FORGERD, 1999). Portanto, quando os atores de um determinado contexto compartilham interesses de desenvolvimento em
comum, eles podem utilizar as EFAs como espaço de socialização de
suas idéias e como lugar de partida para as ações e concretização
dessas idéias.
234
Apesar de já estar bastante consolidado no discurso e na
prática de organizações não governamentais, de movimentos sociais
diversos e, mais recentemente, na mídia, a discussão em torno da
sustentabilidade parece ainda estar longe dos projetos pedagógicos
da escola convencional. Se essa é uma afirmação correta, é certo
também, que a centralidade que as EFAs dão ao debate sobre desenvolvimento sustentável as distinguem de todas as outras. A União
Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (UNEFAB), assim como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (PRONAF) e o Conselho Nacional dos Sistemas Estaduais
de Pesquisa Agropecuária (CONSEPA) são entidades que não apenas apostam no desenvolvimento da agricultura familiar, mas, sobretudo, reivindicam que ela se constitua na perspectiva da
sustentabilidade. Por essa perspectiva, todo empreendimento na localidade deve ser economicamente viável, socialmente justo e
ambientalmente correto.
A proposta de desenvolvimento sustentável da UNEFAB
vem sendo construída com organizações não governamentais, sindicatos, pastorais e outras entidades, as quais compartilham os seguintes princípios:
- Assentar-se na pequena produção familiar como base
da organização social e técnica da produção agrícola;
- Dar prioridade para a segurança alimentar;
- Promover livre e democrática organização dos agricultores e das agricultoras;
- Organizar-se em sistemas descentralizados de
beneficiamento e comercialização;
- Praticar uma agricultura que garanta a sobrevivência
das populações atuais sem comprometer as condições
de atendimento às gerações futuras;
- Estabelecer princípios de equidade na distribuição dos
benefícios.
235
4. Relações com a Agricultura Familiar
A agricultura familiar tem capacidade de absorver grande
quantidade de mão de obra e responde por quatro em cinco empregos gerados no meio rural. Além disso, ela se torna um dos elos
fundamentais na modernização da agricultura, por ter a flexibilidade
de adaptação a diferentes processos de produção e gerar várias fontes de renda (CONSEPA, 2004).
Apesar de contar com algumas regiões industriais (Metropolitana de Belo Horizonte, Zona da Mata e Vale do Aço), Minas
Gerais é um estado eminentemente agrícola. Apesar também da forte marca da atividade mineradora, a produção agrícola está na base
das referências culturais no Estado: de um total de 853, “516 municípios mineiros têm uma população que não ultrapassa 10 mil habitantes e nessas localidades o urbano e o rural se confundem, pois suas
relações, além de estreitas são dependentes” (AMEFA, 2004, p. 11).
Segundo o CONSEPA, a grande capacidade da agricultura familiar em absorver mão de obra a transforma em uma alternativa socialmente desejada, economicamente produtiva e politicamente
correta para fazer frente a grande parte dos problemas sociais urbanos derivados do desemprego e da descontrolada migração na direção campo-cidade. Assim, investir no conhecimento da e para a
agricultura familiar, significa – para o CONSEPA – “resolver” o problema da migração campo-cidade e os problemas decorrentes dela.
Para o CONSEPA a agricultura familiar está agrupada em
três modelos:
- A agricultura familiar consolidada que constitui 27%
dos estabelecimentos familiares integrados ao mercado,
com acesso a inovação tecnológica e a políticas públicas
(a maioria funcionando em padrões empresariais);
- A agricultura familiar em transição que é constituída
por 24% dos estabelecimentos familiares, aproximadamente, os quais têm acesso parcial aos circuitos de inovação tecnológica, não têm acesso à maioria das políti236
cas públicas e programas governamentais e não estão
consolidados como empresas, mas possuem potencial
para sua viabilização econômica.
- Já a agricultura familiar periférica, constituída por
49% dos estabelecimentos rurais, é caracterizada pela
fragilidade de sua infra-estrutura, e cuja integração produtiva à economia nacional depende de fortes e bem
estruturados programas de reforma agrária, crédito,
pesquisa, assistência técnica e extensão rural,
comercialização, dentre outros (CONSEPA, 2004).
O desenvolvimento e a sustentabilidade da agricultura familiar, nos três modelos citados acima, em especial o modelo da agricultura familiar periférica, tem sido afetados por diversos fatores.
Um deles, apontado pelo CONSEPA é a dificuldade de acesso dos
agricultores familiares à escolarização. Essa dificuldade de acesso à
educação formal dificulta que os agricultores familiares compreendam a razão de muitos de seus problemas e limita sua participação
nos processos de busca de soluções para o desenvolvimento rural
sustentável.
Dessa forma, as Escolas Famílias Agrícolas aparecem
como uma alternativa viável para o desenvolvimento rural, porque
elas visam justamente contribuir para o desenvolvimento sustentável, através do trabalho das associações das escolas, em projetos
coletivos, que viabilizem o desenvolvimento da instituição, dos alunos, da comunidade e dos pequenos produtores. Elas podem contribuir para o desenvolvimento do campo, porque atuam na formação
teórica e prática dos educandos, respeitando a sua cultura e seu meio,
de forma que eles tenham conhecimentos técnicos e filosóficos que
os favoreçam desenvolver a comunidade, bem como a si mesmos,
pois “não há desenvolvimento de uma pessoa se a sua comunidade
não se desenvolve” (UNEFAB, 2002, p. 25).
É importante ressaltar que as EFAs não atuam somente na
237
formação dos alunos, mas também dos familiares, uma vez que são
parte constitutiva da proposta pedagógica da alternância. Desse modo,
recriam valores, aprendem novos sentidos e significados pela luta e
trabalho na terra e novas relações sociais de produção, por meio das
discussões e atividades na e fora da escola e nos encontros de formação entre pais e alunos, diretores, monitores e outros dirigentes do
movimento das EFAs.
5. AExperiência da Escola Família Agroindustrial de Turmalina
O município de Turmalina está localizado no alto
Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais. Seu território abrange uma
área de 1.151 km², onde residia, em 2000, uma população de 15.655
habitantes, dos quais 37% no meio rural.
Também no caso da Escola FamíliaAgroindustrial de Turmalina
destaca-se a participação ativa de um padre e seu trabalho de mobilização
das comunidades. Esse padre, um italiano que vivia na região desde os
anos 1960, juntamente com lideranças do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, em 1994, apoiou a criação do Centro de Agricultura Alternativa
Vicente Nica (CAV), uma organização não governamental que se constituiu em função da defesa da agricultura familiar e das propostas do
desenvolvimento regional sustentável. O Centro presta assessoria aos
pequenos agricultores, desenvolvendo novas técnicas de produção e
comercialização de produtos excedentes.
Apesar desse trabalho de mobilização e de efetiva organização comunitária, essa EFA nasceu mais da ação direta do poder
público municipal, por iniciativa do então secretário municipal de educação, que da demanda específica de alguma entidade civil organizada. E aí está certamente um dos maiores limites ao efetivo funcionamento em conformidade com os postulados pedagógicos da
alternância, isto é, aquilo que tem sido designado como
“prefeiturização” das experiências das EFAs.
A administração municipal do período de 1997 a 2000 apoiou
amplamente as atividades do CAV e, por extensão, as iniciativas de
238
que ele se constituía como parceiro. Nesse período, a Secretaria
Municipal de Educação ampliou políticas educacionais para o município com o objetivo de universalizar o ensino. Como uma das medidas utilizadas para alcançar esse objetivo, a Secretaria adotou o projeto de nucleação escolar, que conseguiu atender grande parcela
da população escolarizável. Além disso, a secretaria criou cursos de
alfabetização para adultos que atendia cerca de 185 alunos e ensino
supletivo de 1ª a 4ª série que atendia 124 alunos.
Mesmo com essas medidas, a administração municipal
não conseguiu atender à demanda de alunos das comunidades
mais distantes. Por um lado, o esvaziamento demográfico de vastas regiões rurais do município não justificava a manutenção de
uma escola em cada localidade. Por outro lado, o transporte diário dos alunos para as escolas nucleadas ou para as escolas da
sede municipal tornava-se oneroso, precário e perigoso. Na tentativa de resolver esses problemas a secretaria de Educação assumiu a proposta de criação e implantação da Escola Família
Agrícola para atender alunos em idade de cursar o segundo ciclo
do ensino fundamental (5ª a 8ª série).
Assim, a EFAT iniciou suas atividades no dia 12 de fevereiro de 1998, atendendo 125 alunos do ensino fundamental (5ª e 8ª
série). Posteriormente, a partir de 2001, passou a atender também a
alunos do ensino médio, passando a funcionar concomitante com a
Educação Profissional Básica em Agroindústria.
A escola foi implantada nas imediações da cidade, numa
área de 20 hectares, organizando-se a partir dos princípios filosóficos e metodológicos da Pedagogia da Alternância. Essa alternância
consistia em abrigar os alunos, em regime de internato, por rodízio
entre meninos e meninas, alternando a permanência deles a cada 15
dias entre a escola o local de moradia. Em outras palavras, durante
15 dias de cada mês, os alunos ficam na escola em período integral e,
nos outros 15 dias, eles voltam para a casa dos pais, onde realizam as
tarefas que lhes foram atribuídas como parte da responsabilidade da
família nesse processo educativo.
239
Às atividades teóricas somavam-se trabalhos práticos na
própria escola, como a produção de pães, o cultivo da horta, a produção de frutas (acerola, banana, maracujá, mamão, urucum, laranja,
figo), além de viveiro, apicultura, caprinocultura, suinocultura, avicultura. Realizavam, também, curso básico de informática, bordados,
corte e costura, dentre outras atividades (LACZYNSKI, 2000). Apesar da variedade de opções, logo verificaram-se os limites da proposta, uma vez que parte das atividades tinha que ser desenvolvida
em outros espaços por inexistência de equipamentos de informática,
por exemplo, ou a dificuldade de manter a padaria, a desidratação ou
a extração da polpa de frutas. Faltavam, ainda, recursos financeiros
para garantir o funcionamento e ampliar investimentos, o que a submeteu ao controle do poder público municipal quando deveria estar
sob a administração da Associação de Apoio à Escola Família
Agroindustrial de Turmalina (ASFAT).
O projeto original da Escola Família foi concebido em 1997,
mesmo ano em que foi implantado o projeto Criança 2000 para
adolescentes do meio rural de Turmalina. No Projeto Criança 2000
os adolescentes ficavam em regime de semi-internato, fazendo cursos de bordado, corte e costura, manicure e pedicure, artesanato em
palha, dentre outros, e freqüentavam as aulas do 2º ciclo do ensino
fundamental nas escolas estaduais da cidade (LACZYNSK, 2000).
Ao que tudo indica, a criação da Escola Família Agrícola foi
um desdobramento do projeto Criança 2000, o que levou a administração municipal a realizar o duplo papel de vincular este projeto ao da
Pedagogia da Alternância e convencer a população beneficiária de
que essa era uma boa alternativa de escolarização.A mobilização para
a criação da Associação Pró-Escola Família Agroindustrial de
Turmaliana foi, portanto, induzida pela administração municipal, o que
revelou outro limite da iniciativa: a necessidade do convencimento político dos vereadores para a aprovação da entrada da prefeitura na
iniciativa e o convencimento dos pais de alunos, reticentes em enviar
seus filhos para um “internato”, a princípio, misto.
O problema, nesse caso, não estava na boa intenção dos
administradores municipais, que pretendiam resolver pelo menos parte
240
do problema da evasão escolar ou da impossibilidade de esses alunos
ultrapassarem as primeiras séries de escolarização, seja pela falta
de escolas no local de moradia seja pela falta de transporte escolar
nas comunidades mais distantes. O problema estava na inversão de
um princípio básico da Pedagogia da Alternância que sustenta a necessidade de a iniciativa partir do público beneficiário, como expressão do seu desejo de ter acesso a uma escola diferenciada, que atenda aos interesses de seus alunos, que permita a reprodução da sua
identidade cultural e que não leve seus descendentes a engrossar as
rotas de migração campo/cidade.
Para além, portanto, das questões da esfera política e orçamentária estava o problema do convencimento dos agricultores de
que a Pedagogia da Alternância era, de fato, uma boa alternativa de
escolarização para seus filhos. Pode não ser difícil convencer os pais
de que não é possível manter uma escola próxima a sua moradia em
decorrência do esvaziamento populacional da localidade ou que o
transporte escolar é oneroso, perigoso e demorado (quando não impossível em decorrência das chuvas), mas não é fácil convencê-los
de que meninos e meninas podem conviver harmoniosamente em
uma escola em regime de internato. Essa desconfiança paterna somente foi apaziguada com a proposta da alternância em rodízio acima referida, isto é, enquanto os meninos estão ocupados das atividades escolares na escola, as meninas estão em casa e vice-versa.
Vencida essa primeira etapa, a seqüência se constituiu na
formação da Associação e no estabelecimento das parcerias, cuja
proposta era promover a adesão de todos os orgãos das três esferas
de administração (federal, estadual e municipal), de organizações
não governamentais e iniciativa privada. Essas parcerias foram importantes não apenas para a implantação da Escola, mas para a expansão do atendimento a alunos do ensino médio profissionalizante, o
que aconteceu a partir de 2001.
Ultrapasados os primeiros obstáculos relativos à implantação, restava fazer a escola funcionar em conformidade com os postulados da Pedagogia da Alternância. Do ponto de vista formal, a
proposta entra em sintonia com esses postulados, mas na prática os
241
limites logo se revelaram. Os objetivos da escola foram apresentados no seu Regimento Interno, Art 11. Dentre outros, destacam-se
os seguintes:
g) Estimular e apoiar agricultura familiar, buscando incorporar novas culturas economicamente viáveis e ecologicamente corretas;
h) Buscar alternativas econômicas no campo e na região,
procurando diminuir o êxodo do campo para as cidades
e da região para outras regiões;
j) Tornar a EFA um centro de referência, de promoção e
desenvolvimento do meio rural, criando espaços de atividades diversas para pais, mães, profissionais do compo
e ex-alunos;
n) Estimular nos jovens um processo de formação permanente para estarem atualizados frente aos desafios e
perspectivas do mundo moderno/ contemporâneo.
Além desses objetivos, a escola explicitou claramente
sua proposta pedagógica. A EFAT tem o seu Projeto Político Pedagógico organizado de acordo com os quatro pilares básicos que constituem as EFAs: a Associação, como princípio de participação e do
envolvimento das famílias e da comunidade; a Pedagogia da
Alternância, como estratégia de ação pedagógica mais eficaz, mais
apropriada à realidade do campo e profissionalização dos jovens rurais; a formação integral da pessoa humana, como proposta da ação
educativa; e o desenvolvimento rural sustentável, como meta a ser
alcançada no médio e longo prazos.
Fundamentando-se nesses quatro pilares, a EFAT organiza
seus recursos didáticos de acordo com essa linha pedagógica da
alternância, ou seja:
- Plano de Estudos – que são temas geradores para serem pesquisados em casa ou no meio, temas esses que
242
contaram com a partipação dos próprios alunos e das
famílias na sua elaboração;
- Colocação em Comum – o termo é impróprio, mas significa compartilhamento ou socialização, no tempo escola, dos resultados das investigações feitas pelos alunos no seu período de formação no tempo casa;
- Caderno da Realidade – trata-se do caderno de registro, ou fichário, que acumula as informações recolhidas
durante esse tempo em que permance em casa e suas
observações relativas ao debate estabelecido com os
colegas e o monitor no tempo escola;
- Caderno didático – é o material didático orientador,
norteador da ação do estudante; ele contém metodologia
própria e é elaborado a partir do Plano de Estudos,
reivindicando uma abordagem mais profunda de cada
uma das disciplinas;
- Visitas pedagógicas às famílias – trabalho do monitor,
que consiste em fazer da família uma parceira importante na formação do estudante da EFA. Sem o acompanhamento pedagógico da família um dos pilares do
projeto desmorona;
- Visitas técnicas às famílias – trabalho também do
monitor, que consiste em observar práticas do cotidiano
da família e promover intervenções;
- Caderno de acompanhamento – meio de comunicação
ente EFAT e a família, também utilizado como instrumento avaliação, que até pode substituir o boletim e o
diário escolar;
- Intervenções Externas – são palestras, cursos e seminários realizados a partir dos temas do Plano de Estudo;
- Estágios – aprendizagem pela prática do estudante em
local diferente daquele ao qual já está acostumado, como
243
a própria localidade em que vive;
- Projeto profissional – horizonte que deve nortear as
ações futuras e concretizar o plano de estudos e o exercício profissional.
Apesar disso, no entanto, a EFAT acabou se tornando
uma escola muito próxima às do sistema convencional. A luta daqueles que a querem independente é para que ela se constitua como
escola comunitária, pois assim ela poderá aprimorar os projetos
comprometidos com os postulados da Pedagogia da Alternância,
constituindo novas parcerias para financiar alguns dos projetos que
se deseja implantar na escola. Segundo o presidente e a secretária
da associação, a EFAT não consegue outros recursos financeiros
de ONGs, entidades governamentais e outros, por causa da
vinculação da escola com a prefeitura. Portanto, o título de escola
comunitária poderia permitir a ASFAT ampliar e desenvolver seus
projetos, através da adoção de novos parceiros para financiar as
atividades da escola e da comunidade. Além disso, a ASFAT teria
maior autonomia na gestão da escola, podendo desvincular-se das
indesejáveis influências político-partidárias a que inevitavelmente
se liga a administração municipal.
6. Conclusão
São muito variadas as experências concretas das EFAs e,
em muitos casos, os resultados são avaliados como muito positivos.
No caso em pauta, no entanto, os limites se revelaram bastante comprometedores e essa é uma adertência necessária para que se evite
uma expansão desordenada que jogue por terra a inovadora proposta de uma educação sntonizada com os interreses das pessoas do
meio rural.
Quais foram, então, os principais limites e desafios que a
escola enfrentou e continua enfrentando atualmente?
Um deles está no financiamento, o que faz da ASFAT, a
Associação mantenedora da escola, uma entidade que pouco poder
244
tem na condução de seus destinos. Como o financiamento é de responsabilidade da prefeitura, a adminsitração municipal tem ignorado
sistematicamente as especificidades do projeto pedagógico, submetendo, por exemplo, a escolha da direção aos mesmos mecanismos de
recrutamento político dos cargos de confiança e a escolha dos monitores
ao mesmo processo de escolha dos professores da rede convencional.
Daí decorrem outros problemas, como submeter o projeto
pedagógico a um corpo de profissionais que, em sua maioria, nunca
ouviram falar em Pedagogia da Alternância. Mesmo com os projetos
de formação de monitores, o que permite ampliar a qualificação de
pessoal, a cada ano todos eles entram na mesma fila geral de recrutamento do conjunto dos professores do município, o que significa
que monitores formados podem ir para outras escolas e a EFAT receba, mais uma vez, pessoal não qualificado para seu projeto. Além
disso, como a maior parte dos monitores não tem dedicação exclusiva, o tempo que eles deveriam dedicar às visitas pedagógicas e às
visitas técnicas às famílias é o mesmo que eles dedicam a outras
escolas convencionais onde atuam. Decorre daí que a EFAT é uma
associação de famílias, pessoas e entidades preocupadas com o problema do desenvolvimento rural e da educação integral dos filhos
dos agricultores, mas a prática se revela muito distante do projeto.
Mesmo que sejam superados esses limites políticoinstitucionais, há outros, entretanto, tão signficativos quanto complexos. Do ponto de vista didático-pedagógico a Pedagogia da
Alternância sustenta-se no eixo de formação família-escola. Mesmo
que todos os problemas da escola sejam solucionados, há os limites
próprios aos estudantes, às famílias, ao meio sociocultural e econômico no qual estão inseridos. Mesmo quando os monitores são qualificados para a tarefa, suas visitas pedagógicas e técnicas confrontam a condição real que ordena a vida dos estudantes e suas famílias: precariedade das condições de vida, necessidade da utilização da
força de trabalho dos jovens na reprodução da vida familiar, pouca
ou nenhuma escolaridade dos pais e/ou pouca ou nenhuma capacidade e/ou interesse dos pais em fazer sua contrapartida no projeto
pedagógico, dentre outros fatores.
245
Como foi dito, a região do Vale do Jequitinhonha caracteriza-se pelos baixos indicadores sociais e econômicos, o que leva grande
número de pais de família à migração, forçando ainda mais a entrada
das crianças e adolescentes na luta pela sobrevivência. Sem poder
dispor de tempo livre para o investimento na formação, mandar as
crianças de volta à casa apenas alivia a necessidade de mão-de-obra
familiar nas lides cotidianas. Sem dispor de tempo e/ou interesse
para estudar a proposta pedagógica juntamente com os filhos, os
pais não farão nada além do que fariam se os filhos estivessem numa
outra escola qualquer. Sem se predispor a mudar hábitos e costumes,
os pais apenas entrarão em conflito com monitores e com os próprios filhos quando, por ocasião das visitas técnicas, tiverem que confrontar o modo como agem com o modo como deveriam agir. Somem-se a isso as turmas grandes, as distâncias a serem percorridas
pelos monitores, as precárias condições das estradas de acesso às
comunidades distantes etc.
Dessa forma, ficam mais perguntas que respostas nesse primeiro investimento na tentativa de explicitar as possibildiade e limites
da Pedagogia da Alternância, na formação plena de cidadãos adaptados à vida no campo, profissionais aptos a promover o desenvolvimento regional sustentável. Não estaria a Pedagogia da Alternância reproduzindo os mesmos vieses idealistas que pretende combater ao pensar
sua praxis pedagógica? Não estaria ela sendo muito romântica ao propor um modelo pedagógico adaptável às circunstancias sem considerar o que as circunstâncias podem fazer ao modelo pedagógico? Como
abrir-se para atender às especificidades do meio sem comprometer os
fundamantos filosóficos e pedagógicos da alternância?
Não há dúvida de que se trata de experiência que não pode
mais ser desconsiderada em sua concepção, suas práticas e seus
efeitos, sobretudo, quando se busca uma alternativa de escolarização
adequada ao meio rural de regiões francamente subdesenvolvidas.
Mas é preciso ficar atento ao modo como várias experiências escolares estão ganhando forma em nome da Pedagogia da Alternância
para evitar que, ao invés de fortalecer a proposta, elas acabem por
desqualificá-la por inteiro.
246
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2000.
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247
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Alternância Educativa e Desenvolvimento Local - Nº 2 - 2004. Belo
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SILVA, L. H., As experiências de formação de jovens do campo –
Alternância ou Alternâncias? Viçosa: UFV, 2003.
UNEFAB. Pedagogia da Alternância: alternância e desenvolvimento. I Seminário Internacional, Salvador, nov. 1999.
UNEFAB. Pedagogia da Alternância: Formação em alternância e
desenvolvimento sustentável. II Seminário Internacional, Brasília, nov.
2002.
248
Anexo
QUADRO 1 – Distribuição e Abrangência
das EFAs em Minas Gerais
Fonte: Amefa, 2006.
249
250
8
DESMATAMENTO NA BACIA DO
MUCURI EM MINAS GERAIS:
CAUSAS HISTÓRICAS E PROCESSOS
RECENTES1
Miguel Fernandes Felippe2
Marcos Antônio Nunes3
Justine Bueno4
1. Introdução
Um dos elementos do quadro natural de maior susceptibilidade à ação antrópica é a vegetação. A ocupação humana em um
determinado espaço é, invariavelmente, precedida pela retirada da
cobertura vegetal. (GUERRA e MARÇAL, 2006) Assim, “o
desmatamento foi e continua a ser processo corrente para a ocupação inicial das terras”. (CHRISTOFOLETTI, 1995. p. 339).
A ocupação no interior do país, bem como o crescimento
das cidades e a reestruturação espacial ocorrida nas imediações urbanas contribuíram para a retirada da cobertura vegetal natural nas
diversas regiões brasileiras. Na bacia do Mucuri, o processo foi semelhante. A vegetação foi descaracterizada, restando somente algumas áreas esparsas de remanescentes florestais.
A cobertura vegetal chama atenção por sua grande importância para a sustentação do equilíbrio dos sistemas ambientais. As
plantas, por serem organismos autotróficos, são a base dos nichos
O Instituto de Geociências Aplicadas, vinculado à Secretaria de Estado de Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior do Governo de Minas Gerais, com o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), é o responsável pela
execução do projeto endogovernamental: “Diagnóstico Socioambiental da Bacia do
Mucuri em Minas Gerais: geohistória, (re)estruturações espaciais, desenvolvimento humano e econômico” – DEG 2338/07.
2
Geógrafo, Mestrando em Geografia e Análise Ambiental – IGC/UFMG.
3Geógrafo do Instituto de Geociências Aplicados, Mestre em Geografia e Organização do
Espaço-IGC-UFMG. Coordenador do “Projeto Mucuri”, supracitado.
4
Bolsista de iniciação científica e tecnológica do “Projeto Mucuri”, supracitado.
1
251
ecológicos terrestres, por isso promovem relações bióticas que sustentam a vida no planeta. (TROPPMAIR, 2004) Ademais, as características de solo, clima, hidrografia e outros elementos geossistêmicos
são fortemente influenciados pela cobertura vegetal.
Além disso, a vegetação influencia os processos
geomorfológicos, contribuindo para o modelado da paisagem. Ao diminuir a intensidade dos processos erosivos e proteger o solo da
ação das gotas de chuva, a vegetação também favorece a infiltração
das águas, que por sua vez alimenta o nível freático e, assim, mantém a dinâmica hidrológica. (THORNES, 1990) Da mesma forma
fornece matéria orgânica ao solo, o que propicia a conservação dos
ecossistemas. Desta maneira, pode-se afirmar que a vegetação é
um elemento substancial do geossistema, relacionando-se de forma
direta ou indireta a todos os outros, o que resulta na estruturação da
paisagem e na definição de sua qualidade ambiental. (PASSOS, 1998)
Com base na importância da vegetação e como esta é alterada ao longo do tempo, objetiva-se realizar um estudo espaço-temporal acerca da retirada da cobertura vegetal, na porção mineira da
bacia do rio Mucuri, a partir dos remanescentes florestais atuais.
Além dos elementos geohistóricos que influenciaram o desmatamento,
as últimas duas décadas foram priorizadas. A multiescalaridade dos
processos foi abordada em um segundo momento, alcançando, especificamente, cada sub-bacia.
O principal procedimento metodológico foi o mapeamento
dos remanescentes florestais na bacia do Mucuri nos anos de 1989 e
2008. A partir de técnicas de geoprocessamento, foi feita a seleção
de imagens dos satélites Landsat-5 e CBERS-2 e, posteriormente, o
georreferencia-mento, o tratamento das imagens e a vetorização
manual dos fragmentos de mata. Concomitantemente, foi realizada
uma pesquisa bibliográfica a respeito dos elementos históricos que
configuraram na espacialização atual da vegetação nativa. Deste
modo, permite-se uma aproximação aos processos pretéritos que
guiaram a reestruturação espacial na porção mineira da bacia do
Mucuri e, conseqüentemente, a retirada da cobertura vegetal.
252
2. Caracterização geográfica da bacia do Mucuri:
A bacia do Mucuri drena os estados de Minas Gerais e
Bahia. A porção mineira, foco do trabalho, engloba total ou parcialmente o território de 16 municípios. Hidrograficamente é formada
pela confluência dos rios Mucuri do Sul, cujas nascentes estão no
município de Malacacheta, e Mucuri do Norte, com nascentes no
município de Ladainha. A área de estudo é de aproximadamente 14
mil km², composta por 30 sub-bacias de primeira ordem, além de
uma infinidade de pequenos canais conectados diretamente ao rio
principal.
Os climas predominantes são semi-úmidos a úmidos, com
variação do quente ao subquente. Apresenta períodos de seca de
quatro a cinco meses na porção nordeste-sudoeste e de um a três
meses no centro-leste, com temperaturas variando, em média, de 15
a 18 graus centígrados. (IBGE, 2002) Como principais litologias, destacam-se rochas ígneas de composição félsica e máfica de diferentes períodos geológicos, localizadas próximas a rochas que sofreram
metamorfismo em médio grau, correspondendo ao gnaisse. (CPRM,
2004) Pedologicamente, a bacia apresenta diversos tipos de solos,
em que se destacam, como principais, os Argissolos (PA Distrófico,
PV Eutrófico, PVA Distrófico) e Latossolos (LA Distrófico, LVA
Distrófico). (IBGE, 2001)
A vegetação original, composta majoritariamente por Florestas Estacionais (IBGE, 2004), foi ao longo do tempo altamente
degradada, restando somente algumas porções com remanescentes
florestais, ainda que estes estejam descaracterizados. As poucas áreas de matas existentes estão em grande parte ilhadas em meio a
pastagens e cultivos.
O espaço agrícola é configurado em grande parte por pequenos cultivos excetuando-se a plantação de cana e eucalipto na
porção centro-leste. A cobertura predominante corresponde à pastagem, constantemente associada à silvicultura. As pequenas propriedades, provavelmente de agricultura familiar, localizam-se principalmente na porção nordeste-sudoeste.
253
As principais economias da bacia são os municípios de
Teófilo Otoni, Carlos Chagas e Nanuque, porém, o crescimento econômico da bacia tem sido, nos últimos anos, abaixo da média estadual, o que tem estimulado a emigração. De acordo com dados do
IBGE (2007), a maior população municipal pertence a Teófilo Otoni,
com 126.895 habitantes, no outro extremo está o município de
Umburatiba, com apenas 2.776. Ademais, a região é relativamente
pobre, com indicadores econômicos e sociais variando de médio a
baixo grau. (PNUD, 2000)
3. Geohistória e desmatamento: atividades econômicas no
contexto dos impactos ambientais na Bacia do Mucuri
Os pesquisadores que se dedicam à historiografia mineira
estão inteirados da escassez de estudos relacionados à bacia do
Mucuri. Muitas vezes, ela é abordada de forma integrada com as
áreas circunvizinhas, notadamente o Jequitinhonha. Em particular,
apontar com exatidão fatos e épocas que influenciaram o
desmatamento na bacia torna-se um desafio hercúleo. Entretanto,
pelo menos dois importantes fatores permitem realizar uma
periodização que possa contribuir para o estudo da geohistória do
Mucuri: o primeiro e o mais importante é o período que compreende
a atuação da Companhia do Mucuri; e segundo, a instalação da Estrada de Ferro Bahia e Minas.
A bacia do Mucuri foi uma das primeiras regiões brasileiras a ser percorrida pelos bandeirantes, no entanto, uma das últimas
a conhecer a civilização. Dois importantes fatores contribuíram para
que ela fosse desbravada: sua proximidade com a Costa do Descobrimento e a curiosidade dos colonizadores à procura do ouro e das
pedras preciosas. Com esse intuito, algumas expedições cruzaram a
região, sendo a primeira a de Martins Carvalho, por volta de 1550.
Presume-se que ele percorreu o caminho dos índios, por onde entravam os portugueses, vindos de Porto Seguro. Mais tarde, em 1573,
foi a vez de Sebastião Fernandes Tourinho; e, em 1580, a de Antônio
Dias Adorno. Todavia, somente no século XVII que o primeiro propri254
etário se fixou na região, João da Silva Guimarães, dedicando-se às
lavouras. (IBGE, 1959)
Contudo, foi através de Teófilo Benedito Otoni que o Mucuri
tornaria alvo de interesses econômicos mais relevantes. Filho de
tropeiro, Otoni conhecia os empecilhos relacionados à produção e ao
abastecimento das regiões setentrionais da província mineira, por isso
reivindicava: “vias de comunicação!” (DUARTE, s.d., p. 3) Em 1847,
foi fundada a Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri para
explorar o leito do rio, que proveria um caminho mais curto até o
Oceano Atlântico. O Vale do Mucuri faria a conexão entre o litoral e
o norte da Província de Minas. A região a ser beneficiada pela ligação com o mar era uma grande produtora de algodão: Minas Novas.
(DUARTE, s.d., p. 9)
Para isso, Otoni contou com o incentivo do governo imperial e do governo da província de Minas Gerais, inclusive para a utilização de mão-de-obra estrangeira, já que era contrário à escravidão. No entanto, para que o seu projeto fosse adiante, era preciso
vencer os perigos da mata e apaziguar os índios botocudos, para que
o primeiro vapor percorresse as águas do Mucuri.
3.1. Colonos, extrativismo vegetal e produção de café
Antes mesmo da colonização, a bacia do Mucuri já era
cobiçada tanto pela fertilidade de suas terras quanto pela sua exuberante natureza, o bioma da Mata Atlântica; caracterizado pela abundância hídrica e densas matas. Ao negociar com os índios o acesso
ao mar, Otoni iniciava ali um longo período de colonização estrangeira5 da bacia, que resultaria na primeira atividade econômica de grande importância: o extrativismo vegetal.
Aproximando-se das populações indígenas de forma nãoviolenta, Otoni conseguiu penetrar nos territórios habitados pelos
A preferência de Otoni em “germanizar o Vale do Todos os Santos” ficou explícita no
Relatório aos Acionistas, da Companhia de Navegação do Mucuri. (DUARTE, 2002a,
p. 35-36)
5
255
botocudos e obteve deles a permissão para empreender a construção das estradas, a criação de fazendas e, mesmo, a fundação da
freguesia de Filadélfia, atual cidade de Teófilo Otoni. Na floresta, os
conquistadores passaram a buscar madeira para construções e lenha para as casas, desflorestando e realizando queimadas em largas
áreas para o plantio agrícola ou pastagem dos animais de carga e
transporte. (DUARTE, 2002b)
À medida que o desmatamento avançava, o Mucuri transformava-se em “roça de tocos”.6 Queimava-se para o plantio e depois se colhia algumas safras. A fertilidade das terras logo se esgotava. Depois eram destinadas a pastagens. A relativa abundância de
terras permitiu que esse ciclo vigorasse por longo tempo no Mucuri.
Tais práticas conduziriam, irremediavelmente, à exposição contínua
dos solos. Isso porque os colonos utilizavam formas tradicionais de
cultivo, e não havia o emprego de técnicas, tais como plantio em
nível, rotação de culturas, preservação das matas de topos, etc.
A colonização pioneira, ao aproveitar as áreas mais aplainadas e adjacentes às calhas dos rios Todos os Santos e Mucuri, estendeuse de oeste a leste, no sentido da estrada que ligava Filadélfia (atual
Teófilo Otoni) a Santa Clara (Nanuque). À medida que a civilização
avançava, a biodiversidade declinava. Os animais que povoavam a mata
e serviam de caça aos índios e colonos não resistiriam ao avanço da
civilização. É razoável afirmar que, desprotegidos, índios e animais recuavam para os remanescentes mais remotos da presença do colonizador.
Enquanto a existência das matas garantia matéria-prima
para as serrarias e produção de madeira para a construção de casas,
os espaços conquistados junto às florestas assegurariam a extensão
da agricultura de subsistência e da principal lavoura que alvoreceu
com a colonização do Mucuri: o café.
Atribui-se o início do cultivo de café no Mucuri a Maria
Rosalina de Oliveira, filha de um dos amigos de Teófilo Otoni que
6
“A lavoura começa a ser feita com derrubada de mata; depois vem a queima dos troncos
e plantio intercalado entre os tocos remanescentes: daí vem o nome roça de tocos, ou de
coivara, denominação dada à lenha empilhada para queimar” (RIBEIRO, 2000, p. 187).
256
vieram habitar Filadélfia. Em 1853, duas mudas de café foram plantadas às margens do rio Todos os Santos, na Fazenda Paraíso. Porém, os primeiros grandes cafeicultores em Filadélfia foram colonos
estrangeiros, que produziam para exportarem para o Rio de Janeiro
e Bahia. As exportações anuais chegavam a quase um milhão de
arrobas.7 (FERREIRA, 1934)
Fundada numa época em que o setor minerador no
Jequitinhonha estava em crise, a cidade de Teófilo Otoni abrigou
trabalhadores daquela região. Eram mineiros, em sua maioria, que
procuravam terras férteis e que estavam esperançosos em serem
ressarcidos através das atividades agrícolas no Mucuri.
(FERREIRA, 1934) A implantação das lavouras de café na antiga
Filadélfia foi o fato mais relevante que explica o desmatamento nos
arredores da cidade.
Não obstante as lavouras de café ainda se concentrarem
na porção ocidental da bacia, as áreas plantadas dominavam a paisagem da região até o início dos anos 60, período da crise da economia
cafeeira. O governo federal, em 1962, determinou a erradicação das
lavouras que estavam fora dos padrões do extinto Instituto Brasileiro
do Café e fora do zoneamento agrícola. A situação não foi mais
drástica, dada à diversidade econômica da região de Teófilo Otoni,
que tem nos setores pecuarista, comércio e serviços outros pilares
para sua sustentação.
3.2. Expansão da pecuária e a ocupação das áreas setentrionais –
a ferrovia Bahia e Minas
A tradição pecuarista que hoje a bacia do Mucuri ostenta,
na verdade, é o produto da colonização européia associada ao “transbordamento” dessa atividade a partir da bacia do Jequitinhonha. Essa
transposição efetuou-se graças à grande seca de 1890, que estimulou a migração jequitinhonhense para o vale do rio Pampã, afluente
do Mucuri. A cidade de Joaíma foi o centro distribuidor e para ela
7
O equivalente a 245 mil sacas de 60 quilos.
257
afluíram flagelados de Salinas, Araçuaí, Itinga, etc. (SANTOS, 1970)
Então, fluíram noite e dia, hordas imensas de romeiros, sem
enderêço (sic) certo, mas destinando-se às paradisíacas terras do
sul, onde se podia sentir o aroma suavizador das matas e enxergar o borbulhar das águas das fontes. (SANTOS, 1970, p. 15)
A migração possibilitaria a formação do principal caminho
que ligaria o norte da bacia ao eixo sul, compreendido pela estrada
Filadélfia – Santa Clara. A colonização do rio Pampã daria origem às
atuais cidades de Fronteira dos Vales, Águas Formosas e Crisólita,
localizadas às suas margens.
Entretanto, a intensificação do tráfego de pessoas no vale
do Pampã se efetivaria após a construção da Estrada de Ferro Bahia
e Minas8. Vários povoados se desenvolveram às margens da ferrovia: Mayrink, Urucu, Presidente Pena, Francisco Sá, Crispim Jacques,
Pedro Versiani, etc. Por conseguinte, a vegetação era retirada, dando lugar às novas funções econômicas das terras.
3.3. A marcha do eucalipto e da cana-de-açúcar
Certamente, uma das maiores preocupações das autoridades
públicas e civis que planejam a bacia do Mucuri diz respeito ao avanço
da silvicultura do eucalipto. Não apenas pelas efervescências políticoambientais que ela abriga, mas também pelos severos impactos sociais
advindos com o êxodo rural e a alteração da estrutura fundiária.
A silvicultura no Mucuri vem ampliando sua área a partir
da borda leste, nos municípios de Serra dos Aimorés, Nanuque, Carlos
Chagas e Umburatiba. As áreas de pastagens, aparentemente, cedem cada vez mais espaço aos eucaliptais e à cana-de-açúcar. O
avanço do eucalipto confronta-se com as mudanças de ecossistemas,
de características físicas e regimes pluviométricos diferenciados.
Conhecê-los adequadamente para permitir a instalação das planta8
A idéia da Estrada de Ferro ligando Minas Gerais ao Porto de Caravelas esteve presente,
mas só em 1880, através do engenheiro Miguel de Teive e Argolo, que o projeto foi
realizado. (NOGUEIRA FILHO, 1989) A Estrada foi extinta em 1961.
258
ções é condição imperativa. Espera-se um manejo adequado das
florestas, que permita o crescimento econômico, mas que,
concomitantemente, preserve o meio ambiente. (GUERRA, 2006)
Por fim, observa-se a introdução da cultura da cana-deaçúcar, em alguns casos intercalada com o eucalipto, ainda na porção leste da bacia. Sua inserção no Mucuri coincide com o discurso
oficial que prega a sustentabilidade ambiental e o emprego de fontes
renováveis de energia, através da produção de álcool e do biodiesel.
Ao contrário do eucalipto, a cultura da cana absorve relativamente
mais mão-de-obra, porém, muitas vezes seu corte é acompanhado
por queimadas, alterando as características pedológicas e lançando
poluentes na atmosfera e hidrosfera.
4. Retirada dos remanescentes florestais da bacia do Mucuri:
processos recentes
Destarte os processos geohistóricos que promoveram a
ocupação e a retirada de parte significativa das florestas na bacia
do Mucuri, nas últimas décadas, o desmatamento continuou a avançar. A preocupação com esse processo emerge, pois a vegetação é
considerada uma síntese dos processos estruturadores do
geossistema, o que indica, indiretamente, a qualidade ambiental de
uma localidade. (THORNES, 1990; PASSOS, 1998) Assim, da
cobertura original da bacia do Mucuri, restam somente alguns remanescentes florestais fragmentados, intercalados, sobretudo, às
pastagens, aos cultivos e à silvicultura.
De acordo com a classificação do Mapa de Vegetação do
Brasil (IBGE, 2004), a bacia do Mucuri engloba quatro principais
tipos de vegetação, todas com fitofisionomia florestal. A porção leste
encontrava-se coberta pela Floresta Ombrófila Densa, marcada por
fanerófitos, associados às lianas e epífitas. A Floresta Ombrófila
Aberta localiza-se em uma pequena faixa na porção central da bacia, sendo composta por árvores mais espaçadas e com estrato
arbustivo pouco denso. A principal cobertura original era a Floresta
Estacional Semidecidual, distribuída por toda a bacia do Mucuri. Por
259
fim, a Floresta Estacional Decidual ocorria em pequena porção no
norte da bacia.
Por isso, de uma forma geral, pode-se considerar como
remanescentes florestais as áreas cobertas por vegetação de matas
nativas, em seus diversos estágios sucessionais, que possuem aspecto fitofisionômico semelhantes ao das florestas originais. Porém, no
atual estágio de degradação é relativamente complexa a diferenciação entre as regiões fitoecológicas, posto que os fragmentos encontram-se sensivelmente alterados.
Um importante procedimento de avaliação das condições
vegetacionais em escala regional é o cálculo das taxas de cobertura
florestal e de desmatamento. Além de possibilitar a comparação entre
diferentes locais, sua espacialização poderá contribuir para o
direcionamento de políticas públicas de conservação ambiental. Por isso,
mais do que mostrar os processos ocorridos nas últimas décadas, buscase apontar os locais preferenciais para investimentos em meio ambiente.
4.1. Espacialização da vegetação florestal remanescente (1989
e 2008)
A interpretação do Mapa 1 mostra que atualmente há uma
clara diferença entre o leste e o oeste da bacia. No centro-leste
existem pouquíssimos fragmentos de mata. Além da pouca quantidade, esses remanescentes são, também, muito pequenos. As culturas
de cana-de-açúcar e eucalipto contribuem para a compreensão dessa configuração espacial das matas.
A partir do oeste de Carlos Chagas, abrangendo os municípios de Pavão, Novo Oriente de Minas e parte de Teófilo Otoni, há
uma mudança gradual na distribuição espacial das matas. Os fragmentos tornam-se mais numerosos e, sobretudo, maiores. Todavia,
mesmo nessa porção da bacia, ainda são vastos os espaços sem
qualquer fragmento de mata.
Indubitavelmente, a porção da bacia de maior cobertura
florestal é o extremo oeste. As áreas desses remanescentes são as
260
maiores encontradas na bacia. Porém, a continuidade espacial desses fragmentos é interrompida por pequenas áreas desmatadas. Verifica-se, ainda, no oeste da bacia, que as mais expressivas áreas de
mata se encontram nas médias e altas vertentes. Por outro lado, as
margens dos principais canais de drenagem encontram-se
desmatadas.
Os municípios de Caraí, Catuji e Itaipé apresentam uma
espacialização distinta da cobertura de matas. Nas proximidades do
interflúvio noroeste da bacia do Mucuri, há uma expressiva presença
de remanescentes florestais. Entretanto, a porção leste do município
de Caraí, o centro de Catuji e o sul de Itaipé, por outro lado, evidenciam grandes áreas desmatadas.
O extremo norte da bacia também possui uma configuração específica. Chama atenção a continuidade espacial dos fragmentos que existem nessa região, apresentando grandes áreas de
remanescentes florestais. Porém, nas proximidades das sedes, as
matas não são encontradas, excetuando-se Crisólita, que apresenta
uma mancha de floresta adjacente ao seu centro urbano.
O Mapa 2 apresenta, para o ano de 1989, uma espacialização
das matas consideravelmente diferente daquela observada para 2008.
Porém, a diferenciação entre leste e oeste, já nesta data, é perfeitamente visível. Outra importante menção deve ser feita sobre as margens do rio Mucuri: na porção centro-leste, praticamente inexistem
remanescentes florestais em suas margens, bem como em alguns de
seus afluentes.
No oeste da bacia, a taxa de cobertura por matas é consideravelmente maior. Porém, a grande área que os remanescentes
ocupam é extremamente fragmentada. Em princípio, pode-se dizer
que as matas nessa porção, no ano de 1989, estavam ainda mais
fragmentadas que em 2008. Essa característica – grande área coberta por matas em pequenos fragmentos – pode ser estendida ao
noroeste da bacia, que possui cobertura por matas superior a apresentada em 2008. O norte da bacia, além da grande área vegetada
em 1989, apresenta continuidade espacial das matas. Nas proximi261
dades do interflúvio noroeste isso fica muito claro.
Para uma comparação mais detalhada foi realizada a estatística descritiva dos dois mapas produzidos. Prioriza-se, além do
aspecto quantitativo, a distribuição espacial das áreas de mata que
não ocorre de forma homogênea na bacia. A Tabela 1 sintetiza os
resultados encontrados.
O número de fragmentos de vegetação decaiu a uma taxa
de 2,51% a.a., promovendo, ao final do período, uma redução de
mais de mil unidades. Em termos geográficos, isso significa que um
grande número de fragmentos de remanescentes vegetais deixou de
existir nesse período. Porém, ao analisar os resultados das médias,
percebe-se que houve um crescimento de 32%, o equivalente a uma
taxa de 1,48% a.a.
Mapa 1: Bacia do Mucuri-MG: Remanescentes Florestais – 2008.
262
Mapa 2: Bacia do Mucuri-MG: Remanescentes Florestais – 1989.99
1-Calha do Rio Mucuri; 2-Córrego Barreado; 3-Córrego Cristal; 4-Córrego das Voltas;
5-Córrego do Ene; 6-Córrego do Oito; 7-Córrego do Sangue; 8-Córrego Jacaré; 9Córrego Mutum; 10-Córrego Novo; 11-Córrego Ponciano; 12-Córrego Quatorze; 13Córrego São Julião; 14-Ribeirão da Areia; 15-Ribeirão das Pedras; 16-Ribeirão do Gavião; 17-Ribeirão do Pavão; 18-Ribeirão Mandaçaia; 19-Ribeirão Mestre Campos; 20Ribeirão Pedra D'água; 21-Rio Manso; 22-Rio Mucuri do Norte; 23-Rio Mucuri do Sul;
24-Rio Pampã; 25-Rio Pau Alto; 26-Rio Preto; 27-Rio Todos os Santos; 28-Rio Urucu;
29-Córrego da Lama; 30-“Sem nome”.
9
263
A primeira conclusão que se pode chegar ao avaliar esses parâmetros é que os fragmentos suprimidos no período de
1989 a 2008 foram aqueles de menor área. Isso resultou em uma
queda no número de unidades, mas, em contrapartida, em um
aumento da área média e mediana, posto que apenas os fragmentos maiores foram preservados. Isso ocorre devido à maior facilidade de corte das menores áreas e também à falácia de que o
“tamanho” do fragmento de vegetação determina sua “importância” ambiental.
Por outro lado, a área do maior fragmento foi reduzida
drasticamente sob uma taxa de -5,62% a.a. Isso é devido, principalmente, à pressão que o ambiente sofreu na porção noroeste e oeste da bacia, onde se encontram as áreas de matas de
maior contigüidade. Apesar dessa considerável diminuição, as
grandes manchas de florestas permanecem, todavia com tamanho reduzido.
Assim, chega-se à soma total das áreas cobertas por
remanescentes florestais na bacia do Mucuri. Em 1989, existiam 3.744,35 km² de matas, que foram reduzidas a 3.056,27 km²
em 2008. Isso corresponde a uma taxa anual de desmatamento
de 1,06% a.a. Concomitantemente, em termos percentuais podese afirmar que a taxa de cobertura vegetal, em 1989, era de
25,33%, decaindo para 20,66% em 2008, um decrescimento de
18,44%.
a) O desmatamento nas sub-bacias do rio Mucuri
A bacia hidrográfica é a unidade excelente de estudos,
que visam ser incorporados ao planejamento ambiental, sendo
sugerida pela lei federal 9.433/97 como unidade básica de gestão
de recursos hídricos. Em relação ao meio físico, os impactos promovidos em determinado local surtirão conseqüências, diretas ou
indiretas, na porção inferior de sua bacia hidrográfica; o chamado efeito montante-jusante. (CHORLEY, 1962) Em concordância, busca-se aqui uma verticalização que permita ampliar as aná264
lises sobre o desmatamento da bacia do Mucuri, tomando como
unidade básica de estudo suas sub-bacias.
A Tabela 2 sintetiza as estatísticas dos remanescentes
florestais nas sub-bacias do Rio Mucuri, apresentando a área
florestada em 1989 e 2008, bem como o crescimento no período e
a taxa de desmatamento. Após a vetorização manual dos fragmentos florestais encontrados na bacia do Mucuri, foi realizada a
segmentação destes por sub-bacia. Por fim, as áreas e taxas foram calculadas.
As maiores taxas de desmatamento foram registradas
nas sub-bacias da porção centro-leste do rio Mucuri, justamente
aquela verificada por ter sofrido maior pressão ambiental. A bacia do Córrego São Julião (município de Teófilo Otoni) registra a
maior taxa de desmatamento, 4,7% a.a., o que representa uma
queda de quase 60% em relação à área dos remanescentes em
1989. Crítica também é a taxa de desmatamento da bacia “Sem
Nome” (3,9% a.a.), que perdeu mais da metade de sua área de
matas no período avaliado.
265
Tabela 2 - Desmatamento dos Remanescentes Florestais
das sub-bacias do Rio Mucuri
Porém, em termos absolutos destaca-se a bacia do Rio
Pampã, onde foram retirados 337,52 km² de remanescentes florestais, o que representou praticamente metade da área florestada em
1989. O desmatamento foi mais substantivo na porção norte da ba266
cia (Fronteira dos Vales e Águas Formosas), posto que o sul, já em
1989, apresentava-se bastante degradado. Na bacia do Córrego
Barreado não foi encontrado nenhum remanescente florestal, o que
a coloca com aquela de maior expressividade do desmatamento. Ainda
mais impressionante é verificar que desde a primeira data de análise
não havia qualquer fragmento de vegetação nativa. Sua localização,
no extremo leste da bacia do Mucuri, fronteira dos estados de Minas
Gerais, Espírito Santo e Bahia, justifica essa configuração.
Essa foi a área preferencial de expansão da cana-de-açúcar, encontrando-se atualmente, totalmente ocupada por cultivos,
pastagem e raras capoeiras. Deve-se considerar também a limitação da metodologia aplicada, que não é capaz de distinguir fragmentos de vegetação com área inferior a 400 m². Porém, no trabalho de campo realizado, também não foram registrados remanescentes florestais na bacia do Córrego Barreado.
Por outro lado, ressalta-se que 11 sub-bacias apresentaram um crescimento positivo da área dos fragmentos de vegetação. A maioria destas encontra-se na porção nordeste-sudoeste da
bacia do Mucuri. É provável que a regeneração de áreas, que no
mapa de 1989 foram consideradas como capoeira, seja responsável por esse aumento de florestas dessas sub-bacias.
Destacam-se, em relação ao crescimento positivo dos
fragmentos de vegetação, as bacias do Córrego Mandaçaia e do
Rio Mucuri do Sul, bacias limítrofes, ambas no extremo sudoeste.
A primeira apresentou um acréscimo de 40,8% na área dos remanescentes. Já a bacia do Rio Mucuri do Sul obteve um aumento das
áreas de mata da ordem de 30,3%.
Por fim, a verificação de sub-bacias do Mucuri que apresentam crescimento positivo na área dos remanescentes florestais
é um alento em um panorama crítico de degradação ambiental. É
necessário desenvolver estudos verticais que possibilitem gerar propostas de manejo e conservação do meio ambiente na bacia do
Mucuri, buscando sempre a inversão da tendência do
desmatamento.
267
5. Considerações finais
A história de ocupação da bacia do Mucuri, como se
observou, foi marcada pela retirada da cobertura vegetal original.
Os processos ocorridos nos séculos passados deixaram cicatrizes na paisagem, as quais ainda hoje podem ser vistas.
Da mesma forma, nas últimas duas décadas, o
desflorestamento na bacia do Mucuri foi recorrente, atingindo,
sobretudo, as sub-bacias do leste, como as dos córregos São Julião
e Barreado e a do rio Pampã. A porção oeste da bacia, porém,
ainda apresenta uma proporção significativa de remanescentes
florestais, abrigando parte considerável da biodiversidade do
Mucuri.
Ao extrapolar os dados obtidos para os anos de 2008 e
1989, pode-se afirmar que, mantendo a taxa de desmatamento de
1,06% a.a., em 10 anos, o percentual de cobertura nativa na bacia
do Mucuri decairia a, aproximadamente, 18%. Para um cenário
futuro de 50 anos, prevê-se uma taxa de cobertura de apenas 12%
e, em 100 anos, caso não haja uma mudança severa no tratamento
com o meio ambiente da bacia do Mucuri, restará apenas 7% da
área total da bacia coberta por remanescentes florestais.
É de suma importância que iniciativas de recuperação
ambiental e reflorestamento sejam estimuladas, posto que não há
um programa regional de recomposição da vegetação em grande
escala. Além disso, formas sustentáveis de manutenção da qualidade de vida da população devem ser garantidas, para que os
processos de degradação sejam controlados.
Assim, será preciso um esforço coletivo entre o governo,
organizações não-governamentais e população para que a bacia do
Mucuri tenha primazia nos projetos que resultem na recomposição
de suas matas nativas. Então, será possível promover a melhoria da
qualidade ambiental da bacia em concomitância a seu crescimento
econômico.
268
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