Diálogos Sociais Reflexões e Experiências para a Sustentabilidade do Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais Aline Amorim Melgaço Guimarães Ângela C. Porto Breno Gonçalves dos Santos Carlos Aberto Dayrell Carlos Eduardo Mazzetto Silva Cid Wildhagen (org.) Claudia Luz de Oliveira Francisco Carvalho Duarte Filho João Silveira d'Angelis Filho João Valdir Alves de Souza Justine Bueno Marcos Antônio Nunes Miguel Fernandes Felippe Mônica Alves Gonçalves Roberto Marinho Alves da Silva Rodrigo Bandeira de Luna Belo Horizonte Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais 2008 1 Governador do Estado de Minas Gerais Aécio Neves da Cunha Secretária de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, do Mucuri e do Nor te de Minas Elbe Brandão Diretora Geral do Idene Rachel Tupynambá de Ulhôa Vice Diretor Walter Antônio Adão Diretor de Planejamento, Gestão e Finanças José Augusto de Oliveira Diretora de Coordenação de Programas e Projetos Simone Maria Alves Pereira Diretor Regional do Norte de Minas Paulo Almeida Filho Diretor Técnico do Norte de Minas Edson Ferreira do Couto Diretora Regional do Vale do Jequitinhonha Margareth Fátima Dias Durães Diretora Regional do Vale do Mucuri Patrícia Rocha Pinheiro Corrêa Coordenador Editorial da Série “Diálogos Sociais” Cid Dutra Wildhagen Secretária do Projeto Mariana Ferreira Colaboradores Daniella Silva Ribeiro Nahissa Harumi Assessoria de Comunicação Social Andresa Resende Projeto Gráfico Tratos Culturais Normalização Bibliográfica Fernando Corrêa Bolognini Revisão Ortográfica Joana Pinto Wildhagen Projeto Editorial Eficaz Comunicação & Marketing Editora Instituto Mineiro de Gestão Social - IMGS Apoio Institucional Fundação de Auxílio à Investigação e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Sustentado - FUNDECIT Realização do Sistema SEDVAN/IDENE Rua Rio de Janeiro, 471, 12º andar - Centro. Cep: 30160-040 - Belo Horizonte - MG www.idene.mg.gov.br www.bibliotecaidene.org 2 Diálogos Sociais: Reflexões e Experiências para a Sustentabilidade do Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais 1ª edição Belo Horizonte 2008 3 Organização: Cid Dutra Wildhagen Editoração Eletrônica: Eficaz Comunicação & Marketing Avenida Francisco Sales, 329 - Salas 207/208 Floresta CEP: 30150-220 Belo Horizonte MG Brasil PABX: (0XX31) 3074-6122 e-mail: [email protected] Capa: Adaptado de: www.idene.mg.gov.br Normalização Bibliográfica: Fernando Corrêa Bolognini Impressão: Sografe Editora e Gráfica Ltda. Rua Alcobaça, 745 - São Francisco - Belo Horizonte/MG Tiragem: 1.000 exemplares Edição e Distribuição: Instituto Mineiro de Desenvovimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais Rio de Janeiro, Nº 471 - 10º andar - Centro - CEP : 30.160-040 Belo Horiznte - Minas Gerais - Brasil Telefone: 51 (31) 3279-8500 / 3279-8510 © Todos os direitos reservados Ficha Catalográfica: Obs.: Os textos não refletem necessariamente a posição do Instituto Mineiro de Desenvovimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais. 4 PREFÁCIO Diminuir a distância entre o governo e a população, por meio de um aumento significativo dos investimentos nas áreas sociais. Diminuir a distância entre as diversas regiões de Minas, estimulando o desenvolvimento de um Estado mais solidário. Diminuir as diferenças entre as pessoas, criando e democratizando oportunidades. Foram essas as premissas para a criação da Secretaria de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN). Porém, como seria organizar políticas públicas, que fossem capazes de motivar as pessoas, estimular e motivar os cidadãos a participar politicamente em um contexto de fragmentação e desigualdade social? Este questionamento conduziu a uma outra reflexão: qual política econômica a ser organizada pelo Governo de Minas Gerais, no território Norte-Nordeste mineiro, capaz de ampliar a percepção, centrada apenas no aumento da renda, e que fosse capaz de ampliar as oportunidades da população? A intervenção direta do Estado, por meio desse novo ator político, a SEDVAN, reconhecendo as “privações existentes” na região, conforme vários indicadores sociais, representou um passo decisivo, e significou a primeira experiência de um governo estadual em que um órgão público está inteiramente voltado para o desenvolvimento territorial. Com base nessas questões, buscando cumprir as prioridades definidas pelo governo estadual, elegemos a governança social, conceito em construção, definido como processo que promove um ambiente social de diálogo e cooperação, com alto nível de democracia e conectividade, estimulando a constituição de parcerias entre muitos setores da sociedade, por meio do protagonismo do cidadão. A democracia, dessa forma, é um ideal comunitário, não uma abstração, algo distante das pessoas. É na comunidade que os indivíduos e os grupos podem comunicar-se, interagir e compartilhar suas atividades e conseqüências. 5 A partir desse conceito, ficou estabelecido o “diálogo social” - ferramenta na busca da convergência de idéias e sugestões, em questões estruturais e remoção de entraves para a construção de um projeto de desenvolvimento das regiões de abrangência. São princípios norteadores de uma política de “justiça social” que fortemente relacionam-se e, ao se aproximarem, potencializam seus resultados, e compõe o eixo principal dos programas e projetos organizados em toda a região. Inauguramos, com essa publicação, a série – Diálogos Sociais - que tem com objetivo ajudar a construir, na teoria e na prática, uma sólida cultura política de gestão participativa e temas contemporâneos sobre a região. Esta ação vem sendo realizada por meio de uma série de conferências de pensadores das áreas da sociologia rural, economia regional, meio ambiente, gestão social, inovações tecnológicas, cultura e educação popular. As conferências buscam afirmar uma visão do desenvolvimento territorial, indicação de rumos, orientações e posicionamentos sobre os desafios para a construção de um projeto emancipador. Tudo isso, respeitando a transdisciplinariedade, ultrapassando o domínio da visão única. A “ética transdisciplinar” recusa toda a atitude que rejeita o diálogo e a discussão, de qualquer origem, seja de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. Porque não pode existir uma Secretaria de Governo, que leva o nome de nossa região, se não se respeitar, com convicção, a cultura, as práticas e os sonhos daqueles que dão cor e vida aos Vales e ao Norte de Minas. Esta é a nossa maior riqueza: a nossa cultura, nossa força e esperança na vida, a cor que colocamos em tudo que fazemos. Belo Horizonte, dezembro de 2008 Secretaria de Estado Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri e do Norte de Minas (SEDVAN). 6 APRESENTAÇÃO Cid Wildhagen* Com o objetivo de disseminar a difusão do conhecimento gerado por pensadores, intelectuais, pesquisadores e especialistas sobre temas de relevância para as regiões Norte e Nordeste de Minas Gerais, lançamos a série Diálogos Sociais: Reflexões e Experiências para a Sustentabilidade do Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais. As complexidades desta região se revelam numa imensa diversidade cultural percebida em tudo de artificial produzido: artesanato, arte popular, música, literatura e dramaturgia. Sob o ponto de vista social, existe uma enorme teia que envolve comunidades desiguais de acampados e assentados de reforma agrária, assalariados rurais, produtores familiares (parceiros, meeiros, posseiros e arrendatários), proprietários rurais minifundistas, populações tradicionais (ribeirinhas, pescadores artesanais, quilombolas), garimpeiros, povos indígenas, atingidos por barragens, comunidades extrativistas, entre outros, além de cidades modernas. As desigualdades sociais resultam das relações contraditórias, refletidas na apropriação e dominação originadas na forma de ocupação e colonização destas regiões. O emaranhado de demandas que ele apresenta, estão a exigir a construção interdisciplinar de saberes que sejam capazes de responder muitas questões. Como conhecer e como agir nessa realidade? Quais os significados e identidades deste território? Que debates estão nele contidos? Como perceber as opções para a *Cid Wildhagen é historiador e atua como Ar ticulador Territorial no Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas. É membro da Câmara Técnica do Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Sustentável e do Conselho Estadual de Coordenação Cartográfica. 7 sustentabilidade de seu desenvolvimento? Como escolher caminhos? Um conhecimento que envolva a construção dos saberes por meio de diálogos sociais, certamente! Um conhecimento complexo que lança o desafio do desenvolvimento de novos modos de conhecer: este é o caminho que esta publicação, primeira de uma série, propõe. Os textos que compõe este primeiro número foram originalmente produzidos para o ciclo de conferências “Em busca do desenvolvimento regional: principais desafios e compromissos”, coordenado pelo sistema SEDVAN/IDENE. As palestras foram realizadas em Montes Claros, Diamantina, Corinto e Belo Horizonte, com o apoio da Fundação de Auxílio à Investigação e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Sustentado (FUNDECIT), Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Comitê de Convivência com a Seca, Associação dos Municípios da Microrregião do Médio Rio das Velhas (AMEV) e do Instituto Mineiro de Gestão Social (IMGS). O artigo de Aline Amorim Melgaço Guimarães, que abre a coletânea se situa no campo analítico do pensamento social brasileiro. Revela a importância da democracia como uma forma de governo que atue na responsabilidade social para com os diferentes segmentos que possui, pensando a diversidade pautada pela inclusão e promoção dos diversos grupos sociais, principalmente aqueles que se encontram sub-representados, especialmente minorias ou grupos atingidos por diferenças estruturais. Destaca a formatação do novo pacto federativo, firmado a partir da Constituição de 1988, e que se refere à desconcentração de poderes do Executivo nacional em prol dos estados e municípios, tendo como perspectiva uma maior abertura e proximidade da sociedade em relação aos gestores locais. A seguir, faz uma reflexão sobre a prática pública e seus impasses reais, no que diz respeito aos problemas enfrentados com relação a construção de práticas cotidianas entre os atores políticos. Nesse cenário, a municipalização é abordada diante do difícil processo de compartilhamento de decisões entre representantes do executivo local e sociedade civil, conforme estabelecido constitucionalmente, nos 8 espaços construídos para tal Conselhos Gestores Municipais de Políticas Públicas. Aspectos e experiências, positivas e negativas, são analisados indicando rumos a serem perseguidos na busca de maior envolvimento da sociedade civil neste processo de participação política e desenvolvimento social. O pesquisador Rodrigo Bandeira de Luna apresenta o “Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas” com o propósito de examinar e avaliar as contribuições que pode trazer para o estudo e o entendimento mais aprofundado da realidade da economia dos 188 municípios que compõem a região. A partir dos resultados das pesquisas, que foram elaboradas em diversas bases de dados, este trabalho busca apreciar em que medida as subregiões e cada município desta região, sabidamente deprimida, reservam potenciais de crescimento econômico nos diversos setores da sua economia. Esta análise salienta que, apesar da difícil realidade vivida pelos seus mais de 2,8 milhões de habitantes, o Norte e o Nordeste mineiro guardam um inexplorado potencial de aumento da produtividade econômica baseado no estudo dos indicadores dos municípios limítrofes, da mesma microrregião. Além disso, observa-se que a maior contribuição que pode advir do presente estudo é a disponibilização destas informações por meio de um sistema capaz de combiná-las, por meio de tabelas, gráficos e mapas, para a utilização de gestores públicos, empresários, produtores rurais e agentes sociais com foco no desenvolvimento integral da região dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Norte de Minas. O artigo “Políticas de Incentivo para o Desenvolvimento Regional”, assinado pelos economistas Francisco Duarte Filho e Ângela Porto, lança a seguinte indagação: planos e políticas regionais são de fato necessários e desejáveis para orientar o processo de desenvolvimento? A resposta é afirmativa: malgrado os resultados obtidos ao longo de várias décadas, no caso mineiro e de outras regiões brasileiras, uma política regional com recursos efetivos e programaticamente direcionados, continua pertinente. Ampliando essa questão, os autores dizem que, no caso de Minas Gerais, apesar de, historicamente, reunir experiências de políticas de desenvolvimento 9 regional de considerável importância, seus efeitos acabaram por privilegiar regiões que apresentavam potenciais de competitividade favoráveis ao incremento do setor produtivo. Esta situação conduziu à concentração das atividades em alguns centros mais bem equipados em termos de infra-estrutura sócio-econômica, agravando o cenário de pobreza e de desigualdade nas regiões desatendidas. No tocante às áreas mais carentes do Estado, notadamente, as regiões do Jequitinhonha/ Mucuri e do Norte de Minas, é desejável e mesmo exeqüível, na opinião dos economistas, a formulação de propostas de estratégias deliberadas, baseadas em instrumentos de apoio financeiro que, ao lado de objetivos e ações claramente definidos, venham colocar a questão regional de forma efetiva como meta integrante dos planos, estratégias, objetivos e ações para o desenvolvimento econômico do Estado. Assim, ganha relevância a proposição de constituição de um Fundo de Desenvolvimento Regional. Este instrumento deve ser capaz de conferir por meio de suas políticas e objetivos, condições de atratividade de investimentos produtivos e de infra-estrutura às regiões ou municípios menos favorecidos do Estado, prioritariamente aqueles com índices de IDH abaixo da média estadual, em especial nas regiões mencionadas anteriormente. O artigo do pesquisador Roberto Marinho Alves da Silva, “Políticas Públicas para Convivência com o Semi-Árido”, realiza uma importante prospecção sobre o tema. A partir da revisão da literatura e dos estudos documentais sobre o Semi-Árido, recupera a construção dos processos de formulação dos pensamentos sobre esta realidade. Superando a visão do “combate à seca e aos seus efeitos”, que predominou durante quase todo o século XX, apresenta os fundamentos da sustentabilidade do desenvolvimento. A proposta da “convivência com o Semi-árido”, superando a abordagem anterior, vem se caracterizando como uma perspectiva cultural orientadora de um desenvolvimento cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania. Embora esteja ainda em processo de formulação, suas propostas procuram a harmonização entre a justiça social, a prudência ecológica, a eficiência econômica e a cidadania política no Semi-árido. O artigo faz uma leitura dessa reali10 dade, e, principalmente, descreve os avanços relacionados às tecnologias hídricas apropriadas para o Semi-árido, como abastecimento de água, gestão comunitária de mananciais hídricos, manejo da vegetação nativa, alternativas de silagem e criação de pequenos animais, dentre outras práticas de sustentabilidade. O professor Carlos Eduardo Mazzetto Silva abre um universo de reflexões a respeito do choque da modernidade do desenvolvimento com as tradições dos pequenos lugares, povos e culturas da região. O seu instigante artigo “Envolvimento Local e Territorialidades Sustentáveis” aponta para os problemas causados pelo ideário desenvolvimentista da década de 50, e a “invenção” do subdesenvolvimento, teoria que, segundo o autor, representa as limitações impostas ao mundo periférico à área central da “economia mundo” (EUA e Europa) pela divisão internacional do trabalho com o desenvolvimento capitalista no pós-guerra. Exemplifica esta noção com a “invasão do sertão pela monocultura e a perda do controle social-territorial, como também as implicações da identidade sertaneja e geraizeira”. Questiona conceitos como a vida de subsistência, que o rico ocidente interpreta como pobre. Ao contrário, de acordo com o pesquisador, a economia natural baseada em subsistência, garante uma alta qualidade de vida, se considerarmos o acesso à alimentação, uma consistente identidade cultural e social e um sentido de vida às pessoas. Convidanos a “reinventar” e criar idéias para gerar impulsos que contribuam para que as populações locais possam manter ou construir a sustentabilidade de seus territórios. Aponta a perspectiva endógena: o envolvimento local e o protagonismo camponês para a superação dessas dificuldades, e a produção agroecológica e o manejo sustentável como meio de produção adequados. O Coordenador Técnico do Centro de Agricultura Alternativa (CAA) e Mestre em Agroecologia do Desenvolvimento Sustentável, João S. D'Angelis Filho, juntamente com outros colaboradores, chama a atenção, no artigo “Agricultura Familiar: Importância Econômica e Novos Caminhos para sua Sustentabilidade”, para o segmento como vetor para a dinamização econômica dos municípios. 11 Estudos recentes reconhecem uma economia movimentada por complexas redes de relações e experiências que os autores denominam de “economia invisível”. Situa como exemplo a agricultura familiar do Alto Rio Pardo, que abriga a maior área plantada de cana-deaçúcar da região (mais de 2.000 hectares), que permite produzir algo em torno de 10 milhões de litros de cachaça. No entanto, o registro de cifras irrisórias na arrecadação de ICMS: de R$500,00 e R$1000,00 reais nos anos 2003 e 2004, respectivamente, sinalizam um imenso campo de atividade econômica que permanece invisível. Uma interpretação imediata desse fato deve-se a aplicação rigorosa da legislação fiscal e sanitária que não deixa permanecer na região nenhuma cachaçaria. Assim, a sustentação econômica da população local fica ancorada sobre uma frágil estrutura institucional. De acordo com D'Angelis e equipe, faltam políticas de apoio ao setor para sua dinamização. O artigo chama a atenção para a busca de referências para construção de novos cenários, inspirados nas experiências públicas e da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição de fornecedoras de mercadorias de primeira geração, de baixo valor agregado, para inseri-las na economia da informação ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”, como fornecedoras de mercadorias de quarta geração por meio do valor agregado ao conhecimento tradicional. O professor João Valdir Alves de Souza apresenta, em seu artigo “Pedagogia da Alternância: Uma Alternativa Consistente de Escolarização Rural?”, a organização da Escola Família Agrícola (EFA) no âmbito do território mineiro e, em destaque, a experiência da EFA de Turmalina, suas práticas e efeitos para a região. A partir de uma síntese, demonstra os quatro pilares que caracterizam e “sustentam” esta experiência didático-pedagógica: as associações mantenedoras da EFA, a Pedagogia da Alternância, a formação integral do aluno e o desenvolvimento local sustentável. Na EFA surge a reflexão, questionamentos, análises, sínteses, aprofundamentos e generalizações. A vida do aluno no seu meio, experiências e pesquisas, observações e questionamentos adquirem relevância como um eixo do processo ensino-aprendizagem. De acordo com o autor, não há dúvida de que se trata de uma experiência que não pode mais ser 12 desconsiderada em sua concepção, suas práticas e seus efeitos, sobretudo, quando se busca uma alternativa de escolarização adequada ao meio rural de regiões de baixo desenvolvimento econômico. O livro se conclui por uma análise minuciosa sobre o “Desmatamento na Bacia do Mucuri em Minas Gerais: Histórias e Processos Recentes”, competente trabalho organizado pelos geógrafos Miguel Fernandes Fellippe, Marcos Antônio Nunes e a pesquisadora Justine Bueno. Narra a história de ocupação da bacia do Mucuri, marcada pela exuberante retirada da cobertura vegetal original, os processos ocorridos nos séculos passados e que deixaram cicatrizes na paisagem que ainda hoje podem ser vistas. Alertam para um necessário esforço coletivo entre o governo, organizações não-governamentais e população para que a bacia do Mucuri tenha primazia nos projetos que resultem na recomposição de suas matas nativas, tendo em vista que os recursos florestais e as terras relacionadas com eles devam ser manejados para suprir as necessidades sociais, econômicas, ecológicas, culturais e espirituais das gerações presentes e futuras. 13 14 BREVE INFORME SOBRE O SISTEMA SEDVAN-IDENE Criada em caráter extraordinário pela Lei Delegada nº. 49, de dois de janeiro de 2003, e continuada pela Lei Delegada nº. 112, de vinte e cinco de janeiro de 2007, a Secretaria Extraordinária para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri e do Norte de Minas SEDVAN é uma ação política ousada que visa combater às desigualdades regionais. Em vinculação direta com o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE, sua missão está assim definida: articular, coordenar e deliberar junto aos agentes econômicos, institucionais e sociais a implementação e gestão participativa de programas e projetos, que assegurem o processo de desenvolvimento social e econômico dos Vales do Jequitinhonha, do Mucuri, do Rio São Mateus, Região Central e Norte de Minas, considerando o conhecimento acumulado dos agentes locais, respeitando suas características e promovendo a transformação das suas potencialidades em riqueza para a região. A área de abrangência do sistema SEDVAN-IDENE é um espaço equivalente a 37% da área do Estado de Minas, atuando em 188 municípios, onde habitam 2.828.480 pessoas, ou 16% da população mineira (IBGE-2000). 15 16 SUMÁRIO 1. Participação social e políticas públicas: novos rumos para a construção de políticas emancipatórias....................................................... 19 Aline Amorim Melgaço Guimarães 2. Mapa de potencialidades econômicas das regiões do Norte e Nordeste de Minas Gerais: onde está escondido o ouro............................... 45 Rodrigo Bandeira de Luna 3. Políticas de incentivos para o desenvolvimento regional...................... 75 Ângela C. Porto e Francisco Carvalho Duarte Filho 4. Políticas públicas para convivência com o semi-árido........................... 107 Roberto Marinho Alves da Silva 5. Envolvimento local e territorialidades sustentáveis: desvelando a desterritorialização do desenvolvimento................................................. 173 Carlos Eduardo Mazzetto Silva 6. Agricultura familiar: importância econômica e novos caminhos para a sustentabilidade........................................................................................ 205 Claudia Luz de Oliveira, Breno Gonçalves dos Santos, João Silveira d'Angelis Filho e Carlos Aberto Dayrell 7. Pedagogia da Alternância: uma Alternativa Consistente de Escolarização Rural?.................................................................................. 225 João Valdir Alves de Souza e Mônica Alves Gonçalves 8. Desmatamento na bacia do Mucuri em Minas Gerais: causas históricas e processos recentes........................................................................... 251 Miguel Fernandes Felippe, Marcos Antônio Nunes e Justine Bueno 17 18 1 PARTICIPAÇÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: NOVOS RUMOS PARA A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS EMANCIPATÓRIAS Aline Amorim Melgaço Guimarães * 1. Apresentação A presente conferência faz parte de um ciclo de reflexões que tem como objetivos elaborar propostas de desenvolvimento territorial, indicar rumos, orientações e posicionamentos sobre os desafios para a construção de políticas emancipatórias capazes de promover desenvolvimento e inclusão social. Inicialmente, ela aborda uma importante discussão a respeito de profundas críticas ao modelo democrático minimalista, o qual teria se tornado hegemônico com o processo da restauração democrática na Europa, a partir do século XVIII. Em contraposição a este modelo, o século XX apresenta outras discussões teóricas importantes. Tais discussões, que vêm sendo abordadas internacionalmente, ressaltam a importância de se refletir a respeito da construção democrática, chamando atenção para aspectos negligenciados pelo modelo minimalista. Atenta, ainda, para a necessidade de se pensar sobre o processo de construção democrática principalmente em países que apresentam grandes disparidades sociais, étnicas, culturais e econômicas. Para tanto, é necessário o uso de modelos que sejam, ao mesmo tem*Mestre em Ciências Sociais pela UFRN (2006), graduada em Ciências Sociais pela UFMG (2003), Atualmente é professora convidada do Departamento de Ciência Política, da Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona no curso de Especialização em Políticas Públicas, professora titular da Universidade Presidente Antônio Carlos, professora da Universidade José do Rosário Vellano, da Faculdade de Sabará e professora titular do Centro de Ensino Superior de Itabira. Este texto é a transcrição de conferência apresentada na UNIMONTES, Montes Claros, em 19 de agosto de 2008, 19 po, realmente representativos destas diversidades e também capazes de construir políticas públicas a partir de um maior envolvimento e participação social neste processo. O objetivo desta abordagem é trazer a discussão da teoria democrática contemporânea para o contexto da nova formatação democrática nacional, que tem início nos processos de disputa e conflitos que envolveram a construção da Constituição de 1988. Dessa forma, novos formatos de desenvolvimento de políticas públicas foram configurados, diante do novo pacto federativo assumido, cujo destaque foi o fortalecimento das instâncias subnacionais de governo, quais sejam, estados e municípios. A municipalização é abordada, em especial, diante da análise do processo complexo de compartilhamento de decisões entre representantes do executivo local e sociedade civil nos espaços construídos para tal, Conselhos Gestores Municipais de políticas públicas (obrigatórios): Assistência Social, criança e adolescente, educação, trabalho e saúde. São abordados alguns dos aspectos que mais têm sido observados na difícil tarefa de envolvimento da sociedade no processo de deliberação efetiva a respeito das políticas públicas, em conjunto com os representantes do executivo local. Alguns dos aspectos e experiências positivas e negativas são analisados, com o intuito de indicar rumos a serem perseguidos nesse processo. Por último, pretendeu-se apontar novos rumos para a construção de políticas democráticas e emancipatórias, assinalando algumas alternativas possíveis a serem trabalhadas a partir do envolvimento de diferentes segmentos da sociedade para um maior empoderamento social, a fim de que este se reflita sobre mudanças na cultura política local. Para que o embate político ocorra a partir do real compartilhamento decisório entre Estado e Sociedade é necessário que aquele atue na construção de um estoque de capital social, tornando a sociedade mais capaz de se posicionar e apresentar seus interesses frente às propostas e projetos políticos oferecidos pelos representantes do executivo local. 20 2. Democracia Inclusão e Participação Social: muito além do minimalismo Observa-se no cenário internacional do século XX, principalmente no período que vai do final da Segunda Guerra Mundial e durante todo o período da Guerra Fria, a forte ascensão da proposta democrática. Mais do que isto, trata-se de uma aspiração pela democracia enquanto melhor forma de governo. Por outro lado, tem-se a proposta que se torna hegemônica, um modelo com fortes restrições da participação e da ampliação da soberania popular. Tal projeto democrático tem seus fundamentos em torno da idéia de que a democracia seja exclusivamente um procedimento eleitoral com a finalidade de formar governos (Shumpeter, 1983). Tendo em vista a forte ascensão da proposta minimalista de democracia e a perspectiva hegemônica sobre a qual se impôs, principalmente, entre as democracias desenvolvidas a partir do período pós-segunda guerra, colocou-se o problema da incapacidade deste modelo democrático refletir sobre a qualidade do governo que promoveria. Isso acontece, mais notadamente, a partir de meados dos anos setenta, quando há um início do período caracterizado como a “terceira onda de democratização”. Quanto mais se insiste na fórmula clássica da democracia de baixa intensidade, menos se consegue explicar o paradoxo de a extensão da democracia ter trazido consigo uma enorme degradação das práticas democráticas. Aliás, a expansão global da democracia liberal coincidiu com uma grave crise desta nos países centrais onde mais se tinha consolidado uma crise que ficou conhecida como a da dupla patologia: a patologia da participação, sobretudo em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a patologia da representação, o fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram. (Santos, 2001, p.42). Também é nesse período da “terceira onda de democratização”, que a perspectiva de um modelo de democracia participativa começa a ganhar força. Há uma necessidade de discussão a respei21 to da qualidade da democracia, da inclusão social nas deliberações públicas diante dos problemas que Santos (2001) classifica como a “patologia da representação”. Tal fenômeno tem propiciado a exclusão de diversos grupos sociais, como mulheres, homossexuais, negros, entre outros, da vida política, já que eram escassas as políticas de reconhecimento das minorias na sociedade. Diante desta discussão, faz-se importante refletir a respeito do processo de reconstrução da democracia no Brasil, que têm início a partir da elaboração da Constituição de 1988, a fim de refletir a respeito do modelo democrático estabelecido institucionalmente, assim como suas implicações no que se refere às práticas democráticas cotidianas.A Constituição de 1988, trata-se do marco institucional de um processo o qual ainda se apresenta em construção. Neste sentido, trata-se de uma reflexão a qual considera a democracia como sendo um valor, mas não em si mesma. A democracia como uma boa forma de governo, mas que precisa ser problematizada e repensada a fim de proporcionar aos diversos e diferentes grupos e segmentos sociais, melhores condições de vida em sociedade. Propõe que o processo inicial de institucionalização das regras democráticas trata-se apenas de um primeiro passo rumo à construção de qualquer governo democrático. A concepção de democracia minimalista, a qual considera a democracia como sendo um procedimento para a seleção de lideranças através de eleições competitivas, pelo povo que governam, não deve ser uma justificativa satisfatória para a escolha desta forma de governo. Trata-se do ponto inicial de construção de um governo democrático aquele país em que o líder político foi escolhido a partir de eleições periódicas, honestas e imparciais, através de votos, após uma livre concorrência entre os demais candidatos tendo toda a população adulta livre direito de participar de tal processo. A partir daí, o governo passa a lidar com questões que envolvem práticas anteriores ao momento de institucionalização das regras democráticas, que irão ser percebidas nas práticas cotidianas, percebidas a partir de uma tensão entre cultura política autoritária e regras democráticas. (Avritzer, 1995). 22 Entretanto, não se trata de pensar um formato de ruptura com o modelo de representação político-eleitoral tradicional, nem são estas as proposições teóricas feitas por autores que propõem a participação da sociedade no processo de construção da democracia (Avritzer, 1996; Santos, 2001; Young, 2000; Benhabib, 20021). O objetivo é apenas propor algo novo ao modelo minimalista de representação, observando-se os limites que este apresenta, diante da sua incapacidade de representação de diversos segmentos e grupos que se encontram excluídos da participação política e o fato de não se verem, nem se sentirem representados pelos seus “representantes” legais-formais. No presente trabalho observa-se a importância de se pensar na democracia não como um simples procedimento que tem como preocupação apenas a observância das garantias e instituições formais democráticas. Acredita-se, antes, na importância da mesma como uma forma de governo que tenha como ponto fundamental a preocupação com a qualidade das políticas produzidas, assim como da democracia vivenciada pelos seus cidadãos. A democracia proposta seria, portanto, uma forma de governo que possua responsabilidade social para com os diferentes segmentos que agrega, pensando na diversidade pautada pela inclusão e promoção dos diversos grupos sociais, principalmente aqueles que se encontram sub-representados, especialmente minorias ou grupos atingidos por diferenças estruturais. (Santos, 2001;Young, 2000). 3. A Reconstrução Democrática Nacional: Descentralização e Participação Social O processo de redemocratização nacional partiu de um longo processo de negociação de poderes, o qual se concretizou na Constituinte de 1986. Diversos setores da sociedade civil organizada, setores da burguesia emergente e os diferentes segmentos da esquerda nacional, representada fortemente na figura do MDB (o qual se fortalecia enquanto oposição parlamentar), se fizeram presentes neste importante momento para a redemocratização nacional. (Guimarães, 2008). Trata-se dos autores em discussão no presente trabalho, embora diversos outros autores trabalhem com esta perspectiva participativa e inclusiva. 1 23 Tais segmentos sociais foram essenciais no envolvimento com o processo de luta democrática e tiveram um peso significativo para pressionar os militares e todo o grupo de aliados civis, em prol da garantia de que a consolidação das instituições democráticas fosse pautada por uma perspectiva descentralizante e participativa, tendo em vista a história política nacional ter se caracterizado, mesmo em momentos democráticos, pela centralização decisória e pela exclusão de diversos setores da sociedade da participação política. A redemocratização nacional deve ser analisada enquanto uma lenta transformação, em que instituições democráticas convivem com uma cultura política não-democrática, ou até mesmo enquanto um misto de duas culturas contraditórias. A consolidação democrática consiste, neste sentido, na consolidação de práticas políticas democráticas entre os atores políticos nos espaços do Estado e da sociedade civil. (Avritzer, 1995). Tal processo é um longo caminho a ser percorrido. Faz-se importante perceber, inicialmente, alguns aspectos de mudança no plano institucional, para, em um segundo momento, refletir a respeito da prática pública e seus impasses reais, no que diz respeito a alguns dos problemas enfrentados com relação a uma nova forma de construção de práticas cotidianas entre os atores políticos. Trata-se de analisar a forma como o enfrentamento do compartilhamento de decisões entre Estado e sociedade vem ocorrendo na prática cotidiana, no que tange às mudanças na legislação as quais inseriram esta inovação na gestão das políticas públicas no âmbito dos três níveis da federação. 3.1. Descentraliação Observa-se que a Constituição de 1988, assim como algumas emendas posteriores, tem como aspectos fundamentais a introdução de uma proposta descentralizadora de poderes políticos e econômicos, bem como uma abertura à participação política, por parte da sociedade civil, na deliberação de políticas públicas. (Guimarães, 2008). 24 No que se refere à descentralização, esta pode ter diferentes significados: 1-Deslocamento da capacidade de decidir e implementar políticas para instâncias subnacionais; 2- Transferência para outras esferas de governo da implementação e administração de políticas definidas no plano federal; 3- Passagem de atribuições da área governamental para o setor privado. Na presente discussão, faz-se importante dar destaque às duas primeiras possibilidades descentralizadoras, pois elas incidem diretamente na discussão a respeito da formatação do novo pacto federativo firmado a partir da Constituição de 1988, o qual se refere à desconcentração de poderes do Executivo nacional em prol dos estados e municípios, tendo como perspectiva política, além da desconcentração de poderes políticos e econômicos, uma maior abertura e proximidade da sociedade em relação aos gestores locais. As causas do modelo descentralizador observado no novo quadro federativo nacional têm por fundamento, duras críticas ao passado centralizador sob o qual se fortaleceu o modelo unionistaautoritário durante os períodos de ditadura vivenciados no país. No contexto da discussão a respeito da redemocratização nacional, a descentralização política e fiscal torna-se sinônimo de democracia, tendo em vista a idéia de que haveria uma maior possibilidade de controle e participação da sociedade sobre as decisões políticas por estas serem tomadas em âmbito local. Além disso, observam-se correlações entre descentralização e maior transparência na gestão das políticas públicas, além de críticas em relação à ineficiência e ineficácia do modelo centralizador das mesmas. Neste sentido, as teses que se desenvolveram a propósito das dificuldades de um Estado centralizador formular respostas adequadas a determinadas demandas políticas são de base fiscal, política e racional. 25 O argumento da crise fiscal está assentado na incapacidade financeira do Estado de atender a todas as demandas da sociedade, sendo que estas seriam provenientes de diferentes focos de interesse e, desta forma, inconciliáveis. Esta crise seria observável a partir de vários problemas enfrentados, tais como: déficits orçamentários, poupança pública baixa e muitas vezes negativa, deterioração do crédito do Estado e também em déficit de credibilidade do mesmo. (Zauli, 1999). A tese da sobrecarga de demandas propõe que o Estado centralizado estaria submetido a uma alta taxa de demandas, somada ao problema da crise fiscal, o que surte efeito na implementação das políticas. Assim, devido a uma suposta sobrecarga de demandas, o Estado teria dificuldades em absorver aquelas da sociedade e, desta forma, não seria capaz de atender às reais necessidades da população através da implementação de políticas sociais. A tese da crise de racionalidade refere-se a todo este processo de crescente dificuldade do Estado em formular respostas adequadas às demandas dos diferentes atores sociais, crise esta que se expressaria na incapacidade governamental de implementação de respostas necessárias, capazes de justificar o sistema enquanto tal. (Zauli, 1999). Este argumento de uma crise de racionalidade culminaria em uma crise de legitimidade do sistema político centralizado, gerando, por sua vez, certo consenso sobre a necessidade de descentralização de políticas do executivo federal em prol dos estados e municípios. Desta forma, desenvolve-se o argumento altamente disseminado, em vista do momento de redemocratização do país, de que a formulação e implementação de políticas em bases regionais, locais, por intermédio da sociedade civil organizada, permitiriam uma melhor resposta às demandas sociais dos diferentes setores da sociedade. Este argumento se fundamenta em uma concepção participativa ou deliberativa de democracia, a qual aponta para o direito da sociedade civil de participar das decisões que se referem aos tipos de serviços e à forma como estes serão prestados pelo Estado. 26 Faz-se importante destacar a “revolução descentralizadora” promovida pela Assembléia Constituinte (87/88): “A Constituição de 88 definiu um novo arranjo federativo, com significativa transferência de capacidade decisória, funções e recursos do governo nacional para os estados e, especialmente, para os municípios”.(Almeida, 1995, p.92) No entanto, esse processo de transferência de funções e recursos não ocorreu instantaneamente; mas vem se desenvolvendo ao longo dos anos. A Constituição não teria sido clara ao estabelecer as competências dentre os entes federativos. Ao contrário, teria estipulado aproximadamente trinta funções concorrentes entre os três entes federativos, União, estados e municípios, sendo boa parte delas na área social. Desse modo, observa-se a importância, na contemporaneidade, de ações políticas por parte do executivo federal, a fim de que se possam definir as atribuições específicas e as áreas de cooperação entre as demais esferas do governo. (Almeida, 1995, p.92). Os problemas enfrentados em relação à concretização das disposições contidas na Constituição, o papel da União tem sido de fundamental importância no desenvolvimento de mecanismos para a promoção de medidas descentralizantes. Alguns estudos realizados sobre a descentralização de políticas sociais têm demonstrado a importância que a União possui em articular propostas e mecanismos de indução que sejam bem recebidos pelos estados e/ou municípios, tendo em vista a autonomia por estes adquirida a partir da referida Constituição. (Arretche, 1999). A partir da nova Constituição, estados e municípios adquirem status de entes federados, o que significa que possuem autonomia administrativa, política e econômica definidas constitucionalmente. Desse modo, é necessário que a União, ao pretender realizar a descentralização de alguma política, isto é, de colocá-la a cargo dos estados e/ou municípios, crie incentivos para que haja adesão por parte dos referidos níveis subnacionas de governo. Desse modo, na conjuntura atual do Brasil, a adesão dos governos locais à transferência de atribuições por parte do governo 27 federal tem revelado uma dependência de cálculo racional entre custos e benefícios fiscais e políticos de assumir a gestão de uma dada política pública e, por outro lado, dos próprios recursos fiscais e administrativos os quais cada uma das administrações, local (is) ou estadual (is) conta para desempenhar de forma eficaz tal tarefa. (Arretche, 1999, p.115). 3.2. Participação Social Com relação à participação social, observa-se que a Constituição de 1988 reflete reivindicações sociais, tanto por parte de movimentos sociais, quanto das esquerdas nacionais, promovendo iniciativas de maior abertura e integração da sociedade no que se refere às tomadas de decisões a respeito das políticas públicas, assim como outros mecanismos de consulta popular que vão além da participação pelo voto no período de quatro em quatro anos. Observam-se tais aspectos, a partir do Art. 5º, Inciso LXXIII, da referida Constituição. Este garante a inserção da participação popular através da ação popular e do plebiscito. Outra importante conquista, trata-se do direito à participação nas decisões do governo, em algumas áreas de políticas sociais como no planejamento municipal – Art.29 Incisos X e XI. No que se refere à seguridade social, fica assegurada a descentralização assim como a participação da sociedade na gestão destas políticas, contidas nos Artigos 194 e 195. Com relação à saúde e à assistência social, suas perspectivas participacionistas ficam garantidas a partir dos dispositivos contidos nos Artigos 198 e 204. As políticas de educação também são inseridas neste contexto descentralizador e participativo, Art. 205 e 206 inciso VI, como também as políticas de promoção e defesa das crianças e adolescentes, Art. 227. Diante do exposto, observa-se que a Constituição de 1988 inaugura, de certo modo, um processo de abertura à participação da sociedade civil, que ocorre, principalmente, com a criação dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Neste sentido, abordaremos alguns aspectos que foram analisados a respeito de como as práticas públicas têm se estabelecido nos conselhos gestores obrigatórios, seus maiores 28 impasses na consolidação democrática. (Guimarães, 2008) Propõe-se analisar quais as barreiras que se colocam à construção da participação dos diversos grupos da sociedade na deliberação das políticas públicas, a fim de se pensar a respeito da construção de uma democracia capaz de refletir a respeito de uma representação que vá além da livre escolha de representantes pelos seus cidadãos e seja capaz de propor a representação e a inclusão de setores historicamente excluídos da participação política frente a frente com importantes decisões no âmbito da deliberação das políticas públicas. Mais do que propor um modelo específico de democracia, apesar de considerar a importância da participação social, trata-se de refletir sobre o processo que se tem colocado em marcha, apontando alguns dos grandes impasses contemporâneos. 4. Experiências Participacionistas: Desafios e Conquistas Antes de abordar a discussão a respeito da participação social propriamente dita, em quaisquer espaços nos quais ela seja abordada, faz-se importante destacar alguns dos aspectos que antecedem a construção da participação social no Brasil. Dentre os vários aspectos que permeiam a difícil tarefa do desenvolvimento de políticas mais participativas no país, encontramos três principais: 1- Desinteresse e desconhecimento da sociedade em relação aos novos formatos políticos que vêm se desenvolvendo a partir da Constituição de 1988 e que propõem novas formas de participação que estão além da escolha das representações partidárias. Apesar de termos observado uma grande mobilização por parte da sociedade civil organizada, durante os processos de luta em prol da redemocratização nacional, este intenso movimento não pode ser estendido para a maioria da sociedade brasileira, nem mesmo para a grande parte dos municípios nacionais. Diante do longo percurso histórico de intensa centralização decisória, conforme mencionado anteriormente, grande parte da sociedade brasileira se viu alijada dos processos políticos durante um longo perío29 do histórico, o que exerce, ainda hoje, um grande reflexo na cultura política vigente de desinteresse e desconhecimento em relação às novas possibilidades de participação e envolvimento com as políticas locais. (Guimarães, 2008). 2- Falta de vontade política por parte dos gestores; tendo em vista a trajetória de excessiva concentração de poderes nas mãos dos gestores, nacionais e regionais observada ao longo da nossa história política, tem-se observado grandes dificuldades nas mais diversas regiões do país (Guimarães, 2008), por parte dos gestores locais e regionais, em compartilhar decisões e prestar contas a respeito das suas decisões políticas para com a sociedade, contribuindo para o ciclo de desconhecimento da sociedade em relação aos novos espaços de “compartilhamento” de decisões no que concerne às políticas públicas – Conselhos Gestores obrigatórios. (Guimarães, 2008). 3- Cultura política verticalizada. Observam-se, em grande parte dos estados, problemas no que se refere à manutenção de uma cultura política verticalizada por parte dos representantes políticos, a partir da manutenção de práticas clientelistas, em detrimento do fortalecimento da cidadania. Tal fenômeno somado à manutenção de práticas centralizadoras vem contribuindo para a difícil construção da participação e envolvimento social na deliberação a respeito das políticas públicas locais, pensadas a partir da Constituição de 1988, a partir de uma concepção de ampla participação de envolvimento social. (Guimarães, 2008). A fim de refletir a respeito do processo de construção da democracia no país, considera-se extremamente importante analisar as relações que vêm se desenvolvendo entre Estado e sociedade civil, a partir do estabelecimento de espaços criados com a perspectiva de inserção da sociedade na deliberação das políticas públicas, 30 ou seja, espaços que visam o compartilhamento da gestão das políticas públicas. Considera-se importante analisar como, na prática, têmse desenvolvido esta nova proposta de relacionamento. A escolha destes espaços enquanto objeto de reflexão foi devido a tratar-se de uma importante inovação do ponto de vista institucional, os quais prevêem a descentralização decisória e a participação da sociedade, representada a partir de diferentes segmentos e grupos, nas decisões a respeito das políticas públicas. Os conselhos gestores obrigatórios são os Conselhos de Assistência Social, Conselho de Saúde, Conselho de Educação, Conselho do Trabalho e Conselho da Criança e do Adolescente. Tais conselhos foram criados no âmbito dos três níveis da federação, tendo, assim, representação federal, estadual e municipal. Foram escolhidos os conselhos obrigatórios pelo seu caráter deliberativo, observando-se que outros conselhos existentes, apesar da sua relevância, apresentam um caráter meramente consultivo por parte dos poderes executivos para com a sociedade civil. Não se pretende discutir a respeito das peculiaridades institucionais de cada um desses espaços, mas antes propor uma análise sobre a construção da participação nesses espaços de deliberação compartilhada, para apontar possibilidades e problemas no convívio dos atores políticos envolvidos entre os representantes dos poderes executivos e da sociedade civil, além de propor saídas e soluções em prol do desenvolvimento de um modelo democrático que seja realmente inclusivo e representativo. A partir das análises de alguns trabalhos (Andrade, 2002.1, 2002.2, 2002.3; Bonfim, 2002; Côrtes, 2002; Dagnino, 2002; Kerbauy, 2002; Avritzer, Pereira, 2005), observa-se nesses espaços de gestão compartilhada com o executivo municipal, no que diz respeito à participação da sociedade civil, a importância de se destacar a existência de algumas descontinuidades nas análises realizadas. O que comprova as diversas formas sob as quais as políticas e práticas políticas possam vir a ser implementadas, tendo como origem até um mesmo mecanismo institucional. Tais observações corroboram as 31 inconstâncias e diversidades que se podem verificar neste campo, no que se refere à participação da sociedade civil nos conselhos e as sucessivas relações produzidas nestes, entre o poder executivo, nas diferentes regiões do país. (Guimarães, 2008). Algumas variáveis podem ser destacadas enquanto essenciais para se pensar o problema da participação, assim como da representação nesses espaços. Aquelas que têm se revelado fundamentais na explicação dos sucessos e fracassos vivenciados pelos conselhos atualmente são: 1) Forma de escolha dos conselheiros, 2) Paridade dentro dos Conselhos, 3) Grau de comprometimento com as entidades que representam, 4) Grau de compartilhamento das decisões, 5) Grau de transparência dos governos locais, 6) Dependência orçamentária. (Guimarães, 2008). O sucesso ou fracasso dos conselhos vem apresentando uma forte correlação com a posição contrária ou favorável dos representantes do executivo para com a sociedade em prol de uma gestão compartilhada das políticas públicas. De forma geral, observa-se com relação à primeira variável que a escolha dos conselheiros não obedece a critérios institucionais rígidos. Pelo contrário, ela é feita a partir da proximidade que possuem com o representante do executivo. O que atenta contra a real capacidade de representação da sociedade por parte destes espaços. Uma representação que, mais do que a existente no interior do Estado, deva preocupar-se em ampliar a representação e a participação de grupos sub-representados, como minorias e grupos atingidos por diferenças estruturais (Young, 2000), os quais vêm encontrando, na prática, graves entraves, o que tem contribuído para a manutenção de falhas na representação, assim como sua a inclusão no processo político. Com relação à paridade, trata-se de uma questão de extrema relevância para a possibilidade da transformação das relações historicamente hierarquizadas entre a sociedade civil e os representantes do executivo, que haja uma distribuição numérica e de poderes reais entre os dois segmentos, para que a participação e a deli32 beração ocorram de forma essencialmente compartilhada, sem que haja a imposição de uma das partes sobre a outra. Entretanto, na prática, apenas a paridade numérica vem sendo observada na composição dos conselhos. Há diferenças estruturais entre os participantes, as quais contribuem para uma desigualdade com relação ao nível de escolaridade e, muitas vezes, para a imposição do saber técnico, em detrimento de um compartilhamento das decisões. Também existem outros tipos de diferenças que vêm contribuindo para a desigualdade da participação, como a questão de diferenças culturais e de gênero, entre outras. Tal fato é extremamente negativo do ponto de vista da afirmação e da construção da democracia. Mais do que a coexistência dentro dos conselhos, deve-se pensar em um relacionamento pautado pela igualdade entre os grupos, apesar de sua diversidade. (Benhabib, 2002). Com relação ao grau de comprometimento com as entidades que representam, faz-se importante destacar que, muitas vezes, os representantes são escolhidos apenas para compor numericamente os conselhos, tanto por parte dos representantes do executivo, quanto por parte dos representantes da sociedade civil. Neste caso, não se tem uma postura de compromisso e representação dos interesses coletivos que representariam. Trata-se de uma postura de desvalorização dos conselhos e do seu papel enquanto promotor da democratização da elaboração e implementação das políticas públicas. No que se refere ao grau de compartilhamento das decisões, grau de transparência dos governos locais e dependência orçamentária, pode-se dizer que tais variáveis encontram-se diretamente relacionadas à postura dos respectivos governos em compartilhar decisões, preocupar-se em comprovar e publicar os gastos públicos e valorizar a descentralização decisória, com o fim de gerar condições favoráveis à participação popular no que se refere às políticas públicas. Tal pressuposto, em relação às experiências positivas e bem-sucedidas dos conselhos gestores, aponta para sinaliza a constante contradição entre a convivência de uma cultura política autoritária e centralizadora e com a existência de espaços institucionais democráticos. 33 Tendo em vista o peso da atuação do gestor público para a legitimação ou não dos conselhos, observa-se que não se pode permitir o real funcionamento democrático desses espaços nas mãos dos governos locais. Para que estes espaços se tornem independentes e autônomos, é preciso pensar uma série de mecanismos institucionais que garantam e regulem as ações que se desenvolvam no seu interior, a fim de torná-los eficazes do ponto de vista da construção de uma democracia inclusiva, plural e representativa. Para além desta proposta, considera-se necessário o fortalecimento e a criação de novas instituições independentes, capazes de regularizar e fiscalizar o funcionamento dos conselhos, para tornálos mais incisivamente vigiados e tenham as suas irregularidades denunciadas. Além disso, tal proposta garantiria a institucionalização real das ações participativas por parte dos diferentes grupos da sociedade, no seu interior, de modo horizontal, livre das desigualdades no tratamento das diferenças dos grupos envolvidos. 5. Aspectos que Influenciam Positivamente na Construção da Participação Social nas Polítias Locais Apesar das grandes disparidades encontradas nas diferentes regiões do país, a partir de alguns estudos analisados (Andrade, 2002.1, 2002.2, 2002.3; Avritzer, Pereira, 2005; Bonfim, 2002; Costa, 2003; Côrtes, 2002; Cunha, 2004; Dagnino, 2002; Duarte, 2004; Filhos, 2002; Kerbauy, 2002; Rêgo, 2002; Silva, 2002; Vilar, 1997), foi possível destacar alguns dos aspectos que têm sido apresentados como extremamente importantes para a construção da participação social. 1- Força associativa pré-existente no município, antes da criação de projetos e políticas participativas. Observa-se que nos municípios onde tradicionalmente já havia um maior envolvimento da sociedade com questões coletivas, os Conselhos criados desenvolveram-se de forma mais efetiva e vêm se apresentando como referência 34 em espaços de envolvimento e participação democrática. 2- Governo local com características participativas. Apesar de não se observar esta característica na maioria dos municípios brasileiros, alguns trabalhos mostram a existência da participação em determinados locais e a importância para a mudança da cultura participativa de forma hierarquizada para uma proposta mais horizontal, em que o clientelismo cede lugar à cidadania. 3- Apoio das diferentes secretarias municipais e estaduais, tendo em vista os diversos projetos pretendidos (de acordo com a política específica). Mesmo aqueles governos que não se mostravam favoráveis a uma abertura à participação social e ao compartilhamento de decisões, quando havia aceitação por parte dos secretários municipais (ligados aos seus referidos conselhos), existia uma grande positividade da participação política nos Conselhos pesquisados. Nesse sentido, por serem as pessoas mais ligadas aos Conselhos, representando os governos locais, eram capazes de promover a participação e a deliberação para a construção das políticas públicas específicas. 6. Aspectos que Influenciam Negativamente na Construção da Participação Social nas Políticas Locais Assim como em relação aos aspectos positivos, os estudos já citados também caminham na elaboração de aspectos que têm sido destaque como principais obstáculos para a participação social na deliberação das políticas públicas. 1-Governos locais com características autoritárias e centralizadoras. São características que se observam na grande parte dos municípios brasileiros diante da herança política autoritária 35 e centralizadora que tem marcado profundamente as relações políticas e sociais no país, contrariando os princípios democráticos definidos institucionalmente, mas que se evidenciam na prática política cotidiana e ganham espaço no interior dos Conselhos Gestores, em grande medida pela falta de fiscalização e forte atrelamento desses espaços aos seus respectivos governos locais. 2- Ausência de força associativa no município, antes da criação dos projetos e políticas. (Baixo estoque de capital social). A luta pela inclusão e participação política observada pelos movimentos sociais durante o processo de redemocratização nacional não pode ser generalizada para grande parte dos municípios do país. Observa-se que a ausência de uma força associativa nos municípios brasileiros é também uma forte herança do tradicional modelo centralizador decisório, que marcou grande parte da história política do país, produzindo um desinteresse pelas questões coletivas. Esta característica, por sua vez, dificulta a construção dos Conselhos Gestores como espaços de maior envolvimento social e participação na construção de políticas públicas que dizem respeito a toda a comunidade referida. 3- Falta de comprometimento dos representantes com as instituições que representam. Observa-se que grande parte dos representantes participantes dos Conselhos não agem de acordo com os interesses das instituições com as quais estão envolvidos. Muitas vezes operam de acordo com suas vontades e crenças pessoais e dificultam a construção da representação no interior dos Conselhos. Os aspectos abordados acima apresentam alguns dos principais pontos que estão sendo analisados, pois dificultam a promoção democrática e inclusiva na construção das políticas públicas em nível local. Apesar de algumas diferenças, grande parte dos Conselhos de 36 diferentes regiões do país têm demonstrado grandes semelhanças no que se refere ao continuísmo dos problemas enfrentados. Algumas alternativas contra estes aspectos negativos serão apresentadas ao final do presente trabalho como propostas para uma melhoria da qualidade da construção das políticas públicas locais e, por sua vez, da própria democracia nacional, tendo em vista a ampliação da sua capacidade de produzir governos que sejam eficientes, mas, sobretudo, capazes de envolver os cidadãos na construção da sua própria cidadania. 7. Novos Rumos para a Construção de Políticas Democráticas e Emancipatórias a partir do Compartilhamento Decisório entre Estado e Sociedade O presente trabalho não tem como pretensão propor uma análise rígida a respeito do processo de reconstrução da democracia no país, nem esgotar a discussão a respeito dos aspectos que vêm contribuindo e/ou dificultando a construção da participação social, no que se refere ao compartilhamento decisório na construção de políticas públicas emancipatórias. Este processo encontra-se em movimento e em constante transformação diante dos momentos específicos vivenciados nas relações que se entrecruzam entre sociedade civil e Estado. Entretanto, considera-se importante propor uma breve reflexão a respeito de uma rejeição ao modelo hegemônico de democracia durante os processos de luta social, que culminaram com a Constituição de 1988. Tal rejeição a um modelo minimalista de democracia corrobora a tese da incapacidade e da insuficiência de tal modelo em dar respostas a questões valorativas e substantivas da democracia. Dar uma solução convincente para duas questões principais: a questão de saber se as eleições esgotam os procedimentos de autorização por parte dos cidadãos e a questão de saber se os procedimentos de representação esgotam a questão da representação da diferença. (Santos, 2001, p.46). Além disso, observa-se que tal rejeição ao modelo 37 minimalista aproxima-se de toda uma discussão que prevê a necessidade da participação social na deliberação das políticas públicas, já que há uma incapacidade do formato tradicional de representar os diferentes grupos da sociedade. (Young, 2000). Grupos estes os quais devem ser portadores dos mesmos direitos, apesar das suas diferenças culturais, sociais, de gênero, raça, entre outras. (Benhabib, 2002). Tal perspectiva inicial foi fundamental para a inauguração de mecanismos institucionais descentralizantes de poder e inclusivos do ponto de vista da sociedade, embora tenha sido apenas um primeiro passo para a transformação das práticas políticas que envolvem: Estado e sociedade. Trata-se de propor uma reflexão a respeito da difícil construção da democracia. Uma democracia que deve se preocupar em se tornar universal, pautando-se na discussão a respeito da necessidade de uma maior representação e inclusão dos diferentes grupos sociais de forma efetiva nos diversos espaços de participação, como por exemplo, nos conselhos gestores. Uma democracia preocupada em compartilhar decisões e aprender a cada dia com a diferença e o diálogo, sem, é claro, cair em um relativismo despreocupado, mas a partir da luta pelo reconhecimento da garantia dos direitos de todos, sobretudo de grupos socialmente menos privilegiados. No período mais recente, observa-se uma série de discussões em relação ao potencial democrático do novo formato descentralizado de provisão de políticas sociais. Faz-se importante refletir sobre o formato político desenhado pela Constituição de 1988 quanto às suas potencialidades de introdução de maiores níveis de transparência com relação à tomada de decisões pelas instâncias subnacionais de governo, assim como em relação à possibilidade de inclusão da sociedade civil no que diz respeito à sua capacidade de deliberação, por meio dos Conselhos Municipais obrigatórios nas áreas de saúde, educação, assistência social e proteção à criança e ao adolescente e trabalho; assim como através dos conselhos de orçamentos participativos adotados por alguns municípios. Nesse momento, faz-se importante questionarmos a tese 38 da positividade da descentralização como forma de promoção da democracia, principalmente à luz da tradição autoritária e pouco competitiva do poder ao nível das municipalidades no Brasil. Esse questionamento é importante por representar a oportunidade de averiguarmos, a partir da análise de casos concretos, o real alcance democrático das iniciativas descentralizantes. Além da atuação dos governos estaduais, das desigualdades econômicas nos municípios, as desigualdades regionais e a enorme heterogeneidade do país tem se constituído ao longo do período republicano numa variável explicativa central, na compreensão das diferenças e complexidades sociais estabelecidas territorialmente e das conseqüências políticas resultantes desse processo. (Kerbauy, 2002, p. 13) Deve-se ainda refletir a respeito da eficácia e eficiência dos governos subnacionais na prestação de serviços e do grau de accountability no que diz respeito às ações governamentais. De acordo com Bonfim (2002), existiria uma aposta com relação à possibilidade de, através da criação desses “espaços deliberativos”, romper-se com a “tradição autoritária e burocrática do Estado brasileiro”; desse modo, as políticas sociais seriam um importante elemento na construção de uma sociedade menos desigual. O novo formato de provisão de benefícios sociais no Brasil deve evoluir no sentido de se buscar novas alternativas institucionais, com o intuito de promover uma maior participação nos atuais conselhos e, assim, desburocratizá-los, tornando-os representativos à participação deliberativa na esfera pública Observa-se em relação às análises apresentadas neste trabalho, que a construção da participação social nos conselhos gestores deva caminhar no sentido da criação de uma rede de articulações com outras forças sociais da sua localidade, como movimentos sociais, universidades, igrejas, ONGs, instituições públicas e privadas; como também um envolvimento com setores não organizados. Dessa forma, destaca-se a importância de desenvolvimento do empoderamento social diante das políticas públicas. 39 Outro aspecto importante com relação ao modelo descentralizado é a tentativa de promover uma maior integração entre a elaboração e desenvolvimento dos diversos projetos existentes, assim como entre a população beneficiada, a fim de que alcancem uma maior eficácia. Contudo, faz-se necessário o fortalecimento de instituições que regularizem o funcionamento dos Conselhos, assim como promovam a avaliação e o acompanhamento dos diversos programas que possuem caráter participativo. Observa-se que grande parte dos problemas abordados ganham força atualmente, diante da ausência de uma intensa fiscalização em relação ao funcionamento desses espaços e das práticas políticas observadas no cotidiano democrático. Referências ABRAMO, Claudio. Constituinte e democracia no Brasil hoje. São Paulo: Brasiliense, 1985. ABRÚCIO, Fernando Luiz. 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Esta análise salienta que, apesar da difícil realidade vivida pelos seus mais de 2,8 milhões de habitantes, a região guarda um inexplorado potencial de produtividade econômica (baseado no estudo dos indicadores dos municípios vizinhos, da mesma microrregião). Além disso, observa-se que a maior contribuição possivelmente advinda do presente trabalho é a disponibilização destas informações por meio de um sistema capaz de combiná-las por meio de tabelas, gráficos e mapas para a utilização de gestores públicos, empresários, produtores rurais e agentes sociais, com foco no desenvolvimento integral da região dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Norte de Minas. *Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV Fundação Getúlio Var gas (2002) e consultor. Na Universidade de Nova Iorque, especializou-se em Administração para o Terceiro Setor. Trabalhou na Ashoka – Empreendedores Sociais (Washington, DC), fazendo a interlocução com as organizações brasileiras. 45 2. Introdução O desenvolvimento do Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas como estratégia para a atração de investimentos, melhoria dos indicadores de produtividade e dinamização econômica da região foi feito a partir de demanda recebida pelo Instituto Publix1 por parte da SEDVAN2 e do IDENE3. A partir disso, partiu-se para o desenvolvimento das atividades que possibilitariam a construção de um sistema de informações com dados sobre todas as atividades econômicas presentes em pelo menos um dos 188 municípios da região. Este documento tem o objetivo de fazer uma análise dos resultados das pesquisas realizadas às bases de dados, cotejando as informações resultantes com a percepção sobre o que seria razoável almejar no horizonte de aproximadamente dois anos4 . 1 Instituto Publix para o Desenvolvimento da Gestão Pública Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas 3 Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas 4 Agradeço a todos os que colaboraram para que este trabalho fosse possível. Destaco o apoio dedicado e comprometido de toda a equipe da SEDVAN e do IDENE (em especial a Simone Alves Pereira pelo apoio incondicional a todas as atividades do nosso trabalho e Cid Dutra pelo convite para a elaboração deste documento), o apoio e a confiança da diretoria do IDENE, especialmente a Rachel Tupynambá de Ulhôa, Walter Antônio Adão e a Secretária Elbe Brandão. Agradeço também a dedicação além do limite do colega Beno Reicher e da equipe da Fábrica de Idéias, Rodrigo Severo e Fernando Vianna. E, finalmente, a quem, desde o começo tem oferecido suporte e depositado confiança: os amigos do Instituto PUBLIX, em especial ao João Paulo Mota a quem agradeço pela qualidade e dedicação durante todo o processo, ao Salo Coslowsky pela concepção conceitual de todo o projeto e a qualidade do trabalho de acompanhamento da sua construção e ao Caio Marini, Humberto Martins e Alexandre Borges Afonso pela confiança e o apoio de sempre. Agradeço também aos demais amigos e colegas que contribuíram, leram e revisaram este documento, deram suas opiniões e que, de uma forma ou de outra, são também co-autores deste trabalho articulador e de caráter agregador. 2 46 3. Concepção e Fundamentos Metodológicos O desafio proposto foi o de calcular e representar graficamente o potencial econômico de uma região composta por 188 municípios. Os Objetivos Estratégicos do Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI foram utilizados para a orientação estratégica do trabalho. Assim, partiu-se dos seguintes objetivos especificamente atribuídos para o trabalho no âmbito da região analisada: • Desenvolver a produção local; • Aumentar produtividade no campo; • Destaque para o agronegócio. Para isso, trabalhou-se com dois parâmetros fundamentais. Em primeiro lugar, a identificação do potencial econômico é limitada apenas pela criatividade do analista, ou seja, quase tudo é possível, mas tentar “escolher vencedores” foi um dos grandes erros da política desenvolvimentista pregressa. Em segundo lugar, nenhuma economia transforma-se da noite para o dia, novas atividades nascem de atividades existentes. As estimativas deste trabalho foram baseadas em dados secundários e as análises foram tão precisas quanto a qualidade dos dados encontrados e que foram utilizados na sua confecção. A partir disso, conduziu-se a análise dos resultados objetivos que seria possível almejar no horizonte de aproximadamente dois anos e se desenvolveram as fórmulas para o cálculo de dois mapas (um com premissas conservadoras e outro com premissas arrojadas), além do mapa com a situação atual. Os valores de referência dos índices de produtividade foram calculados por meio do método da extrapolação, ou seja, foram feitas generalizações a partir de dados fragmentários, aplicando as análises a outro domínio, para então inferir possibilidades e hipóte47 ses. Além disso, foram utilizados os dados de referência da própria região: se o vizinho faz, é possível fazer! 3.1. Metodologia O detalhamento da metodologia requereu um bom entendimento das atividades da região e familiaridade com os dados disponíveis, tarefas-chave para este detalhamento. A primeira etapa do trabalho, que consistiu nas atividades que levaram ao cálculo de aproximadamente 160 mil valores de referência, foi empreendido por meio de seis atividades consecutivas: • Identificação de bases de dados disponíveis de atividades desenvolvidas na região e privilégios de acesso; • Segmentar a economia da região em setores; • Definir insumos fixos e índices de produtividade para cada atividade; • Identificar melhores práticas na região para cada atividade; • Desenvolvimento conceitual do sistema de informações; • Construção do sistema de informações e migração para o servidor da SEDVAN/ IDENE. O estudo aqui apresentado está limitado em função de suas características, das decisões tomadas e das disponibilidades e qualidade dos dados obtidos. Assim, algumas premissas tiveram de ser estabelecidas. Premissas O município foi a unidade de análise estabelecida em função de ser a menor unidade de agregação de valor a que se pode ter acesso por meio da metodologia de pesquisa empreendida. 48 No caso das atividades econômicas dos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal o componente fixo utilizado foi a área plantada ou área colhida. Neste caso, a premissa é de que o uso do território de cada município (áreas de lavoura, pastagens e floresta) é fixo, ou seja, não há aumento destas áreas ou a alternância líquida de áreas destinadas a cada uma das culturas. A hipótese de conversão de parte da área agricultável atual para o cultivo de uma cultura de maior lucratividade na região, portanto, traria um acréscimo líquido de geração de valor nos territórios abrangidos por esta conversão, mas, ao mesmo tempo, impactaria negativamente a produção de valor da cultura de menor lucratividade. Da mesma forma, outras ações que envolvem ganhos oriundos da agregação de valor também poderão ser empreendidas tendo como suporte as informações contidas neste Mapa. Assim, é possível que resultados expressivos sejam conseguidos por meio de, por exemplo, a agregação de novas indústrias e atividades para beneficiamento local dos produtos da região, seguindo a lógica de “subir a escada” na cadeia de valor, ou seja, obter ganhos oriundos da chegada do próximo elo da cadeia a partir das atividades existentes (e.g. criação de gado frigoríficos curtume). Assim, não se admitiu que uma nova atividade fosse iniciada em dado município. As projeções foram feitas apenas para as atividades que já existiam. Outros componentes também são considerados fixos tais como: a população economicamente ativa da região, o número de plantas industriais e de estabelecimentos comerciais e de serviços. Para os demais setores – pecuária, pesca e aqüicultura, indústria de extração mineral (indústrias extrativas), serviços, construção, comércio e indústria de transformação, dada a indisponibilidade de índices de produtividade para estas ativida49 des, o potencial de incremento da produção de valor em cada atividade foi extrapolado a partir das informações de outros setores econômicos. O seu produto foi calculado proporcional à média dos acréscimos calculados para o conjunto das atividades dos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal. Sendo assim, pressupôs-se que no caso destes setores, todas as pessoas podem melhorar sua produtividade e todos os processos podem ter sua produtividade incrementada. Partiu-se da hipótese, também, que todas as atividades econômicas têm mercado potencial ilimitado, mas também, por outro lado, não seria razoável admitir que qualquer aumento de produtividade maior do que 100% pudesse ser alcançado em um horizonte de tempo curto. Assim, os valores de acréscimo de geração de valor econômico por atividade superiores a 100% foram reduzidos para este patamar máximo, a fim de se preservar a coerência interna deste conjunto de regras. Outra premissa importante diz respeito às formas por meio das quais seria possível aos produtores alcançarem valores de produtividade superiores aos atuais. Com relação a isso, foi considerado que tanto ganhos de produtividade (e.g. toneladas/ hectare), os quais refletem a qualidade da utilização de técnicas mais equipamentos, quanto ganhos de lucratividade (e.g. Reais/ tonelada), refletindo a qualidade e o acesso a mercados em que os produtos ou serviços pudessem ser vendidos a preços superiores, poderiam causar esta variação na geração de valor por atividade econômica. Por meio da combinação destes dois indicadores, produziram-se os indicadores de rentabilidade (e.g. Reais/ hectare) que foram utilizados para as projeções conservadora e arrojada. Após a análise das informações e o resultado da extração e integração de dados, percebeu-se que a variação dos valores dos indicadores municipais de geração de valor por hectare (R$/ ha) era 50 demasiado grande (e.g. o valor máximo para feijão era de 4.050 e o mínimo é 60; no caso da laranja, os valores máximo e mínimo eram 11.400 e 330). Contudo, na maioria dos casos, o desvio-padrão não apresentava valor tão alto, o que indicava que esses valores de máximo e mínimo eram “outliers”, e, portanto, de pouca confiabilidade. Havia também a possibilidade de polarização dos dados, como aconteceria se, por exemplo, “gado de corte” e “gado de leite” fossem agrupados sob um único título “gado”. Aprofundou-se as análises para conferir qualidade às informações e optou-se por manter estas informações. Limites Segundo informações obtidas pela equipe envolvida no projeto, a região é produtora de pinhão-manso. Entretanto, a regulamentação da produção desta cultura no país é bastante nova, datando do ano de 2008, motivo pelo qual o IBGE, na pesquisa Produção Agrícola Municipal – Cereais, Leguminosas e Oleaginosas 2002-2006 – não informa dados relativos à cultura. Como a metodologia deste estudo é baseada em dados secundários, cuja fontes mais importantes são os dados fornecidos pelo IBGE, não foi possível, neste momento, informar os dados relativos a esta cultura. O girassol, outra cultura que, segundo informações, está presente na região, também não aparece na pesquisa mencionada anteriormente. 3.2. Concepção Como dito anteriormente, a elaboração do Mapa de Potencialidades Econômicas implicou no empreendimento de seis grandes tarefas. A seguir, faremos uma breve explicação sobre cada uma delas. Identificar os dados disponíveis Em primeiro lugar, foi necessário que a equipe se familiarizasse com as bases de dados federais e estaduais, além dos dados 51 geridos por entidades privadas para a elaboração de um sumário dos dados disponíveis. Segmentar a economia da região em setores Em paralelo, a economia da região foi segmentada de acordo com os setores econômicos: agricultura, extração vegetal, silvicultura, produtos de origem animal, pecuária, pesca e aqüicultura, indústria de extração mineral (indústrias extrativas), serviços, construção, comércio e indústria de transformação. A partir destes onze grupos, procurou-se agregá-los em função da disponibilidade de dados sobre as 292 atividades econômicas identificadas e da confiabilidade deles. O nível adequado de agregação foi encontrado quando a amostra por segmento foi razoável e os dados eram bons e confiáveis. Assim, as seis categorias com que se decidiu prosseguir o trabalho foram: • Agricultura; • Extração vegetal + Silvicultura; • Produtos de origem animal + Pecuária + Pesca e aqüicultura; • Indústria de extração mineral (indústrias extrativas); • Serviços + Construção + Comércio; • Indústria de transformação. Definir insumos fixos e índices de produtividade para cada atividade Uma vez pronta a lista detalhada de atividades econômicas classificadas segundo o setor econômico, associou-se a cada uma delas parâmetros fixos e índices de produtividade. Por exemplo, no caso das atividades agrícolas, o parâmetro fixo foi “área colhida” e os índices de produtividade foram toneladas produzi52 das por hectare (ton/ ha) e também valor econômico auferido por tonelada (R$/ ton); unindo-se os dois, tem-se o valor econômico auferido por hectare (R$/ ha), que representa a eficiência no uso da terra. Os índices ideais exigiam informações que não estavam prontamente disponíveis, como foi o caso dos dados de desfrute por município. Nesse caso, foi necessário escolher outro indicador de produtividade (“second-best”), por exemplo, arrecadação de ICMS por atividade. Para a pecuária, por exemplo, a indisponibilidade de informações sobre a produtividade das atividades, levou à busca e utilização da base de dados de arrecadação do ICMS a partir do que se calculou a receita por atividade. Foi necessário também o uso de estimativas, extrapolações e busca de dados complementares. Esse exercício exigiu um profundo conhecimento dos dados disponíveis e das atividades econômicas retratadas, além de um tanto de engenhosidade e criatividade na definição de insumos e índices. Essas três tarefas foram críticas e resultaram nas fundações do sistema de informações no qual se baseia o mapa. A análise também indicou que há grande heterogeneidade entre os valores dos indicadores entre as microrregiões. No caso da cultura do milho, os valores médios variam de 0,26, em Capelinha, a 2,13 toneladas/ hectare, na região de Corinto (vide quadro 1). 53 Quadro 1 - Produtividade microrregional da cultura do milho (em ton/ ha) Fonte: autor As informações referentes aos setores agricultura, extração vegetal, silvicultura e produtos de origem animal, para cada um dos 188 municípios da região, foram sistematizadas em arquivos eletrônicos incluindo, quando disponíveis, os seguintes dados: • Área plantada ou destinada à colheita (em hectares); • Área colhida (em hectares); • Quantidade produzida (em toneladas); • Rendimento médio (em quilos/ hectare); • Valor (em Reais/ por quilo); • Geração de valor por hectare (em R$ 1000/ hectare); • Valor por tonelada (em R$ 1000/ tonelada). 54 Neste trabalho também foram feitos os levantamentos de: • Rendimento médio (em quilos/ hectare); • Geração de valor por hectare (em R$ 1000/ hectare); • Valor por tonelada (em R$ 1000/ tonelada). Identificar melhores práticas na região para cada atividade Quando a base de dados foi finalizada, estando estruturada e preenchida com os dados pertinentes, o próximo passo foi montar a rotina de consulta às melhores práticas. Para isso, optou-se por considerar a melhor prática microrregional por ser esta a menor unidade de análise de municípios agregados e por se acreditar que os municípios pertencentes a uma mesma microrregião deveriam ser aqueles em que se encontram as maiores semelhanças em termos de condições edafoclimáticas e de indicadores censitários condicionantes da produtividade das atividades econômicas. Isto é, identificou-se que as melhores práticas microrregionais representavam uma meta bastante realista sem que fosse necessário recorrer a valores de referência de fora da região. Esta alternativa pareceu mais enxuta para esta sofisticação do Mapa e as melhores práticas foram estabelecidas, mantendo-se algumas condições constantes. Outra alternativa teria sido fazer as buscas apenas nos municípios com perfis semelhantes de clima, temperatura e pluviometria ou que ficassem à mesma distância de grandes centros consumidores, mas os dados a este respeito precisariam ser tratados para se desenvolver uma cesta de indicadores que dariam os subsídios para a classificação de cada um dos municípios segundo tipos o que pareceu bastante complexo e, ao mesmo tempo, pouco produtivo em termos de estabelecer comparações entre os municípios 55 para as 292 atividades econômicas existentes. Sobre os indicadores de lucratividade, percebeu-se que as variações entre as regiões são menores, ou seja, há maiores desafios (ou, pelo menos, maiores disparidades), no caso da utilização de técnicas e equipamentos, do que no acesso a mercados. Isso não significa que não existam ações importantes a serem conduzidas no sentido de reduzir disparidades como a que existe entre o preço conseguido pelos produtores. Retomando o caso da cultura do milho – que no estudo da produtividade apresentava variação de até 700% – na microrregião de Janaúba, o indicador de rentabilidade é igual a 280 Reais por tonelada enquanto, na região de Capelinha, o resultado é superior a 97%, atingindo o valor de 550 Reais por tonelada comercializada (vide quadro 2). Quadro 2 - Lucratividade microrregional da cultura do milho (em R$/ ton) Fonte: autor 56 Desenvolvimento conceitual do sistema de informações Concluídas essas tarefas, o trabalho estava praticamente pronto. O passo seguinte foi decidir os detalhes de quais relatórios o sistema deveria gerar e como representar as extrapolações em um mapa (agregadas, detalhadas, etc). Além disso, também foi estabelecida a matriz-escopo que deveria ser utilizada para fazer a carga de dados no sistema, foram extraídos os dados setoriais, analisadas as informações e integrados os dados. Com base neste trabalho, foi desenvolvido o desenho da arquitetura de informação (wireframes) e o design do sistema para a construção do piloto. Por fim, a sofisticação inserida neste modelo foi de “plugar” os dados projetados de cada atividade na fórmula de cálculo do PIB e projetar um novo PIB-base para cada município e cada atividade de acordo com duas perspectivas: uma conservadora e outra arrojada. Construção do sistema de informações e migração para o servidor da SEDVAN/ IDENE Com base nas definições acima, foram desenvolvidos o módulo de relatórios por setor com as tabelas, gráficos e o módulo de territorialidade representado por meio de mapas. Neste momento está em andamento a migração do sistema para o servidor da SEDVAN/IDENE 4. O Sistema de Informação O uso de informações estruturadas – elemento fundamental no processo de atuação estratégica das organizações, sendo elas públicas ou privadas – permite a identificação de questões e tendências de maior impacto em determinados setores da economia, contribui para a transparência na tomada de decisão e possibilita a alocação mais eficiente de recursos materiais e humanos, bem como níveis crescentes de eficácia e efetividade das ações empreendidas. O Mapa 57 de Potencialidades Econômicas das Regiões do Norte e Nordeste de Minas ancora-se nesse pressuposto. A construção deste sistema de informação capaz de gerar tabelas, gráficos e mapas informativos dos indicadores de produtividade das atividades econômicas da região dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas. O sistema dá conta de organizar e representar os indicadores distribuídos em setores econômicos e atividades. Para cada atividade, o ele apresentará apenas uma informação: o indicador de produção de valor econômico. Este sistema foi desenvolvido para que possa ser acessado a partir da página eletrônica da SEDVAN/ IDENE. A especificação das dimensões e características essenciais do Mapa de Potencialidades Econômicas das regiões do Norte de Minas, Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Rio Doce abrange toda a região que é caracterizada: composta por 188 municípios, tem 2,8 milhões de habitantes, sendo 1,8 milhão de habitantes na zona urbana (63 %) e 1 milhão de habitantes na zona rural (37%). Com área de mais de 219 mil km2, sua densidade demográfica é de 12,92 habitantes por km2 e seus municípios distam, em média, 543 km de Belo Horizonte. Seu PIB per capita é de R$ 2.712, a taxa média de analfabetismo é de 28,94% e o IDH-M dos municípios variam de 0,568 até 0,784. O Mapa de Potencialidades Econômicas das Regiões Norte e Nordeste de Minas abrange a totalidade dos 188 municípios da região, subdivididos em quatro mesorregiões: I. Central: 11 municípios II. Vale do Jequitinhonha: 53 municípios III. Vale do Mucuri e São Mateus: 35 municípios IV.Norte de Minas: 89 municípios 58 15 microrregiões: I. Águas Formosas: 8 municípios II. Almenara: 18 municípios III. Araçuaí: 16 municípios IV. Bocaiúva: 6 municípios V. Brasília de Minas: 9 municípios VI. Capelinha: 8 municípios VII. Corinto: 14 municípios VIII. Diamantina: 11 municípios IX. Grão Mogol: 5 municípios X. Janaúba: 15 municípios XI. Januária: 21 municípios XII. Mantena: 9 municípios XIII. Montes Claros: 14 municípios XIV. Salinas: 16 municípios XV. Teófilo Otoni: 18 municípios E nove territórios rurais 5: I. Alto Jequitinhonha: 15 municípios II. Alto Rio Pardo: 15 municípios III. Baixo Jequitinhonha: 16 municípios IV. Médio Jequitinhonha: 18 municípios V. Noroeste de Minas: 4 municípios VI. São Mateus: 8 municípios 61 dos 188 municípios da região não estão classificados segundo estas regiões. 5 59 VII. Serra Geral: 16 municípios VIII. Sertão de Minas: 15 municípios IX. Vale do Mucuri: 20 municípios O mapa também abrange as informações recolhidas e sistematizadas sobre todas as 292 atividades econômicas presentes no território em referência e cuja relevância possibilite a análise comparativa dos indicadores de produtividade entre os municípios. As atividades foram classificadas em função de seis grandes setores econômicos: I. Agricultura: 43 atividades II. Extração vegetal + Silvicultura: 12 atividades III. Produtos de origem animal + Pecuária + Pesca e aqüicultura: 8 atividades IV. Indústria de extração mineral (indústrias extrativas): 20 atividades V. Serviços + Construção + Comércio: 25 atividades VI. Indústria de transformação: 184 atividades 4.1. Navegação Para facilitar a visualização e navegação, o Mapa de Potencialidades foi concebido em duas partes. A primeira delas é justamente a navegação por região, que tem por objetivo familiarizar o visitante e percorrer o sistema, utilizando a abrangência geográfica como principal referência. A estrutura de navegação por regiões permite, a partir do dado mais amplo (norte e nordeste de Minas), desagregar para o nível de microrregiões, mesorregiões, territórios rurais e, finalmente, por município. O acompanhamento do potencial econômico utiliza a apresentação gráfica de mapas e tabelas, que traduzem a relação entre os dados informados e os parâmetros para eles estabelecidos. Dessa forma, privilegia-se a rápida leitura do fenômeno analisado, a partir da qual é possível o aprofundamento de informações por meio 60 de mesorregião, microrregião, território rural ou município. A segunda parte ressalta a navegação por atividade econômica, que propicia ao usuário visualizar o sistema considerando as atividades e setores da economia como referência principal. A estrutura de navegação por atividade econômica permite, a partir do dado mais consolidado (toda a economia), desagregar para o nível de atividades de cada setor. O acompanhamento do potencial econômico para os setores utiliza a apresentação de gráficos e tabelas, que traduzem a relação entre os dados informados e os parâmetros para eles estabelecidos. Dessa forma, privilegia-se a rápida leitura do fenômeno analisado, a partir da qual é possível obter informações sobre a economia de diversos setores da região. 4.2. Metodologia de Cálculo das Projeções de Valor Econômico Durante a etapa de desenvolvimento conceitual do Mapa de Potencialidades Econômicas, identificou-se que sua grande força estaria na aparente simplicidade. Assim, conduziu-se o trabalho com apenas três cenários: I. Situação atual; II. Situação projetada conservadora; III. Situação projetada arrojada. Para cada uma delas, desenvolveu-se sua representação por meio de um único número, que é o resultado da soma das receitas de todas as atividades econômicas. Assim, os relatórios do sistema foram projetados para oferecerem informações do tipo: hjoje, a receita total agregada dessas atividades na região é de R$ X; em um cenário conservador esse número poderia subir para R$ Y, e em um cenário mais arrojado esse número poderia subir para R$ Z. Uma vez apresentados esses números sobre o total da região, começa o exercício realmente interessante, que é mostrar, de diferentes formas, de onde vêm esses valores, ou seja, onde está escondido o ouro. Por exemplo: o valor conservador de R$ Y pode ser obtido se os municípios A, B e C adotarem medidas para melhorar os índices de produtividade das atividades D, E e F. 61 A pergunta mais óbvia seria: aumentar como? Conforme exposto, além do mapa da situação atual, foram feitas duas projeções, uma mais conservadora e outra mais ousada. No primeiro caso, para o cálculo da projeção conservadora, o valor foi obtido calculando-se a projeção do valor produzido em cada atividade, caso sua produtividade fosse aumentada na proporção equivalente ao aumento global da produtividade desta atividade nos municípios de cada microrregião em um desvio-padrão. Por exemplo: a projeção conservadora da produção de valor da cultura do algodão em qualquer município da microrregião de Januária é igual a 16%, que é o valor de acréscimo da produtividade média dos municípios desta microrregião quando, à média, é acrescido o valor de um desvio-padrão. Este valor de incremento na produção foi limitado até um teto de 70% por considerar-se razoável que cada município compreenda este como um valor máximo para o aumento da produção de valor para qualquer uma de suas atividades econômicas. No segundo caso, para o cálculo da projeção arrojada, o valor foi obtido calculando-se a projeção do valor produzido em cada atividade caso sua produtividade fosse aumentada na proporção equivalente ao aumento global da produtividade desta atividade nos municípios de cada microrregião caso todos alcançassem a produtividade máxima encontrada em cada microrregião. Por exemplo: a projeção arrojada da produção de valor do leite, em qualquer município da microrregião de Águas Formosas, é igual a 74%, que é o valor de acréscimo da produtividade média dos municípios desta microrregião quando todos os municípios aumentam sua produtividade até o valor máximo obtido por aquele município que tenha o melhor índice de produtividade de leite na microrregião. Este valor de incremento na produção foi limitado até um teto de 100% por considerar-se o máximo possível a ser almejado por cada município como um valor para o aumento da produção de valor para qualquer uma de suas atividades econômicas. Mas onde estão essas culturas, e quais os municípios com os melhores índices? O sistema é capaz de oferecer estas informações desde que o usuário se disponha a testar as suas próprias hipóteses. 62 Assim, começando pelo dado mais agregado possível, foi-se fragmentando de diferentes formas úteis para que o usuário possa obter diversas informações sobre o desempenho da economia local de acordo com o seu interesse e que sirvam de subsídio para a tomada de decisões estratégicas de empresas, organizações sociais e órgãos públicos interessados em desenvolver ações para o desenvolvimento da região. Além das consultas por atividade econômica, foram criadas consultas voltadas para municípios o que pode interessar aos prefeitos que desejem conhecer em detalhe a matriz econômica do município que administra. Uma vez compilados os dados e legitimada a técnica de extrapolação e os seus parâmetros, o desafio foi tornar o mapa amigável para a utilização considerando os seus distintos usuários (governo, produtores, imprensa, organismos internacionais, etc.) 4.3. Características Adicionais Para que seja possível desenvolver análises que levem em conta os indicadores censitários condicionantes da produtividade das atividades econômicas, o Mapa também contém informações dos municípios quanto a: • População total (rural e urbana); • Área total; • Taxa de analfabetismo; • PIB per capita; • IDH-M; • Distância até a capital. 4.4. Fontes de Informação Foram consultados os principais temas do SIDRA – Sistema IBGE de Recuperação de Dados para a região estudada, com o intuito de obtenção de dados referentes à extração vegetal, silvicul63 tura, pecuária e do número de atividades industriais da região estudada (tabela 1986 - Estrutura do valor da transformação industrial das empresas industriais, segundo o grupo de atividades - Ano 1996 a 2005). As seguintes fontes do IBGE foram pesquisadas para cada um dos setores econômicos: • Produção Agrícola Municipal – PAM, 2006 para os dados sobre a agricultura; • Produção Extrativa Vegetal, 2006 (tabelas 289 e 290) para os dados sobre a extração vegetal; • Pesquisa da Pecuária Municipal, 2006 (tabelas 32, 34 e 74) para os dados sobre os produtos de origem animal; • Silvicultura, 2006 (tabelas 291 e 192) para os dados referentes à silvicultura. Outras fontes de informação consultadas incluem a Secretaria de Estado da Fazenda de Minas Gerais para os dados da Indústria de transformação. 5. Simulação Para ilustrar os benefícios que o Mapa é capaz de oferecer, desenvolveremos a seguir dois estudos: o primeiro, a partir da definição das atividades econômicas e o segundo, a partir do território. 5.1. Oleaginosas Como já dito anteriormente, dos produtos classificados como oleaginosas, pudemos identificar apenas quatro: algodão herbáceo (em caroço), amendoim (em casca), mamona (em baga) e soja (em grão), que juntas foram responsáveis pela produção de R$ 38 milhões. As produções de girassol e pinhãomanso não foram identificadas nas bases de dados consultadas. 64 As culturas são encontradas de forma mais ou menos dispersa no território. A cultura mais difundida é o amendoim que é cultivado em 46 municípios, em seguida vem o algodão, presente em 22 municípios, seguido pela mamona, presente em 17 municípios e, finalmente, a soja, que é cultivada em apenas sete dos municípios da região (vide quadro 3). Quadro 3 – Oleaginosas: Municípios produtores Fonte: autor Quanto à sua distribuição pelas mesorregiões, apenas a região norte não registra o plantio de qualquer destas culturas. Já as mesorregiões do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas registram produção das quatro culturas. A região do Vale do Mucuri e São Mateus registra cultivo apenas de amendoim e mamona. Quanto à distribuição do cultivo de oleaginosas em função das microrregiões, há três delas que não registram esse cultivo (Águas Formosas, Almenara e Teófilo Otoni). E apenas em Janaúba e Januária podemos encontrar a produção de todas as quatro culturas. A microrregião que mais produz algodão é Corinto, responsável por 44,43% da produção de toda a região. No caso do amendoim, o maior produtor é Janaúba que responde por 28,74% da produção regional. A mamona é mais produzida em Januária, com 67,68% da produção neste território. Finalmente, a soja é a que tem sua produção mais concentrada, sendo 79,43% produzido apenas na microrregião de Corinto (vide quadro 4). 65 Quadro 4 – Oleaginosas: produção de valor microrregional (em R$ mil) Fonte: autor De forma geral, as microrregiões mais relevantes com relação à produção de oleaginosas são: Corinto que produz 70,12% de todo o valor econômico resultante do cultivo de oleaginosas, Januária que responde por 18,88% desta produção, Janaíba, com 3,52%, Montes Claros, com 3,33% e Bocaiúva com 2,78% (vide quadro 5). Dentre as quatro culturas, a mais relevante em termos de produção de valor econômico é a soja com 82,86% do valor total, seguida pelo algodão, com 9,69%, pela mamona, com 5,63% e pelo amendoim, com apenas 1,83%. 66 Quadro 5 – Oleaginosas: produção de valor microrregional agregado (em R$ mil) Fonte: autor De acordo com a projeção conservadora, o acréscimo de geração de valor econômico, resultado da produção de oleaginosas, seria de 16,6%. Das quatro culturas, a mamona é a que apresenta maior potencial, podendo ser incrementada em 50,46%, o amendoim e o algodão têm potenciais de crescimento de 21,86% e 20,27% respectivamente, e a soja é a que apresenta menor potencial de crescimento, com apenas 1,63%. Contudo, vale observar que o pequeno valor de acréscimo percentual para a cultura da soja mascara um grande potencial de geração de valor que, nominalmente, ultrapassa R$ 4,3 milhões. 67 Analisando-se as microrregiões, o maior potencial de incremento na geração de valor está nas microrregiões de Janaúba, 53,02%; que é seguido por Capelinha, 50,88%; Salinas, 50%; Januária, 34,89%; Grão Mogol, 32,86% e Araçuaí, 30,62% (vide quadro 6). Em dentre as mesorregiões, os maiores potenciais estão na região do Norte de Minas, 16,61% e Vale do Jequitinhonha, 13,89% (vide quadro 7). Quadro 6 – Oleaginosas: potencial de incremento na geração de valor microrregional Fonte: autor 68 Quadro 7 - Oleaginosas: potencial de incremento na geração de valor mesorregional Fonte: autor 6. Microrregião de Araçuaí A microrregião composta por 16 municípios (Araçuaí, Berilo, Caraí, Catuji, Chapada do Norte, Comercinho, Coronel Murta, Francisco Badaró, Itaobim, Itinga, Jenipapo de Minas, José Gonçalves de Minas, Medina, Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa) tem 231.545 habitantes, sendo 107.700 habitantes na zona urbana (46,51%) e 123.845 habitantes na zona rural (53,49%). Com área de 14.317 km2, representando 6,53% da área da região do Norte e Nordeste de Minas, sua densidade demográfica é de 16,17 habitantes por km2 e seus municípios distam, em média, 594 km de Belo Horizonte. Seu PIB per capita é de R$ 1.420, a taxa média de analfabetismo é de 31% e o IDH-M dos municípios varia de 0,594 a 0,689. De todas as atividades existentes na região, a que representa o maior valor econômico produzido é a “extração de granito e beneficiamento associado” com 51,36% do valor total gerado na microrregião; seguida pela “Construção de rodovias e ferrovias”, com 17,36%; “extração de mármore e beneficiamento associado”, com 10,76%; e “extração de outros minerais não-metálicos não especificados anteriormente”, com 6,77%. Dentre as 292 atividades econômicas, são registrados valores de produção para apenas 90. O conjunto destas 90 atividades econômicas produziu o valor de R$ 11,3 milhões na microrregião de Araçuaí. Destes, 71,5% vieram do setor da indústria de extração mineral; 17,59% dos setores de serviços, construção e comércio; 10,33% da indústria de transformação e apenas 0,42% da agricultura (vide quadro 8). 69 Quadro 8 – Microrregião de Araçuaí: participação dos setores econômicos na economia Fonte: autor Quadro 9 – Microrregião de Araçuaí: participação dos municípios na produção de valor econômico (em R$) Fonte: autor 70 Os produtos que singularmente representam os maiores valores, em termos de produto econômico na região, são o café com 29,18%; a mandioca, com 26,59%; a cana-de-açúcar, com 14,79% e o abacaxi, com 12,46% (vide quadro 10). Quadro 10 – Microrregião de Araçuaí: participação das atividades na produção de valor do setor agrícola (em R$) Fonte: autor 71 7. Conclusão Este trabalho permitiu observar que a região, de economia fortemente baseada na indústria e na prestação de serviços, guarda um expressivo potencial de crescimento econômico especialmente no setor agrícola. Para que seja possível desfrutar deste potencial são necessários esforços e investimentos de todos os tipos de recursos por parte dos atores-chaves deste processo, notadamente, empresários, gestores públicos e agentes de desenvolvimento social, econômico e ambiental. Desta forma, espera-se ter sido possível contribuir para a compreensão de que as ações em processo de condução para o aprimoramento das condições sociais, especialmente nas áreas de saúde e educação, precisam ser complementadas com investimentos dos demais setores da sociedade para que a região tenha um crescimento sustentado e promotor de bem estar para toda sua população. 7.1. Parceiros: Sedvan, Idene e Publix Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas O Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas – IDENE foi criado em 2002 para promover o desenvolvimento econômico e social das regiões Norte e Nordeste do Estado de Minas Gerais e formular e propor diretrizes, planos e ações, necessários ao desenvolvimento econômico e social destas regiões, compatibilizando-os com as políticas dos Governos federal e estadual. Responsável por toda articulação e desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas, planeja, coordena, supervisiona, orienta e executa ações sempre tendo em vista os interesses das regiões Norte e Nordeste. O IDENE atua de forma articulada com os demais órgãos e entidades dos poderes executivos municipais, estadual e federal além de entidades privadas, nacionais ou internacionais que atuem 72 nas áreas de desenvolvimento das regiões Norte e Nordeste. Também articula com os organismos competentes para a fixação de critérios de concessão de estímulos fiscais e financeiros; combate aos efeitos da seca; proteção e conservação do patrimônio cultural, histórico, arqueológico, espeleológico e paisagístico e o desenvolvimento do turismo ecológico e rural. Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas A Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas – SEDVAN foi criada em 2003 para fortalecer politicamente esta região mineira de economia historicamente deprimida. A secretaria incorpora o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas – IDENE, como órgão operacional, e tem como missão “oportunizar as potencialidades do Norte e Nordeste de Minas em desenvolvimento político e sócio-econômico sustentável”. Sua missão se orienta pelo objetivo estratégico de reduzir as desigualdades da região, objetivo este inserido no Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI. A criação da secretaria traduziu-s em uma atitude inédita que caminha na busca de alternativas inovadoras na construção da história de uma região que convive simultaneamente com a pobreza e muitas potencialidades naturais, culturais, sociais e econômicas. Tem como estratégia absorver o acúmulo dos conhecimentos locais e implementar, com eficiência, criatividade e permanente participação popular, projetos e programas que resultem em efetivos avanços do bem estar da sociedade. Desempenha um importante papel na redução do problema da desigualdade ao gerar um contexto favorável ao surgimento de novas associações civis e estimular a participação da população no planejamento e execução de políticas públicas e na tomada de decisões. 73 Instituto Publix para o Desenvolvimento da Gestão Pública Em atuação desde 1999, o Instituto Publix foi criado com a finalidade de desenvolver conhecimentos inovadores em gestão e transformá-los em resultados para governos, organizações e pessoas. Tendo como competência essencial a gestão para resultados, a Publix oferece soluções integradoras abrangentes, abordando as diversas dimensões da gestão: Estratégia, Estrutura, Pessoas, Processos, Sistemas de Informação e Controle por meio de uma rede de profissionais com vivência executiva nos setores público e privado, trajetória acadêmica de destaque e larga experiência em consultoria. A utilização de uma metodologia própria de gestão para resultado, dotada de flexibilidade para propiciar sua customização às necessidades e características únicas de cada organização, admite também a integração com outras metodologias. Possui uma abordagem de trabalho participativa, baseada no desenvolvimento das capacidades e na apropriação do conhecimento pelos clientes. 74 3 POLÍTICAS DE INCENTIVOS PARA O DESENVOLVIMENTO REGIONAL Ângela C. Porto e Francisco Carvalho Duarte Filho Consultores da P&D Consultoria Econômica 1. Apresentação O presente artigo pretende levantar a discussão sobre a questão das políticas de incentivos para o desenvolvimento do Estado e de suas regiões, abordando a necessidade e a oportunidade de se estabelecerem ações direcionadas, sobretudo para regiões mais atrasadas. O objetivo é incluir a política de incentivo ao desenvolvimento regional como uma prioridade na agenda do governo estadual e da sociedade. Assim, seria possível promover uma integração das regiões mais carentes e absorver as potencialidades regionais, visando assegurar acesso mais eqüitativo aos benefícios do processo de desenvolvimento. Sabe-se que os problemas regionais, especialmente em Minas Gerais, são de grande profundidade quanto ao seu conteúdo e natureza, requerendo, portanto, soluções que vão além do mero ato da disponibilização de recursos. Tais saídas devem estar estreitamente ligadas à consecução de políticas e planejamento governamental, com foco potencial no combate às desigualdades regionais e à pobreza. Desta maneira, o trabalho visa reunir informações que sejam traduzidas no conhecimento atual de instrumentos de política regional e em perspectivas para a formulação de um novo modelo de sustentação do desenvolvimento regional. Para tanto, é necessário que se conheçam, pelo menos em linhas gerais, as ações no âmbito 75 do governo federal, medidas e ações institucionais para a recuperação e criação de políticas nacionais regionais e a experiência da União Européia, em suas atividades de apoio financeiro a projetos de desenvolvimento econômico para os países membros. Com isso, pretendese estabelecer uma referência para a discussão da criação de instrumento de apoio financeiro, que seja aplicável à realidade mineira, a qual já se sabe, antecipadamente, ser totalmente distinta das demais. 2. Introdução É sabido que as políticas sociais desempenham importante papel no processo de distribuição de recursos e de integração regional. Portanto, elevar sua eficácia e incrementar as fontes de financiamento passam a ser metas fundamentais para fortalecer esse papel. Neste contexto, a criação de novas oportunidades de emprego com efeitos diretos e indiretos sobre o nível de renda, torna-se objetivo da maior relevância na busca de maior equidade no processo de desenvolvimento. A integração dos recursos materiais e humanos das regiões atualmente menos favorecidas no processo produtivo é essencial para o alcance daqueles objetivos. Todavia, o esforço a ser realizado deve ser acompanhado de iniciativas que resultem no fortalecimento das instituições públicas. Isso pode ser conseguido através de políticas, estratégias e regras claras, bem definidas, sustentadas por fontes confiáveis e duradouras de recursos, com vistas ao incremento da produtividade dos setores mais atrasados e da capacitação dos grupos de menor renda. Nesse sentido, políticas regionais direcionadas para regiões mais atrasadas devem constituir-se em prioridade nas agendas dos governos federal e estadual. Dessa forma, possibilita-se a integração de suas populações e a absorção das potencialidades regionais, assegurando um acesso mais eqüitativo aos benefícios do processo de desenvolvimento. Na verdade, os desequilíbrios e as desigualdades regionais no processo de desenvolvimento situam-se entre os principais de76 safios a serem enfrentados pelos diferentes níveis de governo. Isso ocorre em função de um elenco de fatores, os quais conduzem à concentração das atividades em poucos centros mais equipados em termos de infra-estrutura socioeconômica, cuja força polarizadora causa a ampliação ou a manutenção dos diferenciais de renda e de oportunidades entre as regiões. Considera-se aqui, como elemento primordial para balancear a força polarizadora dos centros hegemônicos, a existência de uma rede de cidades médias melhores estruturadas e fortalecidas, para competir por investimentos e produzir um maior equilíbrio no processo de desenvolvimento. A inexistência dessa rede de cidades é entendida, entre outros fatores que se inter-relacionam, como um elemento determinante da perpetuação dos desequilíbrios existentes entre as regiões de Minas Gerais. É fato reconhecido que as forças de mercado por si só não promovem uma automática desconcentração produtiva e, mesmo quando isso ocorre, elas não o fazem na velocidade e na direção desejada na maioria dos casos, o que, em princípio, pode implicar na necessidade de intervenção governamental. Por outro lado, fica a questão: planos e políticas regionais são de fato necessários e desejáveis para orientar o processo de desenvolvimento? Malgrado os resultados obtidos ao longo de várias décadas, no caso mineiro e de outras regiões brasileiras, uma política regional com recursos efetivos e programaticamente direcionados, continua pertinente. As regiões mais pobres apresentam, no Brasil e em Minas Gerais, não apenas uma grande base territorial com recursos variados e abundantes que lhes conferem grande potencial, mas também fortes carências e deficiências nos sistemas de infra-estrutura e de rede de cidades que lhes impõem condicionantes e restrições para decolarem. São regiões detentoras de um contingente populacional expressivo, que vivem em condições de vida e bem estar altamente precários. 77 Acrescente-se que, no interior dos estados, os problemas são, invariavelmente, ainda mais graves. Nos níveis estaduais e municipais de governo, os recursos são mais escassos e os desafios e problemas a serem enfrentados são ainda maiores para a superação das desigualdades internas. Acredita-se que definições claras de estratégias e objetivos sejam indispensáveis, isto é, necessita-se de políticas deliberadas, não apenas para a superação dos problemas de desigualdades, mas também para valer-se das possibilidades de uso mais eficiente das potencialidades intra-estaduais, seja no âmbito das macrorregiões, das microrregiões ou dos municípios. Procura-se, a seguir, destacar alguns temas que permitam entender o quadro das desigualdades regionais como um problema persistente no Brasil e em Minas Gerais. Este tema ainda se constitui em um “tabu” no processo de desenvolvimento e, por suas dimensões, deve ser tratado como o grande desafio no campo das mudanças rumo ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa. 3. Aspectos dos Problemas Regionais em Minas Gerais Ao longo de sua trajetória, Minas Gerais envidou esforços em busca do desenvolvimento através de políticas e ações capazes de promover uma melhor inserção do Estado no cenário econômico nacional, associados a uma distribuição mais eqüitativa das atividades econômicas em seu território e a uma melhor qualidade de vida de sua população. Minas Gerais foi pioneira na adoção de planos intra-regionais destinados ao conhecimento das limitações e dos potenciais de suas regiões, em especial daquelas que são consideradas áreas-problema no contexto do Estado e mesmo do País1. Os diferentes potenciais de desenvolvimento e os problemas 1 Como exemplos destas iniciativas citam-se os planos regionais desenvolvidos pela Fundação João Pinheiro durante a década de 70, endereçados às diversas regiões mineiras. 78 que caracterizam as diversas regiões refletem a diversidade social, econômica, ambiental e cultural presentes no país e em Minas Gerais, e se constituem na matéria-prima das políticas públicas regionais, elemento fundamental para qualquer estratégia de redução das desigualdades e da pobreza. É importante destacar que a busca pelo conhecimento da realidade econômica e social do Estado, sempre foi prioridade para Minas Gerais, por entender que o desenvolvimento de uma região depende, fundamentalmente, da quantidade e da qualidade da infra-estrutura de apoio e suporte à população e às atividades produtivas, dos recursos disponíveis e do grau de sua utilização, fatores esses potencializados pela educação adequada de seu contingente populacional. Para entender a complexidade e a profundidade da questão regional é necessário ir além de uma visão apenas setorialista e incorporar as especificidades do espaço onde se localizam e se desenvolvem as atividades econômicas, no que tange aos aspectos sociais e de infraestrutura. Para tanto, é indispensável deter o conhecimento das características das regiões e a contextualização dos problemas a serem equacionados e dos recursos a serem explorados. Em diferentes momentos da história econômica do Estado, problemas estruturais foram identificados e ações e programas foram acionados com diferentes graus de sucesso. O estabelecimento de uma tradição de estudos sobre a economia mineira e de adoção de planos de desenvolvimento levou à articulação de um aparato institucional de promoção do desenvolvimento do Estado de Minas Gerais, que formavam a base de apoio e sustentação das políticas implementadas nos anos 702. A ampla literatura sobre a economia mineira mostra que, de fato, a experiência do Estado é rica em planos, programas e projetos para o desenvolvimento da economia e também de medidas3 e ações que permitiram ao Estado conhecer sua realidade e buscar o Várias experiências são discutidas em Duarte Filho, F.C., “Reflexões sobre a questão regional em Minas Gerais”, Cadernos BDMG n. 13, Dezembro, 2006. 3Ao lado dos planos regionais e como suporte aos mesmos buscou-se dividir o Estado em regiões de planejamento devendo-se citar ainda a criação do CEDEPLAR na FACE/ UFMG para formar pessoal técnico de alta qualificação e elaborar estudos e pesquisas sobre a economia mineira. 2 79 equacionamento de deficiências em sua estrutura produtiva e a redução das desigualdades econômicas e sociais entre as regiões mineiras. No entanto, neste segundo aspecto, as iniciativas parecem não ter sido suficientes para atenuar ou superar os problemas. Pode-se dizer que, no caso do Brasil e de Minas Gerais, apesar de, historicamente, reunir experiências de políticas de desenvolvimento regional de considerável importância, seus efeitos acabaram por privilegiar regiões que apresentavam potenciais de competitividade favoráveis ao incremento do setor produtivo. Esta situação conduziu à concentração das atividades em alguns centros melhores equipados em termos de infra-estrutura sócio-econômica, agravando o cenário de pobreza e de desigualdade nas regiões desatendidas. A experiência demonstra, ainda, que os incentivos fiscais e os subsídios ao setor privado tiveram efeito limitado ao induzir o deslocamento de empresas de médio/grande porte para regiões menos desenvolvidas, ocasionando impacto mais relevante sobre decisões de localização em áreas com estruturas semelhantes ou mais próximas aos centros consumidores. 4. Fatores Inibidores do Desenvolvimento Regional 4.1. Tendências à Concentração Espacial das Atividades Um forte condicionante de crescimento regional equilibrado é a tendência à concentração espacial inerente às atividades produtivas. O processo de desenvolvimento capitalista é concentrador por natureza e que, assim, a própria dinâmica da estrutura espacial vigente age no sentido de imprimir um padrão concentrado à distribuição dos novos financiamentos, influenciados por fatores locacionais relevantes. A constatação é de que o processo de desenvolvimento em qualquer país, estado ou região se dá inicialmente de forma concentrada em termos espaciais, privilegiando os centros urbanos de maior 80 porte. Isso resulta do fato de que a indústria, carro-chefe do processo de crescimento, necessita de grandes aglomerados urbanos para evoluir. Neste quadro, o processo de globalização, em curso nas últimas décadas, é um elemento externo que vem apresentando ou impondo restrições e obstáculos à promoção de um crescimento espacialmente equilibrado, porque reforça a concentração das atividades econômicas e sociais em um número limitado e selecionado de localidades. Durante os anos 1990, devido às importantes transformações ocorridas no contexto mundial, o ambiente econômico brasileiro sofreu grandes mudanças, impostas pela abertura comercial intensa e rápida e pela necessidade de reestruturação produtiva que exigiu a adoção de novos paradigmas tecnológicos de produção. Todo esse movimento trouxe conseqüências sensíveis na dinâmica espacial do desenvolvimento brasileiro. Embora esses fenômenos possam ser considerados relativamente recentes, alguns estudos vêm sinalizando a interrupção da desconcentração do desenvolvimento brasileiro na direção de suas regiões menos desenvolvidas. No caso da indústria, dados sugerem mais uma vez que, assim como ocorreu em meados da década de 60, existe uma tendência a reforçar a concentração de seu dinamismo em espaços específicos do território brasileiro, onde os objetivos almejados possam ser alcançados com maior eficiência. Neste contexto, o eixo central de novas políticas regionais deve constituir-se, de um lado, pelo objetivo da equidade, gerando uma dinâmica de crescimento local; e de outro, pela eficiência, através da implantação de uma estrutura de produção com atividades que promovam resultados positivos para a região e sejam, idealmente, competitivas nacional e internacionalmente. A inserção ativa de qualquer localidade neste processo requer investimentos em infra-estrutura, educação, capacitação e tecnologia, alguns de lento retorno, o que aumenta a importância das políticas públicas estaduais no desenvolvimento regional, considerando, 81 como já sabido, que a capacidade financeira e de gestão da maioria dos municípios é bastante precária. 4.2. A Qualidade de Rede Urbana Ao lado da superação dos aspectos apontados anteriormente, o desenvolvimento econômico com menores desigualdades entre as regiões exige um sistema urbano equilibrado, caracterizado por cidades que apresentem disponibilidade de serviços diversificados (sociais, econômicos, financeiros, etc.) e de qualidade que suportem uma maior complexidade da estrutura produtiva e demográfica. Em seu estudo sobre a rede de cidades, Ruiz 4 argumenta, em suas conclusões, que na distribuição do tamanho de cidades do Brasil há uma predominância dos grandes centros urbanos, enquanto que, nos EUA, as cidades médias tendem a ter uma presença mais marcante. Assim, a estrutura brasileira é mais concentrada enquanto que a norte-americana é menos polarizada, gerando uma distribuição mais equilibrada do ponto de vista espacial, onde provavelmente os desequilíbrios e desigualdades também tendem a ser bem menores. Outra conclusão do autor, esta mais importante e bastante visível em Minas, seria o fato dos estados brasileiros apresentarem estruturas urbanas mais desiguais do que a média brasileira e que, em muitos estados, a rede de cidades apresenta sérias fragilidades, em particular no que tange às cidades médias, estas ainda em pequeno número. Tais características reforçam o caráter hegemônico das capitais e das regiões metropolitanas no desenvolvimento mineiro e brasileiro. Os sistemas urbanos de maior porte, melhores equipados em termos de infra-estrutura, são elementos determinantes das alternativas de localização das atividades econômicas e, assim, estruturam o seu entorno, exercendo um papel polarizador e irradiador do crescimento, aglutinando as ações e as relações de produção, oferta e distribuição de bens e serviços. Ruiz, Ricardo Machado. Rede de cidades comparadas: Estados Unidos, Brasil e Minas Gerais, in BDMG, Cadernos BDMG, nº 9, Outubro de 2004 4 82 A Rede Urbana Mineira De acordo com o estudo “Minas Gerais do Século XXI”5 , estruturou-se no Estado uma rede de cidades dispersas e de pequenas dimensões, aspecto que influencia os novos padrões de mobilidade espacial da população e das atividades econômicas. Segundo o documento, apesar de contar com um grande número de municípios, Minas Gerais possui poucos centros urbanos com capacidade de estruturar o espaço sob sua influência, gerando microrregiões empobrecidas, sem dinamismo e com baixos níveis de bem-estar social. Vários estudos apontam a desigualdade regional em Minas Gerais como sendo, apenas, aquela existente entre suas grandes regiões. Entretanto, menos conhecida e debatida é a ocorrência de marcante desigualdade intra-regional, seja mensurada no âmbito das mesorregiões, das microrregiões ou dos municípios. Em outras palavras, a análise com base apenas nas regiões de planejamento, embora reveladora das desigualdades existentes, não é suficiente para apreender a grande disparidade nos níveis de renda prevalecentes em Minas Gerais e, conseqüentemente, não se mostra adequada para entender a magnitude e intensidade do problema. Á medida que se alteram os cortes de análise, ampliandose o conjunto de informações (de regiões até municípios, passando por microrregiões), verifica-se grandes heterogeneidades intra-regionais em Minas Gerais, caracterizadas por poucos centros dinâmicos convivendo com grandes áreas ou sub-regiões de baixo dinamismo e largos espaços nos quais imperam significativos bolsões de pobreza, a exemplo do que ocorre inclusive, dentro da própria RMBH. Assim, quando medidas as participações das microrregiões nos totais do Estado, percebe-se que o quadro é muito desolador e, certamente, é ainda pior com uma avaliação utilizando-se o conjunto de municípios. Segundo o citado estudo “Minas Gerais do Século XXI”, 5 BDMG, op.cit. 83 16 microrregiões apresentaram PIB por habitante igual ou superior à média do Estado, enquanto que, na outra ponta, 21 microrregiões contam com valores menores ou iguais a 50% da média, e as restantes 29 microrregiões situando-se entre estes dois intervalos. Os dados do Censo Demográfico do IBGE, do ano 2000, mostram que, dos 853 municípios mineiros, 687 possuíam menos de 20 mil habitantes, perfazendo 80% do total de municípios. Apenas 23 municípios apresentavam população superior a 100.000 habitantes. O predomínio de centros de pequeno porte poderia ser considerado aceitável e não seria um grande problema se fosse acompanhado de indicadores mais adequados de condições urbanas e de bem-estar social, o que, em Minas Gerais, não ocorre. Por outro lado, verificase que 48 municípios se enquadram na faixa entre 1,4 hab./ km2 e menos de 5 hab./ km2 e 118 municípios ficam entre 5 e 10 hab./ km2. Em seu conjunto, estes dois extratos somam 43% da população estadual, o que significa o predomínio de grandes vazios econômicos e demográficos. Analisando as condições econômicas e sociais dos municípios mineiros, Paulo Roberto Haddad6 mostra que quase 94% dos municípios de Minas (um total de 799 em seu estudo) têm renda per capita inferior à média nacional, observando, ainda, ocorrência de uma concentração de municípios nas faixas dos valores que equivalem de 30% a 70% da média nacional, uma situação, portanto, nada excepcional. Entretanto, pode ser alentador constatar, nas estatísticas apresentadas pelo autor, que 420 municípios apresentam potencial alto de desenvolvimento apesar de, no quadro atual, mostrarem nível e ritmo de desenvolvimentos ainda diferenciados. Isto mostra haver espaço para a definição de políticas que, se bem direcionadas, possam explorar estes potenciais e contribuir para a melhoria da qualidade de vida nos municípios. 6 Haddad, Paulo Roberto. “Força e Fraqueza dos Municípios de Minas Gerais” in: BDMG, Cadernos BDMG, nº.8, Belo Horizonte, Abril 2004. 84 A análise em nível das “cidades-médias-pólo” no processo de desenvolvimento regional e urbano, estudada por Pereira e Lemos7 sob duas hipóteses prospectivas, é também um importante referencial para se avaliar a qualidade da rede urbana mineira em termos de potencial para absorver investimentos produtivos e promover um maior equilíbrio entre as regiões. A primeira hipótese é que as possibilidades de desenvolvimento vão responder exclusivamente aos ditames do mercado, baseados no princípio da eficiência econômica; a outra hipótese, mais otimista, é que o futuro das regiões vai também passar, além dos parâmetros estritos de eficiência per se, pela retomada de alguma forma de planejamento do desenvolvimento nacional8, cabendo, neste caso, considerações sobre políticas apropriadas e focadas para o desenvolvimento urbano e regional de cada um daqueles agrupamentos. Segundo os autores, a persistir o processo de reconcentração espacial, os pólos mais favorecidos tenderiam a ser aqueles localizados no polígono geográfico do Sul-Sudeste. A única cidade de Minas Gerais que faz parte deste grupo é Uberlândia e esta é classificada como pólo agropecuário regional em processo de desenvolvimento urbano-industrial. Por outro lado, o destino das cidades médias fora do polígono de reconcentração do Sul-Sudeste não parece promissor. O estudo citado continua demonstrando que as sete principais cidades-médias-pólo de Minas Gerais, por suas características e destaques, podem ser consideradas ainda frágeis para sustentar um crescimento local e para transmitir dinamismo a sua periferia. São exemplos: Ipatinga (meso-pólo industrial com baixa capacidade de gotejamento de suas indústrias para a região), Uberlândia (meso-pólo agropecuário com possíveis transbordamentos regionais para sua região), Juiz de Fora Pereira, Fabiano M. e Lemos, Mauricio Borges,” Políticas de desenvolvimento para as cidades médias mineiras”, in: BDMG, Cadernos BDMG, nº. 9, Belo Horizonte, outubro 2004. 8As iniciativas do Ministério da Integração Nacional em formular uma PNDR é exemplo de que este processo encontra-se em curso. 7 85 (meso-pólo industrial com risco de estagnação), Montes Claros (enclave agropecuário sem vantagens macro-locacionais)9 . Finalmente, encerrando o quadro de referência da questão regional em Minas Gerais, apresenta-se, a seguir, algumas informações e conclusões do estudo da Fundação João Pinheiro sobre os aspectos do desenvolvimento humano em Minas Gerais, com base nos indicadores do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM10, que sintetiza o grau de atendimento de três necessidades básicas: acesso ao conhecimento (educação), longevidade (vida longa e saudável) e padrão digno de vida (renda). As análises abrangem o período entre 1991 e 2000, sendo que aqui serão destacados apenas alguns dados e conclusões que revelam mais detalhes sobre a questão regional em Minas. As informações contidas nos parágrafos anteriores mostram a gravidade de um quadro de desigualdades inter e intra-regionais medidas em termos relativos. Contudo, no período citado, pode-se constatar que, em termos absolutos, ocorreram avanços. Analisando o componente de renda do IDHM (medido pela renda per capita média) o trabalho da FJP11 apresenta interessantes conclusões que merecem destaque: • O maior número de pobres do Estado não se encontra nos municípios de menor renda e de maior proporção de pobres, mas naqueles mais populosos, que apresentam níveis de renda per capita e de pobreza melhores que a média. • A renda per capita do Estado e da maioria dos municípios elevou-se a taxas relativamente altas entre 1991 e 2000. Todavia, estas estimativas ainda situavam-se, em 2000, abaixo da média brasileira e da média de todos os estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. • A grande desigualdade de renda explica porque, mesmo com o decréscimo da proporção de pobres, em toPereira, Fabiano M. e Lemos, Mauricio Borges,” Op. Cit. Ver “Aspectos do Desenvolvimento Humano em Minas Gerais”, elaborado pela Fundação João Pinheiro, in: BDMG, Cadernos BDMG, nº. 7, Belo Horizonte, dezembro, 2003. 11 Cadernos BDMG, n.7, op cit, Capítulo 4 9 10 86 das suas regiões e na quase totalidade dos municípios, essas proporções ainda atingem níveis elevados. Em 2000, Minas Gerais concentrava 4,85 milhões de pobres, dos quais 2,03 milhões eram indigentes, correspondendo a 29,7% e 12,6% da população total, respectivamente. • Nas regiões mais carentes de Minas Gerais Norte e Jequitinhonha/ Mucuri a pobreza atinge quase dois terços de suas populações e é superior ao observado no Estado da Bahia. Por outro lado, nas regiões mais deprimidas e estagnadas do Estado, registra-se um quadro de grande carência socioeconômica, onde as condições de infra-estrutura urbana dos municípios, de organização produtiva e de competitividade das empresas são extremamente deficientes. Essas são regiões caracterizadas pelo isolamento físico, baixas condições urbanas, estruturas produtivas deficientes e pouco competitivas, e por infra-estruturas socioeconômicas frágeis. Além disso, são áreas submetidas a graves dificuldades de acesso, o que contribui para a perpetuação de seus baixos índices de desenvolvimento. Nestas regiões, o reduzido grau de integração local com o restante do Estado, devido às deficiências nos sistemas de transporte e logística, aliados à limitada dotação de recursos e ao baixo volume de negócios realimentam o círculo vicioso das péssimas condições econômicas e sociais das regiões mais pobres do Estado. 5. Contexto da Política de Incentivo Regional 5.1. No Âmbito Federal: Apoio Institucional Tradicionalmente, o processo de desenvolvimento econômico brasileiro ocorreu sob fortes desigualdades econômicas, sociais e regionais, gerando um crescimento espacialmente desequilibrado, com regiões apresentando diferentes graus de desenvolvimento. Ao 87 longo dos anos, o país buscou sanar este quadro de desigualdades entre suas regiões, através de apoio institucional promovido, sobretudo, pelo governo federal que, no Brasil, concentra recursos e instrumentos de política econômica. A fragilidade desses instrumentos retrata, em épocas recentes, a falência dos modelos de financiamentos e de incentivos fiscais e financeiros e as tentativas de superação das desigualdades regionais. As políticas de desenvolvimento regional no Brasil sofreram, ao final dos anos 90 e início do século XXI, profundas mudanças com reflexos sobre algumas economias estaduais, em especial aquelas localizadas nas regiões mais pobres do país. Evidentemente, Minas Gerais não estaria imune a esse processo, na medida em que possui vastas áreas de seu território incluídas como objeto de intervenção dos planos, políticas e programas regionais nacionais. Neste contexto, um primeiro fato marcante foi a extinção da SUDENE e da SUDAM, cujos modelos de atuação vinham sendo contestados e considerados superados e inadequados para aquele momento da economia nacional. Sem entrar no âmago da discussão dos motivos para a desativação daqueles órgãos, o segundo e importante fato relaciona-se aos esforços de recriação da SUDENE, inicialmente como Agência de Desenvolvimento do Nordeste ADENE12, com novos objetivos e estratégias, visando lograr, aos poucos, a recolocação da questão regional no centro das atenções da política econômica em nível nacional. Política Nacional de Desenvolvimento Regional - PNDR Vale citar os esforços e encaminhamentos recentes no campo das políticas regionais, no sentido de sua reativação/readequação, indicando o reconhecimento da necessidade de formulação de uma política regional e da criação de instrumentos de suporte às políticas a serem adotadas. Dentro desta nova ordem, foi institucionalizada, em princípio 12 ADENE foi criada pela Medida Provisória Nº 2.146-1, de 04 de maio de 2001, alterada pela Medida Provisória Nº 2.156-5, de 24 de agosto de 2001 e instalada pelo Decreto Nº 4.126, de 13 de fevereiro de 2002 88 de 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional PNDR (Decreto nº 6.047, de 22/02/07), tendo como foco a redução das desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a promoção da equidade no acesso a oportunidades de desenvolvimento. Os problemas identificados pela PNDR apontam para a manutenção das desigualdades regionais e da estagnação econômica que continuam a caracterizar, sobretudo, a região Norte e Nordeste do País, apesar dos esforços governamentais empreendidos, desde a década de 1950. O diagnóstico reforça a importância da promoção do desenvolvimento e da integração nacional, sob um novo enfoque, que deve abordar os problemas da pobreza (objeto das políticas sociais) e os da competitividade (objeto das políticas agropecuária, industrial, de ciência e tecnologia e inovações). Os desafios a serem superados relacionam-se com a necessidade de articulação de novos instrumentos que garantam a implementação de políticas e de programas que promovam o desenvolvimento territorial, além de políticas setoriais (infra-estrutura econômica e social) direcionadas para regiões e sub-regiões prioritárias, sobretudo as de baixa renda, estagnadas e com dinamismo recente, segundo variáveis de rendimento domiciliar médio e crescimento do PIB per capita, determinadas pela tipologia inserida na PNDR. Estes aspectos conjunturais e estruturais a que estão submetidas as diferentes parcelas do território nacional devem ser objeto das prioridades de intervenção na regionalização da ação publica nacional. No novo enfoque, considera-se que alguns problemas possuem, naturalmente, maior afinidade com o desenvolvimento regional. Assim, a PNDR alerta que o objeto de uma política nacional de desenvolvimento regional não deve ser exclusivamente o combate à pobreza, que constitui um problema também afeto a outros campos de ação pública, em especial no das políticas sociais e urbanas. O foco das preocupações incide, portanto, sobre a ativação das potencialidades de desenvolvimento das regiões brasileiras, com melhor distribuição das atividades produtivas no território, embora a pobreza e a desigualdade regional mostrem-se convergentes em muitos lugares e em várias regiões do país e dos estados. 89 Na visão dos formuladores do Plano Nacional de Desenvolvimento Regional PNDR o combate à pobreza, pelas políticas sociais, também poderá ser implementado com base em unidades territoriais definidas e, para seu maior sucesso, deverá estar articulado com ações e programas integrados e focados em suas áreas de prioridade ou de atuação. Nesta ótica, encontra-se em execução a iniciativa dos “Territórios da Cidadania - TC”, cuja abordagem guarda estreita convergência com os objetivos de atuação da PNDR, ao reforçar a territorialidade defendida pela política nacional. É um programa de desenvolvimento regional sustentável que pretende atender as regiões/municípios do país com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O TC tem como objetivo incentivar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. O programa está sendo implementado através de um trabalho integrado de ações dos governos federal, estadual e municipal, com a participação da sociedade, produzindo, como resultado, um plano desenvolvido em cada território, contemplando as orientações, ações e prioridades para atendimento das populações locais. Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional - FNDR Sob o enfoque de alavancar as potencialidades regionais e promover a integração territorial, a PNDR ampara-se na criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional FNDR, cuja proposta encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, no âmbito da emenda constitucional que prevê a reforma tributária. Este fundo assume caráter cada vez mais indispensável para a efetividade da Política Nacional de Desenvolvimento Regional, materializando-se como um instrumento financeiro para garantir os objetivos da política nacional, voltados para a redução das desigualdades territoriais. Os recursos a serem destinados ao fundo têm previsão de aplicação em programas de financiamento do setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e em programas de desenvolvi90 mento econômico e social das áreas menos desenvolvidas do país. Prevê-se, ainda, a transferência de recursos para fundos de desenvolvimento dos estados e do Distrito Federal para alocação em investimentos estruturantes, fundamentados em planos locais de desenvolvimento regional no contexto de uma orientação nacional prevista na PNDR. A proposta já indica estas destinações obrigatórias para a aplicação dos recursos do fundo, porém outras utilizações poderão ser estabelecidas quando da regulamentação do FNDR, o que poderá facultar aos estados destinações adicionais de acordo com a realidade local, observando-se, no entanto, as diretrizes da política nacional. Citando o texto que justifica a criação do fundo, percebese a orientação do governo federal no sentido de ampliar o volume de recursos a serem alocados para a PNDR e de imprimir um novo enfoque para a sua atuação, que passa a ter uma abrangência nacional. Isto implica dizer que as diretrizes da política nacional pretendem incorporar, não somente as regiões tradicionalmente apoiadas pelos programas federais, como também aquelas de menor dinamismo do país, identificadas no âmbito dos seus objetivos. Outra avaliação aponta mudanças importantes nos mecanismos de execução da política regional, cuja lógica é “a instituição de um modelo de desenvolvimento regional mais eficaz que a atração de investimentos através dos recursos à guerra fiscal, que tem se tornado cada vez menos funcional para os Estados menos desenvolvidos”. 5.2. No Âmbito Estadual: Readequação Institucional de Minas Gerais em Relação à Questão Regional Por ocasião da extinção da SUDENE e criação da ADENE, o governo mineiro, através do Decreto 14.171/2002, criou o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE, resultado da transformação da Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha CODEVALE, e da absorção das funções da Superintendência de Desenvolvimento do Norte de Minas SUDENOR, instituições que atuaram, ao longo de vários anos, na 91 defesa dos interesses das municipalidades e dos empreendimentos produtivos destinados para a região O IDENE tem por missão formular e propor diretrizes, planos e ações para essas regiões, compatibilizando-os com as políticas dos Governos federal e estadual apoiando e defendendo os interesses dos municípios de sua área de atuação, articulando ações com os demais órgãos e entidades dos Poderes Executivos municipais, estadual e federal. Sua finalidade é promover o desenvolvimento econômico e social dos municípios das Mesorregiões Norte de Minas e do Mucuri e dos demais municípios integrantes das bacias hidrográficas dos rios Jequitinhonha e São Mateus e da Microrregião de Curvelo (pertencente a Mesorregião Central Mineira), que integram sua área de abrangência. Em reforço a uma política regional voltada para áreas mais carentes, foi criada, no início de 2003, a Secretaria de Estado para o Desenvolvimento dos Vales do Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e do Norte de Minas SEDVAN, com a finalidade de fortalecer politicamente a região mineira de economia historicamente deprimida. A Secretaria incorpora o Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais IDENE, como órgão operacional, e tem como missão “oportunizar as potencialidades do Norte e Nordeste de Minas em desenvolvimento político e socioeconômico sustentável”. A SEDVAN deve buscar alternativas inovadoras na construção da história de uma região, que convive, simultaneamente, com desigualdades e pobreza ao lado de muitas potencialidades representadas por seus recursos naturais, culturais, sociais e econômicos. As perspectivas para as Regiões mais carentes do Estado As Regiões do Norte de Minas e do Jequitinhonha/Mucuri reúnem um conjunto de problemas e desafios de tal magnitude que têm exigido do governo estadual tratamento especial, baseado na estrutura institucional descrita anteriormente e nas ações de políticas públicas que vem incorporando ao planejamento de médio e longo 92 prazos objetivos permanentes para a redução das desigualdades e criação de equidade entre pessoas e regiões, com foco em programas voltados para as regiões e locais de menor IDH. De fato, são muitos os seus problemas, que podem ser sumarizados nos fatores climáticos adversos; na predominância de municípios muito pequenos e mal estruturados e uma rede urbana bastante frágil, formando áreas de extrema carência e pobreza; nos fortes desequilíbrios interregionais, nos níveis de renda e de oportunidades de empregos, com fraco mercado interno, dependente dos programas governamentais de renda; no precário sistema de transporte interno e de infra-estrutura de modo geral, sobretudo saneamento e energia e, apesar de avanços recentes, há problemas na área de educação, resultando num índice de analfabetismo mais elevado do que o constatado no Estado e no país. Mas, apesar deste quadro, há condições positivas que, se bem articuladas nos três níveis de governo, podem resultar em avanços relevantes para estes regiões. O grande desafio é explorar vocações e vantagens comparativas presentes nas regiões, identificando e aproveitando o potencial endógeno de crescimento, muitas vezes representado por pequenas iniciativas que geram renda e emprego, valorizando os recursos locais e estimulando a fixação da população. Pode-se, assim, salientar como fatores positivos os que se seguem. • Possibilidade do retorno dos investimentos através das políticas de incentivos fiscais e financeiros, sinalizadas pela nova reestruturação da política nacional de desenvolvimento regional. • Prioridade e opção do governo estadual no enfrentamento das desigualdades regionais, consubstanciada no seu planejamento de médio/longo prazos. • Programas do governo estadual nas atividades agropecuárias, industriais e de infra-estrutura. 93 • Potencial agroindustrial decorrente dos projetos de irrigação, reiterando a grande importância e perspectivas favoráveis do Projeto Jaíba, o maior perímetro irrigado do Brasil. • Potencial turístico representado pelo Rio São Francisco, pela diversidade do patrimônio cultural e ambiental e pela qualidade do artesanato regional. • Disponibilidade e diversidade dos recursos minerais. • Possibilidade de desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais, nos segmentos que as regiões possuem tradição e vocação, favorecendo setores econômicos e grupos sociais localizados. 5.3.A Política de Desenvolvimento Regional no Contexto Internacional A experiência européia Quando se trata de política regional inovadora, obrigatoriamente remete-se à experiência européia, mais notadamente no modelo europeu de política regional e nos mecanismos de apoio financeiro adotados para o enfrentamento das disparidades econômicas e sociais entre as nações do bloco. Um aspecto importante é que, embora a União Européia possa, à primeira vista, ser identificada uma região de prosperidade, constatam-se diferenciais marcantes nos níveis de renda, sinalizando problemas no interior do bloco, entre os países membros e também dentro deles. As disparidades do PIB por habitante, identificadas entre os países da Comunidade e dentro deles, embora pequenas pelos padrões brasileiros e de várias outras regiões do planeta, têm inspirado preocupações relacionadas ao processo de integração econômica do continente europeu. De um lado, os países e as regiões de menor desenvolvimento visualizam crescentes ameaças à sua própria viabilidade econômica. Do outro, os mais adiantados percebem que a persistência de discrepâncias muito grandes no âmbito da Comuni94 dade pode pôr em cheque a marcha rumo à consolidação da união econômica e monetária e, no limite, inviabilizá-la. É importante salientar que uma das bases para a formação da União Européia foi e continua sendo o ideal de promover a coesão do território, o que significa eliminar as disparidades econômicas e sociais entre os países-membros. Assim, o grande objetivo não é apenas o de viabilizar a livre circulação de bens, serviços e capitais e a união monetária, mas principalmente promover o bem estar de seus quase 500 milhões de habitantes distribuídos nos seus 27 Estados Membros. Na concepção européia, os desequilíbrios no desenvolvimento são vistos não só como fenômenos que afetam os países atrasados, mas que também podem reduzir o ritmo de crescimento global da União Européia, impedindo a realização de todo o seu potencial econômico, humano e tecnológico. Portanto, no que tange à questão regional a UE busca-se conduzir uma política que se distancie de uma estratégia simples de realização de transferências diretas das regiões ricas para as pobres, optando, ao contrário, por uma perspectiva dinâmica, na qual as diferenças sejam superadas pela criação de condições que permitam a reprodução, o aprimoramento e o aproveitamento de todo seu potencial endógeno. Estrategicamente, a solução para as desigualdades tem muito a ver com a melhoria da capacidade das regiões e de todos os participantes no campo socioeconômico de inserirem-se no moderno jogo competitivo. Neste contexto, o maior desafio é descobrir formas de estimular o uso dos potenciais de desenvolvimento presentes nas regiões. Os baixos níveis de desenvolvimento dos países ou regiões, de modo geral, eram percebidos pela UE como resultantes, entre outros fatores, da reduzida capacidade de atrair e manter atividades produtivas devido à inadequação de infra-estrutura; da baixa qualificação da mão de obra; e das características da estrutura produtiva, em termos da agregação de valor, do tamanho da empresas, da cul95 tura empresarial, etc. e, muito importante, da própria capacidade dos governos em gerar soluções para o desenvolvimento local. Desta maneira, a política regional da UE tem por finalidade provocar um impacto significativo na competitividade das regiões e nas condições de vida dos seus habitantes, essencialmente através do co-financiamento de programas de desenvolvimento plurianuais. Cabe à política regional possibilitar que todas as regiões da UE tirem pleno partido das oportunidades propiciadas pelo mercado interno, bem como contribuir para o êxito da união econômica e monetária. A implementação e execução da política regional da União Européia estão consolidadas em Planos Plurianuais ou Programas Operacionais com objetivos e estratégias bem definidas de longo prazo, critérios negociados de elegibilidade de regiões a serem assistidas e de instrumentos financeiros sólidos, confiáveis, consistentes e duradouros. Em outras palavras, no planejamento das ações são definidos os objetivos prioritários, as áreas territoriais e respectivas populações beneficiárias dos apoios providos pela política regional. São estabelecidos, ainda, o período de programação e as informações sobre os critérios utilizados no processo de seleção e priorização de projetos. Isso é entendido como condição necessária para que uma política baseada em processos de planejamento e programação, articulada entre várias instâncias de poder e com suporte mais amplo da sociedade, possa se estabelecer satisfatoriamente. Os programas são apoiados por uma estrutura de fundos de finalidade estrutural e de efeitos regionais, destacando-se o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional - FEDER, o Fundo Social Europeu (FSE), o Fundo de Coesão, o Fundo Europeu de Orientação e Garantia da Agricultura e Pecuária (FEOGAP), e os Fundos Estruturais, além dos recursos do Banco Europeu de Investimentos (BEI). A ação da Comunidade Européia em parte tem sido a de coordenar e concatenar esses instrumentos numa política estrutural única, de forma a garantir uma atuação coerente, evitando superposição de esforços. De maneira particular, destaca-se a atuação do FEDER que tem como objetivo apoiar programas que abordem o desenvolvi96 mento regional, a evolução econômica, o reforço da competitividade e a cooperação territorial em toda a UE. As prioridades de financiamento incluem a investigação, a inovação, a proteção do ambiente e a prevenção de riscos, juntamente com o investimento na infra-estrutura, nomeadamente nas regiões menos desenvolvidas. A estratégia de desenvolvimento regional adotada pela UE vem sendo vista como uma iniciativa de sucesso, que pode ser confirmada de várias maneiras. Um dos primeiros sinais positivos está no processo de ampliação no número de países-membros do bloco. Em 1993 o bloco era constituído por 15 países membros, já em 2007 esta composição era de 27 países, quase que dobrando o número de membros então existentes. Também, como aspecto positivo, vale citar que, do ponto de vista econômico, a União Européia vem se consolidando nas últimas décadas como a maior economia do mundo, superando a dos Estados Unidos. Os bons resultados alcançados pela UE tem uma razão para o seu sucesso. E esta pode ser encontrada na solidez, na consistência e na coerência das políticas de sustentação do bloco, que asseguram recursos e mercados e podem propiciar melhoria da qualidade de vida de suas populações em termos de saúde, educação, avanços tecnológicos, oportunidades de empregos, crescimento de renda, etc. Assim, uma conclusão que se pode tirar, e que traz importantes ensinamentos, está na identificação das “disparidades econômicas e sociais” no interior do bloco, como fundamento básico para a criação da União Européia. Da identificação correta do problema surge o objetivo de “Coesão Territorial”, entendido como a redução das disparidades e a promoção da melhoria do bem estar da população do bloco. A “Coesão Territorial” é, portanto, um objetivo permanente que norteia todas as definições estratégicas das Políticas Regionais da UE para os países membros e orienta as propostas de apoio financeiro através dos Fundos Estruturais, com destaque para o FEDER, seu principal instrumento. Este objetivo, portanto, passa a ser 97 o ideal e o fundamento de todas as ações de caráter regional nos Programas Operacionais de cada país membro. O caso de Portugal Avaliando o caso especifico de Portugal, um dos maiores beneficiários da política de coesão nos primeiros anos, pode-se observar que o país orientou sua estratégia para a identificação de um rumo à sua modernização e desenvolvimento, com coesão social, buscando aproximar-se, de forma decidida e sustentada, do nível de desenvolvimento dos países mais avançados da União Européia. Acertamente, para alcançar seus objetivos, a estratégia do Governo se apoiou na recuperação da confiança para lançar uma dinâmica de crescimento progressivo da economia, que permitisse também combater ao desemprego e reduzir as desigualdades sociais, não se limitando, apenas, a dar respostas aos problemas conjunturais da recessão econômica, mas sim enfrentar, num horizonte de médio prazo, os problemas estruturais que prejudicam a competitividade do país e estão na base do seu atraso. Esta política tem-se desenvolvido entorno de cinco grandes eixos: retomar o crescimento da economia; reforçar a coesão nacional; melhorar a qualidade de vida dos portugueses; elevar a qualidade do processo democrático, reforçando a credibilidade do Estado e do sistema político; e valorizar o posicionamento do país no quadro internacional. Para cada um destes eixos são estabelecidas linhas de atuação específica. Para o alcance destas estratégias, o planejamento governamental definiu seus objetivos de forma regionalizada e elencados em programas operacionais, os quais fazem parte das ações de apoio às estratégias de desenvolvimento do país. A Comissão Européia participa no desenvolvimento das regiões, ou zonas elegíveis criadas por Portugal para fins de participação nos recursos disponibilizados com o objetivo de promover o desenvolvimento regional, mediante o co-financiamento dos programas regionais, através de seus fundos estruturais. Destaca-se que, no 98 período 2000-2006, em termos globais, foram disponibilizados pela UE cerca de 60% dos investimentos totais despendidos nos Programas Regionais. Ressalta-se a participação majoritária do FEDER, com um percentual de 72% no total co-financiado pelos Fundos Estruturais. Para o período 2007-2013 esta participação está estimada em 60%. A referência aos números serve para demonstrar que na esteira dos investimentos viabilizados pelos recursos dos fundos da União Europeia, bons resultados foram obtidos pelo País. Nos últimos anos, Portugal entrou num processo de mudanças e modernização, contando com um ambiente bastante dinâmico, após juntar-se aos ideais e programações da União Europeia. Os sucessivos governos constitucionais fizeram várias reformas, privatizaram empresas controladas pelo Estado e liberalizaram áreas-chave da economia, incluindo os setores das telecomunicações e financeiros. Como resultado, Portugal vem desenvolvendo uma economia crescentemente competitiva e baseada em serviços, sendo um dos primeiros países-membros que aderiram ao Euro, moeda criada em 1999 e cuja circulação ocorreu em janeiro de 2002. Portugal, hoje, faz parte dos países com Indice de Desenvolvimento Humano (IDH) alto e, também, enquadra-se no conjunto de países que formam o grupo dos países desenvolvidos. As informações a seguir resumidas dão conta do êxito de Portugal em relação ao seu desempenho no cenário Europeu e mundial. Dados do FMI mostram que o crescimento econômico português esteve acima da média da União Européia na maior parte do período 1986-2000, quadro que se inverte no período 2001-2006, tendo sido recuperado em 2007. O PIB per capita destacou-se na faixa que corresponde a, aproximadamente, 75% dos valores registrado pelas maiores economias ocidentais europeias. Um estudo sobre qualidade de vida feito pelo Economist Intelligence Unit, ou EIU Quality-of-life Survey coloca Portugal em 20º lugar entre os países com melhor qualidade de vida No período 1980-1985, em média, o PIB de Portugal re99 presentava 0,8% do PIB da Comunidade, enquanto a PIB por habitante situava na faixa de US$ 3.000. No período 1986-2007 a participação do PIB de Portugal no total da UE se eleva para 1,4%, enquanto o PIB por habitante atinge o expressivo valor de US$ 20.600 em 2007. Os valores da participação de Portugal, no total da comunidade, tornam-se mais significativos se considerarmos que nestes 21 anos o número de países-membros saltou de 12 para 27. Finalmente, o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD de 2007, com base em dados de 2005, coloca Portugal como 35º no ranking em que constam 174 países, posicionando-se como 28º país no mesmo ranking, quando medido pelo IDH. 6. Bases para Formulação de Instrumentos de Apoio Ao mostrar os atributos da política regional européia, pretende-se posicionar o caso brasileiro e mineiro frente às evidências internacionais para a superação das desigualdades regionais e da pobreza. Nesta ótica, o sentido das políticas públicas regionais deve ser o de criar e sustentar uma trajetória de reversão das desigualdades que, historicamente, apresentam lentidão e sinais de fortes resistências na promoção de um processo de desconcentração/ interiorização e o de explorar as vocações e os potenciais endógenos, bastante diversificados em todo o território. No caso de um estado com as dimensões territoriais de Minas Gerais e sua forma de inserção na economia nacional, parece cada vez mais evidente o imperativo de combater as desigualdades internas e trabalhar a diversidade econômica, social, cultural e ambiental existente como um ativo essencial em um novo modelo de desenvolvimento. Essa constatação remete, obrigatoriamente, a adoção de ações que conduzam à estruturação de iniciativas inovadoras, que contenham o engajamento do conjunto de atores públicos, privados e das diversas forças sociais e políticas afetas à questão regional, de forma a garantir efetividade na aplicação das políticas. 100 Do ponto de vista geral, políticas públicas para estas questões, que conduzem ao desenvolvimento e fortalecimento das regiões e de seus municípios, demandam ações que exigirão programas e projetos de investimentos, tanto em iniciativas estruturantes, como nos segmentos produtivos e de infra-estrutura. O alcance desses elementos representa uma tarefa complexa, pois depende de uma grande capacidade de coordenar esforços, administrar conflitos políticos e obter recursos, dentre outros. Desta maneira, o impulso mais intenso a esse processo de crescimento sustentável deverá ocorrer por meio de instrumentos de apoio financeiro que promovam o fortalecimento socioeconômico, a integração das áreas e recursos, por meio da diversificação de suas estruturas produtivas promovendo a melhoria da competitividade das regiões e das condições de vida de seus habitantes. Melhorar a competitividade das regiões implica em criar as condições que permitam o desenvolvimento e o ajuste estrutural que levem a tal situação. Isto significa investir na qualidade da infraestrutura urbana, melhorando o perfil da rede de cidades (educação, saúde, saneamento, habitação), nos sistemas de transporte em busca de maior integração regional, na ampliação da oferta de energia e no desenvolvimento das novas tecnologias da informação e das telecomunicações. Significa, também, priorizar investimentos na capacitação e formação profissional, bem como na requalificação de mão-deobra, adaptando-a às transformações do sistema produtivo, observadas as características e necessidades socioeconômicas locais. No tocante às áreas mais carentes do Estado, notadamente as regiões do Jequitinhonha/ Mucuri e do Norte de Minas, é desejável e mesmo exeqüível a formulação de propostas de estratégias deliberadas, baseadas em instrumentos de apoio financeiro que, ao lado de objetivos e ações claramente definidos, venham colocar a questão regional de forma efetiva como meta integrante dos planos, estratégias, objetivos e ações para o desenvolvimento econômico do Estado. Tratar diferenciadamente estas áreas no tocante aos seus problemas e potenciais é um desafio para as políticas governamen101 tais. Por suas características físicas particulares de clima e relevo, associadas às condições sócio-econômicas de extrema carência, elas (as áreas) são marcadas pelo fraco dinamismo econômico e pelo baixo grau de integração a mercados, resultando em visíveis indicadores de pobreza e insuficiência de inclusão produtiva. Neste instante, o papel das medidas e ações institucionais, em especial a recuperação e criação de políticas nacionais regionais, incluindo ações das demais esferas de governo em parceria com as lideranças locais, é imprescindível para a definição de um modelo de atuação eficaz para o enfrentamento e a busca de soluções contra o atraso das regiões. Assim, ganha relevância a proposição de constituição de um Fundo de Desenvolvimento Regional. Este instrumento deve ser capaz de conferir, através de suas políticas e objetivos, condições de atratividade de investimentos produtivos e de infra-estrutura às regiões ou municípios menos favorecidos do Estado, prioritariamente aqueles com índices de IDH abaixo da média estadual, em especial nas regiões mencionadas anteriormente. O fundo deverá contribuir para o aproveitamento de oportunidades de desenvolvimento das regiões, valendo-se, da melhor maneira possível, dos recursos financeiros existentes e a serem mobilizados, requerendo a identificação de recursos perenes e estáveis e a aplicação de mecanismos eficazes de gerenciamento e execução de projetos, de forma a gerar soluções duradouras para o desenvolvimento regional e local. No contexto da questão regional, a Constituição Estadual de 1988, em seu art. 51 (§ 4º), autoriza a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional. O texto constitucional já determinava, também, a redução das desigualdades regionais como um dos eixos estratégicos do desenvolvimento do Estado, prevendo o direcionamento da ação governamental para a execução articulada de planos, programas e projetos regionais e setoriais dirigidos ao desenvolvimento global das coletividades do mesmo complexo geoeconômico e social e a assistência aos Municípios de escassas condições de propulsão 102 socioeconômica, situados na região, para que se integrem no processo de desenvolvimento. (CE, art 41). Esta orientação se consolida na estratégia do desenvolvimento do Estado para resultados, consagrada no Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado (2007-2023), que prioriza, como um dos eixos estratégicos, o tema da eqüidade entre pessoas e regiões, que deverá ser alcançada através de programas voltados para as regiões e locais de menor IDH, com destinação aos segmentos mais vulneráveis, envolvendo o combate à pobreza, a geração de emprego e de renda e a segurança alimentar. No que diz respeito ao fomento para o setor produtivo, vale acrescentar que o Estado já dispõe de um arranjo de fundos de desenvolvimento estruturados para o gerenciamento de recursos destinados à promoção industrial, ao fomento dos micro, pequenos e médios empreendimentos, à infra-estrutura e incentivos às atividades específicas dentre elas turismo, cultura, recursos hídricos e desenvolvimento florestal. Ao que tudo indica, este aparato institucional tem garantido êxito na promoção do desenvolvimento econômico, restando, então, a integração das políticas de incentivo com as diretrizes regionais, o que pode resultar em uma aplicação coordenada dos diversos instrumentos de financiamento em programas de desenvolvimento de cunho econômico e social em áreas e segmentos desatendidos pelos mecanismos tradicionais. Finalmente, merece ser destacada a necessidade de se estabelecer uma estratégia no plano estadual e local de forma a aproveitar a oportunidade prevista na política nacional, cujas diretrizes básicas apóiam-se na promoção de uma maior integração de políticas e das economias das várias regiões e na proposição de criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), como instrumento financeiro para aplicação em áreas menos desenvolvidas do País. Neste particular, torna-se desejável ao Estado antecipar-se às orientações da PNDR que, necessariamente exigirá a criação, em nível estadual, de um fundo de desenvolvimento regional 103 para atender às finalidades previstas na aplicação dos recursos a serem transferidos pela União. Referências FERREIRA, H. V. C; SILVA, A. R. A. Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional: Uma Proposta Inovadora para a Redução das Desigualdades Regionais Brasileiras. Boletim Regional. Informativo da Política Nacional de Desenvolvimento Regional, Ministério da Integração Nacional, nº 6, Brasília, jan. - abril 2008, p. 23-37. TERRITÓRIOS DA CIDADANIA. Brasília: Brasil, Governo Federal, 19 p, 2008. Disponível em: www.mda.gov.br DUARTE FILHO, F. C. Relatório 1: Apoio à Gestão de Políticas e Programas de Desenvolvimento Regional no Estado de Minas Gerais, Texto de Referência para a Formulação de Fundo de Desenvolvimento Regional: Desenvolvimento Regional na União Européia e Portugal. Belo Horizonte, jul. 2008. Textos sobre a União Européia e Portugal, disponíveis em13: www.europa.eu/scadplus - (Síntese de legislação) www.eur-lex.europa.eu.pt - (Documentos oficiais e sínteses) www.europaparl.europa.eu - (Documentos do Parlamento Europeu) www.ccr-norte.pt - (Comissão Coordenação e Desenvolvimento Regional Portugal ) www.qren.pt - (Quadro de Referência Estratégica Nacional / 20072013) Os sites citados reúnem, em vários idiomas, uma ampla documentação relativa a Políticas e Programas Operacionais que cobrem o período 2000-2013 (abrangendo para os diferentes períodos os objetivos das políticas regionais, tanto da União Européia quanto dos países-membros, e o detalhamento dos instrumentos de financiamento para os projetos relacionados: valores, prazos, condições, etc.). No caso de Portugal, nos sites foi possível identificar os Programas Operacionais para suas regiões, bem como os Planos de Desenvolvimento dos diversos Governos Constitucionais, em que são contextualizados os programas regionais. São apresentados também estudos avaliando os principais resultados alcançados. 13 104 www.imf.org - (Informações sobre países e regiões) www.igeo.pt - (Atlas de Portugal) www.ordemeconomistas.pt - (Portal da Ordem dos Economistas) www.portugal,gov.pt - (Portal do Governo) 105 106 4 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO Roberto Marinho Alves da Silva* 1. Semi-Árido Brasileiro: Complexidade Ambiental e Contrastes Socioeconômicos O Semi-Árido brasileiro abrange 1.133 municípios com uma área de 969.589,4 km2, correspondente a quase 90% da Região Nordeste e mais a região setentrional de Minas Gerais, com uma população de cerca de 21 milhões de pessoas. A porção mineira do Semi-Árido, segundo a delimitação oficial de 20051, abrange 85 municípios das Regiões Norte e do Jequitinhonha, numa área total de 103.590 km2, onde vivem mais de 1,2 milhões de pessoas. A região é caracterizada pela insuficiência e irregularidade de chuvas com médias anuais iguais ou inferiores a 800 mm, com elevadas temperaturas e taxas de evapotranspiração que se refletem no modelamento da paisagem predominante. A hidrologia é dependente do ritmo climático. As secas são caracterizadas tanto pela ausência e escassez, quanto pela alta variabilidade espacial e temporal das chuvas. A limitação hídrica é anual devido ao longo período seco que leva à desperenização dos rios e riachos endógenos. A reduzida capacidade de absorção de água da chuva no solo é dificultada em virtude do relevo alterado e dos solos rasos e pedregosos. * Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (2006), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), graduado em Filosofia Licenciatura Plena pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1989). Atualmente exerce a função de Diretor do Departamento de Estudos e Divulgação da Secretaria Nacional de Economia Solidária. Este texto é a transcrição de conferência apresentada na FIEMG, Montes Claros, em 29 de setembro de 2008. 1 Em 2005, o Governo Federal atualizou a área de abrangência do Semi-Árido (BRASIL, 2005). 107 Outro fator marcante da paisagem semi-árida, é a vegetação de caatinga, que na língua indígena quer dizer “mata branca”. Trata-se de um bioma2 com alta biodiversidade, no qual se destaca a formação vegetal xerófila, com folhas pequenas que reduzem a transpiração, caules suculentos para armazenar água e raízes espalhadas para capturar o máximo de água durante as chuvas. Apesar dessas características gerais, o Semi-Árido brasileiro é uma realidade complexa, tanto no que se refere aos aspectos geofísicos, quanto à ocupação humana e à exploração dos seus recursos naturais. No caso da porção mineira do Semi-Árido, embora as médias pluviométricas anuais (entre 700 e 1000 mm) estejam acima da média verificada na área de domínio do clima semi-árido no Brasil, também é caracterizada pela irregularidade na distribuição das chuvas e pela alta taxa de evaporação, com duas estações bem definidas de período chuvoso e de seca. Outras especificidades do Semi-Árido mineiro são a presença de nascentes, maior concentração de rios perenes e a predominância da vegetação de cerrado, formações herbáceo-lenhosas, com árvores de pequeno e médio porte, de troncos e galhos retorcidos, revestidos por espessa casca. A paisagem também tem especificidade bem marcada pelos tabuleiros e as grandes chapadas, de altitudes que variam entre 900 a 1000 metros, entrecortadas por depressões profundas de vales, denominadas de “grotas”, onde são encontrados os solos mais férteis e úmidos. Os solos permeáveis, diferentes dos solos cristalinos que predominam em outras áreas do Semi-Árido na porção nordestina, proporcionam melhor e maior capacidade de armazenamento de água subterrânea, favorecendo outras possibilidades de abastecimento de água da população. Apesar dessas características comuns, devido à extensão e diversidade de ecossistemas, o Semi-Árido mineiro é marcado pela complexidade e essas características podem sofrer grandes variaO bioma é definido como um conjunto de múltiplos ecossistemas agrupados em um espaço geográfico contíguo, com certo grau de homogeneidade em torno de sua vegetação e fauna. 2 108 ções quanto às taxas pluviométricas, tipos de solos, temperaturas e disponibilidade hídrica no subsolo e nos mananciais naturais. É possível, por exemplo, contemplar essas variações nas áreas localizadas mais ao Norte de Minas e as áreas do Vale do Jequitinhonha. O desconhecimento dessa complexidade conduziu à introdução de práticas agropecuárias inadequadas, provocando ou agravando desequilíbrios ambientais. A vegetação de cerrado não tem sido poupada e a exploração desordenada das nascentes e das demais fontes de recursos hídricos naturais agrava o abastecimento de comunidades rurais no Semi-Árido mineiro. A exploração econômica das riquezas locais levou à devastação de parte significativa do cerrado mineiro e das matas localizadas nas áreas de transição para as zonas úmidas, na parte baixa do Jequitinhonha. Nos últimos anos, a região também vem assistindo à expansão da monocultura do eucalipto em extensas áreas, colocando em risco a biodiversidade. O mesmo ocorre na área de predomínio da caatinga, um dos biomas brasileiros mais ameaçados pelo uso intempestivo dos seus recursos naturais. A pastagem intensiva na atividade pecuária, as queimadas e os processos desordenados de derrubada da mata natural para atividades agrícolas e para retirada de lenha (fonte energética para diversas finalidades, desde o preparo de alimentos de famílias mais pobres, até a produção de cerâmicas e de panificação) são os principais fatores de devastação da caatinga. Além disso, a agricultura irrigada também provoca e agrava impactos ambientais, tais como a poluição de mananciais hídricos, a diminuição na vazão de poços tubulares e a ocorrência de salinização com a perda de fertilidade dos solos. As maiores extensões de áreas em processo de desertificação no Brasil, com a perda gradual da fertilidade do solo, estão localizadas no Semi-Árido3. Do ponto de vista socioeconômico, o Semi-Árido brasileiro também é marcado por contrastes. A estrutura fundiária é extreCerca de 60% da área do Semi-Árido brasileiro está afetada por processos de desertificação, classificados em moderados, graves e muito graves. As áreas com processos muito graves de desertificação atingem 98.595 km2 (10%) da porção semi-árida, segundo estudos realizados pelo Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2002). 3 109 mamente concentrada. Além dos latifúndios, verifica-se um grande número de minifúndios, com cerca de 90% das propriedades possuindo área inferior a 100 hectares e detendo apenas 27% da área total dos estabelecimentos agrícolas (Brasil, 2005b). Em sua maior parte, a economia do Semi-Árido é caracterizada pela produção de subsistência, tendo em vista que as atividades econômicas comerciais tradicionais estão em crise. Na porção mineira do Semi-Árido, por exemplo, encontram-se comunidades agrícolas (algumas são tradicionais de catingueiros, vazanteiros, geraizeiros, quilombolas etc.) que mantém práticas agrícolas de sequeiro e de vazantes nas áreas úmidas dos rios e nos fundos dos vales (grotas) onde predominam os cerradões (matas ou capões), enquanto que a criação de pequenos rebanhos de animais ocorre em áreas das chapadas. Mas a principal aposta dos órgãos públicos e da iniciativa privada é no desenvolvimento da agricultura irrigada nos vales úmidos. As condições naturais são favoráveis, devido ao clima seco que reduz a incidência de pragas e doenças e pela elevada insolação e luminosidade na maior parte do ano, favoráveis à fruticultura irrigada. O Semi-Árido mineiro, sobretudo no norte de Minas Gerais, tornouse grande produtor de frutas, com destaque para a bananicultura (quase monocultura), com amplo uso de tecnologias modernas de micro-aspersão e de padrões avançados de relações comerciais. Para isso, os investimentos públicos trataram de implantar na região vários perímetros irrigados, sendo o maior deles o projeto Jaíba, com uma área total prevista de cerca de 100 mil hectares. Apesar do recente processo de modernização econômica, com a incorporação de novas áreas e setores dinâmicos e competitivos, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do SemiÁrido, em 2002, era de R$ 2.541,27, bem abaixo do valor médio da Região Nordeste, de R$ 3.694,34; e menos da metade da média nacional, que somava R$ 7.630,93 (BRASIL, 2003). Essa situação se reflete nos demais indicadores sociais da região que, embora tenham experimentado melhorias nos últimos anos, mantêm-se distantes das médias nacionais. 110 O “Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil - 2000” (Ipea; Pnud; FJP, 2000), confirma que, devido ao lento ritmo de crescimento da economia e a baixa renda da população, a maioria dos municípios do Semi-Árido assume cada vez mais a característica da dependência da transferência de recursos: em 47,5% dos municípios, cerca de um terço da população tem mais da metade da sua renda proveniente de transferências governamentais, principalmente os previ-denciários. Além disso, em quase metade dos municípios a mortalidade infantil até um ano varia de 50 a 75 por mil crianças nascidas vivas e o percentual de pessoas de 15 anos ou mais analfabetas varia entre 36% e 48%, bem acima das médias nacionais (Ipea; Pnud; FJP, 2000). A gravidade dos problemas sociais no Semi-Árido constata-se há centenas de anos. Ao longo da história, essa situação sempre foi relacionada à problemática das secas. No entanto, as análises realizadas indicam a persistência das desigualdades sociais inseridas na base da reprodução das condições de miséria. Num país como o Brasil, considerado um dos campeões mundiais em concentração de renda, o Semi-Árido desponta com uma situação ainda mais grave: em 2000, o percentual da renda apropriada pelos 10% mais ricos chegava a 43,7%; enquanto que a renda dos 40% mais pobres era de apenas 7,7% (Ipea; Pnud; FJP, 2000). Em síntese, a permanência de graves problemáticas ambientais e socioeconômicas remete à atualidade da questão: qual o desenvolvimento apropriado à realidade do Semi-Árido brasileiro? O debate sobre as alternativas de desenvolvimento na região vem sendo lentamente construído desde a primeira metade do século XX. Além dos interesses políticos e econômicos, as ações governamentais foram e, pelo menos em parte, ainda estão sendo orientadas por uma perspectiva de que é necessário e possível combater a seca e os seus efeitos para a modernização econômica daquela região. Prevalece a convicção de que é preciso modificar aquele ambiente para poder viabilizar as atividades econômicas, tornando-as rentáveis e atraentes ao capital. No entanto, nas últimas duas décadas, vem sendo recuperado e ampliado o 111 debate sobre a necessidade de uma mudança profunda na forma de intervenção pública que possibilite a harmonização entre a justiça social, a prudência ecológica, a eficiência econômica e a cidadania no Semi-Árido. Um conjunto significativo de organizações da sociedade civil, junto com instituições de pesquisa e com outras forças políticas que atuam naquela região, com base em experimentações e vivencias de alternativas de convivência com o Semi-Árido. O presente artigo4 busca contribuir nesse debate, oferecendo uma análise da trajetória das políticas públicas que predominaram no Semi-Árido e explicitando os significados e sentidos da sustentabilidade na perspectiva da convivência, enquanto síntese de um conjunto de práticas socioeconômicas e de diretrizes culturais e políticas para o desenvolvimento do Semi-Árido brasileiro. 2. Combate à Seca e Modernização Econômica: Trajetórias das Políticas Públicas no Semi-Árido Brasileiro 2.1. Políticas de combate à seca e aos seus efeitos A seca na região semi-árida só passou a ser considerada como problema relevante no século XVIII, com o aumento da densidade demográfica e com a expansão da pecuária bovina. Desde então, as secas passaram a entrar de forma permanente nos relatos históricos, enfatizando a calamidade da fome e os prejuízos com a dizimação dos rebanhos, desestabilizando as bases econômicas da emergente sociedade pastoril. Segundo o historiador Joaquim Alves (1982, p.39), as primeiras medidas oficiais foram: obrigação do cultivo da mandioca como alternativa para o problema da fome; o combate à desordem e à violência, que se espalhavam nos sertões durantes Elaborado com base na Tese de Doutorado do autor, sob o título: “Entre o Combate à Seca e a Convivência com o Semi-Árido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento” (Silva, 2006), defendida em maio de 2006, no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. 4 112 as estiagens prolongadas e a formação de povoamentos com os retirantes das secas, considerados vagabundos e salteadores. Com o fim da colonização portuguesa, durante o período imperial, prevaleceu o socorro às vítimas da fome durante as secas, com a distribuição de alimentos. A atitude estatal começou a mudar a partir de 1856, com a criação de uma Comissão Científica para estudar aquela realidade e propor soluções para enfrentamento das problemáticas. Entre as recomendações para enfrentamento da seca e das suas conseqüências, prevaleceu a solução hidráulica pela açudagem e irrigação, compreendida como “[...] correção da natureza semi-árida do Nordeste” (POMPEU SOBRINHO, 1982, p. 87). Com isso, no início do século XX, começam as ações mais sistemáticas de prevenção e enfrentamento das conseqüências das secas. Com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), em 1909, estabelecia-se um novo patamar na ação estatal. O plano de ação do órgão refletia uma síntese das propostas para combate aos efeitos das secas: realização de estudos, planejamento e execução de obras hídricas (açudes, canais de irrigação, barragens, perfuração de poços e drenagens); estradas de rodagem e ferrovias; reflorestamento e piscicultura. As investigações foram fundamentais para ampliar a base de conhecimentos sobre aquela realidade, fornecendo subsídios para o planejamento das obras de engenharia. Em 1919, a Inspetoria Federal de Obras Contras as Secas (IFOCS) sucede o IOCS, contando com maior capacidade de atuação e com o apoio institucional da Lei Epitácio Pessoa (Lei 3.965) que instituiu a “Caixa Especial das Obras de Irrigação das Terras Cultiváveis no Nordeste e dos Serviços Complementares ou Preparatórios”. Porém, continuaram os problemas de descontinuidade das ações e escassez de recursos, dependendo da disposição dos governos e da ocorrência das secas nas ações emergenciais. Nova tentativa ocorre em 1945, com a criação do Departamento Nacional de Obras Contras as Secas (DNOCS), com a finalidade de realizar obras e serviços permanentes e desenvolver ações em situação de emergência. Começou a haver uma preocupação 113 maior com o gerenciamento dos açudes públicos, direcionando as águas represadas para as atividades de irrigação. Foram criados postos agrícolas para prestar serviços agro-industriais aos sertanejos e para desenvolver ações de assistência social e educacional. Eram tentativas de mudança do foco nas ações, diante do acúmulo de críticas feitas à época e que continuam até hoje, sobre os limites das ações governamentais no combate às secas. As mudanças propugnadas enfrentaram várias barreiras, entre as quais, as limitações orçamentárias, tendo em vista que os dispositivos constitucionais que estabeleciam percentuais mínimos de investimento nas áreas das secas, nunca foram efetivamente cumpridos. Outro desafio colocado ao DNOCS naquele período referia-se à questão do domínio das terras nas bacias dos açudes que deveriam ser aproveitadas para irrigação. As propostas para melhorar a situação enfrentaram a forte resistência das oligarquias rurais adeptas da pecuária extensiva, impedindo a abertura de canais para a irrigação nas suas terras. Ainda em 1949, foi elaborado um Projeto de Lei estabelecendo normas para a colonização das terras a serem desapropriadas, circunvizinhas das grandes barragens e que ficou conhecido posteriormente como “Estatuto da Irrigação”. O posicionamento do DNOCS sofreu forte reação dos representantes políticos das oligarquias rurais sertanejas, que o denunciaram como uma proposta subversiva e adepta do comunismo e impediram, por mais de uma década, a sua implantação. Somente após a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) foi possível implantar um sistema de arrendamento de lotes por contratos de cessão. 2.2. Políticas Desenvolvimentistas no Semi-Árido Mudanças substanciais nas ações estatais ocorrem em meados do Século XX diante do agravamento da crise regional do Nordeste em relação ao dinamismo econômico do Centro-Sul do país. As críticas às formas tradicionais de combate à seca e aos seus efeitos provocam uma reação governamental que opta pela modernização econômica para promover o desenvolvimento regional, con114 solidando a política hídrica de suporte à irrigação e reestruturando a propriedade rural. Esse período é caracterizado pela criação de novos órgãos responsáveis pelas políticas de desenvolvimento regional. Em 1945, foi criada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), voltada para o aproveitamento e o desenvolvimento do potencial energético do Rio São Francisco, resultando na construção da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso, em 1948. A Constituição de 1946 reconheceu a importância da Bacia do Rio São Francisco, determinando a execução de um plano de aproveitamento das suas possibilidades econômicas. Foi criada a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF) com a missão de planejar e realizar ações de regularização dos rios, de utilização adequada de seu potencial hidrelétrico e de desenvolvimento agrícola. Outra iniciativa ocorreu em 1952, ano de grande seca, com a criação do primeiro banco estatal de desenvolvimento regional no Brasil, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), como agente financeiro regional de incentivo à implantação de empreendimentos industriais e agropecuários. A criação do Grupo de Trabalho de Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), em 1959, foi mais uma resposta do Governo Federal às pressões vindas de diversos setores do Nordeste. A partir das recomendações do GTDN, o Governo Federal propôs a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Sendo portadora de uma nova visão sobre o Nordeste e sobre as alternativas de desenvolvimento regional, coordenando esforços governamentais e aglutinando uma capacidade técnica e política especializada para a condução dos programas regionais, o órgão contribuiu significativamente para retirar a região da situação de letargia na qual estava mergulhada. Em relação ao Semi-Árido, o relatório do GTDN foi um verdadeiro marco divisor de águas nos diagnósticos e nas alternativas de superação dos problemas regionais. Apresentou um diagnóstico preciso da seca como crise de produção de uma economia débil, marcada pela baixa produtividade e pelo reduzido grau de integração nos mercados, sujeita a crises periódicas nas estiagens prolongadas 115 (BRASIL, 1959, p. 65). Outra constatação foi a de que as ações governamentais de combate às secas, tanto as emergenciais quanto as de infra-estrutura hídrica, não contribuíram efetivamente para superação dos problemas. O GTDN apresentou algumas alternativas para o fortalecimento da capacidade monetária da população local, pela ampliação da renda real do trabalhador, reduzindo a dependência da produção para a subsistência. Trata-se de uma transformação progressiva da economia semi-árida, no sentido de elevar sua produtividade e torná-la resistente ao impacto das secas. No entanto, com o Golpe Militar de 1964, a Sudene perdeu sua relativa autonomia no planejamento regional e ficou totalmente submetida à política de integração nacional, tendo clara opção de industrialização protagonizada pelo capital estrangeiro associado às empresas do Centro-Sul. Os desvios ocorridos na Sudene em relação às propostas do GTDN também repetiram-se no Semi-Árido, com a opção pela modernização do setor agropecuário, mantendo privilégios das oligarquias agrárias, além das políticas assistenciais e da continuidade das ações hídricas de represamento de água para as áreas de irrigação. Analisando a implantação das ações governamentais nesse período, Bursztyn (1985) e Carvalho (1988), destacam que a nova postura política expressa uma estratégia de modernização conservadora5, na qual o Estado busca viabilizar novas formas de acumulação de capital, preservando as antigas estruturas socioeconômicas e políticas regionais por meio da modernização da grande propriedade agrícola. Para isso, passa a utilizar-se de novos instrumentos de intervenção programada (crédito, assistência técnica, infra-estrutura etc.), ampliando o seu caráter autoritário e centralizador, ao mesmo tempo 5 “A modernização conservadora corresponde à introdução do progresso técnico sem qualquer relação para com os aspectos sociais do desenvolvimento. [...] apresenta a particularidade de constituir um processo violento de introdução do progresso técnico no campo, porque engendra relações de produção (novas ou 'recriadas', como a parceria), sempre desfavoráveis aos pequenos produtores rurais, proprietários ou não da terra”. (Carvalho, 1988, p. 336). 116 em que mantém as medidas assistenciais (paternalismo oficial) nos períodos de seca, como forma de legitimação. Por fim, ressalta-se a capacidade dos grandes proprietários rurais em recuperar, em seu próprio proveito, as ações do Estado que eram dirigidas aos pequenos produtores. Além dos programas especiais, o Governo Federal também reforçou sua atuação na região com a criação de órgãos públicos. Em 1974, foi criada a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), que deveria fornecer uma face mais moderna à agricultura empresarial na região com medidas de regularização fluvial nos rios da bacia do São Francisco, o incentivo à irrigação, à geração de energia, às obras de infra-estrutura de transporte e ao desenvolvimento urbano com saneamento, entre outras. Outra iniciativa foi a criação do Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Semi-Árido (Cpatsa), em junho de 1975, vinculado à Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), para desenvolver estudos, pesquisas e experimentações tecnológicas no Semi-Árido. A presença do Estado foi fundamental com a implantação de projetos de irrigação, assumindo integralmente os custos da maior parte da infra-estrutura de armazenamento, captação e distribuição de água, beneficiando as empresas, nacionais e internacionais, que implantaram suas plantas agroindustriais na região. O sucesso da agricultura irrigada foi motivado pelos incentivos creditícios e fiscais do Governo, por meio do Fundo de Investimento do Nordeste (Finor) e, posteriormente, do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE). Nas décadas de oitenta e noventa, a iniciativa privada assumiu a liderança desse processo, aproveitando a infra-estrutura instalada na região. O resultado foi uma incorporação significativa de áreas irrigadas no Semi-Árido, conforme os dados divulgados pelo Ministério da Integração Nacional, em 2005: considerandose que as áreas irrigáveis no Semi-Árido chegam a 2,2 milhões de hectares, já foram irrigados 20,5% deste total (Brasil., 2005b). Os investimentos no setor agrícola permitiram a criação de pólos de desenvolvimento com agricultura irrigada, constituindo um novo modelo produtivo em áreas do Semi-Árido. No setor industri117 al, desenvolveram-se as indústrias de processamento de tomates e de frutas para sucos, de produção de vinho, de açúcar, de álcool, de equipamentos de irrigação e de insumos agropecuários; no setor agrícola, vários empreendimentos modernos voltados para a produção de frutas, com destaque para uva, banana, manga, melancia e melão; no setor serviços, os bancários e o de telecomunicações. Analisando essas transformações, com a expansão da agricultura irrigada, Gomes (2001, p. 226) afirma, entusiasmado: “Contrariamente ao que foi sempre sua realidade, o Nordeste pode, hoje, escolher entre a miséria produzida pela sua economia agropecuária tradicional e a riqueza gerada pela agricultura irrigada empresarial”. Outros estudos, no entanto, apontam para os limites técnicos nos perímetros irrigados: “No Semi-Árido brasileiro, as informações das entidades públicas que têm responsabilidade pela irrigação, CODEVASF e DNOCS, situam a área salinizada decorrente da irrigação em 5.500 ha” (CHRISTOFIDIS, 2001, p.182). Além da salinização, as práticas inadequadas da agricultura irrigada agravam as fragilidades ambientais com a degradação de nascentes e mananciais hídricos e a erosão dos solos, com a conseqüente diminuição da produtividade. Hoje, há quase um consenso de que, para evitar os danos ambientais ao solo pelas práticas de irrigação, uma das principais medidas a serem adotadas é o zoneamento agroecológico, pelo levantamento das áreas com potencial para a agricultura irrigada, considerando-se os tipos de solo, a quantidade e qualidade da água. A irrigação é apenas uma amostra da forma como foi concebida e executada a fase desenvolvimentista no Semi-Árido brasileiro. O impulso na modernização das atividades produtivas não foi acompanhado de mudanças estruturais e políticas. O crédito, a modernização da propriedade, o desenvolvimento e disseminação de tecnologias e os incentivos às atividades produtivas modernas foram orientados pela busca do crescimento econômico da região, mas sem o mesmo peso dado às mudanças sociais. 118 O papel do fundo público foi essencial nesse processo de modernização econômica em algumas “ilhas de desenvolvimento” do Semi-Árido, fortalecendo as atividades urbanas e industriais e rompendo com a fraca dinâmica que prevalecia no período anterior. No entanto, esse processo tem-se caracterizado pela heterogeneidade intra-regional, refletindo o caráter seletivo dos investimentos estruturais realizados pelo Estado e as estratégias para localização dos empreendimentos privados. Apesar de alguns avanços nos indicadores sociais, as situações de emergência e calamidade continuaram a se repetir no SemiÁrido, que ainda concentra percentuais elevados de pobreza e miséria. Um dos agravantes dessa situação foi, sem dúvida, a crise da cotonicultura, tornando ainda mais difícil a sobrevivência de um imenso contingente populacional no Semi-Árido. A situação tem sido amenizada com a expansão de programas governamentais de transferência de renda, com a ampliação da cobertura previdenciária: “Hoje os velhos sustentam os moços nessa parte do Nordeste” (ARAÚJO, 1997, p. 459). Além do declínio da economia tradicional no Semi-Árido, verifica-se que o recente processo de modernização econômica na região não foi capaz de romper com as bases estruturais das desigualdades no Semi-Árido. A concentração da terra e da renda são também resultados dos incentivos do Estado na região, nos moldes em que foram realizados. Os incentivos à pecuária, por exemplo, fortaleceram e modernizaram essa atividade agravando a questão fundiária, provocando a redução da produção de alimentos e a intensificação de emigração rural (ANDRADE, 1980; 1987). 2.3. Crise das Políticas Públicas no Semi-Árido: Janela de oportunidades para mudanças Os sentimentos de frustração e fracasso das políticas de combate à seca e de modernização econômica conservadora fornecem as bases para justificar a necessidade de busca e valorização de alternativas sustentáveis para o desenvolvimento do Semi-Árido. Um conjunto de Organizações Não Governamentais (ONGs) que 119 atuam no Semi-Árido e algumas instituições públicas de pesquisa e extensão rural, como a Embrapa e a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (Embrater), passaram a desenvolver propostas e a experimentar tecnologias hídricas e produtivas, alternativas e apropriadas à realidade ambiental, cultural e socioeconômica do Semi-Árido. Em 1982, a Embrapa e a Embrater divulgaram um documento intitulado Convivência do Homem com a Seca (Embrapa, 1982), sugerindo uma orientação governamental inovadora de implantação de sistemas de exploração de propriedades agrícolas, para assegurar a convivência do homem com a seca. No final do século XX, novos atores sociais e políticos entraram em cena, com um discurso afirmativo da possibilidade de um desenvolvimento sustentável no Semi-Árido. Na seca de 1992 a 1993, houve uma mudança qualitativa na reação da sociedade civil organizada, pressionando o Governo Federal por ações imediatas e cobrando a elaboração de um plano de ações permanentes no SemiÁrido. Com a criação do Fórum Nordeste, composto por mais de trezentas organizações da sociedade civil da região, foi elaborada uma proposta de Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Nordeste Semi-Árido Brasileiro (FÓRUM, 1993), centrada no fortalecimento da agricultura familiar, no uso sustentável dos recursos naturais e na democratização das políticas públicas. A resposta governamental veio em 1994, com a formulação do Projeto Áridas: uma proposta de desenvolvimento sustentável para o Nordeste (BRASIL, 1995). Elaborado quarenta anos após o documento final do GTDN, manteve a mesma proposta de reordenamento do espaço e da economia do Semi-Árido. Além da reestruturação fundiária, propôs um conjunto de medidas para a ocupação demográfica e produtiva compatível com a capacidade de suporte dos recursos da terra e da água. Em 1999, durante a Terceira Sessão da Conferência das Partes das Nações Unidas da Convenção de Combate à Desertificação (COP 3), ocorrida em Recife, Pernambuco, representantes de movimentos sociais, de entidades religiosas e de ONGs divulgaram a Declaração do Semi-Árido, afirmando que a convivência com as condi120 ções do Semi-Árido brasileiro é possível. O documento apresenta um conjunto de propostas baseadas em duas premissas: o uso sustentável dos recursos naturais do Semi-Árido e a quebra do monopólio de acesso à terra, à água e aos outros meios de produção. Esses princípios servem de referência para a constituição da Articulação do Semi-Árido (ASA), que hoje mobiliza cerca de 700 organizações no Brasil. Fruto dessa articulação foi formulado e está em implantação o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido - Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), que garante, até agora, acesso a água de qualidade para mais de trezentas mil famílias. Além das cisternas, o Programa realiza a capacitação para a convivência, enfatizando os aspectos de gerenciamento de recursos hídricos e cidadania. Nessa mesma direção, em 2006, a Articulação do Semi-Árido implantou seu segundo projeto chamado de “P1+2 - Programa Uma Terra e Duas Águas”, com o objetivo de promover a segurança e a soberania alimentar das famílias de agricultores do Semi-Árido brasileiro, através da produção de alimentos com base em tecnologias apropriadas à região. Nos últimos anos, programas governamentais federais para o Semi-Árido buscam incorporar o discurso da sustentabilidade do desenvolvimento como um de seus referenciais, embora com enfoques e diferentes graus de adesão às alternativas de convivência com o Semi-Árido brasileiro. Na estiagem de 2001/2002, foi lançado o “Programa Sertão Cidadão: convívio com o Semi-Árido e inclusão social”. Além de ações imediatas de atendimento à população sertaneja, foi proposta a criação de um “Sistema de Planejamento e Gestão do Semi-Árido e o Programa de Disseminação de Tecnologias Apropriadas para o Semi-Árido”, visando mudanças no padrão tecnológico e a promoção de alternativas produtivas apropriadas com possibilidades de inserção no mercado interno e externo. Em abril de 2003, já no Governo Lula, foi lançado o Programa Conviver: Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido, propiciando a convergência de ações voltadas para melhoria da vida dos agricultores familiares da região: o seguro-safra (renda mínima aos produtores); a compra de alimentos (Programa de Aqui121 sição de Alimentos); o acesso ao crédito para captação de recursos hídricos; investimento em culturas forrageiras e manejo da caatinga; o Cartão-Alimentação; assistência técnica; educação para a convivência com o Semi-Árido. No entanto, o Programa Conviver resumiu seu foco em projetos hídricos, indicando uma regressão na estratégia inicial. A preocupação com o desenvolvimento sustentável do SemiÁrido também está presente na proposta de recriação da Sudene. A alternativa apresentada é a promoção da integração cooperativa dos espaços intra-regionais, sendo o Semi-Árido um dos espaços prioritários para as políticas de desenvolvimento regional: “Tal estratégia terá em vista atender a dois tipos de exigências: as de desenvolvimento e as de convivência com a semi-aridez” (BRASIL, 2003, p. 44). Apesar de alguns avanços, existem sinais claros de permanência ou continuidade das características das concepções e práticas que têm predominado, historicamente, nas políticas públicas no Semi-Árido. Neste início de século XXI, mesmo renovando os discursos, com a incorporação das dimensões da inclusão social e da sustentabilidade, permanece a perspectiva de solucionar os problemas regionais com a implantação das grandes obras hídricas e para a moderna produção irrigada, geralmente orientada para o mercado externo. Subordinada à dimensão econômica, a sustentabilidade assume significados contraditórios. É o caso, por exemplo, do Plano Estratégico de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido (PDSA) que tem por objetivo o crescimento regional sustentável, com inclusão social e redução das desigualdades regionais. Apesar de apresentar um conjunto de estratégias sociais e econômicas, o Plano confere prioridade “[...] às ações inovadoras ou associadas a empreendimentos de grande porte, territorialmente identificadas com o Semi-Árido” (BRASIL, 2005b, p. 82). As prioridades para incentivar o desenvolvimento na região são: a) a revitalização da Bacia do Rio São Francisco, como base para a integração de bacias hidrográficas; b) a hidrovia do São Francisco; c) a Ferrovia Transnordestina; d) a agricultura irrigada, dinamizando o agronegócio; e) a produção de energia alternativa 122 (biodiesel, gás natural etc.); e f) mineração e refinaria de petróleo. Essas prioridades foram efetivamente incorporadas nas ações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ao mesmo tempo, setores da sociedade civil organizada, com aliados governamentais ligados às áreas social e ambiental, buscam avançar nas propostas de convivência com o Semi-Árido, apresentando alternativas que enfatizam os aspectos da inclusão social, da valorização da cultura e da identidade sertaneja; bem como da preservação dos recursos naturais na Caatinga. Embora existam relações entre essas alternativas e algumas das prioridades do Governo Federal, permanecem grandes focos de conflitos. São sinais evidentes de que as concepções e proposições de políticas públicas para aquela região continuam em disputa. No centro dessa disputa, encontra-se o debate sobre os significados e proposições de um desenvolvimento dotado de sustentabilidade no Semi-Árido. 3. Um Novo Paradigma de Desenvolvimento: A Sustentabilidade A questão do desenvolvimento tem sido uma das principais preocupações das sociedades humanas. Sob diversos enfoques e concepções, o desenvolvimento sempre foi interpretado e almejado como uma promessa do futuro, como uma situação de conforto pela satisfação das necessidades, ampliando as capacidades e a liberdade humana. Com o advento da modernidade, resta interpretado como progresso, como expressão da capacidade racional, cujas finalidades são a ampliação das riquezas materiais e a geração de bem-estar. No entanto, essa concepção moderna de desenvolvimento encontra-se em crise. A promessa de futuro foi concretizada em alguns países e para apenas uma parte da humanidade. A degradação do meio-ambiente e o agravamento das desigualdades sociais, frutos desse modelo, colocam em risco as gerações presentes e futuras. Construir e conquistar novas estratégias e objetivos de um desenvolvimento sustentável são desafios que se colocam para a humanidade. 123 A capacidade criativa e criadora dos seres humanos possibilita o desenvolvimento de alternativas para a satisfação das necessidades básicas de sobrevivência e a busca permanente do conforto e da felicidade. A idéia de progresso tem suas raízes no século XVIII, no período de ascensão da filosofia iluminista que proclamou a idade da razão e propôs a evolução cultural da humanidade, como a conquista da sabedoria, enfatizando a superioridade da ciência e da tecnologia. Essa concepção de racionalização das instituições e das atividades humanas convergiu com a ideologia do capitalismo nascente sobre a eficiência produtiva, como a possibilidade de ampliação acelerada das riquezas e da conquista do bem-estar. A atual concepção hegemônica do desenvolvimento deriva desse paradigma do progresso. A industrialização possibilitou a produção em massa de bens de consumo cada vez mais sofisticados. A sociedade contemporânea passou a mover-se em torno de uma “[...] visão otimista da história e da capacidade infinita de inovação tecnológica que permitiria uma dinâmica sem limites do processo de transformação da natureza em bens e serviços” (BUARQUE, 1990, p. 132). A ampliação seletiva do consumo é o combustível desse processo. Para tanto, são criadas ou induzidas novas necessidades por meio de poderosas estratégias de marketing que geram a demanda, despertam o desejo e o sentimento de falta, para depois produzir a escassez e selecionar o acesso aos bens, reduzindo a economia a um mecanismo de ajuste entre oferta e procura. No entanto, contraditoriamente, o padrão de desenvolvimento capitalista também limita a satisfação do consumo ao gerar as desigualdades sociais. A promessa histórica do progresso técnico e do crescimento econômico constante realiza-se apenas para uma parte da sociedade. Em alguns casos, ao contrário da promessa, destrói culturas tradicionais, promove a máxima exploração dos recursos naturais e introduz técnicas sofisticadas que substituem o trabalho humano, levando a uma degradação das condições de vida da maioria da população. Esse misto de realização e frustração constitui uma crise civilizatória. 124 Manifestações críticas sobre o modelo hegemônico de crescimento econômico vêm se formulando desde o emergir da Revolução Industrial. Essas críticas constituem a base de um novo paradigma de desenvolvimento. Ainda na primeira metade do século XX, Josué de Castro, ao trazer o tema da fome e do subdesenvolvimento para o centro dos debates, ressaltava a importância do desenvolvimento como forma de superar as desigualdades sociais. Mas seria necessária uma mudança, ou melhor, uma reconversão do tipo de desenvolvimento que conduzisse a uma “ascensão humana” por meio de mudanças sociais sucessivas e profundas: “Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem. O homem, fator de desenvolvimento, o homem beneficiário do desenvolvimento” (CASTRO, 2003, p. 105). O economista Celso Furtado, que ajudara a formular as teorias cepalinas do período desenvolvimentista, passou a criticar explicitamente o mito que fora criado entorno do crescimento econômico: A idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito. Graças a ela tem sido possível desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade e das possibilidades que abre ao homem o avanço da ciência, para concentrá-las em objetivos abstratos como os investimentos, as exportações e o crescimento (FURTADO, 1974, p. 76). Furtado alertou que a orientação geral do desenvolvimento capitalista é excludente. Fez isso a partir de duas constatações: o aumento do fosso entre os países centrais e os da periferia; e a exclusão das massas e a ampliação dos privilégios da minoria nos países periféricos. Além disso, os custos ambientais para universalização do estilo de vida dos países centrais poderiam provocar um colapso da civilização pela degradação da natureza. A conclusão do autor é a de que os países periféricos do sistema capitalista nunca serão similares aos países centrais: “O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida, é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana” (FURTADO, 1974, p. 75). 125 A crítica ao mito do crescimento econômico, formulada no início da década de setenta por Celso Furtado e por outros autores, não resulta, necessariamente, numa postura de negação radical do desenvolvimento. Celso Furtado (1974; 1980), por exemplo, propõe que o desenvolvimento deveria ser concebido como um “projeto social”, como uma orientação política e social que possibilitasse a transformação global da sociedade. O crescimento econômico seria um instrumento a serviço dessa transformação, combinando a produção das riquezas necessárias à satisfação das necessidades de toda a população, com a incorporação de direitos (humanos, civis, culturais, sociais e econômicos), preservando o equilíbrio ecológico. É essa a base do pensamento sobre o desenvolvimento sustentável. Enquanto ação humana, o desenvolvimento é um processo cultural de transformação da natureza e das relações sociais e produtivas, numa dinâmica que pode ou não ser harmoniosa. Na perspectiva antropocêntrica, a capacidade de recriação da realidade natural para a satisfação da necessidade implica o controle e a dominação do ser humano sobre os fenômenos e entes da natureza. Numa perspectiva holística, ao contrário, busca-se o desenvolvimento como harmonização entre cultura e natureza, entre a modificação do ambiente para a satisfação de necessidades e a preservação dos bens naturais comuns. O desenvolvimento também expressa a possibilidade de mudança, de transformação da realidade. O caráter transformador também está relacionado à concepção de desenvolvimento como construção societária. As civilizações são expressões de acúmulos de sociabilidade (proximidade) e de dominação (estranhamento e desigualdade) nas relações culturais, sociais e econômicas. A conquista da cidadania (como expansão e vivência de direitos) e o exercício ativo da participação política (democracia) apresentam-se como germes de um modelo alternativo de civilização, no qual os esforços culturais, econômicos e políticos sejam subordinados à finalidade da melhoria das condições de vida. Nas últimas décadas, foi agregado um novo componente no debate sobre os significados do desenvolvimento. A questão ambiental é uma conquista recente da humanidade, como reação crítica às práti126 cas predatórias dos recursos naturais. Os grandes desastres ambientais e os riscos futuros para a humanidade provocaram, a partir da década de sessenta, o surgimento do movimento ambientalista, colocando em debate a questão dos limites do crescimento econômico, sob a ótica da escassez dos recursos naturais e das capacidades de suporte do planeta Terra. Os alertas e críticas tiveram repercussões éticas e epistemológicas de alcance mais profundo, influenciando o pensamento sobre o desenvolvimento, reconciliando ser humano e natureza. O debate ambiental passou também a dar ênfase às relações entre a questão ambiental e as condições sociais. A relação entre a questão ecológica e as condições sociais de pobreza tornou-se uma preocupação recorrente, enfatizando a necessidade de um desenvolvimento qualitativamente modificado: “[...] buscando uma distribuição mais justa da renda, a conservação dos recursos e enfatizando técnicas limpas de produção” (SACHS, 1993, p. 21). No entanto, mais uma vez havia a tendência da economia ser sobreposta às outras dimensões do desenvolvimento, apropriando-se, ao seu modo, do conceito de sustentabilidade. De fato, o principal documento-síntese da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, produzido em 1987, sob o título “Nosso Futuro Comum”, enfatizou um tipo de sustentabilidade compreendida como adequação das atividades socioeconômicas aos limites dos recursos naturais (McCormick, 1992). Interpretado sob o predomínio da lógica econômica, o significado do desenvolvimento sustentável foi reduzido ao de um “desenvolvimento que perdura no tempo”, como um desenvolvimento duradouro que leva em consideração o bem-estar humano e o respeito pelos sistemas naturais de que depende. A reação de parte do movimento ambientalista e de teóricos do desenvolvimento sustentável articulava argumentos éticos e políticos na critica aos desvios dessas concepções mecanicistas de sustentabilidade que atendiam aos interesses de legitimidade do processo econômico. A crítica ambiental ao economicismo desenvolvimentista mostrava que a sustentabilidade do desenvolvimento não seria possível com a manutenção de um modo de produ127 ção que transforma tudo em mercadoria inclusive a vida dos diversos seres e depende da ampliação constante do consumo para sua expansão. Apesar de permanecerem, até hoje, as divergências sobre os conteúdos e significados da sustentabilidade do desenvolvimento do ponto de vista conceitual e político, existem avanços significativos na formulação de princípios, critérios e estratégias para promoção de um “ecodesenvolvimento”6 que, segundo Sachs (1986), combina as diversas dimensões da realidade. A primeira delas é a dimensão ambiental: a sustentabilidade do desenvolvimento tem por base a transformação das relações entre as pessoas e a natureza, “[...] baseada na consciência da fragilidade e finitude da terra [...] e na autocompreensão radical do vínculo de pertinência do homem à natureza” (BARTHOLO JÚNIOR, 1984, p. 80). Além disso, considera que os aspectos ecológicos e culturais têm uma dimensão territorial, considerando as diversidades ecológicas (biomas e ecossistemas) e as diversidades culturais (comunidades tradicionais e etnias). Nessa perspectiva, o caráter endógeno do desenvolvimento implica repensar as territorialidades, considerando o ordenamento ecológico das atividades produtivas. A dimensão social da sustentabilidade expressa a perspectiva includente do desenvolvimento como estratégia de redução das disparidades de renda e de riqueza, com um patamar razoável de homogeneidade social. A sustentabilidade implica a conquista de novos direitos relativos ao ambiente, à cultura, à autodeterminação dos povos, e à igualdade de gênero, raça e etnia. A qualidade de vida não é reduzida à promessa do “bem estar” da sociedade de consumo; mas é compreendida como “[...] o direito a uma vida digna, ao pleno desenvolvimento das faculdades dos seres humanos e à realização de suas aspirações morais, intelectuais, afetivas, estéticas, mediante a reconstrução do ambiente” (LEFF, 2000, p. 220). Submetida a essa orientação sociocultural e ambiental, a 6 O conceito de ecodesenvolvimento foi lançado em 1973 pelo canadense Maurice Strong. Posteriormente, Ignacy Sachs desenvolveu os seus princípios e critérios. 128 sustentabilidade econômica é a promoção do crescimento das forças produtivas e da produtividade ambientalmente equilibrada, com a construção de novas dinâmicas de geração e de redistribuição social das riquezas. Sob a ótica da sustentabilidade, o objetivo estratégico das atividades econômicas deveria ser a elevação da produtividade global, incentivando atividades produtivas adaptadas às condições ecológicas da região, baseando-se na utilização racional dos recursos naturais e na valorização do trabalho humano. Expressa, portanto, uma nova racionalidade que valoriza as formas de produção apropriadas aos ecossistemas como potenciais para um crescimento econômico eqüitativo e sustentável. A sustentabilidade política é explicitada num processo contínuo e participativo de conquista da cidadania, com a democracia definida em termos de apropriação universal dos direitos humanos, incluindo a capacidade de participação na formulação e implantação de projetos de desenvolvimento. Por isso, do ponto de vista do poder, a sustentabilidade implica o avanço dos processos de gestão participativa que modifique as estruturas dominantes e excludentes do poder político e econômico. Esse modelo de gestão negociada e contratual é fundamental, por exemplo, nas políticas de gestão ambiental e requer a sensibilização e a participação ativa dos atores envolvidos como condição fundamental para seu sucesso. O desenvolvimento sustentável expressa, portanto, uma ação cultural; é a construção de uma nova racionalidade contextualizada do desenvolvimento, ou seja, deve considerar as diferentes realidades socioambientais, valorizando a diversidade cultural dos povos. As ações descontextualizadas e desprovidas de adesão e participação política ativa da população estão fadadas ao fracasso, pois expressam uma atitude autoritária e de intolerância diante da diversidade ambiental e cultural. A atual concepção econômica e tecnológica que predomina nos modelos hegemônicos de desenvolvimento impede a participação ativa e consciente dos povos (autodeterminação) nesses processos, conduzindo, na maioria das vezes, ao fracasso. Para Hassan Zaoual, um dos autores que tem contribuído para a compreensão da importância da contextualização cultural em 129 contraponto à uniformização como tentativa de imposição de um pensamento único, a inclusão cultural é contraditória com a visão moderna de inserção econômica orientada pelo mercado. Para o autor, a base dessa contradição é a concepção do homo economicus, da redução do ser humano a produtor e consumidor de bens materiais e imateriais, moldado pelas estratégias de marketing, para inserção no mercado. No entanto, o ser humano é um animal territorial. Suas ações requerem sentido, direção e vínculo com o local e com as coletividades: “É o homem social, pensando e agindo em dada situação. E ele é tudo isso, transmitindo o significado do momento, o de sua situação com todo o peso do passado e da mudança que se impõe” (ZAOUAL, 2003, p. 29). O debate sobre a dimensão cultural da sustentabilidade torna-se fundamental para o reconhecimento de que o desenvolvimento sustentável implica e requer a contextualização cultural, a partir da qual é possível resgatar e construir, de forma dialógica, novos valores e implementar novas práticas de convivência. No entanto, é preciso reconhecer que as mudanças culturais, enquanto transições paradigmáticas, envolvem disputas que somente são resolvidas em longo prazo: “(...) ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou paradigmas emergentes. A transição paradigmática é um objetivo de muito longo prazo” (SANTOS, 2001, p. 19). Nesse sentido, deve-se reconhecer a importância dos processos culturais de resgate e construção de novos referenciais de pensamento (consciência) e do agir (comportamento) dos seres humanos. É essa a nova orientação que tem sido construída para o desenvolvimento sustentável no Semi-Árido brasileiro com base na perspectiva da “convivência”. 4. Sustentabilidade e Convivência com o Semi-Árido Brasileiro Está em construção uma proposta alternativa de enfrentamento e superação das problemáticas sociais, econômicas e 130 ecológicas no Semi-Árido brasileiro. Ela se formula ao longo da história das crises regionais, como uma crítica ao pensamento e à política de combate à seca e aos seus efeitos, e ainda ao modelo de modernização econômica conservadora. No período mais recente, essa construção recebeu influências do debate sobre o desenvolvimento sustentável que se constitui em um novo paradigma civilizatório. Tanto o pensamento crítico quanto as novas contribuições da sustentabilidade são constitutivos da proposta de convivência com o Semi-Árido. No entanto, essa proposta tem sido interpretada de forma variada, gerando questionamentos diversos. Em alguns casos, ela é vista como uma proposta de acomodação ou de passividade diante dos fenômenos e condições naturais. Em outros, é vista como simples apelo à conformidade das tecnologias e práticas produtivas da semi-aridez. Essas interpretações descaracterizam a complexidade da convivência. Daí a necessidade de resgatar os seus vários sentidos e significados. Deve-se considerar que a convivência expressa uma mudança na percepção da complexidade territorial e possibilita construir ou resgatar relações de convivência entre os seres humanos e a natureza. Nesse sentido, um desafio fundamental é o de construir o “sentido da convivência”. Para isso é preciso superar o “monopólio do sentido” que está sempre presente, de forma explícita ou velada, nas proposições e projetos descontextualizados (pacotes tecnológicos, produtivos e socioculturais). A convivência expressa um conflito de sentidos “[...] entre o modelo especializado introduzido de cima para baixo em nome da ciência e as exigências da grande variedade de situações e, mais ainda, a necessidade vital de participar do poder de inovar e criar” (ZAOUAL, 2003, p. 75). 4.1. O Sentido Ambiental da Convivência A convivência com o meio ambiente é um imperativo fundamental para o manejo e uso sustentável dos recursos naturais num ecossistema sem inviabilizar a sua reprodução. Implica uma nova orientação para as atividades humanas, buscando conciliar ou 131 corrigir os limites naturais à intervenção antrópica. É importante aprender a viver em harmonia com o código da natureza, buscando a adaptação ao seu habitat, e não a partir de uma relação de estranhamento, de destruição ou de combate. Convivência é “viver com”, estar junto com outros. Significa a possibilidade de interação e coexistência dentro de uma lógica de reciprocidade, “[...] da aceitação e do cuidado com o outro reconhecido em sua legitimidade enquanto outro da partilha, aquele com quem cada uma das partes da convivência estabelece laços de complementaridade e interdependência” (PIMENTEL, 2002, p. 193). Os avanços da ecologia permitiram esse reconhecimento da reciprocidade entre os diversos seres vivos como condição de equilíbrio do espaço comum vivido. Daí o significado da convivência como coabitação num mesmo espaço ou a interdependência entre os diversos seres vivos. A coabitação requer a constituição de novas formas de pensar, de sentir e de agir de acordo com o ambiente no qual se está inserido. Por isso, a convivência é imperiosa em numerosas regiões do mundo, obrigando os seres humanos a regularizar as suas ações produtivas, considerando as características ambientais. O sentido da imperiosa convivência com o Semi-Árido foi formulado há cerca de quarenta anos atrás, por Guimarães Duque (1996, p. 9): “Outrora o conceito de seca era aquele de modificar o ambiente para o homem nele viver melhor. A ecologia está nos ensinando que nós devemos preparar a população para viver com a semi-aridez, tirar dela as vantagens”. Atenção especial deve ser dada às fragilidades hídricas, ao manejo sustentável dos mananciais e à valorização da captação, armazenamento e gestão da água de chuva. Hoje, são perceptíveis os avanços relacionados às tecnologias hídricas apropriadas ao SemiÁrido. Um dos fundamentos desse processo é o reconhecimento das múltiplas necessidades de abastecimento hídrico: captação e distribuição de água para consumo, com a construção e manutenção de pequenas barragens e outros equipamentos de uso familiar e comunitário; uso das áreas úmidas para produção de alimentos, visando a 132 segurança alimentar; produção de mudas para recuperação da mata ciliar; formação para o manejo de recursos hídricos e do solo, evitando o desperdício e a poluição. Além das tecnologias apropriadas, a convivência com o Semi-Árido requer a gestão comunitária para garantir o uso sustentável da água, possibilitando o abastecimento humano e a produção apropriada, sem degradar os mananciais hídricos da superfície e os aqüíferos subterrâneos. Algumas tecnologias alternativas de captação e armazenamento de água de chuva são citadas no quadro 1: • Cisternas de placas: alternativa simples e com baixo custo para captação e armazenamento de água de chuva para o consumo humano. A captação da água ocorre nos telhados das casas que, normalmente, são suficientes para aparar a quantidade de água que a família necessita para beber, cozinhar e para a higiene bucal durante os meses de estiagem. A cisterna de placa é a mais utilizada, sendo sua construção de fácil aprendizado pelos pedreiros. A disponibilidade de água limpa próxima de casa contribui para a redução de doenças, diminui o tempo e o esforço físico de mulheres e crianças na busca de água. Segundo a Articulação do Semi-Árido (ASA), foram construídas mais de cem mil cisternas. A meta é construir um milhão de cisternas para atender a cinco milhões de pessoas. • Cisternas de placas calçadão: trata-se de uma variação da forma de captação de água das chuvas para as cisternas de placas, quando os telhados das casas são insuficientes para aparar a quantidade de água necessária. A tecnologia consiste na construção de uma calçada de chão cimentado, inclinado, com uma área de 110m2, perto da casa e cercada para evitar a entrada de animais. A água da chuva escorre pela calçada até a cisterna. Famílias que já têm cisternas de placas constroem outra cisterna com calçadão, aumentando a disponibilidade hídrica. 133 • Bomba d’água manual: inventada pelo holandês Gert Jan Bom, na década de 1970, possibilita captar água em poços com até 40 metros de profundidade. Acionada por meio de um grande volante, permite captar até mil litros de água numa hora, com baixo custo de manutenção e fácil manuseio. Um projeto-piloto lançado em 2004 pela ASA previa a instalação de bombas em poços já perfurados, mas que não tinham equipamentos: “[...] levando-se em conta que um carro pipa transporta 7 m3 de água, 50 mil bombas manuais equivalem a 31.285.714 milhões de carros pipa, em 12 meses” (ASA, 2004). • Gestão e tratamento de água para o consumo humano: todas as alternativas hídricas podem fracassar, se não forem acompanhadas de processos sistemáticos de sensibilização e de formação para o manejo dos recursos hídricos e o tratamento da água a ser consumida pelas pessoas. Os cursos de gestão hídrica que são ministrados às famílias que têm acesso às cisternas de placas, contribuem para evitar o desperdício e a contaminação da água da chuva armazenada. Além do uso da água armazenada, os participantes são incentivados ao manejo sustentável dos recursos hídricos existentes nas comunidades, principalmente a limpeza dos açudes e barreiros existentes, e a preservação ou reposição da mata ciliar em rios e riachos. Outras alternativas disseminadas são: a produção caseira de filtros de cerâmica e o uso da semente da Moringa para purificação da água. Quadro 1: Tecnologias hídricas alternativas de captação e armazenamento de água da chuva para abastecimento familiar no Semi-Árido brasileiro Fontes: Articulação do Semi-Árido ASA (2001, 2002); Diaconia (2002), Caatinga (2002), Irpaa (1996, 2000), Embrapa (1999), Cáritas Brasileira (2001, 2002, 2003), MOC (2002), SHISTEK (1998). Também estão sendo resgatadas e desenvolvidas soluções hídricas para a produção apropriada, combinando a captação da água de 134 chuva com a melhoria das áreas de produção agrícola e para fortalecer atividades pecuárias com pequenos animais, conforme o quadro 2: • Barragem subterrânea: tecnologia simples e barata que permite a captação e armazenamento de água de chuva debaixo da terra sem inundar as áreas de plantio nos baixios. Há sessenta anos, Duque (2001, p. 244) chamou a atenção para a importância da barragem subterrânea que “[...] acumulando água dentro do solo e no subsolo com muito menor exposição à evaporação, levam uma grande vantagem em relação às represas comuns”. Os reservatórios subterrâneos ficam ao abrigo da evaporação direta e intensa e podem ser construídos em rios e riachos, abrindo uma valeta entre as margens. A parede da barragem é feita com lona plástica, chumbada embaixo com massa de cimento e entupida com terra. Em cima é feito um barramento de pedra para aumentar a infiltração da água. Com a barragem aumenta a água das cacimbas cavadas no leito do rio ou riacho e aumenta a produção agrícola. • Barragens sucessivas: são paredes de alvenaria, construídas uma após outra, no leito de um rio. A água armazenada numa barragem encosta na parede da outra, garantindo a oferta de água. Diferente das grandes barragens, a inundação fica limitada ao leito do rio, permitindo um melhor aproveitamento agrícola das terras úmidas. As barragens ficam acima do solo e seu fluxo não é grande o suficiente para vazar ou comprometer o leito do rio com o assoreamento. Proporciona o plantio irrigado e de vazante de frutas, hortaliças, forragens e cereais, além da criação de peixes. • Barreiro trincheira: são barreiros estreitos e profundos, escavados em terrenos com pedra firme, com pelo menos dois quadros divisórios para a água ser usada em tempos diferentes. A água da chuva é carregada para dentro do barreiro com o uso de valetas, evitando a contaminação com as fezes de animais. A água concentrada reduz a evaporação. A manutenção do barreiro é feita anualmente com a escavação, o reforço das paredes e a limpeza das 135 valas. A água serve para banho, lavar louça e roupa, regar hortas e para os animais. • Barreiro de Salvação: São barreiros utilizados na irrigação de salvação. A idéia central é captar e armazenar o máximo de água de chuva que escorre rapidamente na superfície do solo. Trata-se de uma pequena barragem de terra formada por uma área de captação, tanque de armazenamento e área de plantio. • Uso sustentável de água de poço amazonas em pequena irrigação: o poço amazonas possibilita pequenos plantios irrigados, com o manejo adequado da água e da plantação, solucionando os problemas de diminuição da vazão nas secas, alta evaporação, o risco de salinização das terras e os altos custos de energia elétrica e combustível. Para isso, é necessário combinar sistemas bem dimensionados em pequenas áreas, com plantas que consomem pouca água; reduzir os efeitos da evaporação, fazendo cobertura morta, irrigando o mais próximo possível do pé da planta e nos horários mais frios do dia. • Tanques de pedra: aumenta a capacidade de captação e armazenamento de água de chuva nos chamados “caldeirões” ou “lajedos” que ocorrem naturalmente nos grandes maciços cristalinos de algumas regiões do Semi-Árido. A técnica possibilita o aproveitamento desse potencial, com a construção de tanques com muros de alvenaria, ao redor das áreas de lajedos ou utilizando impermeabilizantes e lonas plásticas para evitar as perdas de água de chuva, aumentando a disponibilidade hídrica para o abastecimento da família e dos animais. Quadro 2 - Tecnologias hídricas alternativas de captação e armazenamento de água da chuva para produção apropriada no Semi-Árido brasileiro Fontes: Diaconia (2002), Caatinga (2002), Cáritas (2001), Irpaa (1996, 2000), Embrapa (1989, 1995 e 1999); Chapada (2002) e Bernat (1992). 136 A sustentabilidade ambiental implica a recuperação e conservação de recursos naturais dos ecossistemas no Semi-Árido. As tecnologias e práticas de manejo devem ser apropriadas, considerando as potencialidades e fragilidades ambientais. Os sistemas de policultura são preferíveis às práticas monocultoras, pois a combinação de cultivos é um dos segredos da convivência, incluindo o replantio de árvores resistentes à seca, o aproveitamento das forrageiras rasteiras, as lavouras de chuva, a irrigação apropriada e o extrativismo sustentável. O manejo sustentado da vegetação nativa exige mudanças na matriz energética e nas práticas agrícolas irrigadas e de “sequeiro”, reduzindo o desmatamento, principalmente nas regiões que estão sofrendo processos de desertificação. Algumas das alternativas de manejo sustentado da Caatinga são apresentadas no Quadro 3. • Agroflorestas ou roçados agroflorestais no bioma caatinga: os sistemas agroflorestais são formados por culturas permanentes, com fruteiras (pinheiras, cajueiros, umbuzeiros etc.) e com forrageiras (palmas); lavouras de inverno (milho, feijão de corda, fava, abóbora, etc.) e com plantas destinadas à produção de matéria orgânica (feijão guandu e gliricídia). A produção garante a melhoria do consumo familiar de alimentos e a ração para os pequenos rebanhos durante o período da seca. São resgatadas outras espécies nativas da Caatinga, como o tamboril e o cumaru. A construção de cercas vivas com mandacaru diminui os gastos na criação de pequenos animais. Os agricultores começam a substituir as queimadas por coberturas mortas (compostos orgânicos em decomposição) e a preservação de árvores de grande porte nas áreas de plantio. • Combinação de sistemas produtivos: quanto maior a diversificação dos sistemas, mais fácil será a preservação dos recursos físicos e bióticos do ecossistema. As múltiplas e complexas realidades dos ecossistemas no SemiÁrido exigem tecnologias que privilegiem a diversificação produtiva com a complementaridade entre a criação de 137 animais e os cultivos agrícolas, valorizando a biodiversidade na construção da sustentabilidade. Alguns sistemas associados já estão em experimentação e avaliação: o sistema agrosilvopastoril, que combina agroflorestas (frutas, leguminosas e forragens), com a pecuária de pequenos animais e a horticultura; o sistema sisal-caprinos; o sistema apicultura-caju; o sistema irrigação-sequeiro etc. • Plantio em curva de nível: trata-se de uma técnica conhecida e utilizada desde muito tempo pela humanidade. No entanto, no Semi-Árido não foi muito difundida nas áreas de morros, havendo muito “plantio morro abaixo”. O plantio em curva de nível segue a disposição dos níveis do solo, evitando a perda da terra fértil, causada por processos de erosão, e aumenta o aproveitamento da água da chuva nos roçados. O nível é tirado da parte mais alta para a mais baixa do terreno, utilizando piquetes para cada ponto marcado. A aração segue as linhas marcadas. A parte de cima dos morros nunca deve ser desmatada. Com essa técnica a água não escorre nas enxurradas, sendo aproveitada nas plantações. • Barramento de pedra para reduzir as perdas de terras nos períodos chuvosos: consiste na construção de barramentos horizontais, feitos com pedra solta, em forma de arco-romano, capazes de reduzir o impacto da velocidade de escoamento e de reter grande parte do material que desce com as enxurradas, com formação de pequenas áreas agricultáveis. Deve ser combinada a outras medidas de combate à erosão, como, por exemplo, preservar a mata nativa nos locais onde a terra está mais exposta. Além da diminuição da perda de terra, fortalece a recarga do lençol freático, e com o passar do tempo, forma-se um baixio úmido, favorável à agricultura. • Captação de água de chuva in situ: é um sistema que vem sendo desenvolvido pela Embrapa/Cpatsa com base nos experimentos de Guimarães Duque, ainda nos anos 138 trinta. Trata-se de um conjunto consecutivo de sulcos nas áreas de plantio, aproveitando melhor a água de chuva e evitando a perda do solo que ocorre normalmente com as enxurradas. Quadro 3 - Agroflorestas e manejo sustentado da caatinga Fontes: Embrapa (1989, 1995, 1996, 1999), Sabiá (2002), Patac (1991, 1993). As práticas agroecológicas experimentadas e disseminadas afirmam a imperiosa convivência com um ecossistema frágil, recuperando áreas degradadas e reduzindo o uso de insumos químicos que mantêm a dependência dos agricultores em relação à produção industrial. Algumas dessas tecnologias e práticas agroecológicas na Caatinga são citadas no Quadro 4. • Cobertura seca (ou cobertura morta) no plantio na Caatinga: na Caatinga nativa, o solo é naturalmente coberto por folhas e galhos secos, sendo composta de árvores (arbóreas) e plantas baixas (herbáceas) para proteger do sol e do vento a terra e os seus microorganismos, que são fundamentais para a alimentação das plantas. Com essa cobertura seca (ou cobertura morta), a água da chuva se infiltra no solo após ser amortecida, não causando erosão. O incentivo à cobertura com matéria orgânica resultante dos roçados anuais e dos desmatamentos é uma das formas apropriadas na Caatinga para conservar os solos e controlar os processos de desertificação. • Compostagem orgânica para adubação dos roçados na Caatinga: consiste na utilização de matéria vegetal e esterco, existentes na propriedade, para a produção de adubos e outros fertilizantes orgânicos para o solo. A utilização do esterco orgânico fornece alimentos às plantas, aproveitando nutrientes existentes no solo; melhora a infiltração de água, deixando a terra sempre úmida; e faz com 139 que a terra fique mais fofa, diminuindo os riscos de compactação do solo, favorecendo o bom desenvolvimento das plantas. Existem diversas técnicas de compostagem, que enriquecem esse processo, combinando o esterco com outras matérias disponíveis no local, reduzindo os custos com os adubos químicos e preservando a saúde do solo, dos animais e das pessoas. • Uso de inseticidas naturais em roçados agroecológicos: o uso de remédios e inseticidas naturais para controlar pragas que ocorrem nas plantações tem baixo custo e reduz a dependência da agricultura em relação ao uso de produtos químicos que trazem prejuízos ao solo, às plantas e ao ser humano. Os principais inseticidas são: o “Macerado de Fumo”, que utiliza fumo de rolo, água, álcool e sabão, para conter o avanço do pulgão e da mosca branca; o “Macerado de Agave”, para controlar as formigas cortadeiras; a “Manipueira” da mandioca; a “Urina de Vaca”, misturada com água, utilizada como adubo foliar para combater a mosca branca nas hortaliças; a “Calda de Alho” fervido em água, para controlar o pulgão e a vaquinha que atacam as hortaliças. Quadro 4 - Agroecologia no bioma caatinga Fontes: Caatinga (2002), Irpaa (2001), Chapada (2002), Centro Sabiá (2002), Patac (1991, 1993). Em síntese, na perspectiva da convivência com o SemiÁrido, a gestão ambiental adquire novos sentidos e significados ao priorizar a busca de soluções locais apropriadas às condições naturais, tendo por base a sensibilização e a participação ativa e consciente das populações locais, para que modifiquem suas percepções e comportamentos em relação à natureza. Além dessa dimensão cultural, outro desafio é a mudança estrutural na economia, com o fortalecimento da agricultura familiar no Semi-Árido. 140 4.2. A Economia da Convivência Um dos desafios atuais no Semi-Árido brasileiro é a combinação dos princípios e valores da convivência com a viabilização das atividades econômicas necessárias ao desenvolvimento sustentável. Do ponto de vista da dimensão econômica, a convivência é a capacidade de aproveitamento sustentável das potencialidades naturais e culturais em atividades produtivas apropriadas ao meio ambiente. Nesse caso, não é o ambiente que tem que ser modificado ou adaptado às atividades produtivas. Na perspectiva da convivência, ao contrário, são as práticas e métodos produtivos que devem ser apropriados aos ambientes. Não se trata, porém, de voltar aos tempos passados, abandonando os avanços tecnológicos modernos que contribuem para melhorar a produtividade do trabalho. Trata-se de uma perspectiva orientadora de uma produção apropriada, “[...] transformando a economia sertaneja, adaptando-a às exigências do meio natural, sobretudo às contingências climáticas” (ANDRADE, 1973, p. 132). A perspectiva da convivência possibilita inverter as explicações sobre a baixa produtividade e os baixos rendimentos nas atividades econômicas no Semi-Árido. Há uma nova interpretação de que foi a falta de uma adequada compreensão sobre os limites e potencialidades dessa realidade que conduziu à introdução de atividades econômicas não apropriadas que terminaram por agravar ainda mais os problemas ambientais, quebrando o equilíbrio biológico existente e empobrecendo mais ainda as famílias sertanejas. Em muitos casos, os fracassos econômicos e o agravamento das condições naturais, tais como os processos de desertificação no SemiÁrido, são conseqüências também do processo de modernização, implantado sem o necessário conhecimento da região, por meio da transposição de experiências exógenas. Daí a importância da convivência, como uma imperiosa necessidade de adaptar a economia à realidade semi-árida, seja na adoção de atividades produtivas apropriadas que usem tecnologias contextualizadas, seja no que se refere à modificação na estrutura 141 socioeconômica, promovendo a justiça social. Requer outros valores e outros padrões de produção como as alternativas baseadas na agroecologia, no manejo sustentável da Caatinga e na criação de pequenos animais. Além de sustentáveis, as iniciativas de produção e distribuição das riquezas devem ser includentes, com a democratização do acesso aos meios necessários à produção (terra, água, crédito, tecnologias, assistência técnica e organizativa). Uma produção apropriada no Semi-Árido requer a combinação de diferentes atividades em sistemas múltiplos que viabilizem a diversificação das fontes de obtenção de renda, evitando a dependência em relação à regularidade das chuvas. Nos cultivos agrícolas, deverão ser consideradas, entre outras, a consorciação e a rotação de culturas, considerando as práticas de manejo sustentado da Caatinga, incluindo os métodos de irrigação apropriados à realidade regional e às condições da agricultura familiar. A pequena irrigação deve ser valorizada, em primeiro lugar, na perspectiva da segurança alimentar da população sertaneja, reduzindo os custos com aquisição de alimentos de primeira necessidade. No Quadro 5, apresentam-se algumas dessas alternativas: • Irrigação de salvação: a irrigação de salvação tem sido uma tecnologia apropriada para o aproveitamento da água de barreiros, açudes ou poços amazonas, para irrigar lavouras que sofrem com a irregularidade da chuva durante o inverno (o que se chama de seca verde). A irrigação é feita durante o próprio período do inverno, aproveitando melhor a água armazenada, sem prejudicar o abastecimento humano e animal. • Sistema irrigado de produção familiar com microaspersão: várias experiências de manejo sustentado do solo e da água são desenvolvidas, apontando soluções para o plantio irrigado na Caatinga, combinado com outras atividades agrícolas e pecuárias de sequeiro, ocupando áreas menores e com melhores condições de drenagem, para 142 evitar o desperdício de água e a perda da fertilidade do solo. A irrigação é feita por força da gravidade e com o uso de micro-aspersores que controlam a quantidade da água que a planta necessita, mantendo o solo úmido. A combinação de outras práticas agroecológicas de fertilização do solo e do manejo de pragas também são técnicas adotadas nesses sistemas. Quadro 5 - Métodos alternativos de irrigação no Semi-Árido Fontes: Caatinga (2002), Embrapa (1996) e Chapada (2002) Deve-se considerar, também, o extrativismo vegetal, aproveitando a riqueza de plantas adaptadas ao ambiente seco, que poderiam ser economicamente exploradas como produtoras de óleos (Catolé, Faveleira, Marmeleiro, Oiticica e Mamona); de látex (Pinhão e Maniçoba); de ceras (Carnaúba); de fibras (Bromeliáceas, Sisal e Agave); medicinais (Babosa e Juazeiro); frutíferas (Imbuzeiro e cajueiro). Essas plantas são superiores para o reflorestamento da caatinga e também servem como atividade econômica geradora de renda nas atividades extrativistas, agrícolas e consorciadas com a pastagem, ocupando as terras não irrigáveis, conforme o Quadro 6: • Algodão mocó: uma espécie de algodoeiro perene, dotado de capacidade de conservar reservas nutritivas nas raízes e nos galhos vegetativos para resistir às secas. Tem grande importância social no Sertão. Nas décadas que antecederam a crise do algodão no Nordeste, Duque já havia chamado a atenção para a necessidade de melhoramento genético e seleção de espécies mais produtivas. • Carnaubeira: destaca a sua importância econômica e a possibilidade de plantações mistas ou consorciadas, além da extração da cera e da palha. Entre as suas 143 vantagens destaca: manejo fácil, resistente às secas; o principal produto, a cera, é de fácil conservação e tem comércio garantido. • Oiticica: é uma das poucas espécies que resistem verde às secas. Destaca a possibilidade de expansão da lavoura para extração da semente para produção de óleos secantes, na fabricação de tintas, vernizes, esmaltes finos, oleados e lonas. A industrialização do óleo da oiticica tem como limites as variações nas safras, mas um processo de melhoramento genético poderá ajudar. • Palma forrageira: destaca-se o seu potencial para melhoramento da pecuária na região. É um tipo de cactus sem espinho, que contém nas suas folhas verdes 93% de água. É ótimo alimento forrageiro misturado com a torta de caroço de algodão para completar a ração do pasto seco. • Umbuzeiro: destaca a possibilidade de melhoramento genético por meio do estudo, da seleção e enxertia, aumentando o volume da polpa com maior teor de açúcares, na diminuição do volume do caroço e no afinamento da casca. É uma fonte de diversas matérias-primas: “O umbu pode se converter na ‘ameixa’ das caatingas” (DUQUE, 2001, p. 115). • Cajueiro (semixerófila): destaca-se o valor econômico, com a diversidade de produtos que podem ser obtidos do cajueiro: do tronco da árvore, resina, casca taninosa e madeira; do fruto, bebidas, doces, óleo da amêndoa e óleo da casca. Além disso, serve para reflorestamento no litoral setentrional e para as caatingas úmidas. • Umbuzeiro (spondis tuberosa): as frutas nativas são mantidas e utilizadas no Agreste e no Sertão, e assumem grande importância na dieta alimentar. O extrativismo do umbu é hoje praticado em grande parte do Semi-Árido, 144 com avanços no beneficiamento da fruta para produção de suco concentrado, doces e geléias. Além disso, essas árvores produzem sombra, adubo para o solo, madeiras, estacas, medicamentos e alimentos para as abelhas. • Algaroba: destaca-se a sua importância para fornecimento de lenha, da estaca para as cercas, da folhagem, como rama para o gado, além do seu verdadeiro valor que está nas vagens (mesocarpo) e nas sementes (endocarpo), como alimentos concentrados. • Maniçoba: sua importância é para o reflorestamento das áreas mais secas e a possibilidade de extração do látex para produção de borracha. • Faveleiro: é uma planta dotada de grande resistência à secura, prestando-se ao reflorestamento de vastas extensões erodidas e proporcionando o óleo e torta de alto valor energético, sendo talvez o vegetal de maior importância econômica, no Semi-Árido. • Licuri: destaca-se a possibilidade de utilizar as amêndoas para produção de torta, na alimentação de suínos e dos bovinos, e o aproveitamento das folhas para produção de cera usada na fabricação de papel carbono, graxa para sapato, para móveis, para pintura de automóveis. • Jurema: uma leguminosa espontânea que despeja, no chão, boa quantidade de matéria orgânica, podendo ser associada com o algodoeiro perene, formando um conjunto protetor-produtivo. Quadro 6 - Lavouras Xerófilas Fonte: Guimarães Duque 1980; 1988; 2001; 2004. Na pecuária, a criação de pequenos animais é preferida quando comparada com a pecuária bovina. O volume de suporte forrageiro e de água, requerido para a manutenção desses pequenos 145 animais, é significativamente menor em relação às exigências da bovinocultura. O pasto natural da Caatinga é rico em nutrientes, dada a grande diversidade e o valor forrageiro das espécies resistentes às estiagens. A escassez de pastagem nos períodos de seca pode ser enfrentada com as alternativas de fenação e silagem. Hoje, há um avanço na compreensão de que a segurança alimentar e hídrica dos rebanhos é de fundamental importância na região. Da mesma forma, a apicultura, a meliponicultura, a avicultura e a piscicultura são incentivadas para fortalecer e diversificar as iniciativas econômicas da agricultura familiar no Semi-Árido, conforme o Quadro 7. • Caprinovinocultura: além de se adequar às condições ambientais e socioculturais da região, a criação de caprinos e ovinos não exige grandes investimentos e permite a geração de renda. Além da criação de rebanhos, tem-se incentivado o beneficiamento de seus produtos, com indústrias de laticínios, curtumes etc. O desenvolvimento da caprinocultura implica resgatar e valorizar a rusticidade desses animais por meio de processos de seleção natural. A Embrapa Semi-Árido tem pesquisado um modelo de produção orgânica de caprinos, com as forrageiras nativas da Caatinga, aumentando a eficácia no controle das verminoses, reduzindo custos e incentivando o manejo sustentável do rebanho. • Fenação, silagem e bancos de proteínas animal: a produção e conservação de forragens é a principal medida para manutenção dos rebanhos nos períodos de estiagem. O excesso de forragem nos períodos chuvosos deverá ser armazenado de forma adequada para posterior utilização. A variação das culturas de forragem permite combinar a quantidade do material com a qualidade nutricional da ração. Os bancos de proteínas podem ser formados a partir de forragens disponíveis na Caatinga, de acordo com orientações técnicas sobre a composição das plantas. 146 • Apicultura e meliponicultura: o Semi-Árido brasileiro é uma grande região produtora de mel, tendo em vista que a flora da Caatinga é constituída por uma riqueza de flores. As abelhas nativas e africanizadas contribuem para polinização da flora local e fornecem diversos produtos (mel, própolis e cera) para a alimentação e a saúde da população. A apicultura é uma atividade tradicional que se aprimora no Semi-Árido, com a disseminação de instrumentos e práticas de manejo em apiários. O cuidado com a alimentação das abelhas leva à preservação das floradas nativas da Caatinga e ao manejo da água, para que os enxames não abandonem as colméias nos períodos da seca. A colheita e beneficiamento do mel, da cera e da própolis em ambiente e com instrumentos apropriados evitam o desperdício e a contaminação dos produtos. • Piscicultura: a piscicultura nos sistemas integrados de agricultura familiar, aproveitando a água acumulada em açudes, pode contribuir para melhorar a renda no Semi-Árido. Diversas tecnologias são desenvolvidas para a implantação de projetos de piscicultura sustentável, como os tanquesredes e a produção de ração, com aproveitamento de matéria prima disponível no local. • Avicultura (galinha de capoeira ou caipira): a Embrapa contribuiu para o desenvolvimento de um conjunto de técnicas de manejo de aves e de produção local de ração, que melhoram a produtividade na criação de galinha de capoeira destinada à produção de carnes e ovos, gerando trabalho e renda, e contribuindo para a segurança alimentar nas áreas rurais. Os projetos implementados incentivam sobretudo a participação das mulheres na gestão das atividades. Quadro 7 - Produção Apropriada no Semi-Árido: a criação de pequenos animais Fontes: Embrapa (1996); Chapada (2002); Patac (1993); Macedo e Menezes (2004); Holanda Júnior (2005). 147 No entanto, uma economia da convivência com o SemiÁrido requer bem mais do que modificações nos sistemas produtivos. O fortalecimento da agricultura familiar, como eixo central de uma estratégia de desenvolvimento rural sustentável, requer um conjunto de políticas públicas: a realização de uma reforma agrária democrática e sustentável, o acesso ao crédito, às tecnologias apropriadas e a realização de processos educativos, participativos e sistemáticos são fundamentais. Da mesma forma, o incentivo e o apoio às iniciativas econômico solidárias, com base no associativismo e no cooperativismo autêntico são também formas de convivência. A exemplo do que ocorre com a natureza no bioma Caatinga, as diversas formas de cooperação e associação são fundamentais para ampliar e melhorar os resultados da produção apropriada, reduzindo os efeitos dos intermediários comerciais e financeiros sobre os pequenos produtores (Quadro 8). • Fundos de pasto: o fundo de pasto é uma prática tradicional no Semi-Árido brasileiro. Caracteriza-se pela ocupação e uso da terra de forma comum, por uma determinada coletividade que, além dos laços de parentesco e compadrio, tem em comum a criação de animais de pequeno e grande porte, soltos na área; e pequenos roçados de subsistência das famílias e de suplementos alimentares para o rebanho. • Bancos e Casas de Sementes Comunitárias: é um modelo de gestão coletiva do estoque de sementes necessário para o plantio. As famílias se associam e têm direito a tomar emprestada uma certa quantidade de sementes, que são restituídas após a colheita numa quantia superior, segundo valores definidos pelos associados. O Banco de Sementes Comunitárias permite aumentar o número de famílias beneficiadas e formar estoques de reserva para os períodos de estiagem prolongada. Também funcionam como guardiões estratégicos das variedades adaptadas e por isso têm incentivado a variedade de sementes de mi148 lho, feijão, gergelim, mamona, sorgo, moringa, fava, girassol, jerimum, melancia, melão, pepino, arroz, algodão, amendoim e outras espécies de plantas nativas e medicinais. • Feiras de agricultura familiar e agroecologia: a promoção de feiras livres é uma alternativa para o escoamento da produção da agricultura familiar, para melhoria da renda e para a aproximação entre produtores e consumidores. Ultimamente, têm surgido várias iniciativas de feiras agroecológicas e de economia solidária. Na Paraíba, há uma experiência de “pontos ecológicos” nas feiras livres, estimulando novas relações dos agricultores com os consumidores. • Redes e cooperativas de beneficiamento e comercialização: rompendo com o velho cooperativismo, capturado pelos médios e grandes proprietários rurais (criados por incentivo governamental na década de setenta), surgem novas cooperativas e redes de grupos de produção de agricultura familiar, grupos de mulheres e assentamentos rurais. São espaços que organizam a comercialização de produtos agroecológicos (hortaliças e frutas), produtos apícolas, artesanato, castanha de caju, doces, rapadura de leite de cabra, produtos de higiene pessoal etc. As redes também têm valorizado o uso de marcas que identificam produtos agroecológicos e regionais. Quadro 8 Iniciativas econômicas solidárias no Semi-Árido Fontes: ASA (2003, 2004), EBDA (1997), Freire e Almeida (2005), Cordeiro e Faria (1993). Diante da dificuldade de acesso ao crédito nas instituições financeiras públicas e privadas, têm-se incentivado algumas organizações de finanças solidárias no Semi-Árido, conforme exemplificado no Quadro 9, a seguir. 149 • Fundos rotativos solidários: no Semi-Árido, têm-se incentivado os fundos rotativos solidários, como mecanismos de mobilização e valorização social da poupança comunitária, assumindo a forma de gestão compartilhada de recursos coletivos. O fundo rotativo é uma forma de gestão coletiva de recursos provenientes de ONG's e de organizações de Cooperação Internacional. O acompanhamento na administração do fundo é feito por um coletivo comunitário. Um dos exemplos mais significativos é a formação de Consórcios de Cisternas de Placas. Trata-se de um Fundo criado com a devolução de parte dos recursos que são doados às famílias e comunidades, por entidades nacionais e internacionais, públicas e privadas, para a construção de cisternas. Os fundos rotativos financiam outras cisternas e atendem um número maior de as famílias de uma comunidade ou município. • Cooperativas de crédito: têm-se ampliado nos últimos anos, com a finalidade de facilitar o acesso de pequenos produtores ao crédito, tendo em vista a inadequação do sistema financeiro oficial para atender a essas demandas. Recentemente, houve uma expansão do cooperativismo de crédito ligado à agricultura familiar no Semi-Árido, possibilitando a canalização de créditos alternativos e oficiais para estruturar as propriedades dos agricultores que, normalmente, têm dificuldade de acesso ao fundo público, sobretudo o Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf). Quadro 9 - Finanças solidárias no Semi-Árido Fontes: ASA (2003, 2004); Rocha e Costa (2005). A pluriatividade deve ser promovida como uma das principais estratégias de desenvolvimento sustentável, incentivando as atividades não-agrícolas de transformação (industrialização) e prestação de serviços. Celso Furtado (1959) alertava que não seria possí150 vel um desenvolvimento daquela região sem o crescimento das atividades secundárias e por isso defendia que a criação de indústrias apoiadas em base favorável de matérias-primas locais deveria proporcionar a inserção noutros mercados, ampliando a captação de divisas para outras atividades regionais, gerando alternativas urbanas de trabalho e agregando valor aos produtos regionais. Entre as oportunidades e possibilidades destacam-se: as agroindústrias que beneficiam produtos da Caatinga, no setor de alimentação (frutas, compotas, laticínios, doces, concentrados de suco etc.) e de matérias-primas para uso industrial (fibras diversas, tecelagem, ceras etc.); o artesanato característico do Sertão (fibras, couro etc.); as pequenas indústrias urbanas; a prestação de serviços técnicos; o turismo ecológico, arqueológico e de lazer, possível em diversas áreas atrativas do Semi-Árido (regiões serranas, parques históricos, reservas ambientais, estações termais etc.); a prestação de serviços pessoais e coletivos (transporte, construção etc.), entre outros. Enfim, o fortalecimento da produção regional apropriada, com base na valorização dos produtos locais, enfatizando suas características e identidades territoriais, é um dos sentidos da convivência. O desenvolvimento e acesso às tecnologias apropriadas para a melhoria da produção e a realização de processos educativos, participativos e sistemáticos, são fundamentais para o fortalecimento dessas iniciativas econômico solidárias no Semi-Árido. Trata-se de um reconhecimento de que a diversidade ambiental e a riqueza cultural podem ser elementos impulsionadores de uma nova dinâmica de desenvolvimento, dotada de sustentabilidade, orientada pela inclusão social. 4.3. Convivência com Qualidade de Vida A convivência com o Semi-Árido significa uma nova perspectiva do desenvolvimento que visualize a satisfação das necessidades fundamentais como condição para expansão das capacidades humanas e da melhoria da qualidade de vida, concebida como redução das desigualdades sociais. Nesse sentido, a convivência com o 151 Semi-Árido não é uma proposta de passividade e acomodação diante da pobreza existente na região, principalmente nos períodos de seca: “Mesmo perfeitamente adaptados à convivência com a rusticidade permanente do clima, os trabalhadores das caatingas não podem conviver com a miséria, o desemprego aviltante, a ronda da fome e o drama familiar profundo criado pelas secas prolongadas” (AB'SÁBER, 2003, p. 85). A convivência exige a melhoria da qualidade de vida dos sertanejos, inclusive, como condição para estabelecer uma nova relação com o meio ambiente. A construção de novas perspectivas sobre meio-ambiente, junto a populações marcadas pela condição de pobreza, exige a capacidade de articulação das iniciativas de gestão ambiental sustentável com as iniciativas socioeconômicas orientadas para a melhoria da qualidade de vida da população local. Caso contrário, o discurso da convivência torna-se vazio, sem dar respostas às problemáticas locais. A base da superação da pobreza é o acesso a bens e serviços públicos fundamentais, como educação, saúde, moradia, saneamento, assistência social e previdenciária, com qualidade e em quantidade suficiente para atender às demandas locais, como direitos de cidadania. Melhorias na educação, na saúde, na alimentação, nas condições habitacionais e, principalmente, no abastecimento hídrico, podem fazer significativa diferença na melhoria dos indicadores sociais do Semi-Árido brasileiro. O acesso à água de qualidade para o consumo humano, por exemplo, pode repercutir significativamente na redução de doenças, diminuindo, inclusive, a mortalidade infantil na região. A elevação da escolaridade, com base numa educação contextualizada, também poderia ter conseqüências significativas nas demais áreas sociais e produtivas. Além do acesso aos serviços sociais básicos de qualidade, a convivência implica mudanças nas relações sociais de dominação (de classe, étnicas, de gênero e de geração), enraizadas no SemiÁrido. A questão de gênero, por exemplo, tem ganhado destaque cada vez maior nas iniciativas organizativas da sociedade civil. Isso porque a construção da igualdade nas relações sociais, respeitando 152 as diferenças, é também uma forma de convivência. Algumas iniciativas de segurança alimentar e nutricional7 são incentivadas. O cultivo de agroflorestas, o aproveitamento dos quintais produtivos e a horticultura, combinadas com a criação de pequenos animais, envolvendo principalmente as mulheres. Para conviver é necessário integrar harmonicamente as ações imediatas de suprimento de carência alimentar com as ações permanentes que viabilizem o enfrentamento das condições de pobreza e aumentem a resistência das atividades econômicas na região, conforme o Quadro 10, a seguir. • Hortas orgânicas: a técnica correta de plantio e o acesso à água de barreiros trincheira e poço artesiano viabilizam a produção de hortaliças. O manejo adequado do solo (cobertura morta), a variedade de plantas, o uso de adubos orgânicos (esterco, compostos, biofertilizantes) e o uso de inseticidas naturais garantem a produção de alimentos saudáveis para o abastecimento familiar e para geração de renda com a venda do excedente. • Quintais produtivos: a agroecologia pode contribuir para criar uma situação de disponibilidade de alimento suficiente, de boa qualidade e diversificado nos quintais das casas no Semi-Árido. Vários exemplos mostram que, com água disponível e utilizada de forma econômica, é possível explorar um hectare com alta diversificação de produtos: frutas, cereais, verduras e hortaliças. A água é captada, elevada com bomba manual para uma caixa de água para irrigar por gravidade e gotejamento. • Mandallas: trata-se de uma tecnologia desenvolvida no Sertão da Paraíba, que combina a segurança alimentar e 7 A Segurança Alimentar tem sido definida como um direito humano ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, orientado por práticas alimentares que promovam a saúde. Outros aspectos também devem ser considerados, como por exemplo, o respeito às práticas alimentares regionais ou étnicas; e a produção de alimentos em processos sustentáveis que não causem danos significativos ao ambiente. 153 nutricional com a melhoria de renda na agricultura familiar. É um tanque cilíndrico, com capacidade de, aproximadamente, dois mil litros de água, que serve para criatório de peixes e aves, além de servir para a irrigação de pequenas hortas e pomares. A irrigação é feita por microaspersores que são fabricados a partir de material reciclado. A produção das Mandallas é voltada para a segurança alimentar e o excedente é vendido no comércio local. • Programa alimento por trabalho: executado por organizações da sociedade civil, com o apoio do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, a Cáritas Brasileira e a Catholic Relief Service (CRS), realizado no Nordeste durante o período de 1992-1994. O programa atendeu 61 mil famílias em 80 municípios, combinando a distribuição de alimentos com ações permanentes de convivência. As atividades apoiadas visavam a melhoria do abastecimento de água (recuperação de açude, construção de barreiro trincheira, construção de cisternas, cacimbas, aguadas etc.); o fortalecimento das atividades de produção agropecuária (roçados, apicultura, caprinocultura, piscicultura); incremento da produção artesanal (bijuterias, confecções, louças e filtros de barro, peças decorativas), mobilizando suas capacidades. Quadro 10 - Alternativas de segurança alimentar no Semi-Árido brasileiro Fontes: CRS (1996); ASA (2003, 2004); Castelo Branco e Marra (2004). 4.4. A Cultura da Convivência A convivência com o Semi-Árido requer a valorização e a reconstrução dos saberes da população sobre o meio em que vive, sobre as suas especificidades, fragilidades e potencialidades. A contextualização dos processos de ensino-aprendizagem à realidade local é apresentada como uma estratégia de sensibilização, mobilização e organização da população sertaneja, para identificar as problemáti154 cas e construir soluções apropriadas que visem à melhoria das condições de vida. Para isso, os processos formativos não podem se resumir à ampliação de conhecimentos e habilidades, como prevalece no ensino formal; nem deve ser limitada ao ensino de novas tecnologias de produção, como tem sido a tônica dos processos de assistência técnica e extensão rural. A formação contextualizada deve servir de instrumento de mudanças de atitudes e valores, a partir de um conhecimento aprofundado da realidade local, induzindo ou fortalecendo as alternativas de convivência. Além das orientações ambientais e da melhoria da infraestrutura para promoção do desenvolvimento regional, Guimarães Duque (1980, 2001) dava destaque especial a uma proposta de educação orientada para o contexto socioambiental que habilitasse as famílias sertanejas a resgatar e valorizar as atividades e o modo de vida rural. A educação para a convivência, com base no conhecimento adequado e aprofundado do meio-ambiente, é fundamental para preservar a vegetação que resta na Caatinga, para a fertilidade do solo e o manejo adequado da água. A cultura é uma das dimensões enfatizadas pelo pensamento sobre a sustentabilidade do desenvolvimento. Ignacy Sachs (2000), por exemplo, chama a atenção para a necessidade e possibilidade de convivência com os ecossistemas frágeis, a partir de processos participativos de resgate e de construção cultural de alternativas apropriadas. Esses processos requerem uma abordagem negociada e contratual de identificação de necessidades, de capacidades locais e do aproveitamento dos recursos potenciais para a melhoria das condições de vida das populações locais. A convivência é fruto da sensibilidade e não apenas da racionalidade. Carvalho e Egler (2003) afirmam que, como princípio, a convivência com a semi-aridez é um processo permanente de aprendizagem que vem desde os tempos da colonização, cujo principal ator é a própria população sertaneja. Com essa perspectiva, é possível conceber e desenvolver uma “pedagogia da convivência”, constituída por um conjunto de princípios, diretrizes e de métodos vivenciais. 155 Nesse sentido, a convivência com o Semi-Árido é uma nova cultura, construída a partir de uma relação de proximidade entre ser humano e natureza. É por meio da observação dos fenômenos naturais, dos “comportamentos” das plantas e dos animais, em distintos momentos ou ciclos climáticos na região, que os agricultores ampliam seus conhecimentos e formulam experimentações. A combinação desses saberes locais com os conhecimentos universais acumulados pela humanidade complementa o processo de educação para a convivência. É com essa perspectiva que são enfatizados os processos de construção da educação contextualizada e a pedagogia da alternância no Semi-Árido8. A educação contextualizada é concebida como um processo dinâmico de construção de conhecimentos e atitudes dos seres humanos, considerando o ambiente no qual está inserido. Sem desconhecer os problemas estruturais do sistema educacional brasileiro, sobretudo no Semi-Árido, a educação contextualizada contrapõe-se aos processos de destruição e desvalorização das culturas pela imposição de modelos exógenos de modos de vida e de pensamentos sobre a realidade. Trata-se de uma estratégia fundamental de construção de uma cultura da convivência, dos seus sentidos e significados que estão subjacentes nas diversas práticas produtivas apropriadas e nas tecnologias alternativas. Os processos culturais amalgamam essas várias práticas produtivas e tecnologias apropriadas com os saberes acumulados, constituindo uma base fundamental para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável para a região, conforme o Quadro 11. • Educação para convivência com o Semi-Árido: vários projetos vêm sendo implantados com essa concepção da educação contextualizada nos processos formais e informais de ensino. Uma iniciativa pioneira nesse sentido foi desenvolvida pelo Instituto Regional da Pequena ProA pedagogia da alternância combina momentos formativos presenciais nas escolas rurais e momentos de aprendizagens e experimentações fora do ambiente escolar. 8 156 dução Agrícola Apropriada (IRPAA), na região de Curaçá, na Bahia, e pela ONG Caatinga, em Ouricuri, Pernambuco. Partia-se do pressuposto de que os processos formativos para a convivência, que eram realizados nas comunidades rurais, deveriam também ser incorporados aos projetos político-pedagógicos das escolas urbanas e rurais, responsáveis pelo ensino formal. Posteriormente, diversas entidades, entre elas a Cáritas Brasileira e a Comissão Pastoral da Terra, vêm expandindo a proposta para outras regiões dos estados do PI, PB, PE e BA. Por meio de processos formativos com educadores, comunidade e gestores educacionais, pretende-se construir políticas educacionais apropriadas ao Semi-Árido, com base em um novo olhar sobre a região, suas particularidades e potencialidades. Os docentes e administradores escolares são capacitados para incluir nos processos pedagógicos a temática da convivência com o Semi-Árido, destacando o conhecimento da realidade, os cuidados com o meio ambiente, as alternativas tecnológicas e a produção apropriada, as ações afirmativas de igualdade de gênero, etnia e geração. • Escolas famílias agrícolas e a pedagogia da alternância: a pedagogia da alternância é seguida há décadas na formação e capacitação de jovens, filhos e filhas de agricultores. Ela combina momentos formativos presenciais, em escolas localizadas em áreas rurais, garantindo a permanência dos alunos na escola durante um certo período no qual são realizadas as atividades de ensino teórico-prático, com momentos junto às famílias, cujos aprendizados são experimentados. Essa estratégia amplia a abrangência dos processos formativos alcançando outras pessoas do círculo familiar e da vizinhança. Ao mesmo tempo, as experimentações e vivências retornam para a escola, possibilitando questionamentos e o enriquecimento dos debates coletivos em sala de aula. As escolas agrícolas alternativas visam formar os futuros agricultores e 157 agricultoras, incentivando a permanência da juventude no campo, com base na utilização de conhecimentos e tecnologias apropriadas que viabilizem o aumento da produção e a melhoria de renda, considerando o meio ambiente. No Semi-Árido, as Escolas Famílias Agrícolas enfatizam os temas relacionados ao clima e à água, às técnicas de convivência com o Semi-Árido e ao associativismo. Quadro 11 - Educação contextualizada e pedagogia da alternância no Semi-Árido brasileiro - Fontes: ASA (2001, 2003 e 2004), Caatinga (2002), Irpaa (2001), Cáritas Brasileira (2001). Os estudos realizados por Osmar Rufino Braga (2004) possibilitam uma sistematização dos principais fundamentos político-pedagógicos da educação contextualizada no Semi-Árido brasileiro. Entre esses fundamentos, destacam-se os significados e sentidos da convivência. O autor destaca três dimensões da convivência que orientam os processos socioeducativos: 1) a do estar junto para, na liberdade da existência, construir identidades e compartilhar a vida; 2) a do viver comum, que é mais do que estar junto, pois implica aceitar o outro ser vivo (humano e natureza) como legítimo outro, na sua 'existencialidade', identidade e subjetividade e 3) a da contestação e da luta, da dialética e da existência e da afirmação da diferença, onde buscamos o equilíbrio entre as forças opostas da vida. Educar para a convivência é trabalhar essas dimensões juntas com os sujeitos do processo educativo (BRAGA, 2004, p. 33. Grifos do autor). Considerando essas dimensões, o caráter socioambiental da educação vem despertando a atenção dos movimentos sociais, de gestores públicos e de pesquisadores dos processos educativos. Por isso, antes mesmo da inserção da pedagogia da convivência com o Semi-Árido nos processos formais de ensino, a educação contextualizada já era desenvolvida e experimentada nas atividades de assessoria e acompanhamento realizadas por organiza158 ções não-governamentais junto a comunidades e grupos populares, conforme o Quadro 12. • Capacitação para o desenvolvimento local sustentável: existem várias iniciativas conduzidas por órgãos governamentais e por organizações da sociedade civil, de incentivo ao desenvolvimento local sustentável, a partir de territórios, municípios e comunidades rurais e urbanas, que se orientam pela perspectiva da convivência com o Semi-Árido. Em 2000, a Articulação do Semi-Árido Paraibano, com o apoio da Sudene, implantou um projeto com o objetivo de favorecer o desenvolvimento comunitário a partir do manejo sustentável de recursos hídricos, da produção de forragem para alimentação animal, da alfabetização de jovens e adultos e da participação popular no processo orçamentário municipal. O projeto tem como estratégia fundamental a formação de pessoas e organizações para a convivência com o Semi-Árido, como um processo contínuo que estimula a prática e a disseminação de novos conhecimentos. Outra estratégia é favorecer a gestão participativa do desenvolvimento local nos municípios. • Agricultores experimentadores: algumas ONG's que participam da Articulação do Semi-Árido têm incentivado a prática de “agricultores e agricultoras experimentadores”, formando uma rede de formação e disseminação de tecnologias apropriadas para a convivência. Trata-se de uma proposta de desenvolvimento de tecnologias apropriadas, viabilizando e incentivando a efetiva participação de agricultores e agricultoras na análise da realidade, na construção de novos conhecimentos, na seleção das alternativas tecnológicas, na execução das ações, e na disseminação das inovações. Os processos formativos sistemáticos são realizados de forma descentralizada, a partir da combinação da obser159 vação de campo no uso de métodos comparativos, do resgate e análise de práticas e no intercâmbio de conhecimento entre os participantes. • Projeto UniCampo (Universidade Camponesa): existe desde 2003, tendo sido formulado por professores do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Sustentável no Semi-Árido (GPDSA), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Trata-se de uma iniciativa que busca a articulação entre a Academia e os movimentos sociais. As primeiras atividades formativas foram realizadas no Cariri Paraibano, com agricultores e agricultoras de comunidades e áreas de assentamento de reforma agrária, envolvendo alunos e professores da universidade. Os conteúdos dos cursos foram definidos de forma participativa, e tinham como eixo orientador o conhecimento da realidade na perspectiva da convivência. Existe a intenção de criar um curso de nível superior voltado para as características, projetos e interesses dos camponeses do Semi-Árido brasileiro. Quadro 12 - A Formação para a convivência com o Semi-Árido brasileiro - Fontes: ASA (2003 e 2004), Articulação do Semi-Árido Paraibano (2001), Unicampo (2006). Considerando os problemas estruturais do sistema educacional no campo, a educação contextualizada no Semi-Árido contrapõe-se aos processos de destruição e desvalorização das culturas, pela imposição de modelos exógenos de modos de vida e de pensamentos sobre a realidade. Trata-se de uma estratégia fundamental de construção de uma cultura da convivência, dos seus sentidos e significados que estão subjacentes nas diversas práticas produtivas apropriadas e nas tecnologias alternativas. Os processos culturais amalgamam essas várias práticas produtivas e tecnologias apropriadas com os saberes acumulados, constituindo uma base fundamental para a construção de alternativas de desenvolvimento sustentável para a região. 160 5. A Conquista de políticas Públicas de Convivência com o Semi-Árido Brasileiro A convivência com o Semi-Árido é uma proposta política de mobilização da sociedade e do Estado Brasileiro, para a implementação de políticas públicas apropriadas ao desenvolvimento sustentável na região. Enquanto projeto, a convivência com o Semi-Árido, deverá ser uma conquista política dos diversos sujeitos que se comprometem com as transformações socioeconômicas necessárias à garantia da dignidade da maioria da população sertaneja. Por isso, a convivência com o Semi-Árido requer a conquista de políticas públicas permanentes e apropriadas, que tenham como referência a expansão das capacidades humanas locais, a partir da superação das estruturas geradoras da desigualdade, como a concentração da terra, da água, do poder e do acesso aos serviços sociais básicos. A análise da trajetória histórica das políticas governamentais no Semi-Árido brasileiro permite compreender a situação presente, identificando os sinais de continuidade e de mudanças. A primeira conclusão é a de que realmente ocorreram mutações significativas nas formas de intervenção no Semi-Árido, concernente ao que se fez e ao que se faz para superação das suas problemáticas socioeconômicas e ambientais. Essas mutações são dotadas de significados (ideologias) e de orientações políticas com base em interesses socioeconômicos. No final do Século XIX, as práticas assistencialistas e descontínuas para “salvação dos flagelados da seca” entram em crise e passam a ser valorizadas as soluções de caráter permanente, principalmente as obras hídricas, orientadas pela concepção do combate à seca e aos seus efeitos. Em meados do século XX, a mudança de orientação das políticas governamentais passaram a priorizar as ações de modernização das atividades produtivas no Semi-Árido, diante da constatação da ineficiência das políticas de combate à seca. No final do Século XX, inicia-se uma nova transição. Além dos questionamentos às políticas públicas de combate às secas e de 161 modernização conservadora que predominam no Semi-Árido, são disseminadas propostas e práticas alternativas de convivência com o Semi-Árido com base em uma nova orientação socioambiental para o desenvolvimento sustentável na região. Diferente das situações anteriores, a visibilidade e a expressão pública da proposta e das práticas de “convivência com o Semi-Árido” são conduzidas por novos sujeitos políticos que buscam ampliar os espaços públicos decisórios de formulação e controle social nas políticas públicas de desenvolvimento regional, contrapondose às velhas e decadentes oligarquias sertanejas, às forças empresariais que reproduzem a exploração socioambiental na região e ao tecnicismo burocrático do Estado. A Articulação do Semi-Árido (ASA) é fruto da aglutinação desses atores sociais, conferindo a necessária expressão política às práticas e à concepção da “convivência com o Semi-Árido”. É nesse contexto de transição que se formulam novos planos, programas e projetos para o desenvolvimento sustentável no SemiÁrido brasileiro. A proposta do combate à seca e aos seus efeitos, atualmente em crise, não participa ativamente da disputa, tendo em vista que os seus fundamentos negam, explicitamente, os princípios da sustentabilidade, não havendo condições de se reproduzir e de se sustentar ao longo do tempo. A matriz da modernização econômica e tecnológica vem renovando seus discursos, inserindo a questão ambiental e dando uma maior atenção às questões sociais, interpretando a sustentabilidade como sendo a durabilidade do desenvolvimento com base na eficiência tecnológica e na racionalidade produtiva. A convivência com o Semi-Árido expressa uma compreensão do significado da sustentabilidade, ao reafirmar que as concepções e as práticas devem ser contextualizadas na realidade onde incidirá o processo de desenvolvimento, considerando-se as suas várias dimensões. A convivência com o Semi-Árido não significa, portanto, uma postura conservadora em relação à realidade socioeconômica, nem de acomodação diante das condições físico-climáticas locais. Não nega as possibilidades do desenvolvimento e não expressa uma renúncia ao ideal humanitário da satisfação das necessidades e da 162 melhoria das condições de vida das pessoas. Ao contrário, significa uma nova orientação estratégica para intervenção nessa realidade, enquanto processo em construção e de experimento de alternativas apropriadas, buscando aprender a conviver com as suas especificidades ambientais. Nesse sentido, pode-se definir a convivência com o SemiÁrido como sendo uma perspectiva cultural orientadora da promoção do desenvolvimento sustentável, cuja finalidade é a melhoria das condições de vida e a promoção da cidadania, por meio de iniciativas socioeconômicas e tecnológicas apropriadas, compatíveis com a preservação e renovação dos recursos naturais. Considera-se que é essa a orientação de um novo paradigma civilizatório para a humanidade: satisfação das necessidades e expansão de suas capacidades, em comunhão com a natureza. Essas proposições e práticas estão ampliando sua presença em espaços institucionalizados de formulação e de execução de políticas públicas, fruto da mobilização de movimentos sociais que estão disputando espaços de poder político. No entanto, há uma forte resistência das práticas políticas autoritárias, culturalmente enraizadas nos principais espaços decisórios, dificultando os avanços no processo participativo na definição de alternativas de desenvolvimento sustentável no Semi-Árido brasileiro. Nos espaços socioculturais, a construção da convivência será fruto da contestação cultural das imagens historicamente construídas, sobre uma terra considerada imprópria ao desenvolvimento, condenada à miséria e à dependência dos socorros emergenciais. É necessário sensibilizar e conquistar a adesão da sociedade em torno dessa proposta, seja mobilizando a população local e suas organizações comunitárias, seja ocupando espaços informativos e formativos, locais e nacionais, ampliando a adesão às novas propostas alternativas da convivência. Nesse caso, a disputa ocorre nas esferas da sociedade civil, buscando a inserção de novos conteúdos e significados sobre a realidade, nos meios de comunicação social e nos espaços de produção e disseminação de conhecimentos. Trata-se de uma ação cultural pela convivência. 163 No campo da disputa política, grandes desafios se apresentam nesse momento histórico para os movimentos que defendem a convivência como sendo o sentido e o significado da sustentabilidade do desenvolvimento no Semi-Árido. Faz-se necessário avançar na formulação de uma proposta integrada de desenvolvimento sustentável no Semi-Árido com base na convivência, articulada a uma política nacional de desenvolvimento regional. O diálogo com o poder público não deve ficar restrito às ações específicas (formulação, negociação e execução de programas e projetos), mas deve avançar para um processo de mobilização regional e nacional de debate sobre as estratégias de um desenvolvimento sustentável para o SemiÁrido. Faz-se também necessária a articulação com as outras proposições regionais de desenvolvimento sustentável que estão em concepção para os diversos biomas brasileiros. A alternativa é a combinação entre a cultura e a política, entre a mudança nos pensamentos, como construção de uma nova racionalidade para a sustentabilidade do desenvolvimento; e os avanços na ampliação da cidadania, em termos de participação ativa e consciente na formulação e implantação de um novo projeto político no Semi-Árido brasileiro. Ou seja, a convivência terá que ser uma conquista política! Referências AB'SÁBER, Aziz. Os Domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 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A região inseria-se no Semi-árido brasileiro e passava a receber programas e recursos especiais para deflagrar um processo de desenvolvimento regional que diminuisse a disparidade em relação às regiões desenvolvidas do Estado. * Engenheiro agrônomo, doutor em Ordenamento Territorial e Ambiental pelo Departamento de Geografia da UFF, pesquisador de pós-doutorado do GESTA (Grupo de Estudos na Temática Ambiental) da FAFICH/UFMG e professor dos cursos de Licenciatura Indígena e Licenciatura do Campo da FAE/UFMG. Atua ainda como consultor autônomo em projetos e programas vinculados à reforma agrária e à autonomia e sustentabilidade de comunidades rurais e grupos de famílias camponesas. 173 Porque o camponês tinha este estranhamento? Porque fala deste desenvolvimento como algo que vem do estrangeiro e que desqualifica o povo do lugar? Certamente há razões concretas para este estranhamento e essas razões se relacionam com as abordagens e concepções que embasaram o ideário geral do desenvolvimento desde o seu início e, no seu bojo, os pensamentos que, desde a década de 1950, formularam e debateram possíveis fórmulas para o desenvolvimento de regiões tidas como pobres e subdesenvolvidas. Momento importante do lançamento do ideário do desenvolvimento vindo do estrangeiro é o discurso de posse de Harry Truman, como presidente dos Estados Unidos da América, em 20 de janeiro de 1949, pouco após o término da 2a guerra. Mais da metade da população do mundo vive em condições próximas da miséria. Sua alimentação é inadequada, é vítima da enfermidade. Sua vida econômica é primitiva e está estancada. Sua pobreza constitui um obstáculo e uma ameaça tanto para eles como para as áreas mais prósperas. Pela primeira vez na história, a humanidade possui o conhecimento e a capacidade para aliviar o sofrimento desta gente. Creio que deveríamos por à disposição dos amantes da paz os benefícios de nosso acervo de conhecimento técnico para ajudá-los a lograr suas aspirações de uma vida melhor... O que temos em mente é um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos do tratamento/comércio justo e democrático... Produzir mais é a chave para a paz e a prosperidade. E a chave para produzir mais é uma aplicação maior e mais vigorosa do conhecimento técnico e científico moderno1 (TRUMAN apud ESCOBAR, 1996). As passagens grifadas denunciam algumas das verdades que embasam a visão do Outro na concepção desenvolvimentistaocidental do então presidente norte-americano: 1 Todas as citações do texto de Escobar são traduções que fiz a partir do espanhol original. Grifos meus Grifos próprios. 174 • o diferente é primitivo, portanto, atrasado, subdesenvolvido; • a pobreza (de acordo com sua concepção de pobreza/ riqueza) é ameaçadora; • o conhecimento técnico é único e o mundo ocidental moderno tem o seu monopólio; • a chave para o desenvolvimento é simplesmente produzir mais (visão produtivista) e é a tecnociência moderna do capitalismo central que tem os instrumentos para o aumento da produção. Para Esteva (2000), nesse dia do discurso de Harry Truman 20 de janeiro de 1949 -, foi inventado o subdesenvolvimento: “É preciso que nos dediquemos a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços e nosso progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso das áreas subdesenvolvidas” (Truman, citado por ESTEVA, 2000: 59). A partir desse momento, de acordo com Esteva, dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Estava criado um novo símbolo, de matriz estadunidense, que desde então, passou a ser usado para afirmar e referir-se à sua hegemonia: o desenvolvimento. Não é à toa, pois, que Oscarino, muito sabiamente, manifesta seu estranhamento percebeu que ele estava enquadrado do lado que não tem valor. Afinal, o que sabe um rude camponês sertanejo, poeta, mas de alfabetização precária e vida econômica estancada (sic)? Para Truman e seus assessores, apenas demonstra o subdesenvolvimento. 2. As abordagens clássicas do desenvolvimento regional Percebe-se no pensamento regional clássico dos anos 1950, uma voz quase uníssona identificando problemas de desigualdade espacial do desenvolvimento, e em boa parte das vezes, recomendando estratégias, que através de ações governamentais (muitas vezes articuladas a ações da “sociedade regional”) venham a contribuir 175 para a superação destas desigualdades regionais. Nessa linha, deve-se ocupar em pesquisar e determinar os fatores e os processos regionais do desenvolvimento capitalista, visando disseminá-lo inter-regionalmente. De início, esse pensamento debateu-se a respeito de duas vertentes fundamentais: a) Uma que explicava o processo de desenvolvimento regional através de estágios progressivos que vão (ou devem ir) eliminando a dualidade econômica: setores (ou regiões) não capitalistas (de subsistência) e setores (ou regiões) capitalistas (comerciais). Claro que sempre em favor do segundo setor, que é o que gera desenvolvimento. Esta tendência propõe um planejamento regional que, através de passos progressivos (da agricultura de subsistência à indústria), leve à redenção capitalista. Esta tendência está representada no texto de John Friedman de 1959: Planejamento: Problema de Integração Espacial. Podemos inferir que nesta vertente, o papel que resta à agricultura familiar é o de produzir matéria-prima para a indústria e, para isso, deve, naturalmente, abandonar suas estratégias de produção, historicamente construídas, visando auto-suficiência e auto-reprodução. Ao contrário de uma virtude que gera maior autonomia, essa característica é vista como atrasada. Essa estratégia foi aplicada intensamente no norte de Minas Gerais com a difusão e incremento do cultivo de algodão na micro-região da Serra Geral nas décadas de 1970 e 1980, através da política de extensão e crédito rural, que transformou diversas famílias camponesas dessa região em monocultivadores dessa espécie, como o objetivo de abastecer as indústrias que se instalaram na região com subsídios da SUDENE. Tal processo resultou num enorme endividamento desses pequenos proprietários, numa contaminação ambiental e deterioração da saúde das famílias2, em virtude da massiva aplicação de agrotóxicos nas lavouras e numa desestruturação da economia diversificada que articulava subsistência e produção de alimentos para o merca2 Uma das faces mais dramáticas dessa agressão mostrou-se com o aumento assustador de abortos entre as mulheres moradoras de locais de uso intensivo de agrotóxicos na lavoura do algodão. 176 do regional. No final, o bicudo acabou com tudo. Este é um caso exemplar do que seja um modelo insustentável. b) A outra vertente diverge da generalização da fórmula anterior, argumentando que em muitos países (em especial nos EUA, pela natureza de sua colonização) o desenvolvimento se fez desde o início através de uma base de exportação, ou seja, de uma especialização regional. Esta vertente também questiona a necessidade obrigatória da industrialização para a complementação do processo e é representada pelo texto de Douglass C. North, de 19553: Teoria da Localização e Crescimento Econômico Regional. Dois casos, que envolveram polpudos recursos do Estado, também na antiga Região Mineira da SUDENE, exemplificam esta vertente: a agricultura irrigada e os maciços de eucalipto. A primeira, tida como “vocação da região”, já há muitos anos, dá mostras de enormes dificuldades de sustentabilidade, principalmente devido a três fatores: a) é super-intensiva em capital, fazendo com que grande parte dos agricultores fiquem inadimplentes e não consigam nem pagar a água; b) é super-intensiva em água que é o recurso natural mais escasso dessas regiões e c) o tamanho e configuração dos lotes não permite que o agricultor integre agricultura com pecuária, simplificando o sistema e impedindo a diversificação e uma integração que sempre potencializa o uso dos recursos e gera margens de segurança ao agricultor. Portanto, o modelo não é replicável e pode ainda gerar problemas de disputa de uso da água, fato que já veio à tona com o polêmico debate sobre a transposição das águas do rio São Francisco. O outro caso, das monoculturas de eucalipto, constitui-se no maior fator de pressão sobre as comunidades dos locais onde foram implantadas. Estas perderam as terras altas da chapada (os Gerais áreas de uso comum), ficaram encurraladas entre as beiras de córregos e as áreas de monocultura e, para arrematar, viram suas fontes de água diminuir drasticamente, chegando, em alguns casos a secarem completamente. Além disso, essas monoculturas vêm se mostrando, naturalmente, muito pouco empregadoras. 3 Importante notar que os autores das duas vertentes são estadunidenses. 177 Estas atividades certamente aumentaram o PIB regional, alimentaram algumas cadeias (como a da siderurgia) e geraram acumulação para algumas empresas (que não tem vínculo com os lugares onde se dão as atividades produtivas primárias), mas não geraram desenvolvimento humano, nem sustentabilidade de comunidades rurais e ainda contribuíram para desequilíbrios e processos de poluição e/ou contaminação ambiental. Poderíamos dizer, com uma certa dose de simplificação (e sem querer deixar de reconhecer várias nuances no interior dessas matrizes de pensamento), que essas vertentes clássicas do pensamento sobre o desenvolvimento regional carregam intrinsecamente (ou não conseguem romper com) visões obviamente ocidentais e modernas a respeito do que seja desenvolvimento e de seu instrumento viabilizador fundamental: o planejamento. A visão da modernidade ocidental parte, como vimos na fala do presidente Harry Truman, de um conceito pré-estabelecido e eurocêntrico (o eurocentrismo aqui diz respeito ao centro do sistema-mundo, incluindo, portanto, os EUA, originados do modelo europeu) do que seja desenvolvido/atrasado, integrado/isolado, em expansão/ estagnado, cuja raiz está na concepção de progresso ocidental deflagrado pelo Iluminismo e levado a cabo pela ascenção do capitalismo e pelo advento da Revolução Industrial no planeta - o que pode ser bastante diferente das concepções e dos anseios da maior parte das populações regionais, em especial dos povos do campo chamados de comunidades tradicionais, camponeses ou agricultores familiares. Desta forma, o que está ligado, por exemplo, a atividades de subsistência (que carrega uma lógica de autonomia) é imediatamente rotulado como subdesenvolvido, e muitas vezes a própria atividade primária é tratada como sinal de um estágio mais primitivo de desenvolvimento (no caso da agricultura empresarial de exportação isso é menos válido). Este fato reflete uma visão linear de desenvolvimento e a crença em soluções universais (urbano-industriais) para a sua potencialização. Embutida nesta visão está a desqualificação de ou178 tras matrizes culturais ou de visão de mundo não tão alinhadas com a lógica moderna/ocidental que automaticamente ficam excluídas desse processo - como as culturas indígenas, camponesas e afro-descendentes. A ênfase também dada à especialização, exportação e industrialização explicita esse caráter unidirecional do processo de desenvolvimento, bastante calcada na economia clássica e em seus indicadores tradicionais: PIB, renda per capita, índice de emprego, etc. Nessa economia, a natureza é um repositório de recursos que existem para ser explorados em benefício do progresso humano - ou pelo menos de uma pequena parte “mais qualificada” de seu contingente. É a lógica antropocêntrica e utilitarista do domínio e do controle da natureza. Raramente se observa nestas análises uma preocupação com especificidades e potencialidades ambientais e/ou culturais próprias da região ou do local. 3. Alguns pressupostas para reorientar os conceitos e os caminhos Vamos compreendendo, então, que a transposição de propostas, modelos e receitas de desenvolvimento oriundas do chamado do centro do sistema-mundo (Mignolo, 2003) não só, não geraram, na maior parte dos casos, resultados humanos emancipatórios, como, ao contrário, provocaram resultados extremamente nefastos como: expropriação territorial de populações indígenas e camponesas, extinção ou descaracterização de culturas locais, degradação de diversos ecossistemas, ampliação das desigualdades e outros. Um exemplo muito claro é o inchamento das cidades e a favelização massiva ocorrida no Brasil a partir dos anos 1960, com o advento da modernização da agricultura o privilégio à monocultura patronal de exportação, atrelada aos complexos agroindustriais (o que se chama hoje de agronegócio) fez inviabilizar e expulsar um número enorme de famílias camponesas foi um êxodo rural de mais de 40 milhões de pessoas em menos de 40 anos, provavelmente, um recorde mundi179 al, resultando numa sociedade urbana apartada e violenta. E essa pressão não cessou no tempo atual, como vemos através dos conflitos que ocorrem no campo brasileiro, em especial nas áreas de expansão da fronteira agrícola dos biomas do Cerrado e da Floresta Amazônica. Toda essa concepção exógena4 de desenvolvimento, ao contrário de ser portadora de algum tipo de solução, é a razão da crise socioambiental contemporânea. Para se pensar em construir alternativas a esses modelos importados e nada adequados às realidades rurais de países como o Brasil e, em especial, de regiões que conjugam limitações ecológicas e uma certa pobreza econômica5 , temos que reinventar e criar idéias que devem partir de alguns pressupostos. Parto aqui dos seguintes: • Vivemos uma crise socioambiental que é a crise do modelo moderno-ocidental de desenvolvimento como tentei expor anteriormente exclusão, desigualdade, apartação e violência social, destruição ambiental, dizimação de povos e culturas, níveis de produção e consumo insustentáveis para o planeta. É na verdade, uma crise civilizatória sistêmica que tem no aquecimento global o seu mais dramático sintoma: a Mãe-Terra está doente. • Para se pensar as alternativas para o campo, o conceito de agricultura familiar tem sua utilidade, mas também suas restrições e limitações no sentido de “puxar” um processo transformador a partir do espaço rural. Entre elas, dificulta uma visão histórica e multidimensional desse sujeito social no Brasil. • O campesinato, ao contrário de ser uma noção ultraExógeno(a) tem aqui o sentido de um processo que se dá de fora para dentro, o contrário de endógeno(a). 5Uma das questões centrais que essa discussão coloca é a redefinição do que seja pobreza e riqueza. 4 180 passada e um problema, é um conceito-força e uma parte central da construção de alternativas ao modelo hegemônico em crise. Vou tentar construir a argumentação relativa aos dois últimos pressupostos. Nas décadas de 1940 e 1950, proliferaram trabalhos na antropologia que procuravam diferenciar as categorias de sujeitos socais do campo. A vertente chamada de culturalista, de acordo com Heynig (1982), fazia a seguinte diferenciação fundamental: Camponês (peasant) exerce um controle sobre a terra que lhe permite levar adiante em comum, um modo de vida tradicional que a agricultura integra, mas não como inversão econômica para obter lucro. O trabalho agrícola tem valor superior ao comércio. Fazendeiro (farmer) exerce a atividade agrícola como comércio e considera a terra como capital e mercadoria (Redfield, 1941)6 . Parece-me que essa diferenciação continua a ser fundamental, pois explicita um contraste central: o valor da terra como lugar de viver e o valor da terra como mercadoria, dialogando com a diferenciação de José de Souza Martins de terra de trabalho e terra de negócio, mas indo além dela. Essa diferenciação de valor explica, certamente, a permanência e até intensificação dos conflitos no campo que antepõem populações rurais locais (índios, sem-terra, comunidades camponesas tradicionais, etc.) e setores ruralistas e do agronegócio exportador. A professora Marta Marques da USP reforça esse caráter da tradicionalidade do campesinato: (...) o modo de vida camponês como um conjunto de práticas e valores que remetem a uma ordem moral que tem como valores nucleantes a família, o trabalho e a terra. Trata-se de um modo de vida tradicional, constituído a partir de relações pessoais e imedi6 No livro “The Folk Culture of Yucatan”. Redfield, 1941 Bibliografia? 181 atas, estruturadas em torno da família e de vínculos de solidariedade, informados pela linguagem de parentesco, tendo como unidade social básica a comunidade (MARQUES, 2004, p. 148). Nesta visão, então, não é apenas o caráter familiar da exploração que definia a organização social camponesa, mas também, e fundamentalmente, sua sociabilidade comunitária e um modo de vida tradicional. Jacques Chonchol enfatiza essa dimensão da coletividade local e de sua solidariedade interna: As coletividades ou as comunidades locais nas quais vivem as famílias camponesas constituem pequenas sociedades onde todos se conhecem, onde há freqüentemente particularismos de linguagem e onde existem relações de solidariedade entre as diferentes células familiares e entre o conjunto delas e a coletividade local (vilas ou povoados) que elas constituem. (CHONCHOL, 1986, p. 3) Por todas essas características, os antropólogos daquele tempo entendiam as comunidades camponesas como grupos cujo comportamento econômico se explica por suas atitudes, valores e sistemas cognitivos transmitidos de forma verbal entre gerações (HEYNIG, 1982). Essa abordagem foi chamada de culturalista por entender a dimensão econômica como subordinada à cultura e criticada por enfoques marxistas que entendiam o campesinato como uma categoria contraditória e subordinada no capitalismo, tendendo ao desaparecimento, no processo de desenvolvimento do seu modo de produção. Para estes autores marxistas, os culturalistas relegavam a um plano secundário os aspectos econômicos e o conceito de classes sociais e favoreciam um enfoque que colocava maior ênfase na importância da cultura, dos valores e das normas. Entretanto, com afirma Margarida Moura (1986): ... os processos sociais que viabilizam a existência do camponês têm sido mais expressivos e fortes do que aqueles que o levam à extinção. É mais correto falar em recriação, redefinição e até diver182 sificação do campesinato do que fazer uma afirmação finalista (MOURA, 1986, p. 17 e 18). Moura sintetiza com lucidez a problemática da permanência / desaparecimento no capitalismo, afirmando que, na maioria dos contextos históricos, o camponês adaptou-se e foi adaptado, transformou-se e foi transformado, diferenciou-se internamente, mas permaneceu identificável como tal. Ocorre que o camponês desempenha um contraditório papel que, de um lado, expressa a sua resistência em desaparecer e, de outro é resultado do próprio capitalismo que não o extingue. Este não só extrai sobretrabalho dos operários, como também o capta onde é possível. Entre essas possibilidades encontra-se o trabalho camponês. É nesse contexto de dramáticas tensões que o camponês vive no meio rural contemporâneo (MOURA, 1986, p. 19). Complementando esses pensamentos, a abordagem chayanoviana7 vem acrescentar ainda a dimensão da micro-economia camponesa, explicitando traços fundamentais de sua racionalidade, como: - a exploração familiar como unidade central da economia camponesa; - a equação entre trabalho e consumo: equilíbrio que se dá em função do tamanho e composição da família (os que trabalham e os que não trabalham, só consomem); - a diferenciação entre a unidade camponesa que produz valor de uso e a empresa capitalista que produz valor de troca; - a ausência das categorias salário, lucro e acumulação na economia camponesa. - o trabalho camponês busca a satisfação das necessidaAlexander Chayanov, agrônomo e economista russo do início do Século XX, que estudou a microeconomia das comunas camponesas na Rússia. Seus estudos são uma referência fundamental para o entendimento do caráter não-capitalista da economia camponesa. Ver, por exemplo, o texto “Sobre a Teoria dos Sistemas Econômicos não Capitalistas” (CHAYANOV, 1981). 7 183 des e essa subsistência é culturalmente definida (CHAYANOV, 1981). Importante observar que o caráter familiar da exploração da unidade produtiva é apenas uma das características da categoria Campesinato e mesmo da economia camponesa de Chayanov. As outras características (referentes à racionalidade econômica, à sociabilidade, à dimensão cultural, etc.) são também fundamentais para diferenciar essa categoria das outras que pertencem ao setor patronal da agricultura: fazendeiro ou da empresa rural capitalista. Um outro componente surge nesse debate políticoconceitual, recentemente, referente à dimensão ecológica dessa categoria, ou seja, às formas camponesas de apropriação da natureza. Essa dimensão se articula a diversos temas e enfoques bastante atuais como as abordagens agroecológica, etnoecológica e a que articula hoje a relação entre povos tradicionais e manejo/conservação da natureza. Tudo isso desemboca no que venho chamando de territorialidades camponesas, que são no plural por serem inúmeras e diversas, mas guardam traços comuns em termos de racionalidade ecológico-econômica. 4. Territorialidades camponesas e a sustentabilidade Podemos conceituar a territorialidade como a forma que um determinado grupo social vivencia e experimenta o espaço-território. Ou como diz Paul Little, “... a territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendoa assim em seu território ou homeland.” (LITTLE, 2002, p. 3). Concordando com este autor, podemos afirmar que este entendimento leva à constatação de que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. Podemos, então, estabelecer uma clara relação entre diferentes tipos de territorialidades e respectivos modos de apropriação 184 da natureza (a dimensão material da territorialidade8), a partir da abordagem histórica e etnoecológica de Toledo (1996), que ajuda a entender a construção histórica das territorialidades camponesas. Sinteticamente, a história da apropriação humana da natureza passa, de acordo com Vitor Toledo (1996), por três modos básicos: o extrativista, o agrícola (ou camponês) e o industrial (ou moderno). Este último é que gerou a crise ambiental contemporânea e, em última instância, o aquecimento global, sintoma-síntese da crise advinda de um conflito entre Sociedade e Natureza, estabelecido pelo modo industrial-moderno oriundo da civilização ocidental e de seu modelo de desenvolvimento correspondente. Esse conflito, entretanto, não é característico das sociedades camponesas tradicionais e de suas formas de apropriação da natureza que articulam o primeiro (extrativista) e o segundo modos (agrícola). As formas camponesas de apropriação da natureza (racionalidade ecológica), como demonstram as abordagens agro e etnoecológicas (ALTIERI, 2002 e TOLEDO, 1996), definem-se por uma série de características e atributos que a tornam não só compatíveis, como demonstradoras da noção de sustentabilidade. Entre elas: • as formas camponesas são, em geral, produto de uma, relativamente longa, co-evolução entre o sistema social (a comunidade rural) e o sistema ecológico (ecossistema), gerando agroecossistemas resilientes e de alto grau adaptativo, onde são respeitados os limites ambientais locais e aproveitados os seus potenciais; • esse processo adaptativo reforça duas características fundamentais que ajudam a manter a complexidade ecológica: a heterogeneidade espacial e a diversidade biológica; 8 Argumentei, em outros textos recentes, (MAZZETTO SILVA, 2006 e 2007) que a noção de território remete a três dimensões: a simbólica (sentido e caráter de lugar, sentimento de pertencimento e identidade), a material (uso do espaço e seus recursos, meios de existência e sobrevivência) e a do poder (acesso, domínio e controle sobre o espaço). 185 • os sistemas camponeses apresentam grau relativamente elevado de auto-suficiência relacionado a uma ênfase ao valor de uso em detrimento do valor de troca, conduzindo a sistemas mais diversificados de produção, comparativamente à agricultura moderna; • a produção se dá em pequena escala, o que implica numa dimensão também pequena de interferência nas dinâmicas dos ecossistemas; • há um uso predominante da energia solar no processo de produção, com base na manipulação biológica e na utilização dos fluxos ecológicos; • os níveis de emprego de insumos externos e produção de dejetos são baixos ou nulos; • há utilização de um conjunto de conhecimentos de caráter holístico e uma visão não-materialista da natureza no processo de apropriação/produção. Essas características não se manifestam pelo fato do campesinato ser eminentemente ecológico, mas sim em função de sua dependência e relação íntima com os ecossistemas e do objetivo social da sua exploração: a reprodução familiar (COSTA, 1994). Este objetivo implica na construção de formas de exploração que, procurando evitar os riscos, - pois eles implicariam, talvez, na geração de um estado de carência extrema e insegurança alimentar na família consiga manter, ao longo de anos e décadas, níveis de produção e produtividade que permitam compatibilizar a otimização do uso dos recursos disponíveis com o seu não-esgotamento, caso contrário, a unidade familiar (que é de produção e de moradia ao mesmo tempo) entraria em colapso. Alguns autores poderiam chamar essa característica de ecologismo de sobrevivência (MARTINEZALIER, 1998), que contrasta com um ambientalismo mais urbano, originado nas classes médias dos países industrializados que MartinezAlier, chamou de ecologismo da abundância. 186 Atualmente no Brasil, há um movimento social e intelectual que vem procurando reformular a conceituação e abordagem sobre o campesinato brasileiro, a partir desses pensamentos que procurei expor aqui (entre outros) e que busca articular as diversas dimensões do campesinato: a dimensão econômica (reprodução familiar a partir da produção rural) com a dimensão ecológica (formas diferenciadas de apropriação da natureza) e cultural (hábitos de consumo, modos de ser e de viver). Ela está representada numa definição contida num trabalho de Horácio Martins de Carvalho, a partir da contribuição de diversos intelectuais brasileiros. Entende-se, então, por camponesas aquelas famílias que, tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural extrativista, agrícola e não-agrícola - desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação. Essas famílias, no decorrer de suas vidas e nas interações sociais que estabelecem, desenvolvem hábitos de consumo e de trabalho e formas diferenciadas de apropriação da natureza que lhes caracteriza especificidades no modo de ser e de viver no âmbito complexo das sociedades capitalistas contemporâneas. (CARVALHO, 2005, p. 170) Como esse sujeito social se constituiu no Brasil, um país de formação colonial, calcado no trinômio latifúndio/monocultura/escravidão e voltado para exportação de riquezas para as nações já ricas desde 1500? Vários autores argumentam que apesar da relação dominante senhor/escravo, outras relações dentro do latifúndio, à sua margem ou longe dele, se estabeleceram. Elas eram vinculadas à existência de homens livres-pobres da colônia (em geral mestiços). Nelson Werneck Sodré no seu Formação Histórica do Brasil, vai se referir aos posseiros dos espaços vazios: “invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores, no seu conjunto, ausente do mercado” (SODRÉ, 1979, p. 248). Alberto Passos Guimarães no seu Quatro Séculos de La187 tifúndio vai falar que “intrusos e posseiros foram os precursores da pequena propriedade camponesa” (GUIMARÃES, 1968, p. 38). Já Ciro Cardoso (1980), buscando uma classificação mais detalhada, argumenta que os homens livres do campo, durante o período colonial, eram divididos em três categorias: • Homens livres assalariados inseridos no modo de produção escravista colonial como relação de produção subsidiária, ou seja, quando a plantagem necessitou de trabalhadores livres qualificados. • Agregados vivam na periferia dos latifúndios, sustentando-se de “paupérrima economia natural”. • Pequenos cultivadores não-escravistas independentes ocupavam ínfimos pedaços de terra (posseiros), em áreas não apropriadas pela plantagem (terras públicas ou devolutas). Praticavam a economia de subsistência, sendo que a comercialização dependia da proximidade de centros urbanos ou de vias de transporte. Mas, a noção que, a meu ver, melhor esclarece a formação da maior parte das comunidades rurais e do campesinato brasileiro é a noção de cultura rústica, oriunda de trabalhos de Darci Ribeiro (1977) e Antônio Cândido (1964). Diegues e Arruda em seu Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil recuperam essa categoria, articulando-a a de populações tradicionais: Essa cultura rústica brasileira coexistiu tanto com as fazendas monocultoras quanto com as fazendas de gado, constituindo a base da produção do abastecimento para essas empresas e para os povoados, e expandindo-se por todo o Brasil à medida que encontrava terras devolutas para reproduzir seu modo de vida. Em outras palavras, as populações alijadas dos núcleos dinâmicos da economia nacional, ao longo de toda a história do Brasil, adotaram o modelo da cultura rústica, refugiando-se nos espaços menos povoados, onde a terra e os recursos naturais ainda 188 eram abundantes, possibilitando sua sobrevivência e a reprodução desse modelo sociocultural de ocupação do espaço e exploração dos recursos naturais, com inúmeras variantes locais determinadas pela especificidade ambiental e histórica das comunidades que nele persistem. Processo paralelo ocorreu com os povos 'desindianizados' que se mantiveram como comunidades relativamente fechadas, mas perdendo sua identidade étnica, convergiram para o modelo da cultura rústica (ARRUDA; DIEGUES, 2001, p. 31). Posseiros mestiços de terras devolutas constituíram, então, essas culturas rústicas Brasil afora, formando as comunidades rurais que sobrevivem até hoje. Fica clara a condição de marginalidade em que esses sujeitos sociais se constituíram e se reproduziram: terras ilegais, ameaças e processos de expropriação, perseguições (o caso das comunidades negras é exemplar nesse sentido), subordinação aos coronéis, alijamento das políticas, seja da colônia, seja da república... Entretanto, são essas comunidades que vão sustentar os mercados locais de alimentos e que vão dar identidade e vitalidade cultural aos territórios-regiões. Afinal quem são os guardiões e protagonistas do que chamamos de culturas regionais, na verdade, o que temos de mais peculiar e original para oferecer ao mundo. Isso envolve conhecimento dos ecossistemas, formas próprias de relação com a terra, determinados regimes alimentares e habilidades de culinária, costumes e espíritos festeiros, sincretismos religiosos, etc. Esse é o patrimônio que o campesinato construiu na sociedade brasileira. Não parece pouco. 5. As territorialidades do sertão mineiro No sertão mineiro não é diferente, aliás, ele é um dos locais onde essas culturas rústicas germinaram com mais vitalidade, não é fortuito o fato das obras de Guimarães Rosa terem ganhado o mundo vocalizando-as. O Sertão é um só, mas são diversos os sertanejos e os recursos que abriga: geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, barranqueiros, quilombolas... o cerrado, as veredas, a caatinga, o car189 rasco, o rio São Francisco, suas ilhas, o das Velhas... Pequi, araticum, buriti, mangaba, cagaita, sucupira, vinhático, umbu, caju, juá, surubim, matrinchâ, pacu, curimatá, caititu, veado campeiro, tatu... São culturas que se construíram a partir de um envolvimento com os locais onde viviam, de onde extraiam sua sobrevivência e exercitavam seus modos de vida. Naturezas que guardavam uma generosidade, talvez menos exuberante e graciosa que as das florestas tropicais, mas portadoras do mistério da beleza rude, ajustada aos regimes climáticos, restrições hidrológicas e características geoambientais. Como afirma Costa (1997), o norte de Minas Gerais se organizou a partir de dois “todos econômicos”: a grande propriedade de criação de gado e os núcleos camponeses. A grande fazenda, enquanto um todo econômico, era auto-suficiente, com mão-de-obra escrava, negra e/ou indígena, e ocupouse das atividades produtivas para o abastecimento das zonas mineradoras e de criação de gado, com caráter mercantil. Anterior à abolição da escravatura, tanto os índios quanto os negros foram transformados em agregados, propiciando mão-de-obra escrava para o funcionamento da atividade econômica... Os núcleos camponeses, espalhados por todo o sertão, também se constituíam, cada um, um todo econômico, baseados fundamentalmente na produção coletiva e na utilização das chapadas para a complementação alimentar e criação de gado 'na solta'. A integração das diversas famílias camponesas assentava-se nas relações de parentesco, de vizinhança e de compadrio, pois vinculavam e aproximavam os habitantes de cada núcleo camponês. (COSTA, 1997, p. 79). Na verdade, as comunidades camponesas apropriaram-se da paisagem, estratificando-a, separando-a em unidades ambientais e de uso, analisarei, adiante, este fenômeno com mais detalhe. Sabemos que entre esses dois “todos” sempre houve certa interdependência, ligada às relações de produção e se desdobrando em relações de poder. Gervaise (1975) registra essa dependência no sertão mineiro ainda na década de 70: 190 Para o camponês sem terra, a fazenda é um quadro no interior do qual ele pode cultivar; o fazendeiro cede uma parcela de terra em troca do trabalho que é, assim, disponível com poucos gastos. ... Em outro nível, o pequeno proprietário é, também, dependente do fazendeiro, porque freqüentemente a terra que ele possui, sendo insuficiente, ele é levado a cultivar também a terra dos mais favorecidos. Os sistemas tradicionais de “meia” ou “terça” têm também, por resultados criar certos laços de dependência na medida em que aquele que possui a terra dispõe não somente desse fator, mas contribui, na grande maioria dos casos, para o fornecimento das sementes ou adubos, eventualmente utilizados (GERVAISE, 1975, p. 95). A submissão dos camponeses ao grande fazendeiro - depois denominado “coronel” - se dava também através das relações de compadrio. O “coronel”, tendo em vista inclusive o grande período de isolamento vivido pela região, de certa forma substituía o Estado e assumia ele próprio um papel assistencial em relação às camadas mais pobres, que a ele recorriam para solucionar a mais variada gama de necessidades pessoais ou familiares. O coronel era tanto o mediador entre o Estado e o camponês e seu agregado, como era o próprio Estado na localidade sob o seu jugo. Neste contexto, Costa afirma: Articulando-se interna e externamente, os homens dessa região construíram uma identidade própria e uma cultura singular - a sertaneja -, que Luz (1991) compreende como sendo fruto da relação estabelecida com a terra e com a natureza. Tratados como parceiros na reprodução da vida, constituíram coletivamente e viabilizaram um ´modus vivendi´ que proporcionou uma cosmovisão inteira e integrada - holística - expressando-a no principal valor cultural: a solidariedade, através da parentela, bem como por relações de vizinhança e compadrio (COSTA, 1997, p. 80). O autor procura esclarecer as origens desse caráter sertanejo. Na verdade, ele é fruto de um caldeamento de modos de comportamento, relações, saberes e fazeres de etnias diferenciadas que se colocaram em contato no e com o território norte-mineiro, além das 191 articulações com populações de outras regiões. Neste caldo, o autor ressalta a predominância do tipo ocidental judaico-cristão que determinou os parâmetros relativos ao modo de comportamento. Entretanto, houve também uma assimilação dos conhecimentos indígenas, em especial sobre a fauna, flora e solo e suas formas de utilização, além da incorporação da cultura negra nas manifestações religiosas como as festas do Rosário e os congados, muito presentes na região e relacionados ao que o autor chama de cosmovisão afro-brasileira. Ele chama ainda a atenção para uma contradição fundamental da cultura sertaneja que se dá entre a cordialidade e a violência. A primeira ligada à solidariedade com a vizinhança e a parentela antes citada, e a segunda ao poder e abuso da força inerentes aos coronéis e seus jagunços. Em outras palavras, uma solidariedade horizontal permeada e ao mesmo tempo subordinada a uma relação hierarquizada de mando extremamente rígida, mas que se mesclava, pela necessidade, com uma relação de compadrio paternalista. Todo esse caldo cultural e essas complexas relações de poder interagiram com os vastos horizontes das chapadas, com as largas distâncias entre um povoado a outro, com a forte insolação e o forte azul do céu do sertão, com as duras estiagens de vários meses, com o brilho cristalino das estrelas nas noites sertanejas. Neste contexto é que vão ser forjadas essas territorialidades tradicionais do sertão que citei acima, populações que chamamos de caatingueiras, geraizeiras, vazanteiras, barranqueiras, portadoras de matrizes de racionalidade peculiares (PORTO-GONÇALVES, 2000), forjadas numa sociabilidade própria e em formas de convivência produtiva com o ambiente, cuja prática policultora e extrativista e o regime alimentar são testemunhas ainda atuais9 . Estas matrizes de racionalidade são na verdade a expressão do que os geógrafos franceses do início do século chamavam de gênero de vida, que, por sua vez, guarda uma estreita correlação com o que Toledo, na abordagem etnoecológica, chama de corpus e práxis camponesa. 9 192 Voltando à apropriação camponesa da paisagem, em muitos lugares do Sertão, ela distribuiu-se e se organizou assim10 : no fundo do vale, próximo ao curso d'água, se faz a roça de vazante (arroz, cana, feijão da seca, hortaliças), um pouco mais acima, no início da encosta, se constrói a casa, se faz o quintal e se cultiva um roçado diversificado que pode incluir milho, feijão, fava e outro ainda, ao lado ou mais acima, que mistura mandioca, feijões catador e guandu. Até aí a apropriação é familiar. Acima, nas chapadas não há cerca, a apropriação é comunitária, área de uso comum os Gerais. Afinal esse não é um sertão qualquer, é o Sertão dos Gerais. O povo fala que é o mundo 11 ... O Gerais tá dentro do Sertão. (S. Salvador, camponês do vale do Riachão, Coração de Jesus). O Gerais do sertanejo tem outro significado, não tinha nada a ver com Minas Gerais... Antes não tinha divisão, era comum... Acho que essa palavra Gerais nasceu desse comum, dessa terra comum... Até que essa palavra Gerais é na boca dos antigos... veio dessa terra comum... não existe mais a terra comum. (camponesa do Vale do Riachão, Coração de Jesus). Nesse mesmo Vale do Riachão (durante minha pesquisa de campo para a dissertação de mestrado) colhi uma preciosidade que deixou Guimarães Rosa com inveja: a precisa e bela definição de Gerais de D. Ermínia, camponesa sertaneja do Vale do Riachão, no município de Coração de Jesus: Gerais é porque a planta nasce lá no mato, no meio da mata, então dá o fruto lá, ninguém planta, ninguém limpa e dá lá, então diz que é Gerais ... Só colhe e come... Qualquer um pode colher; 10 Esse é apenas um exemplo de modelo, talvez o mais comum ao longo do conjunto de vales/encostas/chapadas dos cerrados do sertão mineiro. 11S. Salvador aqui se refere ao Sertão. 193 todo mundo vai na manga do outro colhe pequi, colhe coco, colhe manga, vai na chapada e colhe coquinho; se achar um tatu lá também pegado no meio do Gerais, pega ele, leva pra casa e come. Gerais é um lugar livre, de uso geral, sem cercas, ninguém cultiva lá, mas a biodiversidade do Cerrado oferece uma série de recursos frutos, carne de caça, lenha, madeira, remédio e onde todo mundo pode colher e ainda soltar o gado misturado, “na larga”. Resta o que D. Ermínia não falou, mas sabe a chapada é a caixa d'água do sertão. E essa caixa distribui água para as principais bacias hidrográficas brasileiras. Nós é sangue mesmo dessa região aqui. No tempo dessa chapada aí eu ainda lembro como era, eu era menino. Eu tinha uns 12-14 anos, nós ocupava muito essa chapada aí pra caçá mangaba, rufão, coco, tinha muito coco, aquele coco de cacho. Cortava pau-d'água pra tirar ripa. Pai tinha um cavalinho vermeio. Tinha um jumentão da mão torta, era criado solto, que corria atrás da gente. Muito gado na chapada... Era gado demais que vinha, só quando buscava, porque dificilmente o gado descia nas beiras de rio, porque tinha água, muita água nas pontas das cabeceira. (S. Arcílio, camponês geraizeiro da Comunidade de Vereda Funda, município de Rio Pardo de Minas)12. Essa água que agora “tá rariano”, depois que os cerrados deixaram de ser Gerais, foram privatizados13 e viraram monocultura de eucalipto, braquiaria ou plantações irrigadas por pivôs-centrais que sugam, embaixo, avidamente as fontes d'água para molhar a 12 Depoimento colhido em 2004, durante a pesquisa de campo para minha tese de doutorado. 13Do ponto de vista jurídico, esses Gerais eram terras públicas ou devolutas, sob gestão do governo estadual. Em alguns locais foram sendo apropriados pelos fazendeiros maiores e, em alguns casos, “legalizados” em cartório. Em outros locais, a Ruralminas, nas décadas de 1970 e 1980 concedeu ou arrendou a preços simbólicos para empresas “reflorestadoras” plantarem grandes áreas de eucalipto. 194 chapada, no alto... De área de recarga hídrica, a chapada passou a ser área de alto consumo de água, invertendo seu papel no ciclo hidrológico. As territorialidades tradicionais do Sertão, que mantinham e ainda mantêm em muitos lugares, as chapadas como Gerais é que permitiam que a chapada - com seus solos porosos e permeáveis e com um Cerrado econômico em água - fosse a esponja hidrológica como atestou, brilhantemente, Guimarães Rosa, em duas passagens, no seu famoso Grande Sertão Veredas. O chapadão é sozinho a largueza. O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras araral conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia: Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. ... O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio? Enfim, voltando para a análise geral, é importante resumir o cerne da questão que quero frisar aqui. A gênese do campesinato brasileiro deu-se num contexto colonial, que privilegiou o latifúndio e bloqueou o seu desenvolvimento (WANDERLEY, 1996). Esse contexto de marginalidade propiciou a ocupação de áreas marginais (posseiros, quilombolas), a interação com populações indígenas e a articulação entre policultura, pecuária, extrativismo vegetal, caça e pesca e também garimpo e artesanato, como se constata, por exemplo, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Em várias dessas tipologias, a vegetação nativa e sua biodiversidade, ao invés de empecilho como para os europeus, é parte da paisagem manejada e da cosmovisão camponesa. Modos muito próprios de apropriação da natureza e de adaptação ao meio desenvolveram-se no Brasil e em Minas Gerais, assim como de sociabilidade. Estas formas, desenvolvidas localmente, constituíram 195 habitats específicos, sociedades de interconhecimento como afirma Mendras, a partir da frase “aqui todo mundo se conhece”. “'Aqui' designa um habitat, isto é, ao mesmo tempo um território, definido por oposição aos territórios vizinhos, e um território construído que serve a seus habitantes de residência, de instrumento de trabalho e de quadro de sociabilidade” (MENDRAS, 1978, p. 87). Como terra de viver e de trabalho, o território tem valor de uso e é o lugar da coletividade local ou da comunidade rural, núcleo organizador da sociabilidade camponesa e célula territorial fundamental da vida camponesa. Na Amazônia, é comum as populações ribeirinhas da floresta se autodenominarem de “comunitários”, identificando aí sua distinção em relação a outros atores rurais e urbanos. O valor de habitat que tem esses locais/ecossistemas de vida promovem um envolvimento socioambiental e ajudam a construir territorialidades sustentáveis. Como argumentei em outro trabalho: (...) A passagem para um estado de sustentabilidade deve ter como base a sustentabilidade dos lugares. É, portanto, mais envolvimento local do que des-envolvimento de fora para dentro. É mais endógeno do que exógeno. Neste aspecto, a lógica desterritorializante e homogeneizante da globalização vai no caminho inverso, pois, na falta do envolvimento com os lugares, a “ordem global” os desorganiza e desestrutura as formas de vida locais, gerando exclusão social, padronização cultural e caos ambiental. Não pode haver por isso nenhuma ilusão autonomista do local em relação ao global, fato demonstrado exemplarmente por Chico Mendes e pelo movimento dos seringueiros no Acre. Entretanto, e por isso mesmo, é fundamental reforçar o princípio da autonomia e da autodeterminação das comunidades, mas adicionado de uma consciência e articulação global, para que as populações locais possam tomar o destino do seu lugar nas mãos, mediadas, mas não subordinadas, pela sociedade que as envolve (MAZZETTO SILVA, 2001, p. 46 e 47). 6. Finalizando A falência do modelo de desenvolvimento moderno-ocidental nos solicita uma reinvenção de outros modelos (no plural) a partir dessas realidades que eles chamaram, preconceituosamente, de 196 subdesenvolvimento ou de Terceiro Mundo14. Alguns pensadores europeus mais lúcidos deram-se conta disso há muito tempo, como atesta essa passagem do famoso filósofo e sociólogo grego (mas que fez sua carreira acadêmica na França) Cornelius Castoriadis que, mesmo preso a essas categorias dicotômicas (desenvolvimento/subdesenvolvimento), consegue perceber o valor do patrimônio sócio-cultural, único deste Terceiro Mundo, e o potencial que existe para um diálogo horizontal entre as culturas tradicionais e uma ciência modernaocidental que pudesse ser aberta e não-arrogante. Aquilo que há muito considero como essencial em toda a questão do desenvolvimento é que os países do Terceiro Mundo tinham, e talvez ainda tenham, a possibilidade de oferecer uma contribuição positiva, original, à necessária transformação da sociedade mundial. É essa possibilidade que é totalmente escamoteada nas discussões habituais sobre o desenvolvimento; e é ela que é destituída pelo desenvolvimento capitalistaburocrático daqueles países... Podemos dizer que na maior parte desses países as formas tradicionais de cultura não estavam, ainda, e ainda não estão hoje, completamente dissolvidas, nem o tipo tradicional do ser humano, completamente destruído... É desnecessário frisar que essas formas tradicionais, na maior parte do tempo, vinham acompanhadas pela exploração, pela miséria, por toda uma série de fatores negativos; mas elas preservam alguma coisa que, no Ocidente, foi destruída no e pelo desenvolvimento capitalista: um certo tipo de sociabilidade e de socialização e um certo tipo de ser humano. Há muito tempo que eu considero que a solução dos atuais problemas da humanidade deverá passar pela conjunção desse elemento com a contribuição que o Ocidente pode trazer; entendo com isso a transformação da técnica e do saber ocidentais de tal modo que possam ser postos a serviço da preservação e do desenvolvimento das formas autênticas de sociabilidade que subsistem nos países subdesenvolvidos e, em troca, a possibilidade para os povos ocidentais de aprender alguma coisa que foi esquecida Afinal, o lugar onde vivemos e moramos nunca é um “terceiro mundo”, ao contrário, é sempre o mundo essencial e primordial, seja em nosso vínculo afetivo, seja no exercício de um modo de viver e sobreviver. 14 197 e de se inspirarem neles para fazer reviver formas de vida genuinamente comunitárias (CASTORIADIS apud PORTOGONÇALVES, 1995, p. 332)15. Arturo Escobar, antropólogo colombiano e professor nos EUA, vai mais além quando enfatiza a relevância ecológica dos modelos camponeses do Terceiro Mundo. Antropólogos, geógrafos e ecologistas políticos vêm demonstrando com crescente eloqüência que muitas comunidades rurais do Terceiro Mundo constroem a natureza de formas impressionantemente diferentes das formas modernas dominantes: eles designam, e, portanto, utilizam os ambientes naturais de maneiras muito particulares. Estudos etnográficos dos cenários do Terceiro Mundo descobrem uma quantidade de práticas significativamente diferentes de pensar, relacionar-se, construir e experimentar o biológico e o natural (ESCOBAR, 2000, p. 118). Esses modelos locais devem ser, então, a matéria-prima (e não o impedimento) para construção da sustentabilidade e autonomia das comunidades no seu habitat. Entretanto, uma série de fatores devem se somar para que essa perspectiva da sustentabilidade dos espaços rurais possa se materializar. Entre outros princípios, essa perspectiva deve se basear: • numa distribuição eqüitativa do território, na democratização do acesso à terra que deve ser antes de tudo um bem público a serviço da sociedade (função socioambiental da terra),li e não uma mera mercadoria; • no fortalecimento e construção de modelos produtivos e de vida que sejam cuidadosos com os territórios rurais - água, biodiversidade, solo, infra-estruturas comunitárias e que conservem a paisagem e o funcionamento dos processos ecológicos dos ecossistemas - fluxos 15 Grifos próprios 198 energéticos, ciclos de nutrientes (biogeoquímicos), ciclo hidrológico, processo de equilíbrio biótico - e assegurem a riqueza do patrimônio natural para esta e para as futuras gerações; • na inclusão (não-expulsão) e no protagonismo das famílias agricultoras e no respeito às comunidades rurais e valorização de sua história e cultura; • na produção de alimentos e outros produtos de boa qualidade biológica, isentos de produtos contaminantes que garantam a segurança alimentar e a saúde da sociedade. Nenhum desses fatores tem sido garantidos pela chamada agricultura moderna, ou pela sua noção contemporânea: o agronegócio. Ao contrário, essa lógica tem se mostrado concentradora de terra, intensiva em capital, energia e recursos naturais, poupadora de mão de obra, simplificadora e degradadora dos ecossistemas. Seguindo os princípios acima, podemos apontar algumas pistas em termos de estratégia e concepção: • Ao invés do des-envolvimento (de fora para dentro), incrementar o envolvimento da cultura, do ambiente, da economia, da organização social local (de dentro para fora). • Fortalecer espaços de participação protagônica e de construção da autonomia das famílias camponesas locais tomar o seu destino nas mãos • Fortalecer as identidades que são portadoras do apego ao lugar, da cultura da adaptação ao meio, da convivência com os ecossistemas, do incremento da diversidade biológica e da heterogeneidade espacial as territorialidades sustentáveis. • Incrementar a articulação em redes de luta territorial e emancipatória, troca de experiências, diálogo de sabe199 res e ajuda mútua: rural-rural, rural-urbano, regionalestadual-nacional-internacional... O universo para se criar novas perspectivas e modelos é imenso, em especial, em países como o Brasil, portador de uma rica miscigenação étnica e cultural, com uma diversidade e riqueza de ecossistemas incomensuráveis e ainda não tão enquadrados na forma do capitalismo e da cultura ocidental (européia-estadunidense). Essa recriação e descolonização do pensamento passam pela afirmação de Boaventura de Souza Santos. A falência da miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente, e, em vez de se buscar novos modelos de desenvolvimento alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao desenvolvimento (SANTOS, 2005, p. 28)16. São outros conceitos e novas idéias-força, a partir das margens do sistema-mundo, que poderão gerar os impulsos, as energias, as sabedorias e as ações que contribuam para as populações locais manterem ou construírem a sustentabilidade de seus territórios. Referências ALTIERI, Miguel. Agroecologia: Bases Científicas para uma Agricultura Alternativa. 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Nesse sentido, é feito um movimento de relativização da agricultura tradicional e das comunidades camponesas, que se encontram na periferia do sistema mundial, sendo essencializadas pela produção para o autoconsumo e isoladas da economia central. Os estudos, portanto, reconhecem uma economia movimentada por complexas redes de negócios, imersas no que estamos chamando de uma “economia invisível”. Esta invisibilidade diminui a capacidade destes atores de negociação de políticas com o conjunto da sociedade, deixando terreno para que as grandes corporações tomem de assalto as economias dos municípios, apresentando-se como a única alternativa de âncora econômica e de “ajuda ao desenvolvimento”. Noutro aspecto, observa-se um processo crescente de perda da participação da contribuição dos pequenos municípios e paisagens rurais na economia mineira. Assim, amplificam-se assimetrias entre as regiões ricas e as de baixo dinamismo econômico em Minas Gerais. Atualmente, diferentes leituras, conjunto de medidas, projetos e programas públicos ressurgem no Brasil e em Minas e vem 205 trazendo a questão do enfrentamento do que, nos tempos dos cepalinos, chamou-se de intercâmbio desigual. Pelo menos três enfoques nas estratégias de desenvolvimento podem ser grafados de forma mais clara: a) o de desenvolvimento comunitário, inspirado nas teorias latino-americanas do “desenvolvimento comunitário”, matizado no Brasil com as contribuições da educação Freiriana; b) o de desenvolvimento local/territorial, inspirado nas experiências européias e nos estudos sobre capital social; c) o de macropólos de serviços e atração econômica, inspirados nos recentes estudos liderados pelo professor Clélio Campolina Diniz (2003), do CEDEPLAR/FACE/UFMG, procurando delimitar os pólos econômicos e suas áreas de influência, como base para uma proposta de nova regionalização para o Brasil. A reflexão aqui desenvolvida reclama pela ausência de uma abordagem própria apoiada nas experiências em curso no Brasil e chama atenção para a necessidade de se buscar referências para a construção de novos cenários. Cenários estes inspirados nas experiências de governos e de organizações da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição de fornecedoras de mercadorias de primeira geração, de baixo valor agregado, para inseri-las na economia da informação, ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”, os quais atuam como fornecedores de mercadorias de quarta geração, por meio do valor agregado ao conhecimento tradicional (CUNHA; ALMEIDA, 2001). 2. Minas e a Agricultura Familiar Minas é o estado da diversidade, onde observa-se uma marcante variedade ecológica e rastros culturais contrastivos, sendo uma economia notadamente diversificada. As paisagens das minas e dos gerais são conformadas, ao longo dos últimos séculos, pelo contexto sócio-econômico, político e cultural, advindo da expansão da ocupação de grupamentos humanos oriundos, principalmente, da Europa e África e em detrimento dos ocupantes 206 originais, os ameríndios. Uma das marcas inscritas na fisionomia deste estado é a transição ecogeográfica do Sudeste para o Nordeste brasileiro, da mancha atlântica (que não toca a costa brasileira, mas recebe os ares da mesma) para o sertão. Do clima subúmido para o semiárido, do cerrado para a caatinga. Do mar de morros da Zona da Mata, para a aparente calmaria dos cerrados que invadem o sertão mineiro, que é notadamente uma fisionomia singular no âmbito dos ecossistemas brasileiros. Abriga, em um pouco mais do que meio milhão de quilômetros quadrados, uma diversidade única de paisagens conformadas pelo contato ecossistêmico. Os cerrados, as caatingas, a mata atlântica ora se entrelaçam como quem disputa o território, ora constroem imensas e profundas manchas de domínio e calmaria. A malha hídrica e os movimentos migratórios de animais, incluídos os da espécie humana, encarregam-se de por em contato estas imensas manchas de domínios ecossistêmicos (DANGELIS FILHO, 2005). Das montanhas de Minas, dentro dos domínios da Mata Atlântica, cuja paisagem é movimentada por um relevo inicialmente ondulado, à medida que deslocamos pelas estradas que ligam ao triangulo, ou ao norte, em cuja paisagem dominam os cerrados, as curvas se estendem até tornarem manchas esbranquiçadas ao fundo. Os caminhos deixam os terrenos movimentados do mar de morros e se espraiam na imensidão dos altiplanos que vão tocar o planalto central brasileiro. Muda o relevo, mudam as formações vegetais, da mata atlântica para o cerrado, além de um emaranhado de formações fitoecológicas designadas ora de mata seca, ora de caatinga. É nessa paisagem múltipla e singular que se assenta uma “agri-cultura” diversa, movida por diferentes matrizes de racionalidade, uma fisionomia social rica e complexa. Poderíamos também dizer que estão inscritos sobre esta paisagem uma boa mostra daqueles que são os verdadeiros portadores do patrimônio cultural do agrus brasileiro. 207 Biomas de Minas Gerais Figura 1: Biomas de Minas Gerais Fonte: http://www.biodiversitas.org.br/1. Mesmo sob a égide de uma política arrogante e conservadora, em que a agricultura familiar é mantida sempre que possível à margem dos benefícios das políticas distributivas e à margem das estratégias e políticas emanadas do estado e do capital privado, esta população ainda subsiste e permanece ocupando a maioria absoluta da população rural em Minas Gerais. De um total de 2.000.046 pessoas ocupadas no campo em Minas, 1.293.922 encontram-se absorvidas pela agricultura familiar (fonte: Censo Agropecuário 1995/96, IBGE). 1 Revisão do Atlas de Áreas Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade. 208 Gráfico 1 - Percentual de participação do pessoal ocupado pela Agricultura Familiar e Patronal nas doze macro-regiões do Estado de Minas Gerais Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996, IBGE. Convênio INCRA/FAO Organizado pelos autores. Os dados acima sinalizam a significativa participação da agricultura familiar enquanto absorvedora de mão-de-obra, especialmente nas regiões Norte, Jequitinhonha, Rio Doce, Mucuri e Zona da Mata. Por outro lado, sinaliza a crescente configuração das regiões Noroeste, Triângulo/Alto Paranaíba e Central de Minas, que cada vez mais se estabelecem sobre dinâmicas concentradoras de terras e recursos, associações inevitáveis de sistemas de produção e consumo liderados por grandes corporações internacionais e complexos conglomerados, o que passou a ser chamado no Brasil de agronegócio. 3. Redes e Negócios Associados à Agricultura Familiar: Descortinando uma Economia Invisível A partir de uma rápida passagem pelas mesoregiões mineiras e pelos dados do último Censo Agropecuário (1995), é incontestá209 vel a importância da agricultura familiar na geração de ocupações e formação do patrimônio material e imaterial de Minas e, por que não dizer, na formação da episteme da mineiridade. Porém, os dados capturados pelo censo, a nosso ver, não fundamentam e nem dão magnitude aos circuitos de negócios que dão sustentação a estas economias locais. Vamos recorrer a estudos de caso realizados pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/PNUD/MMA, 2005) sobre circuitos econômicos locais nos municípios da Serra Geral e do Alto Rio Pardo. Esses estudos indicam como a agricultura familiar no território estudado movimenta complexas redes de negócios, imersas no que estamos chamando de uma “economia invisível”. As tentativas de mensuração exercitadas nos estudos realizados apontam alguns indicativos da magnitude desta economia, tais como: - 2/3 do VBP (valor bruto da produção) da bacia leiteira da Serra Geral é movimentado a partir de pequenas e micro unidades de processamento de leite, pequenas queijarias e fábricas de doces e requeijão. Enquanto muito se fala da importância das grandes corporações de alimentos para a estruturação da cadeia de leite na região, esses dados, na verdade, revelam que a imensa maioria dos produtores de leite acessam os mercados via esses pequenos empreendimentos que se mantêm na mais completa clandestinidade (vide Box I, Gráficos 2 e 3); Box 1 Hoje em Porteirinha, 37 pequenas queijarias e a Cooperativa Crescer organizam a produção leiteira de 593 famílias de um total 637 unidades produtivas envolvidas com a pecuária leiteria, o que representa 97% das propriedades, em sua grande maioria, pequenos e micro proprietários rurais. Por outro lado, a NESTLE coleta a produção apenas de 44 unidades produtivas (apenas 7% das propriedades), sendo que estas, geralmente, são de maior porte. Em termos do volume beneficiado por estas três rotas de processamento, pode-se observar que elas se equivalem, 210 ou seja, o conjunto das 37 fabriquetas processa o mesmo volume que a Cooperativa Crescer e o mesmo volume que é coletado pela NESTLÉ (vide Gráfico 2) Gráfico 2 - Participação Agroindústrias Processadoras de Leite na Região da Serra do Espinhaço (Porteirinha, Riacho dos Machados e Serranópolis de Minas) Fonte: CAA/PNUD/MMA (2005).. Gráfico 3 - Participação Agroindústrias Processadoras de Leite na Região da Serra do Espinhaço (Porteirinha, Riacho dos Machados e Serranópolis de Minas), na composição do VBP leiteira. Fonte: CAA/PNUD/MMA (2005). Analisando do ponto de vista econômico, considerando o volume anual processado por estas agroindústrias familiares e cooperativa, além de processarem praticamente o dobro do volume da NESTLÉ, elas geram um VBP 60% superior ao gerado pela NESTLE, Gráficos 2 e 3. Ou seja, a estratégia cunhada pela agricultura familiar desta microrregião vai na contramão da subordinação cega da agricultura junto aos grandes conglomerados agroindustriais, gerando uma cadeia invisível de negócios, 211 de emprego e renda que extrapolam a vida socioeconômica apenas dos agricultores familiares da caatinga estendem seus benefícios para a cidade de Porteirinha, sua vizinhança, atingindo municípios geograficamente distantes como São Paulo, mas culturalmente muito próximos. Lá também, seus produtos geram emprego e renda caminhando por uma teia também invisível de distribuição até chegar aos consumidores finais, seus pares oriundos em sua grande maioria do sertão (CAA/PNUD/MMA, 2005). - A agricultura familiar do Alto Rio Pardo, que abriga a maior área plantada de cana-de-açúcar da região - mais de 2.000 ha, produz algo entorno de 10 milhões de litros de cachaça e registrou na arrecadação de ICMS cifras irrisórias de R$500,00 e R$1000,00 reais nos anos 2003 e 2004, respectivamente. Da mesma forma esses dados sinalizam um imenso campo de atividade econômica que permanece invisível (vide Box II, Gráficos 4 e 5). Box 2 O Gráfico 4 destaca a área plantada de cana-deaçúcar na região estudada, onde se destaca a produção do município de Rio Pardo de Minas. Todavia, esta produção não aparece nas estatísticas como geradora de riqueza. No Gráfico 5 evidencia-se o baixo valor comercializado de cachaça neste município. Nos estudos que estão sendo realizados pelo CAA/NM, nesta região, já foram mapeados mais de 200 alambiques artesanais, ocupando, diretamente na produção, em torno de 800 trabalhadores. Estimativas iniciais sinalizam que mais de 4 mil pessoas ocupam-se na atividade, num universo de 9.392 pessoas ocupadas pela agricultura familiar no município. 212 Gráfico 4 - Evolução da área plantada de cana de açúcar 1990 - 2004 Fonte: IBGE - Produção Agrícola Municipal (CAA/PNUD/MMA, 2005). Por outro lado, os estudos com base em estatísticas oficiais sobre os pólos, sinalizam a pouca eficiência do agronegócio na geração de ocupação e de inclusão produtiva da imensa massa de agricultores familiares. Essas atividades são geralmente lideradas por empresários e empresas de outras regiões, agentes econômicos dotados de capacidade de investimento de capital financeiro e capacidade de endividamento. As estatísticas oficiais (censo agropecuário, 1995/96) revelam que 78,7% das ocupações na agricultura são geradas nas cercanias dos negócios da agricultura familiar. Dos 50.595 de pessoal ocupado na agricultura do território estudado, 39.801 estão empregados na agricultura familiar. Pondo em tela a situação do papel da silvicultura em Rio Pardo de Minas, que ocupa um terço das terras do município, a atividade é capaz de gerar menos 5% dos empregos formais do município. Todavia, os dados do Censo Agropecuário de 1996 indicam que os estabelecimentos rurais familiares no município geram ocupação para 9.392 agricultores maiores de 14 anos. (CAA/PNUD/MMA, 2005). 213 Gráfico 5 - Evolução do Valor comercializado de cachaça, Norte de Minas,Território GESTAR Serra Geral/MG e municípios com base no ICMS. Fonte: Secretaria de Estado da Fazenda.(CAA/PNUD/MMA, 2005).. Tabela 1 - Nível de Emprego Formal Direto Fonte: RAIS, 2005.(org. Barbosa,2008) Ora, se esses negócios que tecem essa economia estão assentados principalmente sobre as cadeias produtivas estudadas, e as informações obtidas confirmam tal afirmação, então a imensa maioria da população ocupada nesses municípios está inserida em uma rede de negócios “clandestinos e ilegais”. Portanto, a sustentação econômica da população desses municípios está ancorada sobre uma estrutura institucional extremamente frágil. Uma interpretação e aplicação rigorosas da legislação fiscal e sanitária não deixariam permanecer em atividade nenhuma cachaçaria do Alto Rio Pardo ou 214 Montes Claros; muito menos, nenhuma queijaria ou laticínio da Serra Geral vinculados à agricultura familiar. Portanto, a questão tem que ser debatida seriamente enquanto problema público. 4. Políticas para Agricultura Familiar Na formação da paisagem rural brasileira, desde os tempos coloniais, prevaleceram os interesses associados ao desenvolvimento dos sistemas de plantation, largamente grafados na historiografia brasileira. As comunidades camponesas estabeleceram-se nas zonas marginas e se limitavam a ocupar os solos que à cana não interessava (ANDRADE, 1998 p. 92). A produção miúda, de pouca conta, mesmo não tendo o apoio de políticas oficiais, não deixa de, contraditoriamente, ser considerada importante à medida que crescia a população no Brasil. A agricultura camponesa sempre cumpriu papel determinante no abastecimento de alimentos e outros bens fundamentais na formação da nação brasileira, embora sempre permanecesse à margem das políticas de desenvolvimento nacional. Desde sempre, os sistemas locais de produção, modos de vida dos povos do sertão, sempre foram “associados ao atraso”, o que os tornou alvos de políticas de desenvolvimento que promovessem rupturas e desestruturação dos sistemas agroalimentares locais. Um vasto repertório de políticas de modernização truncadas foi disparado sobre esta população ao longo da história política brasileira. Não vamos neste artigo adentrar nesse universo, todavia, é importante citar algumas manifestações mais recentes, que denunciam o espaço marginal desse setor, enquanto âncora para uma estratégia nacional de desenvolvimento. Denunciam essa marginalidade a desintegração dos sistemas locais de produção e consumo, submetidos à subordinação de grandes agroindústrias, seja de carne, fumo ou celulose; e as inúmeras vilas e povoados que se formam estabelecendo-se como reservas de mão-de-obra barata para complexos associados ao agronegócio. Segundo dados do DIEESE (2007) mais de um milhão de trabalhadores ocupam-se no corte de cana. A vida 215 útil destes trabalhadores da cana retorna aos índices dos tempos dos canaviais, tocados pelo regime escravocrata (10 a 12 anos; passando de 15 anos, verificados nas décadas de 80 e 90, para 12 anos a partir de 2000). Por outro lado, não podemos afirmar que as coisas não mudaram. O processo de redemocratização no Brasil, e as olas internacionais de pressões advindas da crise ambiental, energética e, mais recentemente, a de alimentos atraíram para a arena pública preocupações com a sustentabilidade, com a participação popular, com as desigualdades sociais e também intra-regionais. De uma forma geral, surge, no Brasil, um repertório de políticas que incorporam a questão da participação e da sustentabilidade com rebatimento nos territórios. Um conjunto de projetos e programas públicos surge no Brasil e em Minas, tendo como questão o enfrentamento, daquilo que nos tempos dos cepalinos, se chamou de intercâmbio desigual e deterioração dos termos de intercâmbio entre nações. A aplicação deste modelo de análise entre regiões do país resultou em busca de soluções como a criação da SUDENE e da SUDAM na década de 1960. Na atualidade, pelo menos três enfoques nas estratégias de desenvolvimento podem ser grafados de forma mais clara: a) o de desenvolvimento comunitário, inspirado nas teorias latino-americanas do “desenvolvimento comunitário”, matizado no Brasil das contribuições da educação Freiriana; b) o de desenvolvimento local/territorial, inspirado nas experiências européias e nos estudos sobre capital social; b) o de macropolos de serviços e atração econômica, inspirados nos recentes estudos liderados pelo professor Clélio Campolina Diniz (2003), do CEDEPLAR/ FACE/ UFMG, procurando delimitar os pólos econômicos e suas áreas de influência, como base para uma proposta de nova regionalização para o Brasil. O enfoque do desenvolvimento comunitário veio embalar um grande número de experiências de trabalho popular no Brasil durante os anos 70 e 80. Tal abordagem foi mais claramente con216 ceituada como metodologia2 do trabalho comunitário e social3 . Esta abordagem orienta a maioria das iniciativas lideradas por um campo de ONG´S, organizações populares locais, pastorais e, em alguns casos, até mesmo de programas de cooperação multilateral com organismos internacionais. Acompanha esta abordagem um repertório de conceitos como: projetos de base comunitária (GESTAR/ PNUD/MMA), grupos locais de geração de renda (PPPECOS/ GEF Cerrados/MMA), projetos comunitários de geração de renda (PCPR). Ela se articula a partir do planejamento da ação “na comunidade”, muitas vezes encerrado na fronteira comunitária, acreditando que o sucesso das soluções que se consolidam na escala das famílias e comunidades possui, em si mesmo, potencial de expansão e transbordamento para outras localidades. A partir da regulamentação da Constituição de 1988, inicia-se o processo de descentralização política e municipalização no Brasil, trazendo em seu bojo as preocupações com o local e, com elas, as teorias do Desenvolvimento Local. As preocupações e teorias migram da escala comunitária para a escala local (este entendido, na grande maioria das vezes, enquanto escala municipal, ou microrregional, arranjo de municípios vizinhos. Em seguida, já durante o governo Lula, o conceito de desenvolvimento territorial toma o lugar do local. Noutro flanco, com a constituição da União Européia, ressurgem preocupações com correções das assimetrias entre regiões e países dentro do bloco. Neste contexto, surgem diversas ações de governos, como programa líder e outros que se propunham a promover reversão dessas assimetrias. O conceito de capital social, desenvolvido principalmente a partir de estudos que buscavam explicar os elementos fundadores de Michel Thiollent(1985), Willian Castilho(1988 e 1984), Belfiore(1993), Arcoverde(1985), Hirschnan(1987), Dallari (1983), Brandão(1984), Cardoso(1987), Faleiros(1982), Fritzen (1985), Bonfiglio (1982); foram alguns dos expoentes que vieram a desenvolver teorias que iluminaram a questão no campo conceitual. 3 Boa parte dessa literatura me foi apresentada por Solange Monteiro de Souza, socióloga do CAA, profunda conhecedora dessa abordagem. Além de me por em contato com esta literatura, os debates que tivemos na montagem do curso que demos juntos na UNESP de Registro-SP me ajudaram construir uma visão panorâmica sobre o tema. 2 217 dinâmicas diferenciadas de desenvolvimento na região central da Itália, ganha enorme virulência no Brasil, repercutindo fortemente nos programas que emanavam especialmente do MDA e/ou programas de governos estaduais com financiamento do Banco Mundial. Assim como os antigos PDLS, nos tempos do PRONAF infra-estrutura, o atual Programa de Desenvolvimento Territorial do MDA talvez seja o mais fiel depositário desse conceito. O programa se sustenta na crença profunda de consertação entre organismos de governo e sociedade (como nos tempos dos governos socialistas na região de Bolonha e Trieste, na Itália, e a imensa trama de negócios e empresas que se desenvolveram nessas regiões após décadas de governos de esquerda). Embora ainda exista uma certa crença em torno das possibilidades desse programa, não seria surpresa um processo crescente de esvaziamento e esgotamento. Ora, nem sempre as condições de consertação serão dadas, nem sempre haverá governo disposto a estabelecer acordos com a sociedade, nem sempre haverá organizações de Estado e sociedade em condições de igualdade de diálogo. Além do mais, estamos no Brasil. Por outro lado, o próprio conceito de desenvolvimento, mesmo com o qualificativo de sustentável, começa a ser bombardeado a partir da crítica às Teorias do Desenvolvimento, vindas da América Latina a partir de Max Neff (1986), Furtado (1992,1996,1999), Henrique Leff (1998), ou de vozes mais distantes como Amartya Sem (2000), W. Sachs(2000), Rist (1997) ou mesmo de Boaventura de Souza Santos (2002). Uma outra contribuição importante vem dos estudos desenvolvidos pelo CEDEPLAR, em que se procura delimitar os pólos econômicos e suas áreas de influência, como base proposta de nova regionalização para o Brasil. Esta abordagem destaca o papel da integração geográfica intersetorial e da escala urbana, capazes de ofertar um amplo espectro de serviços superiores ligados à produção industrial, infra-estrutura e estabelecimento de uma rede de cidades economicamente integradas e gravitando sob a influência das cidades pólos. Esta abordagem tem inspirado o desenvolvimento de políticas nos Ministérios da Integração e Indústria e Comércio. 218 Embora seja complicado aplicar a teoria das relações “centro- periferia” do tempo dos cepalinos à análise de intercâmbios desiguais entre regiões dentro de um mesmo país, os dados abaixo mostram como se reproduz, no nível regional e de forma exacerbada, o que ocorre em um panorama nacional: um padrão de desenvolvimento que impulsiona o aprofundamento das desigualdades também dentro das regiões, ampliando a exclusão social e o avanço predatório sobre os estoques de capital natural. O gráfico 6 sinaliza esse movimento centrípeto da economia regional: enquanto Montes Claros, município pólo que já detém mais da metade do PIB da região, cresce sua participação no PIB regional, decresce a participação dos demais municípios do Território GESTAR Serra Geral/MG 4. Esta tendência centrípeta constitui-se em um problema de magnitude incalculável para as nações pobres. Não resta dúvida de que tal processo é produto do fracasso de uma estratégia de desenvolvimento que guiou todas as economias periféricas, após a Segunda Guerra, e impôs uma rápida industrialização às custas da deterioração do campo. Gráfico 6 - Produto interno bruto a preços correntes, segundo Montes Claros e demais municípios do Território 2000-2003. Fonte: IBGE, 2004. 4 Porteirinha, Janaúba, Capitão Enéas, Pai Pedro, Riacho dos Machados,Rio Pardo de Minas. 219 Em certas zonas do planeta, a debilitação da agricultura e das pequenas cidades alcançou proporções aterrorizantes, constituindo o “calcanhar de Aquiles” da hiper urbanização (DANGELIS FILHO, 2005). Sabemos “o que hay que hacer, pero no sabemos aún como hay que hacerlo, porque no tenemos una teoría alternativa de desarrollo que sea convincente”5 (MAXNEFF, 1985, p. 190-191). 5. Considerações Finais: Novos Caminhos Este artigo reclama pela ausência de uma abordagem própria apoiada nas experiências em curso no Brasil, a exemplo desta aqui analisada. Pretendemos chamar atenção para a necessidade de buscar referências para construção de novos cenários, inspirados nas experiências públicas e da sociedade, capazes de retirar a agricultura e as economias locais da condição de fornecedoras de mercadorias de primeira geração, de baixo valor agregado, para inseri-las na economia da informação, ou no chamado mercado emergente dos “valores de existência”, como fornecedoras de mercadorias de quarta geração por meio do valor agregado ao conhecimento tradicional (CUNHA; ALMEIDA, 2001). Nesta perspectiva, os circuitos econômicos locais passam a ser vistos como âncoras para uma estratégia de geração de riquezas e oportunidades, e não como fator de atraso. As estratégias de desenvolvimento econômico das regiões devem absorver as lições deixadas pelas economias invisíveis. A permanência da condição de clandestinidade não interessa ao conjunto da sociedade, porque são oferecidos a ela produtos sem certificação de origem pelos órgãos de vigilância sanitária. Ora, sob os auspícios da clandestinidade tudo pode ser possível, desde a produção dos melhores queijos ou das melhores cachaças a preços acessíveis, até a oferta à população de produtos de alto risco alimentar. 5 Tradução livre: “Sabemos o que precisa ser feito, mas não sabemos ainda como tem que ser feito, porque não temos uma teoria alternativa de desenvolvimento que seja convincente”. 220 Isso não interessa aos produtores, porque a condição clandestina inviabiliza acesso a políticas específicas de fomento ao setor, tais como: crédito, assistência técnica, acesso a mercados institucionais e a pesquisas de desenvolvimento tecnológico e de logística públicos. Ao mesmo tempo, diminui sua capacidade de negociação de políticas com o conjunto da sociedade, deixando terreno para que as grandes corporações tomem de assalto as economias destes municípios, apresentando-se como a única alternativa de âncora econômica, e de “ajuda ao desenvolvimento”. Não interessa também aos governos, pois essa mesma condição arremessa para fora da arrecadação municipal gorda fatia dos repasses de valor fiscal agregado, ao mesmo tempo em que saca dos municípios a capacidade de investimentos estruturais com recursos do próprio orçamento. Este pacto sinistro, permissivo à clandestinidade, é uma cilada que condena o conjunto destes municípios rurais a um processo crescente de empobrecimento e a uma participação cada vez menos significativa no produto regional, acentuando o desaquecimento da economia. O desafio a ser enfrentado, enquanto questão pública, é traçar estratégias e um conjunto articulado de políticas, desde a esfera municipal, para um processo gradual e crescente de inclusão dessas cadeias e redes de negócios na suas cercanias, criando as condições de ajuste à legislação fiscal e sanitária. Além disso, políticas de criação de fundos de financiamento de longo prazo devem ser direcionadas, especificamente, para estruturação dos circuitos econômicos protagonizados agricultura. Por fim, este artigo chama atenção para a necessidade de buscar soluções próprias no desenho de políticas e estratégias locais, capazes de responder ao que a realidade efetivamente reclama e menos a modelagens teóricas vindas de alhures, ou de modismos dos circuitos da academia. Referências ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nortedes Nordeste. 6ª ed. Recife: Editora UFFPE, 1998. BARBOSA, R. S. 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Inicialmente vista como um espaço de intervenção, uma vez que havia demandas de diversas ordens (formação de monitores, produção de material didático, levantamento de acervo bibliográfico, ampliação da biblioteca), a experiência de organização da escola, em conformidade com o que prescreve a Pedagogia da Alternância, revelouse também um objeto privilegiado de pesquisa, uma vez que já havia uma ampla história que suscitava vários questionamentos. São eles: diferente estrutura organizacional e administrativa em relação à escola convencional; aposta em um modelo pedagógico que pretende permitir uma formação, ao mesmo tempo, totalizadora em relação a uma determinada concepção de sociedade e individualizante em relação a uma determinada concepção de personalidade; e, sobretudo, a apresentação de uma alternativa de escolarização adequada às vicissitudes do meio rural (esvaziamento demográfico, dificuldade de realização de transporte escolar, inadequação do calendário agrícola ao calendário escolar convencional) e a um ambiente ainda não totalmente submetido à lógica da divisão técnica e intelectual do trabalho. Dessa forma, constituiu objeto deste trabalho um exercício mais amplo de reflexão sobre os indicadores demográficos *Professor de Sociologia da Educação na Faculdade de Educação da UFMG. **Licenciada em Pedagogia pela UFMG. 225 e socioeconômicos da região nordeste de Minas Gerais, onde estão concentradas as Escolas Famílias Agrícolas mineiras, com base nos postulados filosóficos e pedagógicos da alternância e sobre suas possibilidades e seus limites, considerados os fatores observados na Escola Família Agroindustrial de Turmalina (EFAT). O principal fator que levou à análise da experiência realizada pela Pedagogia da Alternância foi a ênfase com que vários interlocutores locais se referiram à função social dessas escolas, seu caráter inclusivo, sua dinâmica democrática e sua proposta de compromisso com o desenvolvimento local sustentável. Dessa forma, os principais objetivos da pesquisa foram: - Analisar os significados da alternância e a relação entre escola e comunidade, a partir do estudo do caso particular da escola sediada em Turmalina; - Situar o contexto histórico de fundação da escola, tendo em vista os sujeitos ou movimentos sociais que tiveram maior expressividade neste processo; - Identificar as entidades parceiras que contribuem para a manutenção e funcionamento da escola; - Analisar a adequação das práticas observadas no cotidiano da escola ao projeto pedagógico da alternância. Quanto aos procedimentos de pesquisa, foram combinadas várias abordagens, como a leitura da bibliografia pertinente ao tema, particularmente o material publicado em decorrência de dois Seminários Internacionais (1999 e 2002), a análise de relatórios e da documentação disponível na escola (Estatuto da Associação de Apoio e o Regimento Interno da escola), a observação direta e entrevistas com alguns atores (pais, monitores, alunos e ex-alunos) que ocupam lugares estratégicos na organização da rede escolar. 226 2. Origens da Pedagogia da Alternância As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) originaram-se das Maisons Familiales Rurales da França. Toda a bibliografia consultada destaca a iniciativa de três agricultores e um padre de uma comunidade rural do sudoeste da França, quando se confrontaram com a situação de um adolescente de 14 anos que se recusou a ir à escola convencional. Como resultado do debate que se seguiu, foi criada, em 1935, a primeira Maison Familiale Rurale (MFR) de que se tem notícia. Segundo essa bibliografia, os princípios que orientaram a construção da identidade do movimento das MFRs, nesse período de criação e expansão, podem ser assim resumidos: - A constituição de uma associação de pais responsáveis por todas as questões relativas à escola, da demanda por sua criação às condições de funcionamento; - A alternância de etapas de formação entre a Maison Familiale e a propriedade familiar como princípio norteador da prática pedagógica; - A composição de pequenos grupos de jovens (de 12 a 15), sob a responsabilidade de um monitor, como possibilidade de aplicação dos princípios pedagógicos da alternância; - A formação completa da personalidade, dos aspectos técnicos aos morais e religiosos, como pressuposto fundamental do ideal de educação a ser perseguido; - O desenvolvimento local sustentável como horizonte a nortear a relação entre as pessoas e o meio ambiente que habitam. Os agricultores pioneiros, que levaram adiante a constituição das Maisons Familiales Rurales, estavam preocupados em criar estratégias de desenvolvimento para sua comunidade, ao mesmo tem227 po em que se preocupavam com um tipo de educação diferenciada para os jovens de seu vilarejo. Eles imaginaram um tipo de escola que seus filhos não rejeitariam, porque ela iria atender às suas reais necessidades. Assim, eles pensaram em criar uma estrutura de formação que seria da responsabilidade dos pais e das forças sociais locais, em que os conhecimentos a serem adquiridos seriam encontrados na escola, mas também na vida cotidiana, na família, na comunidade, na vila. No começo, a escola funcionou com quatro jovens. Pouco tempo depois já eram 40. Após a segunda Guerra Mundial a experiência foi divulgada pela França, constituindo-se os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs), que foram reconhecidos pelo governo francês em 1960. Na década seguinte, os CEFFAs se estabeleceram em outros países europeus (Itália, Espanha, Portugal), no continente Africano, na América do Sul, no Caribe, na Polinésia, na Ásia e, em seguida, na Província de Quebec, no Canadá (GIMONET, 1999). Em cada localidade para onde a experiência foi levada foram feitas adaptações em decorrência das circunstâncias locais. No Brasil, a primeira experiência educativa baseada nos CEFFAs se deu no Espírito Santo, em 1968, com a criação da Escola Família Agrícola de Olivânia, no município de Anchieta. O movimento das EFAs nesse Estado se constituiu sob influência das Escolas Famílias Agrícolas Italianas, sendo liderado pelo padre Jesuíta Humberto Pietrogrande e pelo Movimento Educacional e Promocional do Espírito Santo – MEPES. Preocupadas com a crise econômica e social por que passavam os agricultores do sul do Espírito Santo, na década de 60, as lideranças do movimento assumiram para si a tarefa de construção das EFAs no Estado. A partir da experiência pioneira do Espírito Santo, as EFAs foram se expandindo para outros estados brasileiros, como a Bahia (estado com maior número de escolas atualmente), Ceará, Piauí, Maranhão, Rio Grande do Norte, Rondônia, Amapá, Goiás, Santa Catarina e Minas Gerais. As primeiras Escolas Famílias Agrícolas do Brasil eram caracterizadas como escolas informais, com cursos 228 livres e de duração de dois anos (BEGNAMI, 2002). Seus objetivos principais eram permitir a formação técnica de agricultores, incentivar a permanência dos alunos no local de origem e incentivar o incremento de novas tecnologias no seu meio. Além disso, diz Begnami (2002), essas escolas pioneiras do Brasil se preocupavam com a formação humana e cidadã e com o engajamento social e político dos alunos nas suas comunidades e nos movimentos sociais. Posteriormente, a “fixação do homem ao campo” deixou de ser um lema da escola, sendo substituído pelo lema “formação para a liberdade”. Com a expansão das Escolas Famílias para outras regiões, surgiu a necessidade de criar uma entidade que pudesse garantir a unidade da proposta pedagógica da formação por Alternância, articular e unir as escolas na busca de soluções para seus problemas comuns e fortalecer seu projeto político de se constituir como alternativa viável à escolarização de populações rurais. Foi criada, então, a União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil, a UNEFAB, instituída por ocasião da primeira Assembléia Geral das EFAs do Brasil, realizada em 1982. Segundo a UNEFAB, atualmente estão em funcionamento cerca de 200 EFAs (há outras 40 em fase de implantação), onde trabalham 850 monitores, beneficiando cerca de 20.000 alunos e 100.000 agricultores. Essas escolas já formaram mais de 50.000 jovens dos quais mais de 65% permanecem no meio rural, desenvolvendo seu próprio empreendimento junto às suas famílias ou exercendo vários tipos de profissão e de liderança1 . Em Minas Gerais, segundo a Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas (AMEFA), a implantação das primeiras experiências de escolarização em conformidade com a Pedagogia da Alternância esteve relacionada com o movimento social e eclesial no final dos anos 70 e início dos anos 80. Essa foi uma época de reestruturação e/ou criação de vários Sindicatos de Trabalhadores Rurais e formação de vários outros movimentos de organização dos agricultores na luta pela terra e na tentativa de reação da agricultura familiar ao processo de submissão da exploração agrícola ao capital internacional (AMEFA, 2004). 1 Informações disponíveis em: <www.unefab.org.br>. Acesso em 25 jul. 2007. 229 A primeira Escola Família Agrícola de Minas Gerais foi criada na cidade de Muriaé, em 1984. A partir de então, numa tentativa de resposta ao histórico abandono e esquecimento de que os agricultores se ressentiam, foram sendo implantadas outras unidades em diversas regiões do estado, por iniciativas de grupos diversos que objetivavam promover o desenvolvimento do meio rural, através de alternativas de ensino e profissionalização dos filhos de agricultores familiares. Atualmente, existem 15 EFAs em 14 localidades do estado de Minas Gerais, grande parte delas na mesorregião do Jequitinhonha/Mucuri. (Ver quadro 1, em anexo.) Essas EFAs estão organizadas em torno da AMEFA, que foi instituída como entidade civil sem fins lucrativos em 24 de julho de 1993. A AMEFA foi criada para atender às necessidades da formação do quadro de monitores, diretores e supervisores pedagógicos das EFAs e prestar assessoria aos dirigentes das associações locais e administração da sua expansão no âmbito do estado de Minas Gerais. Sendo assim a AMEFA tem como principal missão ser um espaço de discussão, aprofundamento e promoção de propostas alternativas de aprimoramento da formação por alternância, para melhor atender as necessidades dos jovens e do seu meio, na perspectiva de um desenvolvimento integral e sustentável das pessoas e do meio rural, numa perspectiva de fortalecer a agricultura familiar, promover a inclusão social e melhorar as condições de vida no campo em Minas Gerais (AMEFA, 2004, p. 70). 3. Proposta Pedagógica Segundo Pedro Puig Calvó, uma Escola Família Agrícola é uma associação de Famílias, pessoas e instituições que buscam solucionar a problemática comum da evolução e do desenvolvimento local através de atividades de formação, principalmente dos jovens, sem entretanto excluir os adultos (CALVÓ, 1999, p. 5). Sendo assim, as EFAs têm quatro pilares que as caracterizam e as “sustentam”: as associações mantenedoras da EFA, a Pe230 dagogia da Alternância, a formação integral do aluno e o desenvolvimento local sustentável. O primeiro desses pilares é a constituição de uma associação responsável pela EFA nos diversos aspectos: econômicos, jurídicos e gestão. As EFAs representam para as suas associações, não um fim em si mesmas, mas um meio para alcançar o desenvolvimento local e coletivo (CALVÓ, 1999). Ou seja, através das EFAs suas associações podem atuar em projetos e atividades que favoreçam o desenvolvimento local ao mesmo tempo em que se propõem a formar as futuras gerações que vão dar continuidade ao projeto. Esse primeiro pilar é condição necessária à formação e manutenção de uma EFA, porque sua existência se vincula a uma organização local de base participava, em que a associação das famílias, as comunidades, as instituições locais, os profissionais do setor são os responsáveis pela gestão e pelo desenvolvimento local. Essas associações não devem se confundir com as tradicionais associações de pais e mestres, que, de modo geral, existem para dar apoio externo à escola na qual estudam seus filhos. Elas são a condição apriorística da existência da EFA; esta deve consistir em uma organização de base democrática e participativa, composta por pais e outros atores comunitários, que tenham como principal objetivo a promoção do desenvolvimento local. O segundo pilar que caracteriza e sustenta uma Escola Família Agrícola é a adoção de uma proposta pedagógica específica: a Pedagogia da Alternância. No sentido geral, alternância significa, segundo Calvó, um “conjunto dos períodos formativos que se repartem entre o meio sócio profissional (seja na própria família ou na empresa) e a escola. Isto sempre dentro de uma interação educativa escola-meio” (CALVÓ, 1999, p. 17). Lourdes Helena da Silva (2003) também compartilha dessa definição de alternância elaborada por Calvó. Ela entende alternância como estratégias de escolarização que possibilitam aos jovens que vivem no campo conjugar a formação escolar com as atividades e tarefas na unidade produtiva familiar, sem desvincular231 se da família e da cultura do meio rural. Daí a importância da Escola Família Agrícola como uma alternativa de escolarização desse público, uma vez que possibilita ao aluno ter acesso à escola, ao mesmo tempo em que permite a ele permanecer junto à família, à sua cultura e às atividades produtivas (SILVA, 2003). Para entender melhor em que consiste essa proposta pedagógica nas experiências das EFAs, Calvó recortou de dois autores, G. Malglaive e Gil Bougeon, a discussão sobre os “sentidos” da alternância, sentidos esses que aparecem reproduzidos em grande parte da bibliografia consultada. Segundo Calvó (1999), Malglaive distingue três tipos de alternância. Há a “falsa alternância” na qual não se estabelece nenhuma relação entre a formação acadêmica e as atividades práticas. Há a “alternância aproximada”, que tem organização didática que une os tempos e espaços de formação, dando-lhes certa coerência. Contudo, nessa perspectiva de alternância, são utilizados modelos de observação e análise da realidade na qual os jovens terão que trabalhar sem que, no entanto, lhes sejam oferecidos meios para atuar sobre ela de modo a modificá-la intencionalmente. Já a “alternância real” é aquela que almeja uma “formação teórica e prática global, permitindo que o formando construa o seu próprio projeto pedagógico, coloque-o em prática e efetue uma análise reflexiva sobre si mesmo” (CALVÓ, 1999, p. 19). O outro autor citado por Calvó (1999), Gil Bourgeon, apresenta uma discussão semelhante à de Malglaive. Para Bourgeon a “alternância justaposta” intercala diferentes períodos entre as atividades e os diferentes lugares, o trabalho e o estudo sem nenhuma relação aparente entre eles. Já a “alternância associativa”, associa formação profissional com a formação geral. As instituições que as constituem tentam organizar uma única formação nas atividades teóricas e práticas, dentro de um mesmo programa. Mas o sentido pleno da alternância está no que ele chama “alternância copulativa”, um processo no qual acontece uma compenetração efetiva entre os meios de vida sócio-profissional e escolar, numa unidade integrada de tempo formativo. Não consiste, então, em uma sucessão de tem232 pos chamados teóricos e outros chamados práticos – mesmo se estes se encontram no plano didático. Consiste, sim, num processo de interação entre os diversos momentos de atividades, pois nesse tipo de alternância há uma estreita conexão entre todos os elementos do âmbito educativo, sejam eles pessoais ou institucionais, individuais ou coletivos, da esfera da luta pela sobrevivência ou do investimento na formação. A partir da análise desses autores, Calvó (1990) constrói seu próprio conceito de alternância, que ele reivindica como o que deve ser perseguido por todos aqueles que se ocupam da EFA. Ele chama a isso de “alternância interativa”, pois nela, existe uma verdadeira colaboração, co-gestão, co-habitação, co-ação, onde o meio profissional intervém na escola e esta intervém no meio, com intervenções na educação-formação do aluno pela alternância que não se limita a um ou dois atores, mas se estendem a toda a complexidade do mundo que envolve a vida do formando (família, amigos, trabalho, economia, cultura, escola, política) (CALVÓ, 1999, p. 19). Como se percebe pela discussão dos autores, o sentido da Pedagogia da Alternância ainda está sendo construído, uma vez que se trata de experiência educativa relativamente nova, se comparada ao modelo convencional de escolarização. Assim, as pesquisas e os contornos teóricos sobre esse tema ainda estão em emergência e em fase de consolidação. O que é preciso verificar é em que medida esses postulados são efetivamente transpostos para a prática, uma vez que, como se sabe, entre uma e outra há as mediações a serem construídas a partir dos elementos de que cada comunidade dispõe. O terceiro pilar que dá sustentação a uma EFA e a caracteriza como tal é a formação integral da pessoa, de modo a lhe permitir o desenvolvimento pleno da personalidade e a capacidade de construir seu projeto de vida. Essa “formação integral da pessoa” diz respeito a tudo aquilo que pode enriquecer a sua constituição como indivíduo, considerando todos os elementos que se referem ou interferem na aprendizagem, como a organização escolar, a formação dos profissionais que nela atuam, a configuração social, 233 as representações vigentes no meio, o projeto de vida de cada um, as condições socioeconômicas da família e da comunidade etc. A formação do jovem pela alternância implica o seu envolvimento em atividades produtivas, de maneira a relacionar suas ações com a reflexão sobre o porquê e o como das atividades desenvolvidas (SILVA, 2003). Ou seja, essa formação busca a interação entre as atividades práticas e a reflexão teórica sobre elas. Nessa perspectiva educativa, o jovem deve ser o protagonista de sua própria formação (GIMONET, 2005). Ele deve analisar quais conteúdos são relevantes para seu desenvolvimento pessoal e social. A atenção personalizada é importante nesse processo de formação, pois a tutoria, o diálogo para revisão do caderno da realidade, as visitas às famílias e às comunidades são alguns dos procedimentos didáticos utilizados para atingir o objetivo da formação integral do aluno. Por último, o quarto pilar que caracteriza e sustenta uma Escola Família Agrícola é a sua preocupação com questões voltadas para o desenvolvimento local e sustentável. A busca constante das EFAs em promover o desenvolvimento nas comunidades locais é uma das suas principais características, pois foi este desejo de desenvolvimento local que fez as experiências educativas pautadas na Pedagogia da Alternância surgirem na França e expandirem-se para outros países. O desenvolvimento do meio no qual está inserida uma EFA resulta da interação de diferentes atores (FORGERD, 1999, p. 64). A interação desses atores é concretizada dentro de dimensões humanas, econômicas, sociais, culturais, ambientais, numa perspectiva global. Sendo assim, a partir da interação dos sujeitos, quando eles têm interesses individuais em comum, são conduzidas ações de desenvolvimento de competências, de atitudes, de comportamentos para um bem estar econômico e social melhor para todos que vivem nesse meio (FORGERD, 1999). Portanto, quando os atores de um determinado contexto compartilham interesses de desenvolvimento em comum, eles podem utilizar as EFAs como espaço de socialização de suas idéias e como lugar de partida para as ações e concretização dessas idéias. 234 Apesar de já estar bastante consolidado no discurso e na prática de organizações não governamentais, de movimentos sociais diversos e, mais recentemente, na mídia, a discussão em torno da sustentabilidade parece ainda estar longe dos projetos pedagógicos da escola convencional. Se essa é uma afirmação correta, é certo também, que a centralidade que as EFAs dão ao debate sobre desenvolvimento sustentável as distinguem de todas as outras. A União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil (UNEFAB), assim como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Conselho Nacional dos Sistemas Estaduais de Pesquisa Agropecuária (CONSEPA) são entidades que não apenas apostam no desenvolvimento da agricultura familiar, mas, sobretudo, reivindicam que ela se constitua na perspectiva da sustentabilidade. Por essa perspectiva, todo empreendimento na localidade deve ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto. A proposta de desenvolvimento sustentável da UNEFAB vem sendo construída com organizações não governamentais, sindicatos, pastorais e outras entidades, as quais compartilham os seguintes princípios: - Assentar-se na pequena produção familiar como base da organização social e técnica da produção agrícola; - Dar prioridade para a segurança alimentar; - Promover livre e democrática organização dos agricultores e das agricultoras; - Organizar-se em sistemas descentralizados de beneficiamento e comercialização; - Praticar uma agricultura que garanta a sobrevivência das populações atuais sem comprometer as condições de atendimento às gerações futuras; - Estabelecer princípios de equidade na distribuição dos benefícios. 235 4. Relações com a Agricultura Familiar A agricultura familiar tem capacidade de absorver grande quantidade de mão de obra e responde por quatro em cinco empregos gerados no meio rural. Além disso, ela se torna um dos elos fundamentais na modernização da agricultura, por ter a flexibilidade de adaptação a diferentes processos de produção e gerar várias fontes de renda (CONSEPA, 2004). Apesar de contar com algumas regiões industriais (Metropolitana de Belo Horizonte, Zona da Mata e Vale do Aço), Minas Gerais é um estado eminentemente agrícola. Apesar também da forte marca da atividade mineradora, a produção agrícola está na base das referências culturais no Estado: de um total de 853, “516 municípios mineiros têm uma população que não ultrapassa 10 mil habitantes e nessas localidades o urbano e o rural se confundem, pois suas relações, além de estreitas são dependentes” (AMEFA, 2004, p. 11). Segundo o CONSEPA, a grande capacidade da agricultura familiar em absorver mão de obra a transforma em uma alternativa socialmente desejada, economicamente produtiva e politicamente correta para fazer frente a grande parte dos problemas sociais urbanos derivados do desemprego e da descontrolada migração na direção campo-cidade. Assim, investir no conhecimento da e para a agricultura familiar, significa – para o CONSEPA – “resolver” o problema da migração campo-cidade e os problemas decorrentes dela. Para o CONSEPA a agricultura familiar está agrupada em três modelos: - A agricultura familiar consolidada que constitui 27% dos estabelecimentos familiares integrados ao mercado, com acesso a inovação tecnológica e a políticas públicas (a maioria funcionando em padrões empresariais); - A agricultura familiar em transição que é constituída por 24% dos estabelecimentos familiares, aproximadamente, os quais têm acesso parcial aos circuitos de inovação tecnológica, não têm acesso à maioria das políti236 cas públicas e programas governamentais e não estão consolidados como empresas, mas possuem potencial para sua viabilização econômica. - Já a agricultura familiar periférica, constituída por 49% dos estabelecimentos rurais, é caracterizada pela fragilidade de sua infra-estrutura, e cuja integração produtiva à economia nacional depende de fortes e bem estruturados programas de reforma agrária, crédito, pesquisa, assistência técnica e extensão rural, comercialização, dentre outros (CONSEPA, 2004). O desenvolvimento e a sustentabilidade da agricultura familiar, nos três modelos citados acima, em especial o modelo da agricultura familiar periférica, tem sido afetados por diversos fatores. Um deles, apontado pelo CONSEPA é a dificuldade de acesso dos agricultores familiares à escolarização. Essa dificuldade de acesso à educação formal dificulta que os agricultores familiares compreendam a razão de muitos de seus problemas e limita sua participação nos processos de busca de soluções para o desenvolvimento rural sustentável. Dessa forma, as Escolas Famílias Agrícolas aparecem como uma alternativa viável para o desenvolvimento rural, porque elas visam justamente contribuir para o desenvolvimento sustentável, através do trabalho das associações das escolas, em projetos coletivos, que viabilizem o desenvolvimento da instituição, dos alunos, da comunidade e dos pequenos produtores. Elas podem contribuir para o desenvolvimento do campo, porque atuam na formação teórica e prática dos educandos, respeitando a sua cultura e seu meio, de forma que eles tenham conhecimentos técnicos e filosóficos que os favoreçam desenvolver a comunidade, bem como a si mesmos, pois “não há desenvolvimento de uma pessoa se a sua comunidade não se desenvolve” (UNEFAB, 2002, p. 25). É importante ressaltar que as EFAs não atuam somente na 237 formação dos alunos, mas também dos familiares, uma vez que são parte constitutiva da proposta pedagógica da alternância. Desse modo, recriam valores, aprendem novos sentidos e significados pela luta e trabalho na terra e novas relações sociais de produção, por meio das discussões e atividades na e fora da escola e nos encontros de formação entre pais e alunos, diretores, monitores e outros dirigentes do movimento das EFAs. 5. AExperiência da Escola Família Agroindustrial de Turmalina O município de Turmalina está localizado no alto Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais. Seu território abrange uma área de 1.151 km², onde residia, em 2000, uma população de 15.655 habitantes, dos quais 37% no meio rural. Também no caso da Escola FamíliaAgroindustrial de Turmalina destaca-se a participação ativa de um padre e seu trabalho de mobilização das comunidades. Esse padre, um italiano que vivia na região desde os anos 1960, juntamente com lideranças do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, em 1994, apoiou a criação do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), uma organização não governamental que se constituiu em função da defesa da agricultura familiar e das propostas do desenvolvimento regional sustentável. O Centro presta assessoria aos pequenos agricultores, desenvolvendo novas técnicas de produção e comercialização de produtos excedentes. Apesar desse trabalho de mobilização e de efetiva organização comunitária, essa EFA nasceu mais da ação direta do poder público municipal, por iniciativa do então secretário municipal de educação, que da demanda específica de alguma entidade civil organizada. E aí está certamente um dos maiores limites ao efetivo funcionamento em conformidade com os postulados pedagógicos da alternância, isto é, aquilo que tem sido designado como “prefeiturização” das experiências das EFAs. A administração municipal do período de 1997 a 2000 apoiou amplamente as atividades do CAV e, por extensão, as iniciativas de 238 que ele se constituía como parceiro. Nesse período, a Secretaria Municipal de Educação ampliou políticas educacionais para o município com o objetivo de universalizar o ensino. Como uma das medidas utilizadas para alcançar esse objetivo, a Secretaria adotou o projeto de nucleação escolar, que conseguiu atender grande parcela da população escolarizável. Além disso, a secretaria criou cursos de alfabetização para adultos que atendia cerca de 185 alunos e ensino supletivo de 1ª a 4ª série que atendia 124 alunos. Mesmo com essas medidas, a administração municipal não conseguiu atender à demanda de alunos das comunidades mais distantes. Por um lado, o esvaziamento demográfico de vastas regiões rurais do município não justificava a manutenção de uma escola em cada localidade. Por outro lado, o transporte diário dos alunos para as escolas nucleadas ou para as escolas da sede municipal tornava-se oneroso, precário e perigoso. Na tentativa de resolver esses problemas a secretaria de Educação assumiu a proposta de criação e implantação da Escola Família Agrícola para atender alunos em idade de cursar o segundo ciclo do ensino fundamental (5ª a 8ª série). Assim, a EFAT iniciou suas atividades no dia 12 de fevereiro de 1998, atendendo 125 alunos do ensino fundamental (5ª e 8ª série). Posteriormente, a partir de 2001, passou a atender também a alunos do ensino médio, passando a funcionar concomitante com a Educação Profissional Básica em Agroindústria. A escola foi implantada nas imediações da cidade, numa área de 20 hectares, organizando-se a partir dos princípios filosóficos e metodológicos da Pedagogia da Alternância. Essa alternância consistia em abrigar os alunos, em regime de internato, por rodízio entre meninos e meninas, alternando a permanência deles a cada 15 dias entre a escola o local de moradia. Em outras palavras, durante 15 dias de cada mês, os alunos ficam na escola em período integral e, nos outros 15 dias, eles voltam para a casa dos pais, onde realizam as tarefas que lhes foram atribuídas como parte da responsabilidade da família nesse processo educativo. 239 Às atividades teóricas somavam-se trabalhos práticos na própria escola, como a produção de pães, o cultivo da horta, a produção de frutas (acerola, banana, maracujá, mamão, urucum, laranja, figo), além de viveiro, apicultura, caprinocultura, suinocultura, avicultura. Realizavam, também, curso básico de informática, bordados, corte e costura, dentre outras atividades (LACZYNSKI, 2000). Apesar da variedade de opções, logo verificaram-se os limites da proposta, uma vez que parte das atividades tinha que ser desenvolvida em outros espaços por inexistência de equipamentos de informática, por exemplo, ou a dificuldade de manter a padaria, a desidratação ou a extração da polpa de frutas. Faltavam, ainda, recursos financeiros para garantir o funcionamento e ampliar investimentos, o que a submeteu ao controle do poder público municipal quando deveria estar sob a administração da Associação de Apoio à Escola Família Agroindustrial de Turmalina (ASFAT). O projeto original da Escola Família foi concebido em 1997, mesmo ano em que foi implantado o projeto Criança 2000 para adolescentes do meio rural de Turmalina. No Projeto Criança 2000 os adolescentes ficavam em regime de semi-internato, fazendo cursos de bordado, corte e costura, manicure e pedicure, artesanato em palha, dentre outros, e freqüentavam as aulas do 2º ciclo do ensino fundamental nas escolas estaduais da cidade (LACZYNSK, 2000). Ao que tudo indica, a criação da Escola Família Agrícola foi um desdobramento do projeto Criança 2000, o que levou a administração municipal a realizar o duplo papel de vincular este projeto ao da Pedagogia da Alternância e convencer a população beneficiária de que essa era uma boa alternativa de escolarização.A mobilização para a criação da Associação Pró-Escola Família Agroindustrial de Turmaliana foi, portanto, induzida pela administração municipal, o que revelou outro limite da iniciativa: a necessidade do convencimento político dos vereadores para a aprovação da entrada da prefeitura na iniciativa e o convencimento dos pais de alunos, reticentes em enviar seus filhos para um “internato”, a princípio, misto. O problema, nesse caso, não estava na boa intenção dos administradores municipais, que pretendiam resolver pelo menos parte 240 do problema da evasão escolar ou da impossibilidade de esses alunos ultrapassarem as primeiras séries de escolarização, seja pela falta de escolas no local de moradia seja pela falta de transporte escolar nas comunidades mais distantes. O problema estava na inversão de um princípio básico da Pedagogia da Alternância que sustenta a necessidade de a iniciativa partir do público beneficiário, como expressão do seu desejo de ter acesso a uma escola diferenciada, que atenda aos interesses de seus alunos, que permita a reprodução da sua identidade cultural e que não leve seus descendentes a engrossar as rotas de migração campo/cidade. Para além, portanto, das questões da esfera política e orçamentária estava o problema do convencimento dos agricultores de que a Pedagogia da Alternância era, de fato, uma boa alternativa de escolarização para seus filhos. Pode não ser difícil convencer os pais de que não é possível manter uma escola próxima a sua moradia em decorrência do esvaziamento populacional da localidade ou que o transporte escolar é oneroso, perigoso e demorado (quando não impossível em decorrência das chuvas), mas não é fácil convencê-los de que meninos e meninas podem conviver harmoniosamente em uma escola em regime de internato. Essa desconfiança paterna somente foi apaziguada com a proposta da alternância em rodízio acima referida, isto é, enquanto os meninos estão ocupados das atividades escolares na escola, as meninas estão em casa e vice-versa. Vencida essa primeira etapa, a seqüência se constituiu na formação da Associação e no estabelecimento das parcerias, cuja proposta era promover a adesão de todos os orgãos das três esferas de administração (federal, estadual e municipal), de organizações não governamentais e iniciativa privada. Essas parcerias foram importantes não apenas para a implantação da Escola, mas para a expansão do atendimento a alunos do ensino médio profissionalizante, o que aconteceu a partir de 2001. Ultrapasados os primeiros obstáculos relativos à implantação, restava fazer a escola funcionar em conformidade com os postulados da Pedagogia da Alternância. Do ponto de vista formal, a proposta entra em sintonia com esses postulados, mas na prática os 241 limites logo se revelaram. Os objetivos da escola foram apresentados no seu Regimento Interno, Art 11. Dentre outros, destacam-se os seguintes: g) Estimular e apoiar agricultura familiar, buscando incorporar novas culturas economicamente viáveis e ecologicamente corretas; h) Buscar alternativas econômicas no campo e na região, procurando diminuir o êxodo do campo para as cidades e da região para outras regiões; j) Tornar a EFA um centro de referência, de promoção e desenvolvimento do meio rural, criando espaços de atividades diversas para pais, mães, profissionais do compo e ex-alunos; n) Estimular nos jovens um processo de formação permanente para estarem atualizados frente aos desafios e perspectivas do mundo moderno/ contemporâneo. Além desses objetivos, a escola explicitou claramente sua proposta pedagógica. A EFAT tem o seu Projeto Político Pedagógico organizado de acordo com os quatro pilares básicos que constituem as EFAs: a Associação, como princípio de participação e do envolvimento das famílias e da comunidade; a Pedagogia da Alternância, como estratégia de ação pedagógica mais eficaz, mais apropriada à realidade do campo e profissionalização dos jovens rurais; a formação integral da pessoa humana, como proposta da ação educativa; e o desenvolvimento rural sustentável, como meta a ser alcançada no médio e longo prazos. Fundamentando-se nesses quatro pilares, a EFAT organiza seus recursos didáticos de acordo com essa linha pedagógica da alternância, ou seja: - Plano de Estudos – que são temas geradores para serem pesquisados em casa ou no meio, temas esses que 242 contaram com a partipação dos próprios alunos e das famílias na sua elaboração; - Colocação em Comum – o termo é impróprio, mas significa compartilhamento ou socialização, no tempo escola, dos resultados das investigações feitas pelos alunos no seu período de formação no tempo casa; - Caderno da Realidade – trata-se do caderno de registro, ou fichário, que acumula as informações recolhidas durante esse tempo em que permance em casa e suas observações relativas ao debate estabelecido com os colegas e o monitor no tempo escola; - Caderno didático – é o material didático orientador, norteador da ação do estudante; ele contém metodologia própria e é elaborado a partir do Plano de Estudos, reivindicando uma abordagem mais profunda de cada uma das disciplinas; - Visitas pedagógicas às famílias – trabalho do monitor, que consiste em fazer da família uma parceira importante na formação do estudante da EFA. Sem o acompanhamento pedagógico da família um dos pilares do projeto desmorona; - Visitas técnicas às famílias – trabalho também do monitor, que consiste em observar práticas do cotidiano da família e promover intervenções; - Caderno de acompanhamento – meio de comunicação ente EFAT e a família, também utilizado como instrumento avaliação, que até pode substituir o boletim e o diário escolar; - Intervenções Externas – são palestras, cursos e seminários realizados a partir dos temas do Plano de Estudo; - Estágios – aprendizagem pela prática do estudante em local diferente daquele ao qual já está acostumado, como 243 a própria localidade em que vive; - Projeto profissional – horizonte que deve nortear as ações futuras e concretizar o plano de estudos e o exercício profissional. Apesar disso, no entanto, a EFAT acabou se tornando uma escola muito próxima às do sistema convencional. A luta daqueles que a querem independente é para que ela se constitua como escola comunitária, pois assim ela poderá aprimorar os projetos comprometidos com os postulados da Pedagogia da Alternância, constituindo novas parcerias para financiar alguns dos projetos que se deseja implantar na escola. Segundo o presidente e a secretária da associação, a EFAT não consegue outros recursos financeiros de ONGs, entidades governamentais e outros, por causa da vinculação da escola com a prefeitura. Portanto, o título de escola comunitária poderia permitir a ASFAT ampliar e desenvolver seus projetos, através da adoção de novos parceiros para financiar as atividades da escola e da comunidade. Além disso, a ASFAT teria maior autonomia na gestão da escola, podendo desvincular-se das indesejáveis influências político-partidárias a que inevitavelmente se liga a administração municipal. 6. Conclusão São muito variadas as experências concretas das EFAs e, em muitos casos, os resultados são avaliados como muito positivos. No caso em pauta, no entanto, os limites se revelaram bastante comprometedores e essa é uma adertência necessária para que se evite uma expansão desordenada que jogue por terra a inovadora proposta de uma educação sntonizada com os interreses das pessoas do meio rural. Quais foram, então, os principais limites e desafios que a escola enfrentou e continua enfrentando atualmente? Um deles está no financiamento, o que faz da ASFAT, a Associação mantenedora da escola, uma entidade que pouco poder 244 tem na condução de seus destinos. Como o financiamento é de responsabilidade da prefeitura, a adminsitração municipal tem ignorado sistematicamente as especificidades do projeto pedagógico, submetendo, por exemplo, a escolha da direção aos mesmos mecanismos de recrutamento político dos cargos de confiança e a escolha dos monitores ao mesmo processo de escolha dos professores da rede convencional. Daí decorrem outros problemas, como submeter o projeto pedagógico a um corpo de profissionais que, em sua maioria, nunca ouviram falar em Pedagogia da Alternância. Mesmo com os projetos de formação de monitores, o que permite ampliar a qualificação de pessoal, a cada ano todos eles entram na mesma fila geral de recrutamento do conjunto dos professores do município, o que significa que monitores formados podem ir para outras escolas e a EFAT receba, mais uma vez, pessoal não qualificado para seu projeto. Além disso, como a maior parte dos monitores não tem dedicação exclusiva, o tempo que eles deveriam dedicar às visitas pedagógicas e às visitas técnicas às famílias é o mesmo que eles dedicam a outras escolas convencionais onde atuam. Decorre daí que a EFAT é uma associação de famílias, pessoas e entidades preocupadas com o problema do desenvolvimento rural e da educação integral dos filhos dos agricultores, mas a prática se revela muito distante do projeto. Mesmo que sejam superados esses limites políticoinstitucionais, há outros, entretanto, tão signficativos quanto complexos. Do ponto de vista didático-pedagógico a Pedagogia da Alternância sustenta-se no eixo de formação família-escola. Mesmo que todos os problemas da escola sejam solucionados, há os limites próprios aos estudantes, às famílias, ao meio sociocultural e econômico no qual estão inseridos. Mesmo quando os monitores são qualificados para a tarefa, suas visitas pedagógicas e técnicas confrontam a condição real que ordena a vida dos estudantes e suas famílias: precariedade das condições de vida, necessidade da utilização da força de trabalho dos jovens na reprodução da vida familiar, pouca ou nenhuma escolaridade dos pais e/ou pouca ou nenhuma capacidade e/ou interesse dos pais em fazer sua contrapartida no projeto pedagógico, dentre outros fatores. 245 Como foi dito, a região do Vale do Jequitinhonha caracteriza-se pelos baixos indicadores sociais e econômicos, o que leva grande número de pais de família à migração, forçando ainda mais a entrada das crianças e adolescentes na luta pela sobrevivência. Sem poder dispor de tempo livre para o investimento na formação, mandar as crianças de volta à casa apenas alivia a necessidade de mão-de-obra familiar nas lides cotidianas. Sem dispor de tempo e/ou interesse para estudar a proposta pedagógica juntamente com os filhos, os pais não farão nada além do que fariam se os filhos estivessem numa outra escola qualquer. Sem se predispor a mudar hábitos e costumes, os pais apenas entrarão em conflito com monitores e com os próprios filhos quando, por ocasião das visitas técnicas, tiverem que confrontar o modo como agem com o modo como deveriam agir. Somem-se a isso as turmas grandes, as distâncias a serem percorridas pelos monitores, as precárias condições das estradas de acesso às comunidades distantes etc. Dessa forma, ficam mais perguntas que respostas nesse primeiro investimento na tentativa de explicitar as possibildiade e limites da Pedagogia da Alternância, na formação plena de cidadãos adaptados à vida no campo, profissionais aptos a promover o desenvolvimento regional sustentável. Não estaria a Pedagogia da Alternância reproduzindo os mesmos vieses idealistas que pretende combater ao pensar sua praxis pedagógica? Não estaria ela sendo muito romântica ao propor um modelo pedagógico adaptável às circunstancias sem considerar o que as circunstâncias podem fazer ao modelo pedagógico? Como abrir-se para atender às especificidades do meio sem comprometer os fundamantos filosóficos e pedagógicos da alternância? Não há dúvida de que se trata de experiência que não pode mais ser desconsiderada em sua concepção, suas práticas e seus efeitos, sobretudo, quando se busca uma alternativa de escolarização adequada ao meio rural de regiões francamente subdesenvolvidas. Mas é preciso ficar atento ao modo como várias experiências escolares estão ganhando forma em nome da Pedagogia da Alternância para evitar que, ao invés de fortalecer a proposta, elas acabem por desqualificá-la por inteiro. 246 Referências BEGNAMI, João Batista. Experiência das Escolas Famílias Agrícolas - EFAs do Brasil. In: Pedagogia da Alternância: Formação em Alternância e Desenvolvimento Sustentável. Brasília: UNEFAB, 2002. BULISANI, E. A. et alli. A Pesquisa em Agricultura Familiar. In: Pontes Para o Futuro. CONSEPA: Campinas, 2005. CALVÓ, Pedro Puig. Introdução. In: Pedagogia da Alternância – alternância e desenvolvimento. Primeiro Seminário Internacional. Salvador: Dupligráfica Editora, 1999. CALIARI, Rogério. Pedagogia da Alternância e desenvolvimento local. Lavras, UFLA, 2002. Dissertação (Mestrado em Administração: Gestão Social, Ambiente e Desenvolvimento). FORGEARD, G. Alternância e Desenvolvimento do Meio. In: Pedagogia da Alternância – alternância e desenvolvimento. Primeiro Seminário Internacional. Salvador: Dupligráfica Editora, 1999. GIMONET, J. C. Nascimento e desenvolvimento de um movimento educativo: as Casas Familiares Rurais de Educação e de Orientação. In: Pedagogia da Alternância – alternância e desenvolvimento. 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Pedagogia da Alternância: alternância e desenvolvimento. I Seminário Internacional, Salvador, nov. 1999. UNEFAB. Pedagogia da Alternância: Formação em alternância e desenvolvimento sustentável. II Seminário Internacional, Brasília, nov. 2002. 248 Anexo QUADRO 1 – Distribuição e Abrangência das EFAs em Minas Gerais Fonte: Amefa, 2006. 249 250 8 DESMATAMENTO NA BACIA DO MUCURI EM MINAS GERAIS: CAUSAS HISTÓRICAS E PROCESSOS RECENTES1 Miguel Fernandes Felippe2 Marcos Antônio Nunes3 Justine Bueno4 1. Introdução Um dos elementos do quadro natural de maior susceptibilidade à ação antrópica é a vegetação. A ocupação humana em um determinado espaço é, invariavelmente, precedida pela retirada da cobertura vegetal. (GUERRA e MARÇAL, 2006) Assim, “o desmatamento foi e continua a ser processo corrente para a ocupação inicial das terras”. (CHRISTOFOLETTI, 1995. p. 339). A ocupação no interior do país, bem como o crescimento das cidades e a reestruturação espacial ocorrida nas imediações urbanas contribuíram para a retirada da cobertura vegetal natural nas diversas regiões brasileiras. Na bacia do Mucuri, o processo foi semelhante. A vegetação foi descaracterizada, restando somente algumas áreas esparsas de remanescentes florestais. A cobertura vegetal chama atenção por sua grande importância para a sustentação do equilíbrio dos sistemas ambientais. As plantas, por serem organismos autotróficos, são a base dos nichos O Instituto de Geociências Aplicadas, vinculado à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Governo de Minas Gerais, com o patrocínio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), é o responsável pela execução do projeto endogovernamental: “Diagnóstico Socioambiental da Bacia do Mucuri em Minas Gerais: geohistória, (re)estruturações espaciais, desenvolvimento humano e econômico” – DEG 2338/07. 2 Geógrafo, Mestrando em Geografia e Análise Ambiental – IGC/UFMG. 3Geógrafo do Instituto de Geociências Aplicados, Mestre em Geografia e Organização do Espaço-IGC-UFMG. Coordenador do “Projeto Mucuri”, supracitado. 4 Bolsista de iniciação científica e tecnológica do “Projeto Mucuri”, supracitado. 1 251 ecológicos terrestres, por isso promovem relações bióticas que sustentam a vida no planeta. (TROPPMAIR, 2004) Ademais, as características de solo, clima, hidrografia e outros elementos geossistêmicos são fortemente influenciados pela cobertura vegetal. Além disso, a vegetação influencia os processos geomorfológicos, contribuindo para o modelado da paisagem. Ao diminuir a intensidade dos processos erosivos e proteger o solo da ação das gotas de chuva, a vegetação também favorece a infiltração das águas, que por sua vez alimenta o nível freático e, assim, mantém a dinâmica hidrológica. (THORNES, 1990) Da mesma forma fornece matéria orgânica ao solo, o que propicia a conservação dos ecossistemas. Desta maneira, pode-se afirmar que a vegetação é um elemento substancial do geossistema, relacionando-se de forma direta ou indireta a todos os outros, o que resulta na estruturação da paisagem e na definição de sua qualidade ambiental. (PASSOS, 1998) Com base na importância da vegetação e como esta é alterada ao longo do tempo, objetiva-se realizar um estudo espaço-temporal acerca da retirada da cobertura vegetal, na porção mineira da bacia do rio Mucuri, a partir dos remanescentes florestais atuais. Além dos elementos geohistóricos que influenciaram o desmatamento, as últimas duas décadas foram priorizadas. A multiescalaridade dos processos foi abordada em um segundo momento, alcançando, especificamente, cada sub-bacia. O principal procedimento metodológico foi o mapeamento dos remanescentes florestais na bacia do Mucuri nos anos de 1989 e 2008. A partir de técnicas de geoprocessamento, foi feita a seleção de imagens dos satélites Landsat-5 e CBERS-2 e, posteriormente, o georreferencia-mento, o tratamento das imagens e a vetorização manual dos fragmentos de mata. Concomitantemente, foi realizada uma pesquisa bibliográfica a respeito dos elementos históricos que configuraram na espacialização atual da vegetação nativa. Deste modo, permite-se uma aproximação aos processos pretéritos que guiaram a reestruturação espacial na porção mineira da bacia do Mucuri e, conseqüentemente, a retirada da cobertura vegetal. 252 2. Caracterização geográfica da bacia do Mucuri: A bacia do Mucuri drena os estados de Minas Gerais e Bahia. A porção mineira, foco do trabalho, engloba total ou parcialmente o território de 16 municípios. Hidrograficamente é formada pela confluência dos rios Mucuri do Sul, cujas nascentes estão no município de Malacacheta, e Mucuri do Norte, com nascentes no município de Ladainha. A área de estudo é de aproximadamente 14 mil km², composta por 30 sub-bacias de primeira ordem, além de uma infinidade de pequenos canais conectados diretamente ao rio principal. Os climas predominantes são semi-úmidos a úmidos, com variação do quente ao subquente. Apresenta períodos de seca de quatro a cinco meses na porção nordeste-sudoeste e de um a três meses no centro-leste, com temperaturas variando, em média, de 15 a 18 graus centígrados. (IBGE, 2002) Como principais litologias, destacam-se rochas ígneas de composição félsica e máfica de diferentes períodos geológicos, localizadas próximas a rochas que sofreram metamorfismo em médio grau, correspondendo ao gnaisse. (CPRM, 2004) Pedologicamente, a bacia apresenta diversos tipos de solos, em que se destacam, como principais, os Argissolos (PA Distrófico, PV Eutrófico, PVA Distrófico) e Latossolos (LA Distrófico, LVA Distrófico). (IBGE, 2001) A vegetação original, composta majoritariamente por Florestas Estacionais (IBGE, 2004), foi ao longo do tempo altamente degradada, restando somente algumas porções com remanescentes florestais, ainda que estes estejam descaracterizados. As poucas áreas de matas existentes estão em grande parte ilhadas em meio a pastagens e cultivos. O espaço agrícola é configurado em grande parte por pequenos cultivos excetuando-se a plantação de cana e eucalipto na porção centro-leste. A cobertura predominante corresponde à pastagem, constantemente associada à silvicultura. As pequenas propriedades, provavelmente de agricultura familiar, localizam-se principalmente na porção nordeste-sudoeste. 253 As principais economias da bacia são os municípios de Teófilo Otoni, Carlos Chagas e Nanuque, porém, o crescimento econômico da bacia tem sido, nos últimos anos, abaixo da média estadual, o que tem estimulado a emigração. De acordo com dados do IBGE (2007), a maior população municipal pertence a Teófilo Otoni, com 126.895 habitantes, no outro extremo está o município de Umburatiba, com apenas 2.776. Ademais, a região é relativamente pobre, com indicadores econômicos e sociais variando de médio a baixo grau. (PNUD, 2000) 3. Geohistória e desmatamento: atividades econômicas no contexto dos impactos ambientais na Bacia do Mucuri Os pesquisadores que se dedicam à historiografia mineira estão inteirados da escassez de estudos relacionados à bacia do Mucuri. Muitas vezes, ela é abordada de forma integrada com as áreas circunvizinhas, notadamente o Jequitinhonha. Em particular, apontar com exatidão fatos e épocas que influenciaram o desmatamento na bacia torna-se um desafio hercúleo. Entretanto, pelo menos dois importantes fatores permitem realizar uma periodização que possa contribuir para o estudo da geohistória do Mucuri: o primeiro e o mais importante é o período que compreende a atuação da Companhia do Mucuri; e segundo, a instalação da Estrada de Ferro Bahia e Minas. A bacia do Mucuri foi uma das primeiras regiões brasileiras a ser percorrida pelos bandeirantes, no entanto, uma das últimas a conhecer a civilização. Dois importantes fatores contribuíram para que ela fosse desbravada: sua proximidade com a Costa do Descobrimento e a curiosidade dos colonizadores à procura do ouro e das pedras preciosas. Com esse intuito, algumas expedições cruzaram a região, sendo a primeira a de Martins Carvalho, por volta de 1550. Presume-se que ele percorreu o caminho dos índios, por onde entravam os portugueses, vindos de Porto Seguro. Mais tarde, em 1573, foi a vez de Sebastião Fernandes Tourinho; e, em 1580, a de Antônio Dias Adorno. Todavia, somente no século XVII que o primeiro propri254 etário se fixou na região, João da Silva Guimarães, dedicando-se às lavouras. (IBGE, 1959) Contudo, foi através de Teófilo Benedito Otoni que o Mucuri tornaria alvo de interesses econômicos mais relevantes. Filho de tropeiro, Otoni conhecia os empecilhos relacionados à produção e ao abastecimento das regiões setentrionais da província mineira, por isso reivindicava: “vias de comunicação!” (DUARTE, s.d., p. 3) Em 1847, foi fundada a Companhia de Navegação e Comércio do Mucuri para explorar o leito do rio, que proveria um caminho mais curto até o Oceano Atlântico. O Vale do Mucuri faria a conexão entre o litoral e o norte da Província de Minas. A região a ser beneficiada pela ligação com o mar era uma grande produtora de algodão: Minas Novas. (DUARTE, s.d., p. 9) Para isso, Otoni contou com o incentivo do governo imperial e do governo da província de Minas Gerais, inclusive para a utilização de mão-de-obra estrangeira, já que era contrário à escravidão. No entanto, para que o seu projeto fosse adiante, era preciso vencer os perigos da mata e apaziguar os índios botocudos, para que o primeiro vapor percorresse as águas do Mucuri. 3.1. Colonos, extrativismo vegetal e produção de café Antes mesmo da colonização, a bacia do Mucuri já era cobiçada tanto pela fertilidade de suas terras quanto pela sua exuberante natureza, o bioma da Mata Atlântica; caracterizado pela abundância hídrica e densas matas. Ao negociar com os índios o acesso ao mar, Otoni iniciava ali um longo período de colonização estrangeira5 da bacia, que resultaria na primeira atividade econômica de grande importância: o extrativismo vegetal. Aproximando-se das populações indígenas de forma nãoviolenta, Otoni conseguiu penetrar nos territórios habitados pelos A preferência de Otoni em “germanizar o Vale do Todos os Santos” ficou explícita no Relatório aos Acionistas, da Companhia de Navegação do Mucuri. (DUARTE, 2002a, p. 35-36) 5 255 botocudos e obteve deles a permissão para empreender a construção das estradas, a criação de fazendas e, mesmo, a fundação da freguesia de Filadélfia, atual cidade de Teófilo Otoni. Na floresta, os conquistadores passaram a buscar madeira para construções e lenha para as casas, desflorestando e realizando queimadas em largas áreas para o plantio agrícola ou pastagem dos animais de carga e transporte. (DUARTE, 2002b) À medida que o desmatamento avançava, o Mucuri transformava-se em “roça de tocos”.6 Queimava-se para o plantio e depois se colhia algumas safras. A fertilidade das terras logo se esgotava. Depois eram destinadas a pastagens. A relativa abundância de terras permitiu que esse ciclo vigorasse por longo tempo no Mucuri. Tais práticas conduziriam, irremediavelmente, à exposição contínua dos solos. Isso porque os colonos utilizavam formas tradicionais de cultivo, e não havia o emprego de técnicas, tais como plantio em nível, rotação de culturas, preservação das matas de topos, etc. A colonização pioneira, ao aproveitar as áreas mais aplainadas e adjacentes às calhas dos rios Todos os Santos e Mucuri, estendeuse de oeste a leste, no sentido da estrada que ligava Filadélfia (atual Teófilo Otoni) a Santa Clara (Nanuque). À medida que a civilização avançava, a biodiversidade declinava. Os animais que povoavam a mata e serviam de caça aos índios e colonos não resistiriam ao avanço da civilização. É razoável afirmar que, desprotegidos, índios e animais recuavam para os remanescentes mais remotos da presença do colonizador. Enquanto a existência das matas garantia matéria-prima para as serrarias e produção de madeira para a construção de casas, os espaços conquistados junto às florestas assegurariam a extensão da agricultura de subsistência e da principal lavoura que alvoreceu com a colonização do Mucuri: o café. Atribui-se o início do cultivo de café no Mucuri a Maria Rosalina de Oliveira, filha de um dos amigos de Teófilo Otoni que 6 “A lavoura começa a ser feita com derrubada de mata; depois vem a queima dos troncos e plantio intercalado entre os tocos remanescentes: daí vem o nome roça de tocos, ou de coivara, denominação dada à lenha empilhada para queimar” (RIBEIRO, 2000, p. 187). 256 vieram habitar Filadélfia. Em 1853, duas mudas de café foram plantadas às margens do rio Todos os Santos, na Fazenda Paraíso. Porém, os primeiros grandes cafeicultores em Filadélfia foram colonos estrangeiros, que produziam para exportarem para o Rio de Janeiro e Bahia. As exportações anuais chegavam a quase um milhão de arrobas.7 (FERREIRA, 1934) Fundada numa época em que o setor minerador no Jequitinhonha estava em crise, a cidade de Teófilo Otoni abrigou trabalhadores daquela região. Eram mineiros, em sua maioria, que procuravam terras férteis e que estavam esperançosos em serem ressarcidos através das atividades agrícolas no Mucuri. (FERREIRA, 1934) A implantação das lavouras de café na antiga Filadélfia foi o fato mais relevante que explica o desmatamento nos arredores da cidade. Não obstante as lavouras de café ainda se concentrarem na porção ocidental da bacia, as áreas plantadas dominavam a paisagem da região até o início dos anos 60, período da crise da economia cafeeira. O governo federal, em 1962, determinou a erradicação das lavouras que estavam fora dos padrões do extinto Instituto Brasileiro do Café e fora do zoneamento agrícola. A situação não foi mais drástica, dada à diversidade econômica da região de Teófilo Otoni, que tem nos setores pecuarista, comércio e serviços outros pilares para sua sustentação. 3.2. Expansão da pecuária e a ocupação das áreas setentrionais – a ferrovia Bahia e Minas A tradição pecuarista que hoje a bacia do Mucuri ostenta, na verdade, é o produto da colonização européia associada ao “transbordamento” dessa atividade a partir da bacia do Jequitinhonha. Essa transposição efetuou-se graças à grande seca de 1890, que estimulou a migração jequitinhonhense para o vale do rio Pampã, afluente do Mucuri. A cidade de Joaíma foi o centro distribuidor e para ela 7 O equivalente a 245 mil sacas de 60 quilos. 257 afluíram flagelados de Salinas, Araçuaí, Itinga, etc. (SANTOS, 1970) Então, fluíram noite e dia, hordas imensas de romeiros, sem enderêço (sic) certo, mas destinando-se às paradisíacas terras do sul, onde se podia sentir o aroma suavizador das matas e enxergar o borbulhar das águas das fontes. (SANTOS, 1970, p. 15) A migração possibilitaria a formação do principal caminho que ligaria o norte da bacia ao eixo sul, compreendido pela estrada Filadélfia – Santa Clara. A colonização do rio Pampã daria origem às atuais cidades de Fronteira dos Vales, Águas Formosas e Crisólita, localizadas às suas margens. Entretanto, a intensificação do tráfego de pessoas no vale do Pampã se efetivaria após a construção da Estrada de Ferro Bahia e Minas8. Vários povoados se desenvolveram às margens da ferrovia: Mayrink, Urucu, Presidente Pena, Francisco Sá, Crispim Jacques, Pedro Versiani, etc. Por conseguinte, a vegetação era retirada, dando lugar às novas funções econômicas das terras. 3.3. A marcha do eucalipto e da cana-de-açúcar Certamente, uma das maiores preocupações das autoridades públicas e civis que planejam a bacia do Mucuri diz respeito ao avanço da silvicultura do eucalipto. Não apenas pelas efervescências políticoambientais que ela abriga, mas também pelos severos impactos sociais advindos com o êxodo rural e a alteração da estrutura fundiária. A silvicultura no Mucuri vem ampliando sua área a partir da borda leste, nos municípios de Serra dos Aimorés, Nanuque, Carlos Chagas e Umburatiba. As áreas de pastagens, aparentemente, cedem cada vez mais espaço aos eucaliptais e à cana-de-açúcar. O avanço do eucalipto confronta-se com as mudanças de ecossistemas, de características físicas e regimes pluviométricos diferenciados. Conhecê-los adequadamente para permitir a instalação das planta8 A idéia da Estrada de Ferro ligando Minas Gerais ao Porto de Caravelas esteve presente, mas só em 1880, através do engenheiro Miguel de Teive e Argolo, que o projeto foi realizado. (NOGUEIRA FILHO, 1989) A Estrada foi extinta em 1961. 258 ções é condição imperativa. Espera-se um manejo adequado das florestas, que permita o crescimento econômico, mas que, concomitantemente, preserve o meio ambiente. (GUERRA, 2006) Por fim, observa-se a introdução da cultura da cana-deaçúcar, em alguns casos intercalada com o eucalipto, ainda na porção leste da bacia. Sua inserção no Mucuri coincide com o discurso oficial que prega a sustentabilidade ambiental e o emprego de fontes renováveis de energia, através da produção de álcool e do biodiesel. Ao contrário do eucalipto, a cultura da cana absorve relativamente mais mão-de-obra, porém, muitas vezes seu corte é acompanhado por queimadas, alterando as características pedológicas e lançando poluentes na atmosfera e hidrosfera. 4. Retirada dos remanescentes florestais da bacia do Mucuri: processos recentes Destarte os processos geohistóricos que promoveram a ocupação e a retirada de parte significativa das florestas na bacia do Mucuri, nas últimas décadas, o desmatamento continuou a avançar. A preocupação com esse processo emerge, pois a vegetação é considerada uma síntese dos processos estruturadores do geossistema, o que indica, indiretamente, a qualidade ambiental de uma localidade. (THORNES, 1990; PASSOS, 1998) Assim, da cobertura original da bacia do Mucuri, restam somente alguns remanescentes florestais fragmentados, intercalados, sobretudo, às pastagens, aos cultivos e à silvicultura. De acordo com a classificação do Mapa de Vegetação do Brasil (IBGE, 2004), a bacia do Mucuri engloba quatro principais tipos de vegetação, todas com fitofisionomia florestal. A porção leste encontrava-se coberta pela Floresta Ombrófila Densa, marcada por fanerófitos, associados às lianas e epífitas. A Floresta Ombrófila Aberta localiza-se em uma pequena faixa na porção central da bacia, sendo composta por árvores mais espaçadas e com estrato arbustivo pouco denso. A principal cobertura original era a Floresta Estacional Semidecidual, distribuída por toda a bacia do Mucuri. Por 259 fim, a Floresta Estacional Decidual ocorria em pequena porção no norte da bacia. Por isso, de uma forma geral, pode-se considerar como remanescentes florestais as áreas cobertas por vegetação de matas nativas, em seus diversos estágios sucessionais, que possuem aspecto fitofisionômico semelhantes ao das florestas originais. Porém, no atual estágio de degradação é relativamente complexa a diferenciação entre as regiões fitoecológicas, posto que os fragmentos encontram-se sensivelmente alterados. Um importante procedimento de avaliação das condições vegetacionais em escala regional é o cálculo das taxas de cobertura florestal e de desmatamento. Além de possibilitar a comparação entre diferentes locais, sua espacialização poderá contribuir para o direcionamento de políticas públicas de conservação ambiental. Por isso, mais do que mostrar os processos ocorridos nas últimas décadas, buscase apontar os locais preferenciais para investimentos em meio ambiente. 4.1. Espacialização da vegetação florestal remanescente (1989 e 2008) A interpretação do Mapa 1 mostra que atualmente há uma clara diferença entre o leste e o oeste da bacia. No centro-leste existem pouquíssimos fragmentos de mata. Além da pouca quantidade, esses remanescentes são, também, muito pequenos. As culturas de cana-de-açúcar e eucalipto contribuem para a compreensão dessa configuração espacial das matas. A partir do oeste de Carlos Chagas, abrangendo os municípios de Pavão, Novo Oriente de Minas e parte de Teófilo Otoni, há uma mudança gradual na distribuição espacial das matas. Os fragmentos tornam-se mais numerosos e, sobretudo, maiores. Todavia, mesmo nessa porção da bacia, ainda são vastos os espaços sem qualquer fragmento de mata. Indubitavelmente, a porção da bacia de maior cobertura florestal é o extremo oeste. As áreas desses remanescentes são as 260 maiores encontradas na bacia. Porém, a continuidade espacial desses fragmentos é interrompida por pequenas áreas desmatadas. Verifica-se, ainda, no oeste da bacia, que as mais expressivas áreas de mata se encontram nas médias e altas vertentes. Por outro lado, as margens dos principais canais de drenagem encontram-se desmatadas. Os municípios de Caraí, Catuji e Itaipé apresentam uma espacialização distinta da cobertura de matas. Nas proximidades do interflúvio noroeste da bacia do Mucuri, há uma expressiva presença de remanescentes florestais. Entretanto, a porção leste do município de Caraí, o centro de Catuji e o sul de Itaipé, por outro lado, evidenciam grandes áreas desmatadas. O extremo norte da bacia também possui uma configuração específica. Chama atenção a continuidade espacial dos fragmentos que existem nessa região, apresentando grandes áreas de remanescentes florestais. Porém, nas proximidades das sedes, as matas não são encontradas, excetuando-se Crisólita, que apresenta uma mancha de floresta adjacente ao seu centro urbano. O Mapa 2 apresenta, para o ano de 1989, uma espacialização das matas consideravelmente diferente daquela observada para 2008. Porém, a diferenciação entre leste e oeste, já nesta data, é perfeitamente visível. Outra importante menção deve ser feita sobre as margens do rio Mucuri: na porção centro-leste, praticamente inexistem remanescentes florestais em suas margens, bem como em alguns de seus afluentes. No oeste da bacia, a taxa de cobertura por matas é consideravelmente maior. Porém, a grande área que os remanescentes ocupam é extremamente fragmentada. Em princípio, pode-se dizer que as matas nessa porção, no ano de 1989, estavam ainda mais fragmentadas que em 2008. Essa característica – grande área coberta por matas em pequenos fragmentos – pode ser estendida ao noroeste da bacia, que possui cobertura por matas superior a apresentada em 2008. O norte da bacia, além da grande área vegetada em 1989, apresenta continuidade espacial das matas. Nas proximi261 dades do interflúvio noroeste isso fica muito claro. Para uma comparação mais detalhada foi realizada a estatística descritiva dos dois mapas produzidos. Prioriza-se, além do aspecto quantitativo, a distribuição espacial das áreas de mata que não ocorre de forma homogênea na bacia. A Tabela 1 sintetiza os resultados encontrados. O número de fragmentos de vegetação decaiu a uma taxa de 2,51% a.a., promovendo, ao final do período, uma redução de mais de mil unidades. Em termos geográficos, isso significa que um grande número de fragmentos de remanescentes vegetais deixou de existir nesse período. Porém, ao analisar os resultados das médias, percebe-se que houve um crescimento de 32%, o equivalente a uma taxa de 1,48% a.a. Mapa 1: Bacia do Mucuri-MG: Remanescentes Florestais – 2008. 262 Mapa 2: Bacia do Mucuri-MG: Remanescentes Florestais – 1989.99 1-Calha do Rio Mucuri; 2-Córrego Barreado; 3-Córrego Cristal; 4-Córrego das Voltas; 5-Córrego do Ene; 6-Córrego do Oito; 7-Córrego do Sangue; 8-Córrego Jacaré; 9Córrego Mutum; 10-Córrego Novo; 11-Córrego Ponciano; 12-Córrego Quatorze; 13Córrego São Julião; 14-Ribeirão da Areia; 15-Ribeirão das Pedras; 16-Ribeirão do Gavião; 17-Ribeirão do Pavão; 18-Ribeirão Mandaçaia; 19-Ribeirão Mestre Campos; 20Ribeirão Pedra D'água; 21-Rio Manso; 22-Rio Mucuri do Norte; 23-Rio Mucuri do Sul; 24-Rio Pampã; 25-Rio Pau Alto; 26-Rio Preto; 27-Rio Todos os Santos; 28-Rio Urucu; 29-Córrego da Lama; 30-“Sem nome”. 9 263 A primeira conclusão que se pode chegar ao avaliar esses parâmetros é que os fragmentos suprimidos no período de 1989 a 2008 foram aqueles de menor área. Isso resultou em uma queda no número de unidades, mas, em contrapartida, em um aumento da área média e mediana, posto que apenas os fragmentos maiores foram preservados. Isso ocorre devido à maior facilidade de corte das menores áreas e também à falácia de que o “tamanho” do fragmento de vegetação determina sua “importância” ambiental. Por outro lado, a área do maior fragmento foi reduzida drasticamente sob uma taxa de -5,62% a.a. Isso é devido, principalmente, à pressão que o ambiente sofreu na porção noroeste e oeste da bacia, onde se encontram as áreas de matas de maior contigüidade. Apesar dessa considerável diminuição, as grandes manchas de florestas permanecem, todavia com tamanho reduzido. Assim, chega-se à soma total das áreas cobertas por remanescentes florestais na bacia do Mucuri. Em 1989, existiam 3.744,35 km² de matas, que foram reduzidas a 3.056,27 km² em 2008. Isso corresponde a uma taxa anual de desmatamento de 1,06% a.a. Concomitantemente, em termos percentuais podese afirmar que a taxa de cobertura vegetal, em 1989, era de 25,33%, decaindo para 20,66% em 2008, um decrescimento de 18,44%. a) O desmatamento nas sub-bacias do rio Mucuri A bacia hidrográfica é a unidade excelente de estudos, que visam ser incorporados ao planejamento ambiental, sendo sugerida pela lei federal 9.433/97 como unidade básica de gestão de recursos hídricos. Em relação ao meio físico, os impactos promovidos em determinado local surtirão conseqüências, diretas ou indiretas, na porção inferior de sua bacia hidrográfica; o chamado efeito montante-jusante. (CHORLEY, 1962) Em concordância, busca-se aqui uma verticalização que permita ampliar as aná264 lises sobre o desmatamento da bacia do Mucuri, tomando como unidade básica de estudo suas sub-bacias. A Tabela 2 sintetiza as estatísticas dos remanescentes florestais nas sub-bacias do Rio Mucuri, apresentando a área florestada em 1989 e 2008, bem como o crescimento no período e a taxa de desmatamento. Após a vetorização manual dos fragmentos florestais encontrados na bacia do Mucuri, foi realizada a segmentação destes por sub-bacia. Por fim, as áreas e taxas foram calculadas. As maiores taxas de desmatamento foram registradas nas sub-bacias da porção centro-leste do rio Mucuri, justamente aquela verificada por ter sofrido maior pressão ambiental. A bacia do Córrego São Julião (município de Teófilo Otoni) registra a maior taxa de desmatamento, 4,7% a.a., o que representa uma queda de quase 60% em relação à área dos remanescentes em 1989. Crítica também é a taxa de desmatamento da bacia “Sem Nome” (3,9% a.a.), que perdeu mais da metade de sua área de matas no período avaliado. 265 Tabela 2 - Desmatamento dos Remanescentes Florestais das sub-bacias do Rio Mucuri Porém, em termos absolutos destaca-se a bacia do Rio Pampã, onde foram retirados 337,52 km² de remanescentes florestais, o que representou praticamente metade da área florestada em 1989. O desmatamento foi mais substantivo na porção norte da ba266 cia (Fronteira dos Vales e Águas Formosas), posto que o sul, já em 1989, apresentava-se bastante degradado. Na bacia do Córrego Barreado não foi encontrado nenhum remanescente florestal, o que a coloca com aquela de maior expressividade do desmatamento. Ainda mais impressionante é verificar que desde a primeira data de análise não havia qualquer fragmento de vegetação nativa. Sua localização, no extremo leste da bacia do Mucuri, fronteira dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, justifica essa configuração. Essa foi a área preferencial de expansão da cana-de-açúcar, encontrando-se atualmente, totalmente ocupada por cultivos, pastagem e raras capoeiras. Deve-se considerar também a limitação da metodologia aplicada, que não é capaz de distinguir fragmentos de vegetação com área inferior a 400 m². Porém, no trabalho de campo realizado, também não foram registrados remanescentes florestais na bacia do Córrego Barreado. Por outro lado, ressalta-se que 11 sub-bacias apresentaram um crescimento positivo da área dos fragmentos de vegetação. A maioria destas encontra-se na porção nordeste-sudoeste da bacia do Mucuri. É provável que a regeneração de áreas, que no mapa de 1989 foram consideradas como capoeira, seja responsável por esse aumento de florestas dessas sub-bacias. Destacam-se, em relação ao crescimento positivo dos fragmentos de vegetação, as bacias do Córrego Mandaçaia e do Rio Mucuri do Sul, bacias limítrofes, ambas no extremo sudoeste. A primeira apresentou um acréscimo de 40,8% na área dos remanescentes. Já a bacia do Rio Mucuri do Sul obteve um aumento das áreas de mata da ordem de 30,3%. Por fim, a verificação de sub-bacias do Mucuri que apresentam crescimento positivo na área dos remanescentes florestais é um alento em um panorama crítico de degradação ambiental. É necessário desenvolver estudos verticais que possibilitem gerar propostas de manejo e conservação do meio ambiente na bacia do Mucuri, buscando sempre a inversão da tendência do desmatamento. 267 5. Considerações finais A história de ocupação da bacia do Mucuri, como se observou, foi marcada pela retirada da cobertura vegetal original. Os processos ocorridos nos séculos passados deixaram cicatrizes na paisagem, as quais ainda hoje podem ser vistas. Da mesma forma, nas últimas duas décadas, o desflorestamento na bacia do Mucuri foi recorrente, atingindo, sobretudo, as sub-bacias do leste, como as dos córregos São Julião e Barreado e a do rio Pampã. A porção oeste da bacia, porém, ainda apresenta uma proporção significativa de remanescentes florestais, abrigando parte considerável da biodiversidade do Mucuri. Ao extrapolar os dados obtidos para os anos de 2008 e 1989, pode-se afirmar que, mantendo a taxa de desmatamento de 1,06% a.a., em 10 anos, o percentual de cobertura nativa na bacia do Mucuri decairia a, aproximadamente, 18%. Para um cenário futuro de 50 anos, prevê-se uma taxa de cobertura de apenas 12% e, em 100 anos, caso não haja uma mudança severa no tratamento com o meio ambiente da bacia do Mucuri, restará apenas 7% da área total da bacia coberta por remanescentes florestais. É de suma importância que iniciativas de recuperação ambiental e reflorestamento sejam estimuladas, posto que não há um programa regional de recomposição da vegetação em grande escala. Além disso, formas sustentáveis de manutenção da qualidade de vida da população devem ser garantidas, para que os processos de degradação sejam controlados. Assim, será preciso um esforço coletivo entre o governo, organizações não-governamentais e população para que a bacia do Mucuri tenha primazia nos projetos que resultem na recomposição de suas matas nativas. Então, será possível promover a melhoria da qualidade ambiental da bacia em concomitância a seu crescimento econômico. 268 Referências CHORLEY, R. J. Geomorphology and the general systems theory. U.S. Geol. Survey, Professional Paper, 1962. CHRISTOFOLETTI, A. A geografia física no estudo das mudanças ambientais. In: CHRISTOFOLETTI, A.; BECKER, B.; DAVIDOVICH, F.; GEIGER, P. Geografia e meio ambiente no Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec, 1995. p. 334-345. CPRM. Carta geológica do Brasil ao Milionésimo. s.l.: CPRM, 2004. DUARTE, R. H. Notícias sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ______. O aventureiro de Filadélfia: Theóphilo Ottoni e a conquista do Vale do Rio Mucuri. Belo Horizonte: FAFICH – UFMG, s.d. ______. 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