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Expansão da agropecuária e terras comuns: quatro casos nos cerrados de Minas Gerais 1
Eduardo Magalhães Ribeiro
Economista, professor adjunto da Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, CPF 25447335604; pesquisador CNPq; [email protected]; CxPostal 37, 37.200-000, Lavras, MG.
Flávia Maria Galizoni
Antropóloga, pesquisadora do Núcleo PPJ/Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, CPF
934043106-59; bolsista CNPq; [email protected]; CxPostal 151,
37.200-000, Lavras, MG.
Grupo de pesquisa sugerido: Agricultura Familiar, 7
Forma de apresentação: apresentação em sessão com debatedor
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Este artigo foi parcialmente financiado com recursos do CNPq (CTHidro, Projeto 504.111/03-5, 2003/2006).
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Expansão da agropecuária e terras comuns: quatro casos nos cerrados de Minas Gerais
Resumo
A incorporação das terras de cerrado ao processo produtivo modernizado, ocorrida a partir dos anos
1970, promoveu um movimento de ocupação e tomada de terras pertencentes a comunidades rurais
que estavam há séculos assentadas nessas áreas. Essas terras foram usadas para plantio de eucalipto
ou lavouras anuais por parte de empresas de fora ou por pessoas da própria localidade, mas sempre
seu impacto foi significativo sobre os sistemas produtivos e regimes agrários locais. Este artigo
analisa quatro casos de ocupação de terras que eram usadas em comum - no Alto Paranaíba, na
Sanfranciscana de Januária, no Alto Jequitinhonha e na Mantiqueira ao sul - em Minas Gerais,
reunindo notas de pesquisa coletadas desde a década de 1980, de forma a desenhar um quadro
comparativo dessas diversas situações. Percebe-se que em cada uma das regiões um mesmo
processo básico - a ocupação de terras comuns - provocou efeitos semelhantes mas apresentou
desfechos absolutamente diversos. As terras da Mantiqueira serviram para enriquecer uma parte dos
lavradores da própria localidade com integração produtiva; as chapadas do Alto Paranaíba passaram
a criar algum emprego para os agricultores que as perderam e a proximidade dos sistemas
integrados abriram espaços de comercialização para fazendeiros e sitiantes tradicionais; os
eucaliptais do Alto Jequitinhonha provocaram uma elevação da pressão de uso sobre as terras
baixas de culturas, provocando redução no fundo comunitário de fertilidade; na Sanfranciscana de
Januária a falência das empresas e de seus projetos trouxeram as terras de novo ao uso comum.
Cada desfecho se associa à maneira como cada região se integrou ao projeto de modernização
agrícola dos cerrados; mas houve um forte componente das características e da trajetória local na
definição das iniciativas corretivas, dos pendores e fracassos que viabilizaram ou não a sobrevida
dos antigos regimes agrários.
Palavras-chaves: Minas Gerais, cerrados, agricultura familiar, bens e recursos comuns.
Introdução
Nos dez anos que medeiam o começo das décadas de 1970 e 1980 ocorreu uma rápida
expansão da agropecuária na vasta região dos cerrados situada a oeste, norte e nordeste de Minas
Gerais. O crescimento foi animado pelas políticas públicas do período e tinha como propósito suprir
com terras baratas e mecanizáveis uma produção que até então havia sido "fácil", porque era
baseada nas terras férteis das áreas de mata atlântica a nordeste, sudeste e sul do Brasil. Ocupar
terras de cerrado, conforme toda a literatura da época registrou, foi um desafio: exigiu um novo
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patamar produtivo, um vínculo orgânico da produção com a pesquisa agropecuária, um consumo
expressivo de insumos e um forte componente de liderança por parte do setor público.
Passadas três décadas há um certo consenso técnico que no cerrado ocorreu uma definitiva
integração entre agricultura e indústria e que o modelo de expansão - ressalvadas suas
externalidades inevitáveis como a profusão de problemas ambientais e culturais - foi um sucesso.
Nessa trajetória de crescimento, porém, há um aspecto que sempre insiste em ser lembrado: sobre
quais terras ocorreu essa expansão da agropecuária e quais foram as suas consequências?
Os cerrados foram cobiçados e explorados pelas características da topografia, os vastos
chapadões de gerais bruta que serviu durante séculos à pecuária vasqueira, ao extrativismo vegetal
e à caça mais ou menos assistemática. Eram terras de raro emprego produtivo, de preço geralmente
muito reduzido, que num período de tempo muito curto foram transformadas em plantações e
pastagens.
Ocorre, porém, que muitas dessas áreas eram dominadas - quase sempre com base no
costume e não legalizadas - por comunidades rurais. Eram áreas de fato ou de direito exploradas em
comum que serviam a muitos usos complementares à lavoura e criação, geralmente governadas por
normas costumeiras. Na maioria das vezes quando a agropecuária modernizada foi implantada
nessas áreas não houve muito cuidado com aquelas cadeias de domínio, que em sua maioria eram
realmente muito diluídas, antigas e frágeis, e foi assim que surgiram conflitos que acabaram tendo
desfechos muito diferentes: alguns foram encaminhados para a reforma agrária, outros para
demandas na justiça, outros para o campo dos direitos de etnias, outros ainda foram negociados em
particular.
Uma parte da literatura técnica da época registrou esses casos. Alguns deles foram mais
gritantes, como as populações indígenas e quilombolas; outros foram mais silenciados como os
geraizeiros e barranqueiros que mantinham relações muito esparsas com a sociedade envolvente;
de outros, ainda, foi registrada apenas a dor das perdas de terras e recursos que foram sorvidos por
fazendas e empresas. Em geral os autores desses registros associaram esse processo aos
cercamentos de campos que ocorreram na Inglaterra até o século XIX, os enclosures, e por isso
também encontraram o mercado de trabalho na porta que o camponês entrava ao sair do cerrado.
Isto efetivamente foi observado em muitos dos casos documentados principalmente nos anos 1970;
nos anos 1980 o fim do crescimento econômico, da ditadura e de postos de trabalhos fez com que
essa história fosse já outra, e as pressões pela tomada de terras encontraram respostas de
comunidades rurais organizadas que enriqueceram a crônica da década com os casos de resistências,
assassinatos e por fim com a politização da expansão da agropecuária nos cerrados, um assunto que
nos 1970 parecera tão técnico e tão trivial.
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Embora esses desfechos notáveis tenham recebido um destaque merecido na crônica ligeira
da imprensa e na reflexão mais apurada das teses acadêmicas, depois de passados já mais de trinta
anos é possível perceber que as privatizações ou tomadas de terras apontaram para uma diversidade
de situações maior ainda do que era possível supor no calor dos acontecimentos. Em muitas das
áreas a expansão perdeu fôlego pela ação da sua própria inércia ou da mudança de políticas
públicas, em tantas outras ocorreu uma acomodação por cima via consolidação de um mercado rural
de trabalho, e noutras ainda os benefícios da modernização tecnológica se espraiaram além dos seus
limites costumeiros abrindo uma inusitada oportunidade de inclusão. Essa diversidade de desfechos
é o tema deste artigo.
Terras comuns, destinos diversos
Este artigo procura sistematizar observações que os autores foram fazendo ao longo de
pesquisas realizadas entre 1984 e 2004 sobre populações rurais, em sua maioria agricultores
familiares, que em certos momentos de suas trajetórias, com maiores ou menores constrangimentos,
se viram de frente com a perda de terras e recursos comuns. O objetivo do artigo é analisar como
essas perdas foram absorvidas pelas comunidades rurais e quais circunstâncias ou aspectos
influíram para que situações aparentemente tão iguais - a perda das áreas comuns - desembocassem
em dinâmicas tão diferentes entre as regiões. Não se procura, portanto, avaliar a dimensão das
perdas, e sim compreender como a combinação de elementos fundamentalmente locais moldaram
trajetórias absolutamente específicas, embora mediadas pela mesma lógica e estratégias de
reprodução.
As pesquisas que deram origem ao artigo tiveram, sempre, a população local como temática.
O método de levantamento de informações, nos diversos casos, foram as entrevistas exaustivas, as
visitas repetidas às unidades de produção, a participação em eventos comunitários, a permanência
às vezes prolongada nas casas de famílias ou o acompanhamento por longos anos das organizações
regionais. O artigo resulta, portanto, do rescaldo das notas de muitas cadernetas de campo,
recompiladas a partir de uma pergunta básica: depois da perda das terras comuns em determinada
região qual foi o destino daquela comunidade atingida?
As pesquisas que deram base ao artigo foram realizadas nas regiões do Alto Paranaíba, a
oeste de Minas Gerais, entre 1984/1985 e 1997/1998; no Norte, alto-médio São Francisco, entre
1986/1988 e 2002; no Jequitinhonha, a nordeste, entre 1992/1993 e 2002/2004; na Mantiqueira, ao
sul, em 2002. Em todas essas regiões estiveram presentes ações modernizadoras do rural,
comunidades de produtores familiares, políticas públicas e terras e recursos comuns. A combinação
de elementos aparentemente equivalentes, porém, não implicou em igualdade de situações ou de
desfechos. Vale notar que foi necessária uma compreensão ao mesmo tempo mais holística e mais
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local das circunstâncias, porque em cada caso a ação de um fator óbvio, como por exemplo o
mercado, foi temperada pela capacidade de recombinação de tantas outras forças que se tornava
difícil reconhecer a mesma instituição nas diversas regiões.
Ainda é necessário fazer alguns esclarecimentos sobre os conceitos usados neste artigo.
O primeiro deles é o de "modernização da agropecuária". Este conceito foi usado de forma
mais ou menos generalizada até os anos 1970 com um sentido próximo do senso comum,
considerando como o equivalente à substituição das relações e processos produtivos característicos
da situação de "atraso" pelas transformação sobretudo tecnológica da agropecuária. O termo, porém,
tem outra acepção mais complexa, usada por Celso Furtado em vários textos, e neste caso ele
identifica aquelas situações em que ocorrem mudanças de aparência em processos produtivos ou
sociais que não conduzem a transformações integrais, acentuam desigualdades e se concretizam
sempre como processos parciais de assimilação técnica ou cultural. É neste sentido que o termo é
empregado aqui.
O outro conceito que necessita de uma certa lapidada é o de agricultura familiar. Para dar
maior precisão a essa referência é necessário esclarecer que neste caso o conceito se remete sempre
àquele segmento mais profundamente identificado com um território delimitado e práticas culturais
específicas, e se situa neste conjunto bastante genérico que tem sido denominado de populações
tradicionais rurais. São segmentos da agricultura familiar não integrada, com regimes fundiários e
técnicas agrícolas muito específicas. Costumam gerir em conjunto os recursos naturais e fundiários,
manter uma relação muito próxima da coleta ou beneficiamento primário de produtos da natureza,
e, assentados em territórios muito definidos têm permanecido na maioria dos casos à margem da
expansão da agricultura comercial (Soares, 1981; Almeida, 1989; Galizoni, 2000). Para
compreender esses regimes de domínio e uso de terras e distingui-los das outras formas de
apropriação - como a propriedade privada, pública ou do Estado - Diegues (1995) denomina-as
populações tradicionais e delimita sua emergência a territórios marcados por fronteiras definidas,
normas coletivas de formulação de regulamentos internos, controle comunitário dos recursos
naturais, sanções específicas aplicáveis ao descumprimento destes regulamentos e mecanismos
internos de negociação dos conflitos. 2
Nas partes seguintes do artigo é analisada, primeiro, a lógica de modernização dos cerrados;
em seguida são apresentados os históricos dos quatro casos e, por fim são feitos comentários
conclusivos e comparativos entre as diferentes situações.
A modernização dos cerrados
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Para discussão detalhada sobre esses aspectos consultar McKean e Ostrom (2001), Ostrom (1990) e Burke (2001).
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Os cerrados ocupam um terço do território brasileiro; em Minas Gerais ocupam praticamente
todo o oeste, noroeste, norte e parte do nordeste. Geralmente são áreas de terras planas, de
vegetação arbustiva, arbórea ou de campos. Tecnicamente essa vegetação tem quatro gradações,
que podem ser encadeadas ou alternadas, com o predomínio da apenas um dos tipos. Há o cerradão,
formado por árvores de porte elevado, quase iguais às florestas; há o cerrado propriamene dito, de
vegetação arbustiva, cascas e folhas grossas, troncos retorcidos formando quase sempre uma massa
de vegetação compacta. Onde os arbustos que caracterizam o cerrado são espaçados, entremeados
do gramíneas - conhecidas como capim-do-campo, flecha ou barba-de-bode - é o campo sujo, e ,
finalmente, onde ocorrem apenas os capins é o campo.
Desde pelo menos o século XVIII os cerrados mineiros foram sendo ocupados pela criação
extensiva de gado, pelas lavouras de mantimentos e por grupos de caçadores, mineradores e
coletores. Conforme descreveu Saint-Hilaire, a pecuária da região era super-extensiva, havendo de
rarro em raro, a cada 3 ou 4 léguas a sede de uma fazenda; segundo o autor os campos eram
sistematicamente queimados a cada dois anos, o gado pastava na solta desses campos e os
lavradores faziam suas lavouras nas áreas mais próximas às nascentes, as terras de culturas, de
vegetação e solos mais nobres. Os campos, assentados sempre em terras mais altas e planas,
conhecidos em alguns locais como chapadas, gerais ou maravalhas, eram considerados como
"terras de fazer longe", isto é, terras que serviam principalmente para aumentar distâncias.
No entanto, desde meados do século XIX o cerrado foi objeto de atenção dos cientistas.
Eugênio Warming (1973) é considerado o pioneiro nesses estudos: durante os três anos que passou
em Lagoa Santa em companhia de Peter Lund, de quem era assistente, pesquisou o clima, a
vegetação e o regime hídrico para formular algumas hipóteses sobre aquele bioma. Warming
suspeitava que a escassez de chuvas e o fogo eram os responsáveis pelo caráter raquítico, tortuoso e
falho da vegetação. Acreditava que o fogo, principalmente, servia para expandir as áreas de cerrado.
Durante muitos anos as hipóteses de Warming dominaram, mas uma concepção diferente
surgiu a partir das pesquisa de Mário G. Ferri. Na década de 1940 ele observou que a vegetação do
cerrado poderia não ser condicionada pelo fogo e suas pesquisa mostraram que o solo profundo do
cerrado continha água. Nos anos 1950 as pesquisas apontaram que o solo, mais que qualquer outro
fator, influi na distribuição espacial dos cerrados, e a ação do fogo poderia, quando muito, ter
ampliado a área. As árvores retorcidas e de casca grossa assumiam essa forma pela elevada acidez
do solo e em decorrência da escassez de macro nutrientes - fósforo, cálcio, nitrogênio, potássio,
magnésio e enxofrre - desaparecidos do solo pela formação de compostos insolúveis, não-trocáveis
ou lixiviados. Como se estes elementos que estão geralmente disponíveis na superfície de terras
mais férteis fossem drenados para profundidades inacessíveis às raízes das plantas, numa espécie de
erosão "para dentro", na vertical.
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Foi a partir dai que que Ferri formulou a hipótese do "escleromorfismo oligotrófico"
(Goodland, 1971), ou seja que a vegetação tem aquele aspecto tortuoso e de cascas grossas
("escleromorfismo") por escassez de nutrientes disponíveis e trocáveis no solo ("oligotrofismo"). O
"gradiente fisionômico" do cerrado - cerradão, cerrado, campo-sujo e campo-limpo - é determinado
pelo "gradiente de oligotrofismo": as formações arbóreas são determinadas por diferentes graus de
fertilidade natural da terra.
Uma forma didática de acompanhar a evolução das pesquisas sobre cerrados são os anais
dos "Simpósios sobre o cerrado", organizados pelo professor Ferri a partir de 1962. No primeiro
deles as comunicações versam sobre aspectos conceituais de química e botânica, da mesma forma
que o segundo (1965). No terceiro (1971) e quarto (1977) Simpósios, embora ainda existam essas
comunicações, elas vão sendo sobrepujadas por experimentações agronômicas: são relatos de
plantios e adubações, proposições de manejo de solo, plantas e rebanhos. A partir da década de
1970 grande parte da produção científica sobre o assunto passou a ser quase exclusivamente
subordinada aos interesses imediatamente produtivos.
A experimentação agronômica sobre o cerrado nasceu na década de 1940, a partir da
Estação Experimental de Sete Lagoas, do Ministério da Agricultura, que depois tornou-se Instituto
de Pesquisa Agronômica do Centro Oeste (IPEACO) e por fim Centro Nacional de Pesquisa do
Milho e Sorgo, da Embrapa. As pesquisas obedeciam a dois parâmetros fundamentais: primeiro,
descobrir formas de tornar disponíveis os macro-nutrientes, de forma que as plantas pudessem
crescer a partir de sua oferta; segundo, desenvolver variedades adaptadas a estas condições, aptas
para resistir à rudeza das condições do cerrado.
Para que os nutrientes ficassem disponíveis para as plantas foram adotadas as práticas de
calagem e fosfatagem. Foi em Sete Lagoas, no começo dos anos 1950, que os pesquisadores
começaram a usar o calcário - em substituição da farinha de ostras usada até então usavam - como
corretivo dos solos e medir seus efeitos. A partir dai, sucessivas experiências de dosagens e plantas
terminaram por criar uma base relativamente sólida de conhecimentos, que de maneira geral já
estava à disposição dos agricultores no começo dos anos 1970. O modelo adotado desde então
passou por alguns ajustes mas no essencial permanece o mesmo: a análise química constata as
deficiências do solo; o técnico faz a recomendação de calcário suficiente para reduzir a acidez do
solo; em seguida se aplica o fosfato, e passado algum tempo esses compostos dão às plantas
condições de absorver os nutrientes. 3
Para a agricultura empresarial, descobrir o cerrado para sua exploração foi um excelente
negócio. Área imensa de terras aproveitávis para as operações motomecanizadas em virtude da
topografia plana, com solos possíveis de serem transformados, com cllima e regime hídrico
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propícios para a prática agrícola, localização privilegiada em relação aos grandes mercados
consumidores e dispondo de infra-estrutura viária relativamente bem montada: era o que se falava
na época; mas ainda, e talvez principalmente, o cerrado carecia de um volume imenso de insumos
para tornar-se produtivo. Essa exploração emrpresarial dos cerrados ensaiou seus primeiros passos
em 1971/72 com o Programa de Crédito Integrado, PCI, coordenado pelo Banco de
Desenvolvimento de Minas Gerais e a então ACAR; seus resultados controversos, porém,
conduziram à formulação do PADAP, que foi definitivamente o primeiro programa de ocupação
empresarial de larga escala no cerrado. Na sua gênese o PADAP aproveitava o modelo de ação
concentrada do PCI, com a diferença essencial de concentrar recursos num segmento e região
específicos e delimitados; neste sentido, o PADAP foi uma inequívoca demonstração de força e
prestígio político da burocracia agrícola mineira. Depois dele veio a enxurrada de recursos do
POLOCENTRO e depois os demais programas setoriais de integração (Ribeiro, 1986).
A partir dessas iniciativas do governo mineiro nasceu a exploração empresarrial dos
cerrados, que apresenta algumas características estruturantes e persistentes que merecem ser
comentadas, pois ao mesmo tempo precedem e subsidiam do ponto de vista cultural esta
exploração.
Em primeiro lugar existe a noção consolidada que aquela área estava vazia e aquelas eram
terras desocupadas. Isto fica explícito ou implícito nos diversos estudos oficiais e privados, mesmo
onde dados de ocupação da terra não podem ser completamente escamoteados. Quando se constata
ocupação dessas terras, sempre se constata a baixa produtividade e os magros retornos desses
empreendimentos de tipo tradicional no cerrado.
Em geral, poré, o cerrado era considerado o grande "vazio" nacional. Isto é notado em
diversos estudos, artigos e relatórios dos anos 1970, como num dos registros mais nobres que é o
documento da JICA de 1979:
"Há na região centro-oeste do Brasil uma extensa área inexplorada, com cerca de 1.300.000
km2 de superfície (aproximadamente maior que todo o território japonês), estendendo-se
pelos estados de Goiás e Minas Gerais."
Desse ponto de vista, que não era exclusivo da JICA, o cerrado aparecia como área vazia de
população, de capital, de exploração e produção. Por isso se explica o fato de se falar geralmente
em "ocupação" dos cerrados, na "nova terra", em cerrado como "fronteira agrícola". Assumindo tal
prespectiva, qualquer "ocupação" que se faça é melhor que o "nada" existente. 4
Por essa razão, também, as avaliações de desempenho dos programas do cerrado enfatizam
não um crescimento da produtividade, mas o nascimento da produção ou de uma nova
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Pesquisador Renato Coimbra, EMBRAPA, entrevista, julho 1983; ver Ribeiro, 1986.
Sobre esta noção ver relatórios da Ruralminas entre 1973 e 1979; relatórios da CAMPO de 1981 e 1982.
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produtividade; não o crescimento do emprego, mas a geração do emprego. Por essa forma forma de
compreender a expansão da agropecuária nos cerrados os resultados sobre a população estabelecida
há muito na região tendem a não existir ou serão sempre muito positivos. De qualquer forma,
partindo de um suposto "vazio", a população local só poderia mesmo ser beneficiária dos projetos,
pois há troca do "nada" pela "ocupação". Esse enfoque tem uma grande difusão na rica literatura
técnica sobre o cerrado.
Mas regra geral - e colocada desta forma a concepção é absolutamente hegemômica - o
cerrado é considerado como o grande "vazio" de capital. Isto é exposto de maneira muito clara pelo
ex-ministro Alysson Paulinelli:
"O cerrado era a 'terra de fazer longe'. A não ser uma pecuária extrativa muito incipiente ele
não tinha outra atividade. Se você procurou analisar bem o cerrado, pode olhar que isso
ainda existe até hoje. A população era muito rarefeita no cerrado e vivia quase sempre em
torno dos cursos d'água, levando uma vida muito precária, típica da agricultura de
subsistência só. Plantava uma mandiocazinha, perto da nascente um arroz, e vivia da
exploração do gado, muito irracionalmente. Então era um vazio, era uma expectativa. Bom, a
proximidade dos grandes centros consumidores, a infra-estrutura já existente, e
principalmente a confiança de que o Brasil já dispunha de uma tecnologia para isso, nos
levou a fazer projetos de ocupação do cerrado."
Exposta dessa forma fica clara a noção de vazio de capital: o caráter de subsistência é
contraposto nessas formulações ao caráter empresarial moderno - era uma expectativa, afinal.
O segundo aspecto notável no discurso da expansão dos cerrados é que a região deve ser
explorada com capitalização intensiva da atividade produtiva; esta era a única forma possível de
fazer agricultura na região. Um marco nessa concepção é o estudo coordenado pelo IPEA (1973):
nele a pesquisa saiu definitivamente dos aspectos botânicos/agronômicos/pedológicos e enveredou
para o rol das considerações econômicas. Aquele estudo concluía que sob o manejo "primitivo" o
potencial dos solos do cerrado era extremamente baixo; ao contrário, sob manejo "desenvolvido" a
capacidade de produção melhorava significativamente:
"A observação de vários manejos propostos indica que de modo geral, a melhoria no sistema
de manejo faz com que áreas de classe inferior sejam classificadas com melhor aptidão
agrícola, de onde se conclui que, somente com nível mais elevado de tecnologia grandes
exteensões de terra poderiam ser incorporadas ao processo produtivo. A este respeito parace
não existirem mais dúvidas de que para a exploração agropecuária nas áreas de cerrado não
se pode mais valer dos métodos tradicionais." (IPEA, 1973)
A partir daí foi surgindo a orientação técnica para a "ocupação" da região. A diferença de
renda gerada pela terra mais fértil seria compensada por um grande aumento da produtividade e da
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escala de operações, suficientes para diluir os custos diferenciais de produção do cerrado. Assim, a
exploração dos cerrados será sempre considerada um empreendimento intensivo em capital.
O terceiro aspecto que merce destaque é o perfil do agricultor. Para levar à frente o
empreendimento de uma nova agricultura, era preciso um também novo agricultor, despido dos
sestros do manejo tradicional. Vem dai a ênfase no agricultor do sul ou do sudeste, no gaúcho, no
japonês e na empresa de perfil urbano. A educação formal, a experiência com os bancos e
cooperativas passaram a ser referências fundamentais para engajamento nessas iniciativas, pois
apenas agricultores de perfil moderno têm a apptidão gerencial necessária. Formou-se assim um
círculo vicioso, onde o ponto de partida é uma área precisando de capitalização, mas isso exige um
processo intensivo e um novo agricultor. O cerrado demanda uma exploração, como se dizia,
moderna. Por essas razões se justificavam as propostas de ações transformadoras, e apenas neste
sentido foi concebid a possibilidade de exploração dos cerrados, e a produção - moderna - já emerge
associada ao adubo e ao veneno, à máquina e ao crédito; a exploração do cerrado, conforme disse o
então presidente da CAMPO, "já nasce moderna", realizando de forma plena os objetivos de
mudança na agricultura que durante anos foram perseguidos pelos governos, agroindústrias e,
sobretudo, pelos técnicos do setor público.
Quatro casos de terras perdidas
Alto Paranaíba, a Oeste: os chapadões do PADAP
Desde, pelo menos, o século XIX a região dos cerrados a oeste de Minas Gerais foi sendo
ocupada por lavouras e sistemas de criação. Segundo Saint-Hilaire (1975) o povoamento foi
estimulado pelas minerações do Paracatu e Desemboque, e a criação de gado foi apoiada
principalmente pelas salinas das chapadas. Os campos eram sistematicamente queimados e o gado
pastejava livre por léguas em roda; nas terras baixas das culturas de vegetação de porte elevado e
solos mais férteis, eram usadas para fazer roças de milho e feijão.
A região onde foi implantado o Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba,
PADAP, a partir de 1974, era um chapadão de 60.000 hectares contínuos, dos quais 30.000 hectares
eram de um único dono - Antônio Luciano Pereira; a outra metade era de muitos fazendeiros e
sitiantes que exploravam as terras de cultura e criavam na solta no chapadão sem cercas ou divisas,
que todos, inclusive o maior fazendeiro, desfrutavam em comum nos tempos de chuvas.
O projeto, em linhas gerais, compreendia a desapropriação de área contínua, o assentamento
de colonos ligados à Cooperativa Agrícola da Cotia - CAC -, a implantação de armazéns e
agroindústrias, o plantio mecanizado de grãos no cerrado em lotes. Selecionados pela CAC, com
assistência técnica da antiga ACAR, depois Emater MG, supervisão da Ruralminas e fornecimento
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de crédito pelo BDMG, os colonos plantariam uma pauta diversificada de bens: "arroz, cebola,
cenoura, feijão, milho, soja, sorgo, tomate, trigo sarraceno, café, batata e fruticultura, além do
reflorestamento, avicultura e suinocultura" (Ruralminas, 1974). Depois a pauta produtiva foi
substancialmente reduzida, passando a produzir principalmente soja, café e milho. A criação do
Polocentro em 1975 abriu novas e bartas linhas de crédito aos assentados que deslancharam
definitivamente como produtores na segunda metade dos anos 1970. Desde então o PADAP passou
a ser uma referência de sucesso em termos de projetos de exploração dos cerrados.
O esplendor da expansão deste programa foi limitado no começo dos anos 1990: a falência
da CAC colocou muitos dos colonos numa situação muito difícil. O começo dos anos 1990 foi um
período de ajuste, com os colonos muito endividados e perdendo a estrutura mundial de negociação
da CAC. Só se reergueram, e mesmo assim, parte deles, na segunda metade dos anos 1990 com uma
produção mais especializada, voltada fundamentalmente para cenoura e grãos.
Fazendeiros e sitiantes desde os anos 1970 perderam suas terras de soltas de gado; foram
obrigados a concentrar a produção nas terras de cultura, a aumentar os trabalhos com os cuidados
com o gado e a conviver com uma especialização produtiva avassaladora nos chapadões. Isto
provocou uma desqualificação produtiva muito sentida, que era relacionada aos tratos desiguais de
produtores brasileiros ou nativos - eles próprios - e japoneses - os colonos da CAC.
Mantiqueira, ao Sul: os campos compartilhados
Os terrenos familiares de Bom Repouso, na Mantiqueira aos Sul de Minas Gerais, quase
sempre são organizados em três espaços principais: área de lavoura, área de pasto e área de mata.
Esta combinação tem por finalidade associar usos e necessidades produtivas das famílias, cada terra
tem um uso, e são classificadas por relevo, clima, textura e cor.
A divisão entre as qualidades de terra de campo e cultura é básico no sistema produtivo das
famílias agricultoras. Os campos localizam-se nas partes altas do relevo, são no geral terras frias,
secas, com vegetação baixa como a fruta-de-porco, a carqueja, o capim-do-campo e a vassoura-docampo, pouco férteis para se fazer lavoura: as plantas nascem, mas não encorpam. Mas os campos
não são todos iguais, possuem diversidades internas: existe o campo carrasco, que antigamente não
dava mantimento, era cheio de samambaia, mas que depois pôde ser “corrigido” com calcário e se
transformou em terra para lavoura de batata; existem os campos secos ou de capim, compostos só
por capins nativos e usados somente para pastagem; há ainda as campanhas, que são espécies de
campos que se localizam tanto em terras altas quanto nas baixadas. As terras denominadas de
cultura situam-se nas partes baixas do relevo, possuem clima quente se comparadas com os campos,
são úmidas, férteis e melhores para lavoura de mantimento, possuem vegetação de madeira mole
(sem cerne) como o assa-peixe e também de “madeira de lei” como o cedro – terrenos que têm
cedro são os mais férteis, o milho nasce sem adubo – e o jacarandá, capim meloso ou gordura, e um
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arbusto nativo denominado localmente de picuia que os agricultores consideram uma praga, mas
que, segundo eles, é também indicador de terra forte. Afirmam que a terra de cultura enfeia a batata,
que prefere a terra fria.
Há ainda os matões ou matas virgens. Os matões são classificados pelo uso, pois em alguns
é possível plantar, em outros não. Existem também os terrenos de capoeira: compostos por mata
baixa, fina e nova, são diferentes de matão porque quase não possuem “madeira de lei”, e não são
terras naturalmente férteis para o plantio de milho e feijão. Glebas de matão eram – e ainda são –
reservas de recursos naturais: nelas quase sempre estão situadas as minas d’água, as madeiras de lei
que são muito apreciadas para construções e também diversos tipos de cipó, taquara e lenha. As
principais madeiras de lei que caracterizam os matões são o jacarandá, cedro, cajarana, guatambu,
maçaranduba, pereira, jequitibá. São árvores que quase não rebrotam quando cortadas – “Não dá
brota: cortou, acabou” –, por isso são demoradas para renovar – só por sementes – e mais raras; o
cálculo de uso delas tem que ser bem pensado. Os matões possuem uma situação singular: estão
locados numa terra particular, mas o uso de alguns de seus recursos vegetais pressupõe normas
diversas; os vizinhos entram e colhem madeira seca principalmente para lenha, mas também
taquara, cipós etc. Estes recursos são percebidos como comunitários. Já as madeiras de lei não são
tocadas, pertencem ao dono da terra. Também a água para ser captada no olho da mina no matão
precisa de pedir consentimento.
Mesmo nos dias atuais, quando não se encontram áreas comuns no bairro, os matões
persistem como área de reserva de recursos da natureza que são usados pela comunidade, mesmo
que a contragosto dos donos dos terrenos, que não têm força moral para coibir a coleta nessas áreas.
Os dons da natureza permanecem como dádivas comuns.
É o que se observa também em relação à araucária. Os bosques desses pinheiros se
localizam em áreas que se transformaram em lavouras ou pastagem, mas seus frutos (os pinhões)
são objeto de coleta da comunidade, não importando em qual terra estejam. Os pinheiros, além dos
frutos, fornecem madeira, mas esta pertence ao dono do terreno.
Há muito tempo atrás essas terras não produziam mantimentos; eram consideradas terras
fracas, pouco propícias para lavoura, mas reputadas boas para criar gado e suínos – capados. Só era
possível fazer lavouras na cabeceira das águas. Mas, eram lavouras pequeninas: plantavam milho,
muito pouquinho de feijão. Os moradores trabalhavam nas terras de cultura de outros bairros rurais
da região onde havia terra mais “quente”, cultura boa para plantar milho e feijão. Trabalhavam no
“fôro”, pagando renda na terra de outros; plantavam feijão da seca em fevereiro e o colhiam em
abril, nas águas plantavam milho. As famílias coletavam muito pinhão da araucária, que trocavam
por arroz com moradores de outros bairros e comerciantes, à proporção de dois litros de pinhão por
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um de arroz. As famílias criavam gado e animais no aberto, na terra de campo sem cerca; só
fechavam o terreno de beira d’água enquanto ele estava com a lavoura de milho.
Até o final dos anos 1960 era costumeiro plantar só nas terras mais baixas e quentes:
culturas; os terrenos de campo eram abertos, sem cercas, usados para soltar o gado na época das
chuvas. No inverno o rebanho era trazido para pastar os restos de lavouras das terras de cultura
porque o frio matava o capim dos campos. Foi por volta da década de 1970 que as terras foram
cercadas e repartidas, e as famílias iniciaram o plantio da batata. A terra de campo, até então inútil
para agricultura, foi “corrigida” com calcário. Depois da adição do calcário, só necessitava de
colocar adubo químico na terra; oito anos após os primeiros plantios de batata, a terra foi sovando e
se cansou, começou a dar praga nas batatas que ficavam todas furadas. Aí eles foram obrigados a
usar veneno na lavoura; desde então não pararam de usá-lo. A terra só se tornou propícia para
lavoura depois da batata, ou seja, depois do advento da correção do solo.
Alto Jequitinhonha, a Nordeste: grotas e chapadas
No alto Jequitinhonha, no cerrado e outras vegetações de transição, encontram-se grandes
planaltos formados por terras planas, as chapadas, que são entremeadas por vales profundos e
estreitos, as grotas. Naquelas a terra pouco fértil e a vegetação rasteira ou arbustiva limitaram as
possibilidades de fazer agricultura. As grotas, pelo contrário, embora ocupem menor área no
conjunto da região, são caracterizadas pela fertilidade natural, presença de água e vegetação de
floresta, denominada localmente capões de mata. O povoamento do alto Jequitinhonha concentrouse nas áreas de grotas, onde os pequenos produtores podiam fazer roças de mantimentos utilizandose da abundância de recursos naturais: florestas, água e fertilidade. Essas terras de grota foram
usufruídas e vem sendo partilhadas entre lavradores desde começos do século XVIII; cada grota
com sua nascente compõe uma rede familiar de domínio da terra e história compartilhada entre um
determinado grupo de parentesco, que é denominado comunidade rural.
Nas comunidades os recursos naturais e a terra não são objeto de apropriação privativa
contínua, pois há serventia mais imediata para as lavouras apenas nos capões e parte dos carrascos,
terras de encostas. Campos e chapadas servem para criação de animais e extração; historicamente
foram e são áreas de apropriação coletiva e livre, submetidas a um controle diferente do domínio
mais pleno que se manifesta sobre as terras dos capões e carrascos. Por isto nas comunidades
existem um conjunto de normas de uso ambiental muito rigorosas. As áreas em lavoura são
definidas com cuidado, a criação de gado é regulamentada e às vezes proibida, porque prejudica
plantios e terrenos em descanso. Algumas comunidades regulam o acesso às matas comunais e
estabelecem restrições ao uso das águas, áreas de garimpo e terras comuns (Galizoni, 2000; Ribeiro
e Galizoni, 2000).
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Os agricultores utilizaram nas suas explorações familiares sistemas de pousio que consistiam
em plantar por 3 ou 4 anos determinada gleba, abandonando-a em seguida por 10 ou 12 anos para
permitir a recomposição de vegetação e fertilidade. Ao final deste período de pousio retornavam às
glebas recompostas para reiniciar o processo.
Na medida que os estoques de recursos naturais reduziram-se, foram sendo objeto de
escrupuloso cuidado e delicado estudo. Os agricultores do alto Jequitinhonha sistematizaram
reuniram conhecimento sobre o meio, regularam o consumo pelo que o ambiente fornecia e
transformaram a escassez - de lenha, madeira, água, frutas - em normas de convívio
consensualmente respeitadas pelas comunidades. Ajustaram suas lavouras aos ciclos de seca e
s'águas, e selecionando variedades adaptadas ao local aprenderam o quê, como, quando e quanto
suas terras podiam produzir.
Os plantios são espalhados pelos sítios, pois cada mantimento é plantado na terra onde
melhor se adapta: terras para feijões ou cana, terras de mandioca ou de arroz; cada uma exige
conhecimento e manejo específico. Cada lavoura demanda roçada e fogo diferentes; nunca põem
qualquer fogo numa roça e sim o fogo que ela precisa, e estes podem ser de variados tipos: de roça
nova ou velha, de pasto, de capoeira; fogo de limpa ou adubação, fogo para feijoal ou mandiocal,
fogo da seca e de Santana. Intensidade e duração são determinadas pelo modo como o lavrador
derruba a madeira, pelo tipo de madeira existente - capão, capoeira ou carrasco -, pelo
encoivaramento, pelo instrumento - foice ou machado -, estação e horário que é posto o fogo. A
combinação dessas situações ajusta terra e planta para alcançar o resultado produtivo e cultural que
é a roça.
O extrativismo, por sua vez, é um componente ao mesmo tempo periférico e fundamental
nos sistemas de produção. Periférico por conta da sua não assiduidade: os agricultores extraem
geralmente ao longo de uma caminhada, no caminho da roça, em ocasiões específicas; assim, não
há uma certeza cotidiana da extração e tampouco é realizada pelos trabalhadores adultos, restando
geralmente para as forças auxiliares, os idosos e crianças. Mas é fundamental dada sua constância
no correr do ano e sua importância na dieta, na produção de energia e de bens de uso doméstico
(sabão, remédio, ornamento, etc).
Num cenário de migrações rural/urbano e as sazonais acentuadas e quase ausência de
produção mercantil, o Estado, a partir dos anos 1970, começou a propor medidas corretivas, tanto
assistenciais quanto desenvolvimentistas para a região com as políticas de planejamento regional.
Foi instituída agência regional de fomento, CODEVALE, cuja ação nunca deslanchou; na segunda
metade dos anos 1970 foram alocados créditos para plantio de eucaliptos em larga escala, o que
acarretou um processo de tomada de terras de comunidades, expropriando lavradores de grande
parte de seus campos de extração e pastoreio, as chapadas. Posteriormente os eucaliptais foram
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responsabilizados pelos danos ambientais, como a redução das águas e acentuação do pastoreio nas
áreas de áreas de grotas. Monopolizadas por grandes empresas, quase todas do Sudeste, as terras das
áreas planas de chapadas converteram-se em grandes desertos verdes, pois após 20 anos de
plantados há mínimo uso econômico dos eucaliptais para madeira e lenha.
Sanfranciscana de Januária, ao Norte: gerais dos Cóchos
Os campos gerais, típicos dessa região na margem esquerda do rio São Francisco, são
chapadas extensas e pouco elevadas, cobertos por vegetação rasteira e arbustiva, assentada na
maioria das vezes sobre solos muito pobres, arenosos e secos. Essa paisagem é recortada de tempos
em tempos pelas veredas, cercadas por buritizais e pindaibeiras, que conferem à região sua
característica própria, de alternar grandes áreas de chapadões com os embrejados das veredas.
Essas terras sempre foram ocupadas pela população rural da região numa combinação
alternada de gerais (chapadas), vazantes (beiras de brejos) e mata seca (culturas): as matas eram
usadas no tempo das águas para plantio e para criação na estação seca; os gerais eram usados para
solta de gado na estação das águas; as beiras de brejos eram usadas para plantios irrigados de
mantimentos na seca. As terras mais embrejadas de beiras de veredas e córregos começavam a ser
trabalhadas depois da quaresma, plantada de feijão da seca; em junho era plantado o feijão-desantana mais as miunças - legumes e verduras. Este esquema permitia ao produtor explorar de
maneiras absolutamente diferente as terras de natureza diferente. As águas nascem sempre nas
terras ruins de gerais: tem proteção do buriti e da pindaíba, desce depois às culturas onde é mais
desprotegida e mais usada.
A terra fraca e seca dos gerais encobre uma portentosa qualidade: nela que estão os frutos, as
plantas medicinais e o pasto, pouco mas diversificado de leguminosas e capins-de-campo. Por isso
nunca se concebia uma exploração familiar sem gerais, vazante e cultura, sem essas possibilidades
de combinação que faziam do agricultor um criador extensivo nas águas e intensivo nas secas, pois
quando acabavam as chuvas seu movimento se reduzia, dos vastos chapadões se concentrava na
borda da casa, na irrigação da vazante, no cuidado com os animais soltos nos piquetes restritos das
terras de culturas que foram lavouras no tempo das águas.
Os gerais eram áreas comuns; quer dizer, eram terras com donos, mas ninguém se importava
se o gado de outro pastasse por suas terras, pois naquelas áreas sem fechos o proveito da criação
estava justamente no poder andar muito, e encontrar barreiros e salinas, águas e leguminosas. Às
vezes o gado de muitos donos, de várias comunidades, se irmanava e pastava por áreas
quefacilmente ultrapassava 50 quilômetros da casa do dono. A técnica de junta de gado consistia em
colocar o sal nos cochos nas épocas de lua nova, e então o gado se chegava aos currais, pois na lua
nova seus corpos careciam de mais sal.
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Para suportar o manejo de gado o gerais deveria ser queimado de tempos em tempos: a cada
dois anos, três anos, em agosto ou setembro antes da primeira chuva. Nunca se devia queimar todo
o gerais de uma comunidade, mas apenas a metade; outra metade seria queimada no ano seguinte.
Depois da queima, com a chuva, em um mês o capim e as leguminosas estavam rebrotando, e então
os produtores tiravam o gado das culturas e o colocavam nos pastos de campos, onde ficariam até a
quaresma do ano seguinte.O gado emagrecido nos pastos estiolados da cultura já seca consertava
rapidamente o peso comendo grão-de-galo e caraíba, pequizeiro e unha danta, favela e cipótrindade. Se os campos não fossem queimados eles não teriam rebrota, ficava muito cru, cheio de
folhas secas no chão, com pouca revegetação; sem o fogo a cada dois anos, com o chão recoberto de
palha, a chapada ficava sujeita a incêndios arrasadores, demorados, que destruiam definitivamente
parte da vegetação, atrasava a frutificação das nativas, fornecia pouco alimento para o gado.
Quando o lugar fora queimado no ano anterior o fogo não rompia porque não faxina, não havia
muito o que queimar.
As culturas não eram queimadas. A madeira resiste pouco ao fogo, sua raiz é rasa, e por isso
faziam lá as roças de sequeiro sempre guiados pela qualidade da madeira, que indicava a fertilidade
da terra. Essas terras, ao contrário dos gerais, eram cercadas e privatizadas.
A partir dos finais dos anos 1970 essas terras de gerais começaram a ser privatizadas por
empresas de reflorestamento e carvoejamento. As empresas adquiriam grandes áreas de gerais e
cercavam outros tantos de terras ainda. Desmatavam aqueles campos com tratores de esteiras,
faziam carvão com a lenha rala das chapadas, e plantavam eucaliptos nos campos arenosos. Como a
terra tinha sempre um preço muito baixo, essas empresas incorporavam milhares de hectares ao
plantio de florestas homogêneas.
As comunidades rurais da região a partir dessa época perderam o acesso às chapadas.
Restritos à cultura e às vazantes, intensificaram seus sistemas de produção ainda mais naquelas
áreas reduzidas, conservando o gado pelo ano inteiro nas culturas, que passaram a ser plantadas de
pastos de capins brachiária e andropogon; lavouras ficaram mais restritas às vazantes.
Quatro destinos comparados: conclusão
No Alto Jequitinhonha a implantação dos eucaliptais promoveu um empobrecimento
material e cultural da agricultura familiar. Perdidas grande parte das chapadas, perderam-se campos
de coleta e de produção de água, áreas de solta de animais e retirada de madeira. Isto pressionou
muito o consumo de recursos nas terras baixas das culturas e forçou a queda da sua fertilidade. De
todos os casos observados é onde se pode concluir que os efeitos da tomada de terras foram mais
absolutamente negativos.
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Na Mantiqueira, ao contrário, os campos foram incorporados à produção pelas próprias
famílias que os compartilhavam. Serviram, neste caso, para ampliação da produção nos padrões
técnicos de agricultura integrada. Promoveram elevação da renda e do emprego rurais, promoveram
uma requalificação do uso da terra; integraram lavradores como sócios do projeto de modernização
agrícola. Pesaram, neste caso, a acumulação prévia de bens e a característica marcadamente familiar
da agropecuária de toda a região.
Na região Sanfranciscana de Januária a falência gradativa das firmas de carvão e eucalipto, a
inadequação dos eucaliptais àquelas chapadas, promoveram a retomada informal das chapadas, e
seu uso meio sistemático pelos agriculltores da região dos Cóchos. Retornaram os mesmos antigos
sistemas de solta e de coleta, de queimada e de criação combinada de gado em gerais e culturas.
No Alto Paranaíba as terras privatizadas foram cada vez mais otimizadas: o manejo
tradicional das terras de cultura/cerrado perdeu força, tanto tecnica quanto culturalmente. Os
produtores da região se beneficiaram da integração produtiva da cadeia de laticínios e se
transformaram no que antes jamais foram: produtores especializados de leite em terras de culturas
ou assalariados temporários ou permanentes nas chapadas de produção intensiva.
Os efeitos dessas tomadas de terras foram amenizados por três ações estruturais que
contribuíram de maneiras diferentes para minorar suas piores consequências: a criação de
FUNRURAL e o estabelecimento de aposentadorias e pensões para trabalhadores rurais idosos, a
expansão do mercado de trabalho urbano que absorveu grande parte dessa força de trabalho liberada
do campo nos anos 1970 e a própria dinâmica de expansão da revolução verde, que incorporou
produtivamente muitos desses agricultores na condição de assalariados ou de produtores. Essa
amenização, porém, foi diferente por região e por período. Em cada uma delas, em épocas distintas,
essas ações estruturais foram mais e menos eficazes, mais e menos integrativas, mais e menos
duradouras; dependeu sobretudo da forma como a organização de cada região - história, iniciativas
locais, mercados - se encontraram com essas ações.
Pode ser notado tembém que os impactos das tomadas de terras, ao longo desses 30 anos,
não foram os mesmos, nem sempre foram diretos, e nem sempre colocaram os expropriados em
desvantagem. Na crise do começo dos anos 1990 os produtores integrados da CAC sofreram os
efeitos do endividamento e da queda de renda, enquanto os produtores de leite viviam na então
estável integração. No correr dos anos 1980/1990 a abertura do mercado paulista aos cortadores de
cana do Jequitinhonha propiciaram à agricultura familiar uma renda que não seria jamais gerada no
sistema de exploração que usavam nos campos. A crise da batata na Mantiqueira na segunda metade
dos 1980 promoveu uma revalorização dos sistemas produtivos diversificados e familiares das
terras de cultura.
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Assim, se percebe que há um dinamismo ativo nessas relações ente terras usadas e terras
perdidas, entre sistemas inovadores ou tradicionais, entre sistemas de sitiantes ou de empresas. Essa
dinâmica, às vezes cíclica, é que marca uma certa periodicidade de confrontos e ajustes, de
renovação de programas regionais de desenvolvimento, de redefinição do lugar dos atores no
cenário dos projetos.
Há, porém, algo que é comum a todos esses quatro casos: as consequências ambientais.
Tanto nas culturas quanto nos campos os efeitos da modernização agrícola foram devastadores.
Principalmente em relação às águas e recursos vegetais as consequências foram tão danosas que
seria necessário um novo artigo para começar a listar seus efeitos.
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